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El País: Atentados de direita fomentaram AI-5
Cinquenta anos depois do ato que sepultou as liberdades democráticas no país, a Pública obtém documentos que provam que foi a direita paramilitar, e não a esquerda, que deu início a explosões de bombas e roubos de armas
Por Vasconcelos Quadros, da Agência Pública
Documentos inéditos, guardados há meio século nos arquivos do Superior Tribunal Militar (STM), jogam luzes no cenário que levou ao recrudescimento da ditadura militar, com a edição do AI-5 (Ato Institucional número 5) em dezembro de 1968. Depoimentos de personagens, relatórios oficiais e uma infinidade de papéis anexados a processos que somam cerca de 10 mil páginas, ao qual a Pública teve acesso, demonstram que o AI-5 fez parte de um plano para alongar a ditadura com atentados a bomba em série, preparados no final de 1967 e executados até agosto do ano seguinte por uma seita esotérica, paramilitar e de extrema direita.
Até esse momento, episódios de ação armada da esquerda, que também ocorreram, eram apontados como causa para a decisão dos militares de endurecer o regime.
Comandadas por um líder messiânico a serviço da linha dura do governo militar, as ações terroristas da direita, que chegaram a ser atribuídas, equivocadamente, às organizações de esquerda, segundo apontam as investigações, tiveram como estratégia aquecer o ambiente como preparação do “golpe dentro do golpe”, o que daria ao regime uma longevidade de mais 17 anos.
Na cadeia de comando do grupo se destacam um general da reserva Paulo Trajano da Silva, que se dizia amigo pessoal do então presidente-ditador Artur da Costa e Silva, e, na linha de frente do plano, um complexo personagem, Aladino Félix, conhecido como Sábado Dinotos, líder da seita, mentor e também autor dos atentados.
Formado por 14 policiais da antiga Força Pública (como era chamada à época a Polícia Militar de São Paulo), todos seguidores fanáticos de Aladino Félix, o grupo executou 14 atentados a bomba, furtou dinamites de pedreiras e armas da própria corporação, além de praticar pelo menos um assalto a banco, plenamente esclarecido. Foram os pioneiros do terrorismo, e os responsáveis pela maioria das ações terroristas registradas no período – um total de 17 das 32 contabilizadas pelos órgãos policiais.
Primeiros atentados foram da direita
A evidência de que foi a direita quem tomou a frente nas ações que serviram de pretexto para o fechamento do regime aparece pela primeira vez num relatório do delegado Sidney Benedito de Alcântara, assistente do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), sobre o inquérito em que a polícia esclarece os crimes a partir de prisões ocorridas em meados de agosto de 1968. Com data de 18 de dezembro, cinco dias depois da edição do AI-5, o delegado afirma que os atentados da direita “começaram bem antes do atual terrorismo de esquerda”, numa referência ao início da fase mais acirrada dos conflitos armados que marcaram a fase mais dura da repressão política.
Pela cronologia das investigações, os paramilitares começam furtando dinamites, no final de dezembro de 1967, armas no Quartel-General (QG) da Força Pública em 16 de janeiro de 1968, e executam explosões de bombas entre 10 de abril até 19 de agosto, com atentados em série, o último deles dois dias antes de o grupo ser desbaratado.
Os alvos principais dos atentados, cuja autoria o grupo de Aladino Félix assumiria, foram justamente os órgãos que depois centralizariam a repressão contra a esquerda em São Paulo: o II Exército, cujo QG ainda funcionava na rua Conselheiro Crispiniano, o prédio do Dops, instalado então no largo General Osório, e o QG da Força Pública, na praça Júlio Prestes, todos na região central.
O grupo explodiu também bombas na Bovespa (Bolsa de Valores de São Paulo), no oleoduto de Utinga, em prédios onde funcionavam os setores de alistamento da PM (era Força Pública) e de varas criminais da capital (Lapa e Santana) e em pontilhões e trilhos que davam acesso à estrada de ferro que ligava o litoral e os subúrbios da região metropolitana ao centro da capital.
As ações de esquerda, porém, que mais tarde se alternariam com as da direita, se iniciaram apenas em 19 de março de 1968, com a explosão de uma bomba que feriu três estudantes na biblioteca do consulado dos Estados Unidos, no Conjunto Nacional, na avenida Paulista. O atentado mais grave, que matou o soldado Mário Kozel, sentinela do QG do II Exército, já funcionando no Parque Ibirapuera, só ocorreria em 26 de junho do mesmo ano.
O general Silvio Corrêa de Andrade, chefão da Polícia Federal em São Paulo, chegou a sustentar à época, em entrevistas, que o governo não tinha dúvidas sobre quem estaria por trás de todos os atentados. “Sabemos de onde partiu o golpe: foram os homens da esquerda. Mas acabaremos por agarrá-los”, disse ele.
O mesmo general se mostraria surpreso quando o grupo de Aladino Félix acabou se revelando através de uma investigação criminal de rotina, à revelia dos órgãos de informação do governo federal, que mirava apenas descobrir os autores do roubo a uma agência do Banco Mercantil e Industrial (BMI) de Perus, ocorrido no dia 1º de agosto de 1968.
Maconheiros e malandros
O delegado Ruy Prado de Francischi, lotado na 40ª DP, em Vila Santa Maria, na zona norte, rastreando os passos de “maconheiros e malandros”, conforme consta no relatório do Dops, recolheu informes sobre a quadrilha que roubou o BMI. O delegado descobriu que os assaltantes, com os rostos cobertos por lenços (estilo copiado dos filmes de faroeste, então a coqueluche de Hollywood), haviam rendido o vigia e funcionários da agência com armas furtadas do QG da Força Pública, em 16 de janeiro, de onde haviam sido levados uma metralhadora INA, três pistolas Walther e 13 revólveres Taurus.
Identificados, presos e conduzidos ao xadrez do Deic, os quatro assaltantes, todos já fichados à época por crimes comuns, depois de intensas sessões de tortura, contaram que o mentor do roubo havia sido o soldado da Força Pública Jessé Cândido de Moraes, o segundo homem na hierarquia do grupo. Preso no dia 21 de agosto, e também submetido a variados tipos de sevícias, o policial citou, pela primeira vez, o nome de Aladino Félix como um dos destinatários do dinheiro roubado.
Autor de livros sobre ufologia e de profecias bíblicas, místico venerado por um séquito, Aladino Félix tinha servido como militar na Segunda Guerra e era reconhecido por relevantes serviços prestados ao golpe de 1964, além de manter contatos com autoridades do regime militar. Como um delator de luxo, fornecia informações sobre as ações das organizações de esquerda e supostas conspirações contra o governo envolvendo oficiais da Força Pública.
Detido um dia depois de Jessé, em 22 de agosto, Aladino Félix foi levado para o Deic. Lá, também torturado, conforme atestaria um laudo pericial da própria polícia, mas longe da influência das autoridades federais, descreveu em detalhes, num manuscrito de 25 páginas em folhas de caderno espiral, todos os atos praticados por seu grupo nos oito meses que antecederam sua prisão. Aladino Félix, abandonado pelo governo, que perdeu o controle sobre sua prisão, passa a contar por que organizou o grupo. De acordo com ele, a motivação básica das ações era levar o regime a assumir medidas ditatoriais agudas. Num dos trechos do manuscrito, Aladino Félix afirma que recebia ordens da Casa Militar do Palácio do Planalto, chefiada à época pelo general Jayme Portella, e de fontes do Ministério da Justiça através da Polícia Federal.
Poderia ser apenas bravata, mas um dos papéis apreendidos em seu escritório, no 21º andar do edifício Martinelli, não deixa dúvida sobre as relações de Aladino Félix/Dinotos com o escritório central da Polícia Federal (PF), em Brasília:
“Prezado senhor Dinotos,
Recebi sua carta e desde já aceite meus agradecimentos pelas informações nela contidas.
Encaminhei imediatamente cópia das informações ao meu Diretor, tendo ele ficado também impressionado e levará o assunto às autoridades superiores.
Esperando contar com a valiosa cooperação que o senhor vem prestando, aguardo novas notícias”.
A carta, datilografada numa folha com o brasão da República e timbres do Ministério da Justiça e Polícia Federal, é assinada pelo inspetor Firmiano Pacheco, com data de 8 de maio de 1968, portanto três meses antes de Aladino Félix e seu grupo serem presos.
A onda de atentados era de pleno conhecimento do governo, que tinha consciência, segundo Aladino Félix, de que o regime entrara numa fase de desgaste e estava em meio a uma forte crise quatro anos depois do golpe. “Brasília queria que nossas ações continuassem até dezembro de 1968 ou janeiro de 1969”, escreve no manuscrito, entregue à polícia em 27 de setembro de 1968. Todos os integrantes de seu grupo, ouvidos em inquéritos civis e militares, reafirmariam que a motivação era levar o regime a editar medidas de exceção.
Aladino Félix sustenta que, diante de pressões que só aumentavam, o governo concordara com a linha dura do regime. “Para evitar a reformulação dos planos revolucionários, a única forma proposta e aceita pelo governo federal, através do general Paulo Trajano, foi a ação terrorista”, escreve no mesmo manuscrito. Segundo Félix, “o terrorismo foi então como uma saída de emergência para o governo federal, pois não podia agir contra tantos implicados na trama e nem lhes convinha dar-lhes a liberdade para reassumir as rédeas que lhes foram arrancadas pela revolução de março de 1964”.
Todos os integrantes do grupo contaram, depois de presos, que no caso do furto das armas Trajano participou dos detalhes do planejamento e, diante da possibilidade de identificação dos autores, garantiu que “acertaria” com a Polícia Federal um jeito de evitar que fossem encontradas impressões digitais. Disseram que o general ainda forneceu um álibi caso surgissem suspeitas sobre o sumiço dos envolvidos no dia da ação: todos estariam com ele, Trajano, numa caçada no Mato Grosso.
O general Paulo Trajano
Apontado por Aladino Félix como o homem que deu a ordem para o furto das armas no QG da Força Pública e do atentado a bomba no antigo QG do II Exército, Trajano expressa espontaneamente no depoimento que prestou no dia 2 de setembro de 1968, no inquérito aberto pelo II Exército para investigar o envolvimento do general com o grupo, um desejo de que, cem dias depois, se revelaria profético: “O governo federal deveria aproveitar o momento para endurecer o regime, acabando de vez com a desordem reinante no país”, disse.
Ao Dops, que assumiu o caso assim que o grupo se responsabilizou pelos atentados terroristas, o general Trajano conta que havia relatado o furto das armas ao então chefe da PF no Rio (Guanabara à época), general Luiz Carlos Reis de Freitas. Afirma que, assim que soube do furto das armas na casa de Aladino Félix, chegou a comentar com Freitas que o episódio serviria para “desnortear” oficiais da Força Pública que, segundo versão nunca comprovada, conspiravam contra o governo.
A mesma história foi contada por Aladino Félix em seu relato-confissão. Segundo ele, os oficiais da Força Pública preparavam uma rebelião para derrubar Costa e Silva. O movimento teria sido gestado na França, através de contatos do ex-presidente Juscelino Kubitschek com Charles de Gaulle, numa articulação que envolvia, no Brasil, os dirigentes da Frente Ampla liderada por Carlos Lacerda e apoiada por outros líderes cassados pela ditadura. O levante ocorreria no dia 25 de janeiro, com o assassinato do presidente e do ex-governador Abreu Sodré. Nesse dia, diz, Costa e Silva estaria na capital, participando das comemorações em homenagem ao aniversário da cidade. Lacerda também estaria em São Paulo, num evento no Teatro Municipal, de onde daria a senha para desencadear a rebelião, que seria seguida por levantes na Brigada Militar gaúcha e nas PMs de Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, Goiás e Bahia.
No início de janeiro, segundo as investigações, Aladino Félix e Trajano se encontrariam várias vezes. O general diria que ouvira e acreditara na conspiração e, como era amigo de Costa e Silva, que anos antes havia sido seu comandante no Segundo Batalhão de Infantaria do Exército em São Paulo, decidiu informar o governo. No depoimento, diz que Aladino Félix teria se passado como aliado dos conspiradores e chega a afirmar, numa versão que a própria polícia acha delirante, que viu um primo e homem de confiança de Lacerda, Paulo Bucker Lacerda, “confabulando” com o místico no escritório deste.
O general sustenta que, convencido dos riscos que o regime e o presidente corriam, procurou a chefia da Polícia Federal do Rio de Janeiro (à época Guanabara). De fato, dias depois, ele e Aladino Félix foram ao Rio e detalharam o que sabiam – este colocou tudo num relatório datilografado. A PF passou a tratar como informação real e a repassou ao chefe da Casa Militar do Palácio do Planalto, general Jayme Portella. Costa e Silva, então, cancelou a viagem a São Paulo.
No dia 27 de janeiro, com Marinha e Aeronáutica de prontidão, o Exército cercou e fez uma série de incursões pela capital paulista, mas nada de anormal foi registrado. Só em março os jornais noticiariam que um golpe havia sido abortado e apontavam o principal responsável pelo desmonte dessa rebelião: Aladino Félix. Era aplaudido pela direita e, em entrevistas, chegou a afirmar que enviou, sim, um bilhete que chegara às mãos de Costa e Silva.
Nos meses seguintes, as ações da direita e da esquerda se alternariam. A VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) colocaria a bomba na sede do Estadão, que à época estava instalado na rua Major Quedinho, no centro da capital, e roubaria um paiol de armas no Hospital Militar do Exército. Por outro lado, os paramilitares dariam curso aos atentados em série. Num só dia, 19 de agosto, véspera das primeiras prisões por causa do roubo ao BMI, explodiriam as bombas no Dops e nas varas distritais criminais da Lapa e de Santana.
Os terroristas e o militar
Com o esclarecimento do roubo ao BMI, vieram à tona o furto das armas e os demais atentados. Trajano admitiu, em depoimento ao Dops, que foi informado e viu as armas furtadas na casa de seu amigo Aladino Félix, mas negou que soubesse das demais ações.
Depoimentos e acareações feitas pela polícia colocam o general, no entanto, na cena em que se planejou o furto: todos disseram que, consultado sobre a ação, o general pediu um tempo para responder, e que só teria dado a ordem de execução depois de conversar com o comando da PF no Rio.
Um dos militares do grupo, o sargento Rubens Jairo dos Santos, diretamente envolvido em várias explosões de bomba, aponta o dedo direto para o amigo do presidente: “O general Trajano deu a ordem para colocar a bomba no QG do II Exército”, afirmou o militar em depoimento. O objetivo, segundo ele, era assustar e alertar o então comandante da força, general Syseno Sarmento, sobre a continuidade da conspiração entre oficiais da Força Pública, mesmo depois de “abortado” o “plano” de assassinar o presidente.
O delegado do Dops tachou de “evasivas” as respostas do general nas acareações e afirmou que os que o acusaram de envolvimento no furto se comportaram de maneira firme e convincente. Mas, em relação à suposta conspiração contra Costa e Silva ter motivado o comportamento do general, o delegado Sidney Benedito de Alcântara se mostra mais crédulo. Em seu relatório, ele diz que o general Trajano “queria ser solidário a Costa e Silva, com quem servira na vida militar e de quem recebeu valiosos apoios”. Reconhece, no entanto, ser implausível que um militar experiente se deixasse iludir por teorias conspiratórias que o teriam feito assumir “conduta terrorista”. No final do relatório, repete o que imagina ter passado pela cabeça do líder da direita ao ordenar os ataques aos seus seguidores: “O governo ver-se-á na contingência de adotar represálias, impondo um regime de força, desviando, dessa forma, o Brasil do abismo a que está caminhando”.
Poupado pela Justiça Militar de São Paulo, que nem sequer o considerou investigado, Trajano se tornaria alvo de um inquérito só mais tarde, aberto inicialmente no Rio e, depois, transferido para o II Exército, em São Paulo. Foi preso em setembro no QG da Segunda Divisão do II Exército até que concluísse seu interrogatório, algo como uma prisão provisória nos dias de hoje. Mesmo acusado de terrorismo, foi solto alguns dias depois por decisão unânime dos ministros do STM, entre os quais votou contra a decretação de prisão preventiva o general Ernesto Geisel, que em 1974 sucederia o general Emílio Garrastazu Médici, chefe do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) no período dos atentados da direita.
O SNI e a farsa
As suspeitas de que a cúpula do regime militar sabia dos atentados da direita em São Paulo são reforçadas por um relatório do SNI de agosto de 1969. Numa retrospectiva sobre o papel da Força Pública, então com 36 mil homens livres do “micróbio vermelho” e, portanto, “força antirrevolucionária” a favor do regime, o agente diz que o grupo de Aladino Félix tinha a intenção de levar todo o arsenal dos 350 homens que integravam o antigo Departamento da Polícia Militar e que a autoria do atentado ao QG da Força Pública foi encoberta por oficiais graduados da corporação, supostamente mancomunados com as ações paramilitares.
O agente informa que o soldado Jessé, que classifica como “lugar-tenente” de Aladino Félix, e os sargentos Rubens Jairo dos Santos e Juarez Nogueira Firmiano, que participaram da maioria dos atentados, chegaram a ser presos no mesmo dia em que o petardo explodiu no QG da Força Pública, em 10 de abril de 1968, destruindo um dos elevadores. Os três foram soltos, frisa o agente do SNI, sem nem sequer serem investigados.
“No dia seguinte ao da explosão, após o término do expediente, o major Edson [Edson Isaac Corrêa] desceu à prisão e os colocou em liberdade por ordem do cel. Vilela [José Vilela dos Santos, então comandante do Estado Maior da Força Pública]. É evidente que tais elementos, se pressionados, iriam revelar o plano e para que isso não acontecesse, os oficiais tomaram aquela atitude”, escreve o agente do SNI.
O responsável pelo inquérito policial-militar (IPM), capitão Cid Benedito Marques, orientado por superiores para “nada investigar”, passou então a ouvir pessoas que o agente denomina de “trouxas”. O depoimento de Aladino Félix nesse IPM foi só para cumprir tabela: o místico negou que soubesse de qualquer detalhe e foi dispensado com as honras de sempre. “Referido IPM encontrou sérios obstáculos para nada apurar, somente vindo à tona mais tarde [os atentados], com a descoberta pela Polícia Civil do terrorista Sábado Dinotos”, afirma o agente do SNI.
“Será que é cego?”
No IPM da Força Pública há outras evidências de que entre os arapongas que integravam os órgãos de informação do governo as ações do grupo eram um segredo de Polichinelo. A mulher de um dos soldados envolvidos, Alice Moreira, revela, em depoimento prestado no início de maio, que algumas reuniões de planejamento das ações ocorreram em sua casa.
Alice afirma que Aladino Félix sempre estava presente, se apresentava como judeu anticristão e anticomunista, falava de discos voadores, religião – parte de um proselitismo esotérico que a polícia chamou de “isca dourada” – e, no que de fato interessava, encerrava suas palestras com um discurso político radical, pregando a destruição de estabelecimentos públicos. Alice diz ter tomado conhecimento, nessas reuniões, de que as armas furtadas estavam com o líder do grupo.
Há, ainda, nos autos do mesmo IPM outros indícios que jamais poderiam ter sido menosprezados numa investigação rigorosa: um bilhete que, embora anônimo, já esclarecia, em abril, de onde partiam os atentados. O autor se dirige ao capitão Cid Benedito Marques e vai ao ponto: “Será que é cego? Onde está a sua experiência de soldado? Não vê que o plano terrorista que se desenvolve em São Paulo está estreitamente ligado ao cidadão Aladino Félix e que os maiores terroristas, seus seguidores, na maior parte, são da Força Pública?”, diz o signatário, que se apresenta como amigo secreto do capitão e assina com o curioso pseudônimo de “Altos Significados”. Os quatro meses seguintes seriam marcados por intensos atentados a bomba praticados pelo grupo.
Apontado por Aladino Félix como um dos conspiradores que pretendiam derrubar Costa e Silva, o capitão acabou afastado do IPM. As investigações só seriam retomadas mais tarde por outro oficial, quando o delegado Francischi já havia destrinchado as ações do grupo a partir do roubo ao BMI, em agosto.
Ao concluir seu relatório, no dia 30 de maio de 1968, o capitão Cid apontava “Sábado Dinotos e seus sectários” como suspeitos das ações terroristas, “atividades essas”, ele faz questão de destacar, “que já são do conhecimento do II Exército, DOPS e Polícia Federal”. Não há registro de qualquer procedimento aberto pelos órgãos federais até a prisão do grupo.
“Com um pouco mais de chance, teria o cap. Cid desbaratado ainda no início todo o grupo terrorista e, o que é melhor, teria evitado uma série de atentados terroristas”, escreve, em 12 de outubro de 1968, o tenente-coronel Raul Humaitá Villa Nova, no relatório que encerraria o IPM da Força Pública.
Conforme demonstra a cronologia dos episódios relatados nos autos, o grupo surgiu como força paramilitar no final de 1967, executou as primeiras ações em janeiro, intensificou os atentados de abril a agosto e só seria descoberto, por acaso, pelo vínculo com um roubo comum. O caso, como se viu, foi esclarecido com o uso da tortura por um setor da Polícia Civil, o Deic, que reprimia os crimes contra o patrimônio, mas não se vinculava à polícia política. As investigações deixam claro que, apesar das fortes evidências sobre a autoria dos atentados, a extrema direita agiu com intensidade e desenvoltura até a prisão de Aladino Félix, em 22 de agosto.
O grupo foi investigado durante cinco anos, de 1968 a 1973, em três inquéritos civis (um deles tocado pela Polícia Federal, tão pífio que não chegou a nenhuma conclusão), dois IPMs, um processo da Segunda Auditoria da Justiça Militar paulista e, ainda, duas apelações, que tramitaram no STM e, finalmente, no Supremo Tribunal Federal (STF).
“Gênio e louco”
Quando a história do terrorismo veio à tona, o conceito do homem que “salvara” a vida do presidente e evitou a “contrarrevolução” virou de pernas para o ar. De lúcido e paparicado colaborador do regime militar, Aladino Félix passou a ser tratado como um doido. A polícia o descreve depois como um místico que falava ter sido contatado por alienígenas e que se apresentava como o ungido que reunificaria as 12 tribos de Israel, enfim, um Messias.
À exceção do general Trajano, que o conhecia havia cinco anos e intermediou os contatos de Aladino Félix com as altas fontes do governo, todas as outras autoridades militares ouvidas no IPM do II Exército passaram a descrevê-lo como excêntrico. “Imaginação fértil e fantasiosa”, disse, em 23 de outubro de 1968, o coronel Edgard Barreto Bernardes, da PF, designado para averiguar as denúncias sobre o plano de assassinato de Costa e Silva.
“Pessoa com ideia fixa sobre subversão, atentados e conspiração”, acrescentou o então chefe da PF no Rio, coronel Florimar Campello. O diretor-geral da PF, general Luiz Carlos Reis de Freitas, afirmou que era um “lunático esperto e oportunista em busca de notoriedade”. O delegado Alcântara o perfilaria como misto “de gênio e de louco”.
Concatenadas, as declarações das autoridades, todas prestadas no mesmo dia, em depoimento que consumiu menos de uma lauda datilografada, levavam à desconstrução de Aladino Félix. O governo só não conseguiria explicar por que teria acreditado nos delírios de um místico a ponto de determinar a manobra militar em janeiro de 1968 para inibir uma suspeita história de golpe.
Como a imprensa já estava sob censura, as mesmas autoridades que acreditam no seu relato em janeiro e eram informadas diariamente pelo SNI nem se deram ao trabalho de esclarecer por que passaram a tratá-lo como lunático só sete meses depois da primeira investigação. Já no primeiro relatório sobre o caso, o delegado Alcântara afirmava que Aladino Félix “realmente” tinha contatos com autoridades do governo federal até ser preso.
Crime e perdão
Em 30 de setembro de 1970, a Segunda Auditoria da Justiça Militar de São Paulo afastou Trajano do processo por achar que “não era o caso” de investigá-lo. Os quatro conselheiros, acatando o relatório do juiz Nelson Machado Guimarães (o único civil da turma e cuja atuação ficou marcada por sentenças implacáveis e duras com militantes da esquerda), consideraram que não havia provas sobre os atentados e condenaram Aladino Félix e o soldado Jessé Cândido de Moraes, pela Lei de Segurança Nacional, a cinco anos de reclusão por “terrorismo”, apenas com base no furto das armas. Os demais envolvidos foram condenados a penas mais baixas, entre um e três anos.
Com a abertura de IPM contra o general Trajano, detentor de foro privilegiado, o processo subiria para o STM. Lá, inconformado com a sentença, o advogado do grupo, Juarez de Alencar, sustentou toda a linha de defesa no perfil dos réus e nos objetivos políticos dos atentados que, segundo ele, haviam sido desvirtuados no inquérito policial. Disse que Aladino Félix e os militares “estavam convictos, na sua posição de homens de direita, e de defensores da Revolução de Março, da absoluta legalidade revolucionária de suas ações”.
Alencar lembra que Trajano, “companheiro e amigo” de Costa e Silva, deu ao regime “notícia indiscutível da intentona”, argumentou que “quem está com o governo não pode ser condenado pelo próprio governo” e pediu não apenas a absolvição de todos, mas também que os militares liderados por Aladino Félix fossem perdoados, reincorporados à Força Pública e promovidos.
Foi atendido quase plenamente. Em outubro de 1970, seguindo parecer da procuradora Mary do Valle Monteiro no recurso de apelação, os ministros do STM absolveram todos os demais acusados e reduziram a pena de Aladino Félix para oito meses. O STM descartou os atentados a bomba e os demais crimes, fixando a pena só pelo furto das armas, procedimento bem diferente do aplicado pela mesma justiça aos militantes da esquerda armada.
Aladino Félix permaneceu preso, aguardando um exame de sanidade mental solicitado pelo Conselho Permanente de Justiça, este convencido pelos argumentos de que se tratava de um doido. O general Paulo Trajano da Silva, já absolvido, também estava livre de desconfortos.
Semi-imputável
O laudo assinado por dois psiquiatras forenses, José Roberto Belelli e Carlos Roberto Hojaij, o define como detentor de personalidade egocêntrica, com inteligência acima da média e domínio pleno dos temas sobre os quais era instado a falar, mas, no final, corrobora a tese das investigações: “Não se trata de doente mental. Trata-se de portador de perturbação da saúde mental cuja capacidade de entendimento ao tempo dos fatos era apenas parcial”, dizem no documento encaminhado no dia 7 de outubro de 1971.
A procuradora Mary Valle Monteiro, que antes considerara que o processo inteiro era “tudo loucura”, já esperava o resultado. “A conclusão de que é fronteiriço não nos decepciona. É um semi-imputável”, afirma, pedindo a confirmação da sentença de oito meses de reclusão, plenamente acatada pela turma do STM, conforme despacho do ministro Lima Torres, em 12 de janeiro de 1972. “É, no mínimo, um lunático”, acrescentou o ministro. Inconformado com o estigma de débil mental, Aladino Félix recorreu ao STF.
Sem que nenhum fato novo tenha ocorrido, o recurso de apelação dormitou 21 meses no STF até que o relator, ministro Rodrigo Alckmin (tio do presidenciável tucano Geraldo Alckmin) encerrasse o caso no dia 9 de outubro de 1973, com um despacho de cinco linhas, em que negava provimento à apelação. Aladino Félix e os demais envolvidos já estavam em liberdade e o país, mergulhado na ditadura, vivia sob o AI-5 os horrores dos anos de chumbo.
Aladino Félix amargou uma longa temporada atrás das grades. Foi preso pela primeira vez em 22 de agosto de 1968, mas teve a prisão relaxada em 17 de outubro pelo juiz da 9ª Vara Criminal de São Paulo, responsável pelo processo relacionado ao roubo ao BMI de Perus. A soltura, na verdade, foi um cochilo dos militares responsáveis pelo IMP do II Exército, que empreenderiam uma verdadeira caçada para prendê-lo novamente nove meses depois. No dia 15 de setembro, ele conseguiu escapar pela porta da frente da Casa de Detenção, no Carandiru, mas acabou preso novamente uma semana depois.
Ironicamente, foi levado para o Presídio Tiradentes, onde teve de conviver com presos políticos de esquerda. Estava entre os detentos contados num mutirão do Judiciário destinado a avaliar o cumprimento de penas no final de 1971. Só seria solto definitivamente em janeiro de 1972, depois de cumprir, em regime fechado, mais de três anos de cadeia, dois anos e quatro meses a mais do que o tempo previsto na sentença definitiva.
Aladino Félix morreu aos 68 anos, em circunstância prosaica (complicações geradas por medicamentos que havia ingerido para uma simples cirurgia de hérnia), no dia 11 de novembro de 1985, ano em que o país, já livre da ditadura, ingressava na redemocratização e ele mergulhava no ostracismo.
*Colaborou Ivan Seixas.
*Pesquisa iconográfica e edição de imagens Paula Cinquetti.
El País: “O Brasil não cumpriu o dever de pôr a ditadura em pauta. Há um pacto para não constranger os militares”
Eugênia Gonzaga, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, diz que hierarquia do presidente em relação às Forças Armadas poderia facilitar a demanda das famílias dos desaparecidos
Por Marina Rossi, do El País
No aniversário de 50 anos do Ato Institucional número 5 (AI-5, de 13 de dezembro de 1968), considerado o ato mais duro dos 17 instituídos durante a ditadura militar brasileira, a procuradora Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, faz questão de pontuar os poucos mas importantes - avanços na pauta dos desaparecidos políticos. Dentre elas, a identificação das ossadas de dois militantes dados como desaparecidos, que ela considera "a melhor notícia do ano".
Leia os principais trechos da entrevista, concedida por telefone:
Pergunta. Nesta semana, completam-se quatro anos que a Comissão Nacional da Verdade entregou as 29 recomendações para prevenir as violações dos direitos humanos no Brasil. Em que situação estão essas recomendações?
Resposta. Uma das recomendações foi a responsabilização dos agentes da ditadura. Isso recai sobre o Ministério Público Federal que montou grupos de trabalho e instaurou inquéritos. Os resultados foram pequenos, primeiro porque os réus e testemunhas em sua maioria estão mortos e, em segundo lugar, porque o Judiciário não está cumprindo essa recomendação. O Judiciário ainda é a favor de que a Lei da Anistia [promulgada pelo presidente João Batista Figueiredo, em 197, que concede anistia a todos os que cometeram crimes políticos entre 1961 e 1979] seja aplicada em qualquer caso. Também por isso, o tema da responsabilização dos agentes da ditadura está no Supremo, parado, desde 2011 e não se tem previsão de entrar na pauta.
P. O Judiciário entende que muitos dos crimes ocorridos na ditadura já prescreveram. Como reverter isso?
R. São duas coisas diferentes. No caso dos desaparecimentos forçados, é considerado um crime que não se esgota enquanto os corpos não forem encontrados, então não há prescrição. Mas no caso da responsabilização dos agentes da ditadura, o principal motivo de estar segurando [esse julgamento] é essa interpretação da Lei da Anistia. Na verdade, existe um pacto para não se constranger os militares.
R. O Brasil demonstra que não cumpriu seus deveres. Deveria ter feito muito mais espaços de memória, colocado esse tema em pauta sempre. A questão das buscas dos corpos foram incipientes, sempre foram esforços individuais, dos próprios familiares. O Brasil nunca tomou nenhuma atitude que colocasse em xeque as Forças Armadas. Um dos argumentos [para a morosidade nos processos] é que os documentos foram destruídos, mas a resposta para isso é que é possível fazer a reconstituição dos documentos, e, na realidade, nunca houve uma ordem para tal.
P. Mas então quais são as chances de que agora esse tema avance?
R. Pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que existe desde 1995, fizemos recentemente em Brasília um encontro de familiares para analisar esse aspecto [do encontro saiu da Carta de Brasília, que reitera, dentre outras coisas, a necessidade de implementação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade]. A nossa reivindicação prossegue e é pela localização dos corpos. E esse novo Governo, se quiser e se tiver algum tipo de interesse em fazer alguma diferença nessa pauta, é o que mais tem condições em termos de hierarquia em relação às Forças Armadas. A questão da entrega dos corpos [dos desaparecidos às famílias], além de se dar um encerramento digno, ainda que simbólico, é um tema defendido em qualquer religião. Vamos levar essa pauta à ministra indicada [dos Direitos Humanos, Damares Alves], ao ministro da Justiça [Sergio Moro] e ao presidente da República. Essa pauta sempre teve muito pouco apoio dos diversos governos. Fernando Henrique Cardoso fez a lei que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, em 1995, mas desde então, o orçamento é praticamente inexistente para essa comissão. Na era dos governos de esquerda [Lula e Dilma], por uma questão de estratégia, preferiram tocar outras pautas e deixar essa mais de lado. Houve algumas iniciativas, alguns avanços, mas a revelação [de identidades das vítimas] e o encontro de corpos foi incipiente. Tivemos duas identificações neste ano das ossadas de Perus e uma delas foi emblemática porque era um militante do Rio que veio parar na vala de Perus, o que mostra a integração dos esforços entre os Estados. [A comissão anunciou no último dia 3 a identificação do corpo do bancário e sindicalista Aluísio Palhano Pedreira Ferreira. Ele fora incluído em 2014 na lista de mais de 400 desaparecidos políticos elaborada pela Comissão Nacional da Verdade].
P. Quais outras ações estão avançando?
R. Entregamos 11 atestados para retificação das causas da morte e estamos encaminhando mais 20 pedidos. Essas pessoas não tinham sequer atestado de morte, então começamos pedindo pelos atestados. Tivemos na primeira certidão completamente retificada, que é do diplomata José Jobim [a causa da morte foi retificada em setembro deste ano, passando a constar em seu atestado de óbito como resultante da perseguição política durante a ditadura militar].
P. Apesar desses avanços, muitas das recomendações feitas pela Comissão da Verdade não só foram esquecidas, como algumas legislações que tem ecos considerados ligados à ditadura surgiram nesse meio tempo, como a criação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), a volta da Justiça Militar como foro para julgar soldados que cometam homicídios e os casos de arbitrariedade da Polícia Militar….
R. Sim, houve um retrocesso. Um deles é em relação à recomendação da desmilitarização das polícias. Não significa que não é para existir Polícia Militar, mas que não existam essas práticas militares. E o que vemos é um caminho contrário. Por exemplo, chamar uma investigação de uma operação, que é uma prática militarizada, representa condenação por antecipação. E passou a ser usada em grande escala, de forma até banal. Outra coisa é que, de acordo com a Constituição, os municípios podem ter suas guardas civis, que não precisam necessariamente ser armadas, seguir práticas de hierarquia como ocorre nas Forças Armadas. E o que vemos é o contrário. Temos centenas de polícias e todas são militarizadas. Na verdade, o caminho deveria ser o contrário. A própria intervenção federal [no Rio de Janeiro e agora em Roraima] e a GLO, são tipos de enfrentamentos com as Forças Armadas que lembram os períodos de guerra e são absolutamente contrários às práticas humanitárias.
P. Como criar mecanismos que de fato possam ser seguidos e respeitados?
R. A identificação das ossadas de Aluísio Palhano e de Casemiro [Dimas Antônio Casemiro teve suas ossadas identificadas em fevereiro. Elas também estavam na vala de Perus] foram as melhores notícias do ano. As retificações de atestados que estão em curso e a Carta de Brasília que os familiares reiteraram, mesmo no atual cenário, levanta a bandeira pela igualdade e democracia. Acho que foi um ato corajoso de ir até Brasília, muitas das pessoas já são idosas, e foram até lá para dizer: continuaremos aqui com a nossa bandeira “onde estão os desaparecidos?”. Independentemente da ideologia, não há justificativa alguma para o governo desaparecer com corpos. O país não vai demorar tanto para se dar conta que esses tipos de práticas não são em benefício de ninguém. No passado, as pessoas não tinham informações, não sabiam exatamente o que estava acontecendo. Hoje, com as redes sociais, espero que as pessoas tenham mais discernimento em relação aos perigos e que as próximas eleições não tendem a repetir esse resultado truculento que vimos agora.
El País: Brasil assina pacto global de migração, mas chanceler de Bolsonaro anuncia retirada
165 Estados dos 193 que integram a ONU apoiam primeiro acordo sobre mobilidade internacional de pessoas. EUA boicotaram evento e pressionaram por não adesão
O chamado Pacto Global por uma Migração Segura, Ordenada e Regular foi adotado formalmente na manhã de segunda-feira em Marraquexe por consenso pela conferência intergovernamental da ONU. O encontro teve a participação de representantes de 165 países dos 193 que integram a ONU. O texto contém 23 objetivos não vinculantes aos Estados que o assinam. Pelo Brasil, esteve presente o chanceler Aloysio Nunes Ferreira, que exaltou o acordo e lembrou da nova lei de imigração brasileira, considerada positiva. Apesar de o documento não comprometer juridicamente nenhum Governo, só levou algumas horas para que o futuro chanceler do Governo Bolsonaro, Ernesto Araújo, fosse ao Twitter anunciar que o Governo brasileiro vai se dissociar do pacto no ano que vem. "(É) um instrumento inadequado para lidar com o problema. A imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e a soberania de cada país", escreveu ele.
Até o momento, somente uma dezena de países expressou abertamente sua oposição ao pacto. Além dos Estados Unidos e agora o futuro Governo Brasileiro, se destacam Áustria, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Bulgária, Austrália e Chile, país que se afastou um dia antes do começo do encontro de Marraquech.
Aprovação deve acontecer em sessão em Nova York
1/A imigração é bem vinda, mas não deve ser indiscriminada. Tem de haver critérios para garantir a segurança tanto dos migrantes quanto dos cidadãos no país de destino. A imigração deve estar a serviço dos interesses nacionais e da coesão de cada sociedade.
2/O Governo Bolsonaro se desassociará do Pacto Global de Migração que está sendo lançado em Marraqueche, um instrumento inadequado para lidar com o problema. A imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e a soberania de cada país.
3/O Brasil buscará um marco regulatório compatível com a realidade nacional e com o bem-estar de brasileiros e estrangeiros. No caso dos venezuelanos que fogem do regime Maduro, continuaremos a acolhê-los, mas o fundamental é trabalhar pela restauração da democracia na Venezuela.
O processo para adotar o pacto começou há 18 meses, ainda que as negociações formais tenham se iniciado em janeiro desse ano e concluído em julho, após seis rodadas. Sua aprovação definitiva depende somente da votação que será realizada em 19 de dezembro na sede da Assembleia Geral da ONU, em Nova York. De qualquer modo, fontes da organização afirmam que o fato de que somente 165 compareceram, no lugar dos 180 esperados, é irrelevante. “O fato de que alguns não vieram porque perderam o avião ou por qualquer outra razão não significa que não irão adotá-lo”, disse a mesma fonte diplomática. “A Itália e a Suíça, por exemplo, disseram que não viriam a Marraquech porque queriam submeter o acordo a um debate parlamentar. Mas isso não significa que no final não irão apoiá-lo”, frisou.
Na Bélgica a direita nacionalista flamenga se negou a respaldar o acordo e rompeu a coalizão de Governo da qual fazia parte. De modo que, por fim, a delegação belga foi ao Marrocos, mas com seu Governo rachado. O primeiro-ministro belga, Charles Michel, foi interrompido duas vezes por aplausos durante seu discurso. Ele lembrou que submeteu o Pacto à decisão de seu Parlamento e foi respaldado por dois terços dos deputados. “Isso demonstra os valores de meu país de apoiar o respeito, a coragem e a responsabilidade. (...) Precisamos de coragem e responsabilidade. Esse é um momento importante e me apresento diante dos senhores tendo tomado a decisão de optar pela cooperação internacional”.
O nível de representação de cada país foi menor do que o esperado. Os chefes de Governo presentes na reunião foram minoria, 21 no total, como informou a presidenta da Assembleia Geral das Nações Unidas, María Fernanda Espinosa. O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, a chanceler alemã, Angela Merkel, o primeiro-ministro português, António Costa, o belga, Charles Michel, e o grego Alexis Tsipras foram os destaques da União Europeia. Outros líderes que pretendiam comparecer, como o presidente brasileiro Michel Temer, delegaram a seus ministros e diplomatas a representação em Marraquexe. Outros Governos reduziram o nível de representação e o número de enviados à reunião.
Em alguns países como a Suíça e o Canadá, a ratificação do pacto causou acalorados debates. Na Espanha, entretanto, a adoção do acordo e a presença do primeiro-ministro, Pedro Sánchez, não foram contestadas pela oposição. “Os partidos, até mesmo os que usam o fenômeno migratório para conseguir crédito eleitoral, são conscientes da solidariedade espanhola. Os líderes da oposição foram conscientes da importância de se estar aqui e o Governo da Espanha agradece por isso não ter sido motivo de confronto”, disse a Secretária de Estado de Migrações, Consuelo Rumí.
Os organizadores previam a presença do rei do Marrocos, Mohamed VI, e montaram uma tenda para recebê-lo. Por fim, durante a noite de domingo os funcionários da ONU foram informados de que o monarca não estaria na abertura da conferência. O Palácio Real não informou sobre a causa de sua ausência. O país anfitrião ofereceu um almoço às delegações no qual o monarca também não compareceu.
Mohamed VI, entretanto, emitiu um comunicado em que afirmou: “Por enquanto, o pacto mundial é uma promessa que a história julgará. Ainda não é o momento de comemorar seu sucesso (...) “A conferência de Marraquech é, acima de tudo, uma chamada de atenção. E a África responde à essa chamada agora: Presente! O desafio dessa conferência é mostrar que a comunidade internacional fez a escolha de uma solidariedade responsável”. O monarca também disse: “A página da história que se escreve hoje em Marraquexe honra a comunidade internacional e a conduz mais um passo em direção a uma nova ordem migratória, mais justa e humana”.
O secretário geral da ONU, Antonio Guterres, pediu aos presente durante a inauguração da reunião que não “sucumbam ao medo”. Louise Arbour, enviada especial da ONU à Migração Internacional, acrescentou: “É surpreendente que tenha existido tanta desinformação sobre o que é e o que diz o Pacto [...] Não cria nenhum direito de migrar, não impõe nenhuma obrigação aos Estados”.
A chanceler Angela Merkel, que em 2015 impulsionou na Alemanha a acolhida de 890.000 refugiados e no ano seguinte a de 280.000, recebeu uma clamorosa salva de palmas após sua fala aos representes das delegações. “Precisamos lembrar a nós mesmos que a ONU foi fundada como resultado da Segunda Guerra Mundial. Foi uma resposta ao nacionalismo, uma busca de respostas comuns. É disso que se trata esse Pacto, da cooperação internacional. Essa é a única forma de fazer desse planeta um lugar melhor”.
Vários representantes de delegações consultados afirmaram que o mais importante da conferência de Marraquech não é que os Estados Unidos e uma dezena de países se oponham ao pacto e sim que o acordo foi adotado pela esmagadora maioria dos Governos que integram as Nações Unidas.
El País: Kolimá, uma viagem alucinante pela Estrada dos Ossos Humanos
O jornalista Jacek Hugo-Bader relata sua viagem pela terra que abrigava o mais atroz do gulag soviético. Ele escreveu os ‘Diarios de Kolimá’ tendo Aleksandr Soljenitisn como guia moral
O trajeto começa em Magadan, Mar de Okhotsk, o início de tudo, como no Arquipélago Gulag de Aleksandr Soljenitisn, guia moral de Hugo-Bader, juntamente com o poeta Varlam Shalamov, ambos sobreviventes, cujos passos persegue neste artefato literário, livro de viagens e testemunho ao mesmo tempo do que resta depois do horror. “Kolimá, como Auschwitz, são lugares com uma grande força simbólica pelos quais me sinto muito atraído” conta Hugo-Bader por e-mail ao EL PAÍS.
Guiado por seu credo — “trabalho, esporte, viagem, encher a cara, fazer amor” — e com um mecanismo psicológico para manter o desespero longe, Hugo-Bader se encontrou em seu périplo com vítimas dos campos, gente como Maria, com a vida destruída por chegar uma hora atrasada ao trabalho, roubar uma garrafa de leite ou fazer uma piada contra o Partido, todas elas atividades antirrevolucionárias previstas no artigo 58 do código soviético. No gulag sofreram a violência dos criminosos comuns, o frio, a fome, as violações em grupo e todo tipo de atrocidades. Mas muitos sobreviveram e o contam aqui, apesar de não ser normal. “Os russos têm o que chamam de síndrome do silêncio. Não falam das atrocidades que ocorreram em seu território e fingem fazer como se nunca tivessem acontecido”, resume o repórter polonês.
No entanto, este não é um livro sobre os campos, ou não apenas. Hugo-Bader se encontra com a aristocracia do crime, com garimpeiros que parecem saídos do faroeste mais extremo, com crianças bandidos, empreendedores que montam fazendas no meio do nada, ou gente como Madame Marianne, que voltou para Kolimá desde Paris, fugindo de tudo porque “aqui existe espírito sem beleza e na França existe beleza sem espírito”.
Pela narrativa transitam personagens como Basania, o milionário olhos vazios, agente do serviço de espionagem russo que contamina tudo, veterano do Afeganistão, louco perigoso e quase agradável, dono das minas de ouro de Kolimá, um autêntico tesouro natural explorado antes pela máfia do Estado e agora pela máfia pura e simples
Há muito álcool, vidas inteiras encharcadas de vodka, cenas incríveis de jogos de cartas entre mafiosos, um cirurgião que opera por telefone enquanto não para de beber... No meio do caminho, Bader, que também conheceu pessoas magníficas que o ajudaram a não morrer congelado no meio da estrada, se encontra com Vladimir, um cara que quando fecha os olhos vê as montanhas de cadáveres intactos, perfeitamente conservados no permafrost, que tirou da terra com a concha de seu trator durante uma prospecção em busca de ouro.
O livro, mais na esteira da prêmio Nobel Svetlana Aleksiévitch que de Ryszard Kapuscinski, tem uma ferramenta fundamental, o humor, e um tom, quase otimista, que o tornam diferente. “Você tem de ser capaz de apagar seus maus pensamentos, inclusive um repórter. Se não, você será devorado pela depressão e não viverá muito”, confessa o autor. “Quando estou na Rússia, bebo muita vodka. Além disso, toda vez que viajo — mesmo para lugares mais escuros como Kolimá —, me concentro obsessivamente no lado bom”, acrescenta.
Por isso, talvez, ele não deixe que outro personagem, a protetora do legado literário de Shalamov, feche o livro com uma história terrível sobre como se perderam suas cartas destruídas por criminosos que antes tinham se masturbado juntos, excitados por seu conteúdo. Prefere terminar com um argumento no qual lamenta não ter conhecido melhor as pessoas que o levaram pelo caminho. “Transmitem tanta decência, tanta bondade, tanta autenticidade...”, virtudes que nem mesmo o maior massacre da história conseguiu apagar completamente.
A MEMÓRIA NECESSÁRIA
“Talvez a primeira razão que nos aproximou do livro foi dar um salto à frente e conhecer o que aconteceu com Kolimá depois das atrocidades do gulag”, comenta o editor Paco Cerdà, da La Caja Books, quando perguntado sobre o porquê deste livro e as razões pelas quais decidiu romper com a estratégia de publicação que dá nome à editora: caixas de três livros curtos sobre um assunto e que combinam ensaio, ficção e crônica).
Este Diários de Kolimá está sendo lançado separadamente, em uma coleção chamada Caja Alta. “A memória será um eixo importante desta coleção”, diz Cerdà. “É por isso que a iniciamos há um mês com Deja de Decir Mentiras, um livro apaixonante do francês Philippe Besson sobre sua descoberta da sexualidade e agora prosseguimos com Diários de Kolimá. Memória individual, memória coletiva”, explica Cerdà.
El País: Bolsonaro faz discurso moderado e ouve Rosa Weber criticar intolerância com minoria
Capitão reforma do Exército fez chamado à união nacional, enquanto que presidenta do TSE ressaltou que democracia significa "respeito às minorias"
Por Ricardo Della Coletta, do El País
Depois de conduzir uma das campanhas mais polarizadoras da história recente do Brasil, o presidente eleito Jair Bolsonaro fez nesta segunda-feira um chamado à unidade nacional, afirmando que será o presidente de todos e que governará para todos os brasileiros. "Agradeço muito especialmente aos mais de 57 milhões de brasileiros que me honraram com o seu voto. Aos que não me apoiaram, peço a confiança para construirmos juntos um futuro melhor para o nosso país. A partir de 1º janeiro, serei o presidente de todos os 210 milhões de brasileiros e governarei em benefício de todos, sem distinção de origem social, raça, sexo, cor, idade ou religião", declarou Bolsonaro, durante a cerimônia em que recebeu o diploma de presidente eleito no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), um dos passos burocráticos para que ele tome posse no próximo no início de janeiro.
O presidente eleito fez questão de enaltecer o papel das redes sociais em sua campanha. “O poder popular não precisa mais de intermediação. As novas tecnologias permitiram uma eleição direta entre o eleitor e seus representantes. Esse novo ambiente, a crença na liberdade, é a melhor garantia dos ideais que balizam a nossa Constituição", seguiu. Na contundente vitória eleitoral obtida por Bolsonaro e seu PSL nas urnas, as redes sociais tiveram fator decisivo - e também controverso. O TSE tem investigação aberta sobre o suposto financiamento irregular para o envio em massa de mensagens a eleitor via WhatsApp pela campanha de Bolsonaro.
Na cerimônia desta segunda, Bolsonaro construiu o discurso no sentido de distensionar a relação com a Justiça Eleitoral –durante a campanha o capitão reformado do Exército questionou duramente, até mesmo na TV, o sistema eletrônico de votação, supervisionado pelo TSE. "A cada um de vocês, integrantes do TSE, dos Tribunais Regionais Eleitorais, das Forças Armadas, mesários, voluntários e tantos outros cidadãos que trabalharam [nas eleições], expresso meu muito obrigado e meu reconhecimento por essa demonstração de civismo e amor ao Brasil", disse Bolsonaro, que prometeu trabalhar dia e noite "com humildade, coragem e perseverança, e tendo fé em Deus para iluminar as minhas decisões". Usou o tom mais moderado que tem sido comum nas cerimônias oficiais e que difere da retórica agressiva e polarizadora marcou a sua atuação tanto no Congresso Nacional quanto na campanha presidencial (mesmo eleito, Bolsonaro volta ao registro mais beligerante vez por outra em entrevistas ou quando ainda fala diretamente com os usuários pelas redes).
Enquanto o ultradireitista Bolsonaro decidiu enviar uma mensagem de moderação, a presidenta da Corte, ministra Rosa Weber, também pareceu ter recados. "A democracia é também exercício constante de diálogo e de tolerância", disse Weber, que fez em seu discurso uma longa defesa das liberdades individuais e dos direitos humanos. Lembrando que o mundo está comemorando o 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, Weber afirmou que "cada indivíduo é detentor de igual dignidade e senhor de direitos e liberdades inalienáveis, entre os quais o direito à vida, o direito à liberdade, o direito à segurança em sua projeção global, e o direito a ter direitos". "Vale insistir [...] na asserção de que o princípio democrático, expressão vital de nossa crença inabalável na autoridade da Constituição da República, reside não só na observância incondicional da supremacia da ordem jurídica, mas também no respeito às minorias, em especial àquelas estigmatizadas pela situação de vulnerabilidade a que se acham injustamente expostas", pontuou a ministra.
O presidente eleito, cujo passado de loas à ditadura militar também levantou dúvidas sobre o seu comprometimento com o respeito à democrático, disse ainda que o regime pautado pelo sufrágio universal é um "processo irreversível e [que] o compromisso com o voto popular é inquebrantável". "Sempre no marco da Constituição Federal, nosso dever é transformar esses anseios em realidade. Nossa obrigação é oferecer um Estado eficiente que faça valer a pena os impostos dos contribuintes", concluiu o presidente eleito.
El País: Um investigado por fraude ambiental comandará Meio Ambiente sob Bolsonaro
Advogado Ricardo Salles é alvo de ação por improbidade administrativa no período em que foi secretário da área no Governo Alckmin. Do Partido Novo, ele preside o movimento Endireita Brasil e defendeu "bala" como resposta ao MST
Apoiado por entidades ruralistas e presidente do Movimento Endireita Brasil, o advogado Ricardo de Aquino Salles comandará o Ministério do Meio Ambiente a partir de janeiro. O anúncio do ministro que completa a Esplanada dos Ministérios de Jair Bolsonaro foi feito pelo presidente eleito na tarde deste domingo. Salles, que já foi secretário particular do ex-presidenciável Geraldo Alckmin e ocupou também a pasta de Meio Ambiente de São Paulo durante o Governo do tucano, vinha sendo citado há dias como nome para o cargo. O futuro ministro é alvo de ação de improbidade administrativa, acusado de manipular mapas de manejo ambiental do rio Tietê, e, durante a campanha eleitoral deste ano, chegou a sugerir o uso de munição de fuzil contra a esquerda e o MST.
A escolha de Salles joga mais combustível nas controvérsias que envolvem um setor crucial para o Governo Bolsonaro, crítico do que chama de "exageros" na legislação ambiental. As decisões já sob influência da futura gestão, como retirada da candidatura do Brasil para sediar a próxima Conferência sobre as Mudanças Climáticas da ONU no ano que vem, a COP25, atrem holofotes tanto nacionais como internacionais para o setor. Após vencer as eleições, Bolsonaro chegou a anunciar que fundiria os ministérios da Agricultura (que será comandado a partir do ano que vem pela deputada ruralista Tereza Cristina) e do Meio Ambiente, uma ação para reduzir a máquina pública, mas que também, segundo os críticos, poderia esvaziar a pasta que hoje controla o Ibama e o ICMbio, órgãos fiscalizadores. Durante a campanha, o então candidato e seus emissários fizeram várias críticas ao que chamam de “indústria da multa” desses órgãos. Bolsonaro chegou a defender a necessidade de "tirar o Estado do cangote de quem produz”. No entanto, a reação negativa de setores exportadores e ambientalistas fizeram o presidente recuar da proposta. Bolsonaro decidiu apenas reformular o Ministério do Meio Ambiente e reduzir alguns cargos.
A manutenção da pasta não apaziguou os ânimos. Para a organização ambientalista Observatório do Clima, a indicação do novo ministro mostra que segue viva a ideia de subordinar o Ministério do Meio Ambiente ao Ministério da Agricultura. "Se por um lado contorna o desgaste que poderia ter com a extinção formal da pasta, por outro garante que o Ministério do Meio Ambiente deixará de ser, pela primeira vez desde sua criação, em 1992, uma estrutura independente na Esplanada. Seu ministro será um ajudante de ordens da ministra da Agricultura. O ruralismo ideológico, assim, compromete o agronegócio moderno – que vai pagar o preço quando mercados se fecharem para nossas commodities", argumenta a dura nota da entidade.
Ricardo Salles é acusado de descumprir leis ambientais. Desde 2017, é alvo de ação movida pelo Ministério Público de São Paulo sob a acusação de alterar ilegalmente o plano de manejo de uma área de proteção ambiental, na Várzea do Rio Tietê, "com a clara intenção de beneficiar setores econômicos". “Sou réu, mas não há decisão contra mim. São todas favoráveis a mim. Todas as testemunhas foram ouvidas, todas as provas produzidas e o processo está concluso para sentença, pode ser sentenciado a qualquer momento. Todas as testemunhas ouvidas, de funcionários do governo e fora, corroboraram a minha posição”, afirmou Salles ao site do programa Globo Rural há alguns dias.
Além disso, Salles foi alvo de um inquérito civil instaurado também pelo Ministério Público de São Paulo no último mês de janeiro para apurar se cometeu improbidade administrativa ambiental ao determinar a retirada do busto do guerrilheiro e ex-capitão do Exército Carlos Lamarca, que estava instalado no Parque Estadual do Rio Turvo, em São Paulo, quando comandava a secretaria estadual do Meio Ambiente. O pedestal em que estava a estatueta teria sido demolido por ordem de Salles em agosto do ano passado. “Recurso de compensação ambiental não foi feito para colocar busto em parque, como fizeram lá. Ainda mais de uma pessoa que era um criminoso, independentemente do lado ideológico”, argumentou na época.
Salles, cuja nomeação por Alckmin provocou críticas até dentro do PSDB, estreou na política ao se candidatar a deputado federal pelo Partido Novo nas últimas eleições, mas não conseguiu se eleger. Durante a campanha, sugeriu nas redes sociais o uso da munição de fuzil 3006 (mesmo numero que escolheu para usar nas urnas) “contra a praga do javali” e “contra a esquerda e o MST”. A publicação causou revolta e rendeu uma advertência do partido no Twitter, que disse não compactuar “com qualquer insinuação ou apologia à violência, de qualquer tipo, contra quem quer que seja". As críticas do novo ministro à esquerda são antigas. Há 12 anos, quando o ex-presidente Lula venceu a reeleição apesar das denúncias do Mensalão, ele participou da criação do Movimento Endireita Brasil, destinado a reabilitar esse setor ideológico no país.
El País: Bolsonaro encara o fim da euforia da vitória com suspeitas sobre ex-assessor
Presidente eleito será diplomado nesta segunda em meio a desconforto no seu núcleo com movimentações suspeitas de amigo da família e dúvidas sobre capacidade de colocar seus planos em pé
O presidente eleito Jair Bolsonaro será diplomado nesta segunda pelo Tribunal Superior Eleitoral, num ato que formalizará sua aptidão para assumir o cargo, marcando oficialmente a contagem regressiva para a sua posse dentro de 22 dias. O primeiro presidente militar da redemocratização segue venerado por metade do Brasil, enquanto a outra metade do país e do mundo se pergunta se ele está realmente apto para dar conta do recado. Antes mesmo de assumir no dia 1º de janeiro, Bolsonaro já alimentou o noticiário com pautas que deixam enormes dúvidas no caminho, seja pela guerra interna em seu partido, seja pelo perfil de seus ministros, e mais recentemente, pelas suspeitas de corrupção que começaram a rondar a sua família.
Tudo começou com o vazamento das discussões ácidas entre os integrantes do partido pelo Whastsapp, na quinta feira, 6, seguida pela descoberta de que um assessor do seu filho, o senador eleito Flavio Bolsonaro, movimentou 1,2 milhão de reais entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, uma renda incompatível com seus ganhos. As informações constavam de um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), O dinheiro chegou a respingar nas contas da futura primeira dama, Michelle Bolsonaro. O assunto tomou os jornais no final da semana. Bolsonaro e o filho Flavio não se furtaram a falar do assunto. O presidente eleito disse a jornalistas que ele havia sido credor de empréstimos ao ex-assessor, Fabrício Queiroz. Flavio se pronunciou pelo Twitter, dizendo que estava com a consciência tranquila.
Erros ingênuos, insinuações maldosas da mídia ou um político que acreditou no próprio personagem que ganhou a eleição numa cruzada anticorrupção contra o PT? Para um Brasil que viu Aécio Neves e o ex-ministro Geddel Vieira Limafazerem campanha anticorrupção, e hoje estão enrolados em denúncias, qualquer sinal de fumaça preocupa. Bolsonaro, em todo caso, tem capital político de sobra ainda, e um suporte poderoso dos militares para seguir seu caminho e que muitas vezes têm garantido um certo verniz para seu futuro Governo. O próprio vice-presidente, o general da reserva Hamilton Mourão, mostrou-se favorável a explicações mais claras sobre o episódio do empréstimo. “O ex-motorista, que conheço como Queiroz, precisa dizer de onde saiu este dinheiro. O Coaf rastreia tudo. Algo tem, aí precisa explicar a transação, tem que dizer”, disse ele à jornalista Andrea Sadi, do portal G1. Mourão também será diplomado nesta segunda, junto com Bolsonaro.
Os militares, aliás, que estão até a raiz na era Bolsonaro —sete dos 22 ministros são fardados—, estão fazendo as vezes de freio institucional para o futuro Governo e, para alguns, são os que vão governar de fato. A volta à política em plena democracia vem dentro do propósito de permitir que o Brasil supere este momento de turbulência, que começou em 2014. “Eles garantiram a eleição e agora, a transição”, diz uma alta fonte de Brasília, com a honestidade de quem enxerga o papel dos militares em toda a formação do Brasil, desde os tempos imperiais. Segundo esta fonte, a presença deles é endossada pela população, como as próprias urnas confirmaram. Afinal de contas, Bolsonaro deixou claro desde o princípio que eles estariam junto caso vencesse. Uma amostra dessa influência já pode ser testemunhada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), de Brasília, que serve de base para o Governo de transição. Por ali, militares circulam com a mesma desenvoltura que os políticos e jornalistas que cobrem a capital.
A questão é se eles serão os fiadores dos planos ambiciosos do novo Governo, tanto a guinada à direita nos costumes, como a retomada do crescimento econômico com um plano ultraliberal. Se o otimismo do mercado financeiro deu o tom durante a campanha e este período de transição (a bolsa subiu e o dólar caiu desde a vitória do militar reservado), é o Bolsonaro do Palácio do Planalto que desperta um enorme ponto de interrogação entre os que pensam mais a longo prazo do que investidores de bolsa. Como o Governo novo vai colocar em prática seus planos de virar o Brasil para a direita, sem prejuízos para a economia, o emprego e para os direitos sociais previstos pela Constituição, é uma pergunta que se repete nas principais embaixadas de Brasília. Algumas ideias da equipe econômica lembram fórmulas dos anos 80 e 90, que depois afetaram o poder de compra das pessoas, analisava preocupado um representante de um dos países com mais negócios no Brasil em conversa com o EL PAÍS.
Eliane Brum: Os “malucos” sapateiam no palco
Aqueles que não eram levados a sério hoje têm poder atômico e também o de destruir a Amazônia
Nas últimas décadas existiu um consenso de que, diante dos absurdos que eram ditos nas redes e em outros espaços, a melhor estratégia era não responder. Contestar pessoas claramente mal intencionadas e intelectualmente desonestas, em sua busca furiosa por fama, seria legitimá-las como interlocutor, dando crédito ao que diziam. E, assim, servir de escada para que ganhassem mais visibilidade. A frase popular que expressa essa ideia é: “Não bata palmas para maluco dançar”. A eleição de Donald Trump, de outros populistas de extrema-direita e agora de Jair Bolsonaro revelou que este foi um equívoco que vai custar muito caro.
Os “malucos” não só dançaram, como sapatearam. Em seguida, passaram a afirmar seus pensamentos como “verdades” – e verdades únicas. O próximo passo foi conquistar o poder. Hoje os “malucos” não só ocupam os palcos mais centrais como têm o poder atômico de explodir o mundo, como Trump, ou acabar com a Amazônia, como Bolsonaro.
Se a eleição de Trump já havia exposto essa realidade, a de Bolsonaro é ainda mais emblemática. No caso de Trump, ao menos se poderia contrapor que o presidente americano é um bem sucedido homem de negócios, algo bastante valorizado no país do “faça-se a si mesmo”, frase usada para encobrir desigualdades decisivas para o destino de cada um. No caso de Bolsonaro, apesar de ele se apresentar e ser apresentado como “capitão reformado”, o presidente eleito passou os últimos 28 anos como um político profissional com pouca ou nenhuma importância para as grandes decisões do Congresso, ganhando espaço no noticiário apenas como personagem burlesco. Conseguiu se eleger sem sequer participar de debates no segundo turno – ou exatamente por isso –, porque dominava os palcos que importavam para ganhar a eleição.
Bolsonaro, que é chamado de “mito”, é um mitômano
Embora Bolsonaro só assuma oficialmente em janeiro, claramente o governo de Michel Temer acabou em 28 de outubro, quando o deputado se elegeu presidente. Hoje os brasileiros percebem que aquilo que parecia ser um universo paralelo, que só em situações excepcionais cruzava com o real, se tornou o que podemos chamar de realidade. O homem que já governa o Brasil, chamado de “mito” por seus seguidores, é um “mitômano”.
O que sabemos até agora é que Bolsonaro venera três figuras masculinas: Carlos Alberto Brilhante Ustra, militar e torturador da ditadura (1964-85); Olavo de Carvalho, que se apresenta como filósofo e se popularizou na internet depois de ser colunista da grande imprensa, e Donald Trump. Ustra desponta como a referência ética de Bolsonaro, Carvalho como seu guru intelectual e Trump é seu farol como líder. Por enquanto, temos uma trindade. E, neste ponto, Bolsonaro poderia interromper para afirmar que Deus acima de todos, já que Deus passou a ser um ativo na economia política que tem regido o Brasil atual.
A trindade de Bolsonaro é composta por um torturador, um guru e... Trump
Carlos Alberto Brilhante Ustra já foi amplamente descrito. Ele é reconhecido como torturador pela justiça brasileira e, conforme testemunhos, seria responsável por pelo menos 50 assassinatos. Como torturador, foi capaz de espancar grávidas e de levar crianças para ver o corpo destruído dos pais. Olavo de Carvalho já se manifestou contra campanhas de vacinação, isso num país que assiste a doenças consideradas erradicadas voltarem a ameaçar por baixa cobertura vacinal. Mora nos Estados Unidos desde 2005 e dá cursos de filosofia em vídeos transmitidos pela internet. Em recente entrevista à jornalista Júlia Zaremba, na Folha de S. Paulo, Carvalho assim se manifestou, ao ser perguntado sobre educação sexual nas escolas:
"Quanto mais educação sexual, mais putaria nas escolas. No fim, está ensinando criancinha a dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público. Acham que educação sexual está fazendo bem, mas só está fazendo mal. O Estado não tem que se meter em educação sexual de ninguém".
A linguagem que o mentor intelectual do novo presidente do Brasil leva para a imprensa formal é a que rege a internet. Não há qualquer base para o que afirma, não há um único caso confirmado de que alguma criança foi ensinada na escola a “dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público”. Isso até hoje não existe como fato. Mas não importa. As afirmações não precisam estar enraizadas em fatos, basta serem ditas. A verdade foi convertida em autoverdade. E a credibilidade não é construída por uma reputação de conhecimentos postos à prova e expostos ao debate, mas pela percepção emocional de “autenticidade” daquele que a consome.
É “verdade” porque Olavo de Carvalho diz que é verdade o que claramente inventou. E é verdade porque, individualmente, cada seguidor de Olavo de Carvalho decidiu que é verdade. E, desde 29 de outubro, dia seguinte ao segundo turno eleitoral, é verdade também porque Olavo de Carvalho é a referência intelectual do presidente da (ainda) oitava economia do mundo.
A partir de suas autoverdades, Olavo de Carvalho indicou dois ministros do novo governo: o das Relações Exteriores, o diplomata Ernesto Araújo, e o da Educação, o colombiano radicado no Brasil Ricardo Vélez Rodríguez. Na mesma entrevista, Carvalho conta o processo pelo qual conseguiu emplacar dois ministros para governar o Brasil:
"Coloquei no Facebook, creio que coloquei também na área de mensagens do Eduardo Bolsonaro (em rede social). Foi tudo. Eu sei que o Bolsonaro lê as minhas coisas e a gente está vendo que leva bastante a sério. Eu fico muito lisonjeado com isso. (...) Sugeri esses dois simplesmente porque me ocorreu na hora".
A conturbada escolha do ministro da Educação explicitou a forma como o novo governo já começou a operar. O primeiro indicado, Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, foi derrubado pelos evangélicos porque seria “esquerdista”. Em seguida, foi cogitado o procurador Guilherme Schelb, próximo do líder evangélico Silas Malafaia e defensor do “Escola Sem Partido”, projeto que busca censurar conteúdos e professores. Ao sair do encontro com Bolsonaro, Schelb fez a seguinte afirmação à imprensa:
"Eu não posso dar tarefa de casa, como tem sido feito, para criança de 8, 9 anos aprender discussão de gênero, o que é sexo grupal, como dois homens transam? O que é boquete? Isso é uma discussão de gênero, é uma violação da dignidade da criança".
Como a autoverdade dispensa os fatos, Schelb não foi incomodado pelo inconveniente de provar o que diz. Como por exemplo: em quais escolas do país e em quantas escolas do país crianças de 8 e 9 anos estão aprendendo sobre o que é boquete e sobre como dois homens transam? Onde está a tarefa de casa em que uma criança de 8, 9 anos precisa descrever um boquete e como dois homens transam?
A sociedade é levada a acreditar que as salas de aula são uma suruba permanente enquanto o real problema é empurrado para as sombras
Seria preciso perguntar onde isso está acontecendo e em que proporção isso está acontecendo no país. E o procurador precisaria responder. Com provas verificadas. Mas não há necessidade de provar. Basta dizer. Qualquer coisa. E assim vai crescendo no país o número de pessoas que acreditam que o cotidiano das salas de aula brasileiras é uma suruba permanente, quando os reais problemas, o baixo salário dos professores e a comprovada baixa qualidade do ensino ministrado no Brasil, são convenientemente empurrados para as sombras.
Dito de outro modo: o problema inventado se torna mais real do que o problema que de fato existe e que condena milhões de brasileiros às consequências de uma educação falha, limitando seu acesso ao mundo e suas possibilidades de uma vida plena.
Por fim, Bolsonaro acolheu a indicação de seu guru, Olavo de Carvalho: entre as várias crenças de Vélez Rodríguez, o futuro ministro da Educação, está a de defender que 31 de março de 1964, data do golpe que deu origem a uma ditadura de 21 anos, “é um dia para ser lembrado e comemorado”. Também critica a Comissão da Verdade, que apurou as torturas, sequestros e assassinatos cometidos por agentes de Estado durante o regime de exceção: “A malfadada ‘Comissão da Verdade’ que, a meu ver, consistiu mais numa encenação para ‘omissão da verdade’, foi a iniciativa mais absurda que os petralhas tentaram impor”. Nos próximos meses, a sociedade brasileira descobrirá como será ter a área da educação comandada por alguém que frauda os fatos históricos.
O futuro chanceler acusa a esquerda de ser “antinatalista”, mas omite que seu chefe defendeu a esterilização de mulheres para combater a pobreza e o crime
Vélez Rodríguez foi o segundo nome emplacado por Olavo de Carvalho. O primeiro foi Ernesto Araújo. As crenças do futuro chanceler já se tornaram piada internacional. Em seu blog chamado “Metapolítica 17” (número de Bolsonaro na cédula eleitoral), criado para apoiar seu futuro chefe, Araújo afirma que mudança climática é uma “ideologia de esquerda”. Também acusa o PT e a esquerda de “criminalizar o desejo do homem pela mulher, os filmes da Disney, a carne vermelha” e “o ar-condicionado”. Chegou a escrever que o PT “quer impedir que crianças nasçam” porque, para a esquerda, “todo o bebê é um risco para o planeta porque aumentará as emissões de carbono”.
Ao empilhar falsidades, Araújo omitiu uma verdade comprovada e documentada sobre seu candidato e agora chefe: nas últimas duas décadas, Bolsonaro defendeu a esterilização de mulheres e um rígido controle de natalidade como meios para combater a pobreza e a criminalidade. Mas quem se importa com fatos quando seus seguidores acreditam em qualquer mentira que ele disser que é verdade?
O problema é que nenhuma das afirmações escritas do futuro chanceler é piada. Ao contrário. É muito sério. Primeiro, porque Bolsonaro e parte de seu entorno manipulam essas mesmas mentiras. Segundo, porque os seguidores do presidente acreditam que são verdades. Terceiro, porque elas já começam a produzir consequências. O Brasil desistiu de sediar a próxima Conferência do Clima, a COP 25, em 2019, uma distinção que o governo brasileiro pediu e, dois meses atrás, Michel Temer (MDB) comemorou. Bolsonaro afirmou ter participado desta decisão e feito uma recomendação ao seu futuro ministro, Ernesto Araújo, para evitar a realização do mais importante evento mundial do clima no Brasil.
Está em curso a sexta extinção em massa na trajetória do planeta, a primeira causada pelos humanos
A liderança no debate da crise climática é a única que o Brasil teria as melhores condições para disputar, por ter no seu território a maior porção da maior floresta tropical do planeta, estratégica para o controle do aquecimento global. O país é também o mais biodiverso do mundo. Entre 1970 e 2014, a humanidade já destruiu 60% de todos os mamíferos, pássaros, peixes e répteis. Desde que os humanos apareceram na Terra, já desapareceram metade das plantas. O continente sul-americano é um dos que mais rapidamente está perdendo biodiversidade. Está em curso a sexta extinção em massa, a primeira causada pelos humanos.
Até a eleição de Bolsonaro, o Brasil tinha um papel de protagonista no debate do clima e da biodiversidade, no cenário mundial. Estes são os dois maiores desafios da atualidade, porque afetam todas as outras áreas, inclusive e muito fortemente o agronegócio. Hoje, em Katowice, na Polônia, é realizada a COP 24. Graças às declarações de Bolsonaro e Araújo, o Brasil é má notícia. Como foi má notícia no final de novembro, durante a Conferência Mundial da Biodiversidade.
Ao aceitar o convite para ser o futuro chanceler, Araújo abriu uma conta no Twitter. Como seu chefe, ele quer falar diretamente com os seguidores. Recentemente, escreveu um texto defendendo que sua indicação representaria um “mandato popular” no Itamaraty. Suas crenças supostamente representariam a vontade do povo no cenário externo. Araújo tenta seguir o mesmo caminho de seu padrinho, Olavo de Carvalho. Falando diretamente com os seguidores e desqualificando qualquer mediador, como a imprensa, a academia e mesmo seus pares, Araújo não precisa provar o que diz nem ter suas afirmações confrontadas com os fatos. Fala sozinho. Mas, para isso ser legítimo, como membro de um governo populista, precisa convencer o povo que fala pelo povo. Ou que o povo fala pela sua boca.
A certa altura, escreve: “E o povo brasileiro? Vocês não se preocupam com o que o povo brasileiro vai pensar de vocês? Sabem quem é o povo brasileiro? Já viram? Já viram a moça que espera o ônibus às 4 horas da manhã para ir trabalhar, com medo de ser assaltada ou estuprada? A mulher que leva a filha doente numa cadeira de rodas precária, empurrando-a de hospital em hospital sem conseguir atendimento? O rapaz triste que vende panos no sinal debaixo do sol o dia inteiro para mal conseguir comer? A mulher que pede dinheiro para comprar remédio, mas na verdade é para comprar crack e esquecer-se um pouco da vida? O outro rapaz atravessando a rua de muletas, com uma mochila toda rasgada às costas, na qual pregou o adesivo do Bolsonaro, talvez sua esperança de dar dignidade e sentido à sua luta diária? O pai de família com uma ferida na perna que não cicatriza nunca porque ele precisa trabalhar três turnos para poder alimentar os filhos? Aí está o povo brasileiro, não está no New York Times”.
Não é porque o chanceler de Bolsonaro não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões de pessoas
Como Araújo pretende falar diretamente com “o povo”, mas numa via de mão única, em que ele fala e o povo engole, ele prefere não explicar ao povo que são os mais pobres que sofrerão o maior impacto das mudanças climáticas. As pessoas em regiões de baixa renda têm sete vezes mais chances de morrer quando expostas a riscos naturais do que populações equivalentes em regiões de alta renda. Os mais pobres também têm seis vezes mais chances de serem feridos ou de precisarem se deslocar, abandonando suas terras e casas. O Brasil tem perdido mais de 6,4 bilhões de reais por ano com eventos extremos, como tempestades e inundações, provocados por mudanças climáticas.
A crise do clima tanto reflete a desigualdade abissal do Brasil quanto a amplia. São estas mesmas pessoas que Araújo diz conhecer – e seus críticos não – as que vão sofrer mais por ter um chanceler como ele. Não é porque Araújo não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões também no Brasil.
Ao final do texto, o chanceler se trai. Parte do povo, aquela que discorda dele, não entende nada. O chanceler com “mandato popular” diz ao “povo” que ele precisa deixar as decisões para quem sabe e para quem estudou: “Se você repudia a ‘ideologia do PT’, mas não sabe o que ela é, desculpe, mas você não está capacitado para combatê-la e retirá-la do Itamaraty ou de onde quer que seja. Ao contrário, você está ajudando a perpetuá-la sob novas formas. Se a prioridade é extrair a ideologia de dentro do Itamaraty, não lhe parece conveniente ter um chanceler capaz de compreender a ideologia que existe dentro do Itamaraty? Alguém que estuda essa coisa nos livros, há muitos anos, e não simplesmente ouviu alguma referência num segmento do Globo Repórter?”.
Como tudo pode ser muito pior, o Brasil não tem apenas um chanceler desastroso, mas dois. Na semana passada, o presidente eleito despachou um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, para bajular Donald Trump, o terceiro personagem de sua trindade. Como ressaltou Matias Spektor, na Folha: “O filho chegou fazendo compromissos numa agenda cara ao governo americano —Cuba, Jerusalém, China e Venezuela. Nada pediu em troca além da deferência americana a Bolsonaro. Como Trump não respeita quem faz concessões unilaterais, a equipe de Bolsonaro desvalorizou o próprio passe. (...) Trata-se de crença irracional que ignora o gosto de Trump por arrancar concessões de seus principais parceiros a troco de nada. (...) Os americanos irão à forra".
Como a Família Bolsonaro pretende conseguir os melhores acordos para o Brasil usando o boné de quem está do outro lado da mesa de negociações?
Ao cumprir agenda oficial em Washington, o filho do presidente usou um boné onde estava escrito “Trump 2020”. Talvez a maioria possa compreender como é constrangedor um representante do presidente eleito do Brasil usar um boné defendendo a reeleição do atual presidente americano. É como se o próprio Brasil estivesse usando um boné de Trump 2020. Como se espera negociar os interesses do país em boas condições a partir desta posição de subalternidade explícita, como se fosse um fã vestindo a cabeça com o nome do seu ídolo? O pai não fez melhor durante a visita ao Brasil do assessor de Trump, John Bolton. Como se fosse um subalterno, bateu continência. E não foi correspondido.
É isso. Os “malucos” estão dançando no palco e não precisam que ninguém dê palco para eles. Nem precisam das palmas de setores que acreditavam ter o monopólio dos aplausos. Ao dançar, afirmam que os fatos são “fake News” e que a ciência é “fake News”. Como estão em posições de poder, e um deles será o próximo presidente do Brasil, os jornais são obrigados a reproduzir suas falas e sua dança.
As universidades serão governadas por eles. A política científica será decidida por eles. A Escola Sem Partido pode virar lei, estabelecendo a censura com a justificativa de combater um problema que não existe. E tudo indica que o SUS poderá ser desmantelado em nome da privatização da saúde. O destino da Amazônia e de seus povos será determinado por aqueles que querem abrir a floresta para exploração.
Quando muitos creem no mesmo delírio, o que acontece com a realidade?
Ernesto Araújo se tornou uma piada internacional porque suas afirmações são absurdas. Elas não se sustentam quando confrontadas aos fatos. Mas, quando muitos creem no mesmo delírio, o que acontece com a realidade? Esta é uma pergunta crucial neste momento. E um desafio para o qual precisamos construir uma resposta. E rápido.
Quando já não há uma base comum de fatos a partir da qual se pode conversar, não há linguagem possível. Por exemplo: nas últimas décadas, religiosos fundamentalistas defendem que a teoria da evolução, de Charles Darwin, deveria ser ensinada nas escolas junto com o “criacionismo”, crença pela qual tudo foi criado por Deus. Segundo eles, as duas se equivalem. A questão é que essa afirmação equivale a dizer que uma cadeira e uma laranja são o mesmo. Não são.
A evolução é uma teoria científica, o criacionismo é uma crença religiosa. A primeira foi preciso provar pelo método da ciência. Mesmo se você não acreditar nela, os processos que a teoria da evolução descreve continuarão existindo e agindo. A segunda você pode acreditar ou não e jamais poderá ser provada pelo método científico. As duas não se misturam nem se comparam. Misturá-las faria com que deixássemos de compreender uma parte da Ciência que faz esse mundo funcionar – e faria também com que a dimensão mítica dos textos religiosos se perdesse naquilo que têm de mais poético.
O mesmo vale para a mudança climática provocada por ação humana. Não é uma questão de crença ou de fé. Está provado pelos melhores cientistas do mundo. É tão evidente que a maioria já pode perceber mesmo numa investigação empírica, na sua própria experiência cotidiana. Se o futuro chanceler do Brasil acredita que o aquecimento global é uma “ideologia de esquerda”, o planeta não vai deixar de aquecer por conta da sua crença. Só crianças muito pequenas acreditam que algo vai deixar de existir se elas fingirem que não existe.
Como restabelecer a linguagem, de forma que possamos ter uma base mínima comum a partir da qual possamos voltar a conversar?
Mas, ao tratar fatos como crença – ou como “ideologia” –, tanto Araújo como o presidente eleito podem impedir que o Brasil faça o que precisa para reduzir as emissões de CO2, as principais responsáveis pelo aquecimento global, assim como impedir que o Brasil tome medidas de adaptação ao que está por vir. Temos apenas 12 anos para impedir que o planeta aqueça mais de 1,5 graus Celsius. Se passar disso, os efeitos serão catastróficos. É grave que, nestes 12 anos, em pelo menos quatro o Brasil terá no poder pessoas que confundem fatos com crenças. Ou, para seu próprio interesse, afirmam que aquilo que é fato é a “ideologia” dos outros.
A segunda pergunta crucial neste momento é: como restabelecer a linguagem, de forma que possamos ter uma base mínima comum a partir da qual possamos voltar a conversar? Também precisamos construir uma resposta. E rápido.
A terceira é como devolver o significado às palavras. Por exemplo: uma laranja. De novo. Eu e você precisamos concordar que uma laranja é uma laranja. Se eu disser que uma laranja é uma cadeira, como vamos conversar? Podemos discutir qual qualidade de laranja é melhor, como melhorar a produção de laranjas, de que forma ampliar o acesso de todos ao consumo de laranjas etc etc, mas não podemos discutir se a laranja é uma cadeira ou uma laranja, do contrário não avançaremos em nenhuma das questões importantes sobre a laranja. Tudo o que é relevante, como seu valor nutricional e a evidência de que os mais pobres não têm possibilidade de comprar ou plantar laranjas, ficará bloqueado pelo impasse de o interlocutor insistir que a laranja é cadeira.
Não é uma questão de opinião a laranja ser laranja – e não cadeira. Também não há fatos alternativos. Há fatos. E não há alternativa de a laranja ser uma cadeira. Atualmente, porém, o truque de tratar laranjas como cadeiras para impedir o debate é amplamente utilizado.
Enquanto metade da sociedade brasileira é chamada de “comunista” sem nunca ter sido, os temas que afetam a vida das pessoas são decididos sem participação popular
Se as palavras são esvaziadas de significado comum, não há possibilidade de diálogo. É o que está acontecendo com a palavra “comunismo”, entre muitas outras. Não há uma base mínima de entendimento sobre o que é comunismo. Então, tudo o que os seguidores de Bolsonaro não gostam ou são estimulados a atacar é chamado de “comunismo”, assim como todos aqueles que eles consideram seus inimigos são chamados de “comunistas”.
O significado de comunismo, porém, foi quase totalmente perdido. E assim a conversa está interditada, porque o que é laranja virou cadeira para uma parte da sociedade brasileira. Enquanto metade da sociedade brasileira é chamada de “comunista” sem nunca ter sido ou querer ser, os temas que afetam diretamente a vida das pessoas estão sendo decididos sem debate nem participação popular, como, por exemplo, a reforma da previdência.
Os “malucos” que hoje dançam em todos os palcos não são tão malucos assim. Ou, se são, também parecem bem espertos. É claro que há alguns deles que acreditam que, por exemplo, crise climática é “climatismo” ou uma “ideologia de esquerda”, como diz Araújo. Mas a maioria deles sabe que afirmar isso é quase tão estúpido quanto dizer que a Terra é plana. Então, depois de fazer bastante alarme com isso, eles vão para a próxima etapa do roteiro. Qual é?
Enquanto a turma de Bolsonaro faz a dancinha da invasão estrangeira, a Amazônia vai sendo tomada por seus amigos
Afirmar que, sim, é claro que o aquecimento global é um fato, mas “os países ricos já destruíram todas as suas riquezas naturais e agora usam a crise climática para manipular países como o Brasil”. Basta acompanhar as declarações recentes de Bolsonaro e outros do seu entorno para constatar que a estratégia usada para manter os seguidores alinhados será reavivar a falsa acusação de que os indígenas e as ONGs internacionais querem tomar a Amazônia do Brasil. A mentira da ameaça à soberania nacional nunca deixou de se manter ativa na disputa da Amazônia. Mas, em tempos de WhatsApp, pode atingir muito mais gente disposta a acreditar. Já começou.
Enquanto parte dos brasileiros se distrai com a dança dos “malucos”, os ruralistas vão tentar avançar no seu propósito de abrir as terras indígenas para exploração. Não custa lembrar, mais uma vez, que as terras indígenas são de domínio da União. Os indígenas têm apenas o usufruto exclusivo sobre elas. Quando Bolsonaro compara os indígenas em reservas com “animais num zoológico” e diz que os indígenas “querem ser gente como a gente”, querem poder vender e arrendar as terras, ele não está sendo apenas racista.
Ele também está manipulando. A sua turma quer que as terras públicas sejam convertidas em terras privadas, que possam ser vendidas e arrendadas e exploradas. Enquanto fazem a dancinha da invasão estrangeira, a floresta vai sendo tomada por dentro. O nacionalismo da turma de Bolsonaro bate continência não só para os Estados Unidos, mas também para os grandes latifundiários e para as corporações e mineradoras transnacionais.
No futuro bem próximo assistiremos ao que acontece quando um delírio coletivo, construído a partir de mentiras persistentes apresentadas como verdades únicas, é confrontado com a realidade. Às vezes parece que Bolsonaro acredita que tudo vai acontecer apenas porque ele está dizendo que vai. Ele diz, depois se desdiz, aí diz que inventaram que ele disse o que disse. Em resumo: ele diz qualquer coisa e o seu oposto. Em alguns sentidos, Bolsonaro parece uma criança extasiada com o sucesso que faz no mundo dos adultos, com bonés e figurinhas de seus ídolos. Parte do seu entorno, que não é burra, acredita que pode controlar a criança mimada e voluntariosa – e convencê-la a agir conforme seus interesses. Veremos.
Em algum momento, o seguidor de Bolsonaro vai descobrir que não pode sentar na laranja – nem comer a cadeira
O confronto das promessas com o exercício do poder já começou. Como explicar que serão mais de 20 ministérios e não os 15 prometidos? Ou como explicar as consequências de transferir a embaixada para Jerusalém, desrespeitando parceiros comerciais importantes como os árabes? Como lidar com a China, grande importador dos produtos brasileiros, batendo continência para Trump em meio a uma guerra comercial entre as duas grandes potências? Como lidar com os impactos que tudo isso terá na economia e na vida dos mais pobres? Como justificar que postos de saúde poderão ficar sem médicos porque os cubanos foram embora e os brasileiros não querem ocupar os lugares mais difíceis e com menos estrutura? Como lidar com o possível aumento de gestações na adolescência, assim como de Aids e DSTs por falta de políticas públicas de prevenção e educação sexual nas escolas?
A realidade é irredutível. É quando o seguidor descobre que não pode sentar na laranja – nem comer a cadeira. Bolsonaro e sua turma já começaram a experimentar esse confronto. A compreensão ainda não atingiu seus seguidores. Mas atingirá.
Quem se anima com essa ideia, porém, deveria se envergonhar. Quem sofre primeiro e sofre mais numa sociedade desigual são os mais pobres. Se os “malucos” estão dançando no palco é também porque a maioria da população brasileira foi excluída da conversa mesmo na maior parte do período democrático e mesmo na maior parte dos governos do PT. Ainda que Bolsonaro tenha conseguido unir as pessoas em torno não de um projeto, mas de um afeto, o ódio, seu grande número de seguidores se sentiu parte de algo. Desde 2013 já havia ficado muito claro que havia um anseio da sociedade brasileira por maior participação.
Durante parte de sua permanência no poder, o PT também investiu mais nos afetos do que na construção de um projeto junto com as pessoas. Parou de conversar, não achou que precisasse mais das ruas e foi expulso delas em 2013. Depois da corrupção do PT no poder, e não me refiro apenas à corrupção financeira, a esquerda se mostrou incapaz de criar um projeto capaz de unir as pessoas. Isso não é culpa de Bolsonaro. Não adianta acusar o outro de ter um projeto de destruição. É preciso lidar com as próprias ruínas e apresentar um projeto de reconstrução e reinvenção do Brasil que convença as pessoas porque junto com elas.
Se alguém ainda não compreendeu, é o seguinte: para disputar uma ideia de Brasil será preciso, primeiro, ter uma ideia; segundo, convencer a maioria dos brasileiros que este é o melhor projeto para melhorar suas vidas; terceiro, tentar voltar a dançar no palco para recompor a linguagem, restabelecer a importância dos fatos e devolver substância às palavras. Não vai ser fácil.
A maior vitória de Bolsonaro é quando seu opositor fala como ele
Nestas eleições, o Brasil foi esgarçado até quase rasgar. Em alguns pontos, rasgou. Talvez o maior triunfo de Bolsonaro tenha sido interditar qualquer possibilidade de diálogo. Esse processo não foi iniciado por ele nem ele é o maior responsável. Mas, sem bloquear o diálogo, Bolsonaro possivelmente não ganharia a eleição. Hoje, de um lado e outro, as pessoas só sabem desqualificar – e destruir. Aqueles que denunciam Bolsonaro não compreenderam que, ao adotar o mesmo vocabulário e a mesma sintaxe, apenas em sentido oposto, tornam-se iguais. E dão ao seu opositor a maior vitória que ele pode ter. Neste sentido, o do ódio, Bolsonaro unificou o país. Todos odeiam. Não há complemento nesta gramática. Odiar esgota-se no próprio verbo, mas o substantivo destruído é o corpo dos mais frágeis.
Quem quer resistir à redução do Brasil, em tantos sentidos, precisa primeiro resistir na linguagem. Diferenciar-se, também para poder acolher. O único jeito de voltar a conversar é voltar a conversar. Mesmo que para isso tenhamos que falar sobre laranjas e cadeiras.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
El País: Bolsonaro, da revolução eleitoral a um teste inédito e arriscado no Congresso
Presidente eleito ignora siglas na montagem da Esplanada e levanta dúvidas sobre solidez da base para aprovar reformas. Senado deve ser Casa mais problemática
Por Ricardo Della Coletta, do El País
O presidente eleito Jair Bolsonaro montou o seu ministério ignorando o que até agora era considerada uma regra de ouro inescapável do modelo político brasileiro: a distribuição de pastas estratégicas na Esplanada para partidos políticos, buscando assim fidelizar uma sólida base de apoio no Congresso Nacional. Nos 20 ministérios que farão parte do Governo Bolsonaro —ainda faltam ser anunciados os titulares do Meio Ambiente e dos Direitos Humanos—, há apenas cinco que serão chefiados parlamentares. Três deles (Onyx Lorenzoni, Luiz Henrique Mandetta e Tereza Cristina) são filiados à mesma legenda, o Democratas; Osmar Terra, que será o ministro da Cidadania, é do MDB e Marcelo Álvaro Antônio, futuro ministro do Turismo, é do PSL. Um arranjo que, ao menos no modelo atual de governabilidade, é insuficiente e deixa de fora partidos importantes como PR, PSD e PP, cujos votos Bolsonaro fatalmente precisará para aprovar sua agenda social e de reformas econômicas, ansiada pelos investidores do mercado financeiro que apostou em sua eleição.
"O que vai ser testado é se é possível montar um governo sem negociar a participação dos partidos no ministério", avalia o cientista político Sérgio Abranches, que cunhou, ainda em 1988, o termo presidencialismo de coalizão (expressão que define as alianças políticas que o presidente da República no Brasil precisa selar com diversos partidos políticos para construir uma coalizão de apoio no Congresso Nacional). "Ninguém sabe se é possível ter condições de governabilidade com esse método, que nunca foi usado", acrescenta.
Bolsonaro e Lorenzoni, seu chefe da Casa Civil, têm afirmado que a nova administração terá uma forte base de apoio no Legislativo e que, para isso, inaugurará um novo modelo de relacionamento com o Congresso Nacional. Foram-se os tempos —apregoa Lorenzoni— em que os votos necessários no Parlamento eram obtidos a partir do fatiamento da máquina pública, com o loteamento de ministérios e de cargos no segundo escalão. "O famoso toma lá, dá cá destruiu a relação política e será completamente revisado", anunciou Lorenzoni nesta segunda-feira. No mesmo dia, o futuro ministro da Casa Civil, que terá entre as suas atribuições justamente cuidar da articulação política com o Legislativo, disse que Bolsonaro trabalha para ter uma base parlamentar de entre 330 e 350 deputados, numa Câmara que tem 513 integrantes.
É a partir desse ponto que começam a surgir as dúvidas, tanto entre analistas políticos quanto entre parlamentares. Como Bolsonaro montará uma aliança congressual tão ampla, que lhe daria condições inclusive para aprovar emendas à Constituição, sem convidar os caciques dos partidos políticos para indicar quadros para o seu ministério? Até o momento o presidente eleito deu apenas indícios do que planeja fazer. Disse num primeiro momento, por exemplo, que pretende pautar a sua relação com os parlamentares a partir das bancadas temáticas, como a ruralista ou evangélica –mas nem essa última ele parece ter conseguido contemplar plenamente. Os próprios ministros Osmar Terra e Tereza Cristina, dizem os aliados do presidente eleito, foram indicações das frentes paramentarias da assistência social e da agropecuária, respectivamente, e não dos seus partidos. A princípio o tamanho dessas frentes — a da agropecuária tem hoje 209 deputados signatários e a evangélica, 179 — sugere que esse tipo de aliança, por si só, daria um forte suporte a Bolsonaro, mas especialistas e os próprios legisladores apontam que trata-se de uma ilusão.
"Governar só com as frentes parlamentares não existe. Quem vota são os partidos, quem orienta as votações são os partidos. As pessoas são filiadas a partidos e têm, em princípio, que seguir as orientações deles", afirma o deputado José Rocha, da Bahia, líder do PR na Câmara. "Ele [Bolsonaro] começou dizendo que iria atender apenas as bancadas temáticas [...] Mas a bancada temática é fluída, ela só existe no tema. Se você pedir aos ruralistas ou à bancada da segurança pública para aprovar a reforma da Previdência, eles se dividem", complementa o cientista político Abranches. Além do mais, o próprio tamanho dessas bancadas temáticas pode ser questionado, uma vez que o número de deputados que realmente milita nesses temas de forma coordenada é substancialmente menor do que o total de signatários das frentes.
Depois de um mês de transição, período em que praticamente ignorou os partidos políticos, o capitão reformado do Exército parece ter avaliado que uma articulação política baseada apenas nas frentes temáticas não será suficiente para lhe garantir uma base parlamentar consistente. Desde esta terça-feira, iniciou uma rodada de reuniões com s bancadas das principais siglas do Congresso. Recebeu em seu gabinete deputados do MDB, PR e PSDB. Nesses encontros, Bolsonaro defendeu a reforma tributária e pediu a colaboração dos parlamentares para levar adiantes as reformas econômicas que pretende implementar. Além do mais, Lorenzoni foi à Câmara ter uma conversa semelhante com a bancada do PSD. Essas siglas afirmam que, embora não integrem formalmente o governo, apoiarão Bolsonaro na votação de propostas da área econômica, como as mudanças na Previdência.
Lua de mel e emendas parlamentares
Na Câmara, as previsões sobre como será a relação política do Palácio do Planalto com o Congresso Nacional são várias. Há certo consenso de que Bolsonaro deve ter bastante força no Parlamento principalmente no primeiro semestre do seu mandato, quando ainda deve surfar no apoio popular que lhe garantiu a contundente vitória nas eleições, considerada uma revolução eleitoral que catapultou o até então nanico PSL.
As dúvidas se aprofundam no que vai acontecer no momento subsequente: o novo modelo proposto por Bolsonaro, no qual os partidos não compõem o Governo, vai ser suficiente para garantir-lhe maioria no Congresso passada a lua de mel ou ele terá que incorrer na prática que prometeu extirpar? "Ainda é cedo para fazer qualquer conclusão. Na realidade ele [Bolsonaro] está inaugurando um novo relacionamento, em que os partidos não foram chamados a partilhar a formação [do governo]. Mas em algum momento eles serão chamados [a participar], não sei se agora ou depois", aposta um influente senador do MDB.
É certo que a distribuição de ministérios para os partidos aliados não é o único instrumento que um presidente da República tem para fidelizar a sua base congressual. O governo tem centenas de cargos federais para serem preenchidos nos Estados, o chamado segundo escalão, que podem ser direcionados para indicações políticas. "Esses cargos do segundo e terceiro escalão para eles [deputados] têm mais importância por causa da capilaridade", afirma Abranches. Não há indicações de que Bolsonaro vá lotear esses postos entre deputados e senadores, mas as demandas dos parlamentares por essas posições certamente chegarão até ele.
Outra linha de atuação são as emendas parlamentares. Onyx Lorenzoni montou na Casa Civil duas secretarias para tratar da relação com os congressistas. Para elas, convocou deputados que não foram reeleitos para tratar dessas organizações. Um deles será Leonardo Quintão, de Minas Gerais, que aponta que novo governo continuará atendendo os pedidos dos deputados. Promete a descentralização dos recursos dos ministérios e o pagamento das emendas que os congressistas fazem ao Orçamento. "A liberação de emendas é um direito dos deputados. [Vamos] tentar liberar 100% das emendas dos deputados", diz.
José Rocha, líder do PR, afirma que Bolsonaro tem sim condições de preservar uma base estável no Legislativo mesmo sem a partilha de cargos, desde que sua equipe consiga atender as demandas locais dos parlamentares. "Eu posso atender a minha base dentro de um programa de governo. Por exemplo, no dia que a BR-135 for concluída, você está atendendo a minha base", afirma o deputado. "Além do sistema de adutoras lá na minha região, que vai atender as sedes municipais. O dia que o governo conseguir colocar isso dentro do Orçamento, está atendendo a minha base. Eu não preciso de cargos", diz.
El País: A segunda metamorfose do MBL para seguir influente no Brasil de Bolsonaro
Grupo lança seu braço estudantil em universidades e escolas para competir com a UNE. Também estuda fórmulas de se transformar numa legenda, diz Pedro D'Eyrot ao EL PAÍS
Jovens de todas as idades poderão encontrar no website do grupo cartilhas, vídeos e outros materiais que serão produzidos especialmente para eles, "a fim de formar um exército de estudantes com pensamento liberal-conservador para que possam disseminar esse conteúdo em sala e fazer oposição a qualquer discurso da esquerda no ambiente estudantil", afirma D'Eyrot. Também poderão encontrar e formar núcleos dentro de suas instituições de ensino. Contudo, a formação de núcleos estará restrita para alunos a partir do quinto ano do ensino fundamental 2 até universitários.
A decisão de lançar a nova vertente do grupo vem num momento de avanço do projeto do Escola sem Partido na Câmara dos Deputados. O projeto, apoiado pelo MBL, é defendido como uma forma de frear a doutrinação dentro da sala de aula, mas críticos o enxergam como uma tentativa de censurar e perseguir a professores. Como o MBL Estudantil vai se posicionar com relação ao projeto e dialogar com os professores? "Um não anula o outro", argumenta D'Eyrot, para quem o projeto que tramita na Câmara "mostrará aos estudantes que eles têm o direito de receber um educação livre de vieses, que seus professores não podem utilizar os espaços acadêmicos para disseminar suas ideologias". Nesse sentido, explica, o MBL Estudantil pretende "promover uma conscientização" dos alunos. Se "os professores insistirem em levar suas ideologias para as salas, terão de debater com os alunos, que estarão capacitados para refutar suas ideias e prontos para impedir que os demais sejam doutrinados em sala de aula", argumenta.
O braço estudantil foi lançado durante o 4º Congresso Nacional do MBL, realizado em São Paulo nos dias 23 e 24 de novembro. Ainda não está claro se vai participar de eleições na União Nacional dos Estudantes (UNE) ou na União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), conforme chegou a admitir Renan Santos ao Buzzfeed: "Vamos concorrer para encerrar a UNE, abrir as contas da UNE, mostrar tudo e fechar a entidade. E, se estudantes quiserem organizar uma coisa nova, que criem após assembleia realmente democrática. E nós nem disputaremos. Eles começam algo do zero e nós saímos". D'Eyrot desconversa. Diz que não é a prioridade, mas que "pode acontecer". Em outro momento, diz que a questão ainda está em discussão e que o MBL não acredita "em uma representatividade universal dos estudantes como a UNE se propõe". E acrescenta: "Em especial, não acreditamos que este tipo de entidade deva ser financiada com rios de dinheiro público e que, ao invés de representar os estudantes, se preste exclusivamente a fazer militância de esquerda. Se pudermos acabar com a UNE, ótimo".
Por enquanto, a ideia é que seja um modelo "o mais abrangente possível". A decisão de lançá-lo veio a partir da constatação de que "os estudantes não se sentem representados por ninguém". A referência é a UNE, principal e mais antiga entidade estudantil brasileira, lançada em 1938 para representar os alunos do ensino superior. Vinculada historicamente a partidos de esquerda, foi responsável por lançar alguns de seus principais quadros na política, como o deputado federal Orlando Silva (PCdoB) e os senadores Lindbergh Farias (PT-RJ) e José Serra (PSDB-SP) —este último presidia a organização em 1964, na ocasião do golpe militar, e acabou exilado junto com outros estudantes.
"Alguém sabe dizer alguma conquista [da UNE]? Nenhum estado atingir as metas do IDEB? Queda atrás de queda do Brasil em rankings internacionais?", questiona D'Eyrot, que cita índices relativos ao ensino básico. "Nas redes sociais, milhares de estudantes pedem todos os dias a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as contas UNE, não foi necessário muito esforço para ver o desejo dos estudantes de um movimento que faça a voz deles serem verdadeiramente ecoadas".
Na manhã do último dia 23, a fila para participar do primeiro dia do 4º Congresso Nacional do MBL, numa casa noturna da avenida Francisco Matarazzo, estava repleta de jovens aos quais o grupo pretende atrair para suas fileiras. Com ingressos esgotados, o evento proporcionou o chamado MBL Experience. O EL PAÍS não foi autorizado a estar no evento sob a justificativa de que as credenciais de imprensa haviam se esgotado, mas o Buzzfeed descreveu a novidade como uma espécie de curso de formação misturado com entretenimento em que se passou táticas e comunicação e de organização de manifestações, além de diretrizes sobre como esses jovens deveriam se portar para ganhar voz no mundo político. Em determinado momento, conta o Buzzfeed, D'Eyrot reivindicou diante de uma plateia de quase 1.000 pessoas o legado da contracultura e da rebeldia de décadas atrás. "Nós somos os punk rockers, nós somos os subversivos de hoje. Quando falamos da biologia, que existe homem e mulher, e não 50 gêneros, estamos sendo subversivos", defendeu.
"O MBL Experience faz parte de todo o universo MBL, não somente ao MBL Estudantil", explica D'Eyrot ao EL PAÍS. "Porém, como percebemos que o público mais jovem curtiu o estilo, a partir do próximo ano, nossos congressos estaduais levarão o MBL Experience por todo o Brasil (assim como diversos outros eventos que estamos organizando) com atividades para os estudantes", acrescenta.
O MBL também pretende se transformar em um partido, ainda que as fórmulas para se chegar a isso ainda não estejam definidas. Uma opção é fundar um partido do zero, o que exigiria um longo caminho a percorrer para cumprir as exigências da Justiça Eleitoral. O mais viável, segundo adiantou algumas de suas lideranças para a Folha de S. Paulo, seria adotar alguma legenda que não tenha passado na cláusula de desempenho. "Estamos amadurecendo e analisando as propostas e alternativas", explica D'Eyrot. A ideia é antiga, mas parece ter ganhado novo impulso após uma viagem do núcleo duro do grupo a um sítio em Jundiaí, onde, conforme relatou a Folha, ficaram offline para repensar as estratégias e rumos pós-eleições. D'Eyrot disse que o encontro foi produtivo, mas prefere não dar mais detalhes por agora. "Há vantagens e desvantagens em se ter um partido. Estamos amadurecendo e analisando as propostas e alternativas".
Publicamente o MBL promete manter sua independência do governo Bolsonaro, a cuja candidatura só aderiu completamente a partir do segundo turno. Antes disso, o movimento tentou alavancar o então prefeito João Doria, que queria a presidência mas acabou se elegendo para o governo do Estado. Depois, defendeu abertamente a pré-candidatura de Flavio Rocha (PRB), dono da Riachuelo. Não vingou. Com o bolsonarismo vitorioso, diz apoiar a agenda de reformas de futuro ministro da Economia Paulo Guedes, um dos convidados do 4º Congresso Nacional, ao mesmo tempo que alguns de seus membros dizem não concordar integralmente com o presidente eleito.
El País: “Bolsonaro promete um muro de vergonha para o meio ambiente”, diz Astrini, do Greenpeace
Para coordenador do Greenpeace, saída do país do Acordo de Paris também poderia agravar a imagem lá fora. “É como o país dizer que não quer ajudar na solução, mas no problema”
“Uma derrota”. É assim que Marcio Astrini, coordenador de políticas públicas do Greenpeace e membro da coordenação do Observatório do Clima, classifica a retirada da candidatura do Brasil para sediar a próxima Conferência sobre as Mudanças Climáticas da ONU no ano que vem, a COP25. Durante a Conferência do ano passado, o Brasil anunciou a candidatura para sediar o evento em 2019. Para isso, teve que negociar ao longo de quase um ano com a Venezuela para que apoiasse a oferta, já que, para receber a COP, é preciso que haja consenso entre o grupo dos países latinos. Com o consenso, o Grupo de Países Latino-americanos (Grulac) confirmou à ONU a candidatura brasileira.
Mas nesta semana, às vésperas do início da COP24, que neste ano ocorre na cidade de Katowice, na Polônia, o Itamaraty anunciou o revés: por meio de nota, afirmou que “restrições fiscais e orçamentárias” e o “processo de transição” de Governo obrigaram o país a retirar a oferta de sediar o evento. De acordo com Astrini, porém, países que não têm condição financeira de sediar a conferência recebem ajuda da ONU. “O dinheiro não seria o [problema] principal”, afirmou em entrevista ao EL PAÍS por telefone, pouco antes de embarcar para Katowice. A decisão do Itamaraty foi ratificada, em seguida, pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, que afirmou ter recomendado que se evitasse o evento no país. "Houve participação minha nessa decisão. Até porque está em jogo o Triplo A nesse acordo". Ele se refere a proposta de criação de um corredor ecológico que ligaria os Andes, passando pela Amazônia e terminando no Atlântico, que abrangeria mais de 300 áreas protegidas e cerca de 1.000 territórios indígenas.
Embora essa proposta não tenha nenhuma relação com a conferência do clima, ou mesmo com a ONU, Bolsonaro acredita que a criação do Triplo A tem relação com o Acordo de Paris e poderia colocar em risco a soberania brasileira. O Acordo, que tem como objetivo reduzir a emissão de gases do efeito estufa, foi negociado durante a Conferência do Clima de 2015, na cidade francesa, e tem o Brasil como um dos signatários. Para Astrini, a decisão da retirada da candidatura vem exatamente na esteira da possível saída do Brasil do Acordo. “[A retirada da candidatura da COP] é a primeira pedra que ele colocou no muro da vergonha que ele promete para o meio ambiente”, afirmou.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Pergunta. O que significa, em termos ambientais e em termos diplomáticos, a retirada da candidatura do Brasil para sediar a Conferência do Clima do ano que vem?
Resposta. É uma derrota. Se você olhar para as promessas de Bolsonaro durante a campanha, já era esperado. Mas é uma derrota do ponto de vista do país. O Brasil é maior do que Bolsonaro e o Governo dele. A gente sempre teve um papel de destaque nessas negociações internacionais e são poucos os pontos diplomáticos onde o Brasil tem destaque. Isso porque, claro, temos a Amazônia, mas temos também uma matriz energética mais limpa que outros países. Além disso, já sediamos outras duas conferências, a Eco 92 e a Rio +20. Fazer a Conferência no Brasil seria uma demonstração do compromisso do país com o meio ambiente e ajudaria na hora das negociações internacionais. Além disso, uma parte grande da nossa economia é baseada na agricultura, que depende basicamente de equilíbrio climático. Países com essas características têm apelo maior nas negociações nessas conferências. Em Copenhague [cidade que sediou a conferência em 2009], o Brasil foi o primeiro país a apresentar metas concretas de redução de gases [de efeito estufa]. Enfim, temos um corpo diplomático excelente nessas negociações climáticas.
P. Após esse anúncio da retirada, qual clima é esperado nesta Conferência?
R. O Brasil irá com uma imagem muito delicada para a Conferência. Primeiro, porque o aumento do desmatamento sempre fragilizou o Brasil. É uma coisa meio vergonhosa nessa questão de negociações com a ONU. Aumentar [o desmatamento], em pleno século 21, passa esse ar de incapacidade. Aí você junta no mesmo ano a negativa em sediar [a próxima conferência] por questões políticas. E junto com isso, vem as declarações do novo ministro das relações exteriores [Ernesto Araújo], de que a esquerda criou a ideologia da mudança climática. É meio vergonhoso. Então nesta COP, eu acho que perderemos um pouco o espírito dos negociadores brasileiros. Se você é de um país que faz muito pelo clima, cumpre suas metas e é um exemplo, quando você se senta numa mesa de negociação, você se senta com um certo peso. Mas não adianta ser bom em retórica se você tem dívidas. O que levaríamos para uma mesa de negociação como ativo, agora virou passivo. Todo mundo sabe da importância do Brasil e das promessas do Bolsonaro, mas quando elas começam a ser colocadas em prática, você vê que o que já era ruim, está virando realidade. Bolsonaro antes mesmo de assumir, começa a dar concretude à agenda que prometeu. Isso atrapalha a imagem do país. [A retirada da candidatura da COP] é a primeira pedra que ele colocou no muro da vergonha que ele promete para o meio ambiente.
P. O Itamaraty utilizou-se de um argumento financeiro para justificar sua decisão. Quanto custa sediar um evento como esse?
"Ninguém quer comprar um quilo de carne que venha do desmatamento da Amazônia"
R. Não sei exatamente o valor. Mas alguns senadores conseguiram colocar a previsão dos gastos para o ano que vem, e havia também uma movimentação do Governo Temer para conseguir investimento externo. O dinheiro não seria o [problema] principal, porque caso o país queira sediar uma conferência e tenha alguma dificuldade, a ONU ajuda.
P. Quais são as consequências dessa retirada?
R. A retirada da candidatura afeta o nosso poder de negociação internacional. Em termos econômicos, boa parte dos clientes de produtos agropecuários do Brasil exige que a gente dê garantias de sustentabilidade do nosso produto. Ninguém quer comprar um quilo de carne que venha do desmatamento da Amazônia. Então nesse sentido, o Governo está dando um duplo mortal carpado: está voltando atrás sobre a candidatura para sediar a COP, ao mesmo tempo em que os índices de desmatamento estão aumentando. São dois dados que apontam retrocesso no âmbito das mudanças climáticas.
P. Mas apesar da retirada da candidatura para sediar a Conferência, o Brasil ainda segue como participante dela, correto?
R. Correto. O Brasil continua participando da COP, porque ainda é parte. Uma coisa é ser signatário do Acordo de Paris, outra coisa é ser membro das discussões de clima da ONU. Por exemplo, Donald Trump disse que sairia do Acordo de Paris, mas continua participando das conferências. O Brasil é signatário e também parte do grupo. Mas Bolsonaro já fez acenos para sair do Acordo, depois voltou atrás...
P. Acha que ainda está em jogo a saída do Acordo de Paris?
R. Está sob risco. Bolsonaro declarou que sairia, durante a campanha. E acho que isso teve uma relação direta na retirada da candidatura. Mas os trâmites não são tão simples. Para sair do Acordo, é preciso a aprovação do Congresso. Além disso, pelas regras da ONU, um país só pode romper com o Acordo depois de passados quatro anos da entrada em vigor, ou seja, em novembro do ano que vem. A saída definitiva ocorre depois de um ano da notificação, que seria novembro de 2020.
P. Se o Brasil sair do Acordo de Paris, o que pode ocorrer, na prática?
R. Os problemas de imagem e comerciais vão se agravar para o Brasil. Seria como se o Governo dissesse: eu estou dando as costas para qualquer ação em defesa do clima. Para a imagem do país é dizer que está contra o mundo. São 190 países, centenas de cientistas, milhares de estudos nos quais os acordos se baseiam. Sair dele é como o país dizer que não quer ajudar na solução e sim, fazer parte do problema. Isso pode ter um peso muito grande para a economia do Brasil. Inclusive quando Bolsonaro disse que sairia do Acordo de Paris, grandes exportadores do agronegócio se manifestaram contra, porque sabem o peso econômico que essa decisão pode ter.
P. Quais as expectativas, então, com o novo Governo em relação ao meio ambiente?
"As promessas principais de Bolsonaro para o meio ambiente são desfazer as unidades de conservação e acabar com o poder de atuação do Ibama, ou seja, desmontar o que deu certo no combate ao desmatamento"
R. As piores possíveis. Nós vamos atuar diariamente para ele não cumprir as promessas que fez na eleição. Entre 2004 e 2014, houve cerca de 80% de redução do desmatamento da Amazônia. Essa redução se deu, basicamente, devido à criação de áreas protegidas, que são terras indígenas e unidades de conservação, e às ações de fiscalização e repressão ao crime. Só que as promessas principais de Bolsonaro para o meio ambiente são desfazer as unidades de conservação e acabar com o poder de atuação do Ibama, ou seja, desmontar o que deu certo no combate ao desmatamento. Fora isso, ainda há a mensagem dele de dizer que o Ibama, que é quem faz a repressão ao crime ambiental, está errado. Esse combo pode fazer explodir o desmatamento na Amazônia. E a última coisa que quem exporta os produtos produzidos na Amazônia quer é que o desmatamento aumente. Se o Estado incentivar o desmatamento, algo que nunca ocorreu de forma deliberada como agora, as empresas não vão conseguir provar que o que elas fazem é o suficiente [pelo meio ambiente].
P. Durante a eleição, Bolsonaro fez reiteradas críticas ao Ibama e ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Acredita que o futuro dessas entidades está em jogo?
R. Algumas coisas prometidas por Bolsonaro durante a campanha não sei como poderão se concretizar. Por exemplo, ele vai ter que mudar a lei para poder vender terras indígenas. Nem sei se a Constituição permite isso. Mas, por outro lado, para acabar com o poder de ação do Ibama, por exemplo, é da noite para o dia. É só ele cortar orçamento. Então acho que isso está em jogo sim.
P. Acha que é possível que o Brasil volte atrás quanto à decisão da retirada da candidatura da COP?
R. Acho difícil. Até porque, se o Governo não é sério para essas coisas, a ONU é.
El País: Olavo de Carvalho, o Brasil só fala dele
Ignorado nas universidades do país e tido como figura folclórica da direita nas redes sociais, filósofo sai da obscuridade ao indicar dois ministros do novo Governo
O homem por trás da indicação de dois dos mais importantes ministros do governo Jair Bolsonaro não é militar nem político. Não lidera qualquer bancada de deputados na Câmara nem é porta-voz de uma frente parlamentar temática que apoie o capitão reformado do Exército, como a Evangélica ou a Agropecuária. Aos 71 anos, Olavo de Carvalho vive desde 2005 nos Estados Unidos, de onde ministra cursos de Filosofia que são transmitidas por vídeos na Internet. Até pouco tempo atrás era tratado como uma espécie de caricatura da extrema direita e do neoconservadorismo no Brasil, mas algo definitivamente mudou com a eleição de Bolsonaro para a presidência da República. Não só descobriu-se que Carvalho é o guru intelectual de alguns dos mais próximos assessores do presidente eleito, como ele mesmo foi o padrinho direto das nomeações de Ernesto Araújo para comandar o Ministério de Relações Exteriores e de Ricardo Vélez Rodríguez para o Ministério da Educação (MEC).
A chamada nova direita que chegou ao poder pelas mãos de Bolsonaro, que mistura a defesa do liberalismo econômico com o conservadorismo moral, tem no filósofo brasileiro Olavo de Carvalho uma clara referência intelectual. Tanto Flávio Bolsonaro, senador eleito pelo Rio de Janeiro e filho do futuro presidente do Brasil, quanto seu irmão Eduardo já foram a Richmond, na Virgínia, e participaram de transmissões no YouTube ao lado dele. A lista de seguidores não para por aí: também estão entre os discípulos de Carvalho personagens como o blogueiro de direita Felipe Moura Brasil e a deputada federal eleita por São Paulo Joyce Hasselmann, do mesmo partido do presidente eleito.
"Muito embora não seja um acadêmico, o Olavo de Carvalho é um intelectual de influência considerável na opinião pública brasileira. E já exerce uma atividade intelectual há várias décadas, primeiro como articulista em grandes jornais e depois nas redes sociais, onde ele difunde o seu pensamento e encontra os seus aderentes", explica Alvaro Bianchi, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Apesar de ressalvar que "há pouca verdade" na narrativa filosófica apresentada por Carvalho, Bianchi explica que ela se mostra persuasiva e eficaz por abordar "os medos e as inseguranças do homem comum perante as transformações do mundo contemporâneo."
Além de filósofo, Olavo de Carvalho é escritor —são 18 livros, segundo seu perfil no Twitter—, conferencista e jornalista. Ele se apresenta como um intelectual (venerado por seu apoiadores como a mente que se rebelou contra um suposto monopólio do pensamento de esquerda na imprensa e na academia brasileira), mas construiu sua carreira sempre de costas para os círculos universitários (não tem, por exemplo, um título acadêmico formal e boa parte do seu trabalho concentra-se justamente em desqualificar a academia).
O desprezo parece ser recíproco nas faculdades brasileiras, onde a obra de Carvalho é praticamente ignorada ou tratada como algo sem valor científico. "Na minha geração e entre os meus colegas ninguém leu Olavo de Carvalho. [Ele] é absolutamente irrelevante do ponto de vista filosófico", afirma José Arthur Giannoti, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) e membro fundador do Centro Brasileiro de Análise e Plenajemento (Cebrap). "Não tenho nenhum interesse em ler o Olavo de Carvalho, a não ser [para] explicar como é que a nova direita o tenha como um ídolo e que tanta gente no Brasil seja influenciado por ele", acrescenta.
A imagem de outsider entre a intelectualidade brasileira só é reforçada pelo seu passado pouco ortodoxo. Na década de 80 deu cursos de astrologia e, por aqueles tempos, chegou a fazer parte de uma confraria mística muçulmana (tariqa). Hoje denuncia em vídeos o que considera o perigo da islamização do Ocidente e o abandono de valores judaico-cristãos.
O sucesso que Olavo de Carvalho atingiu na nova direita brasileira, ao ponto de converter-se num fenômeno editorial e alcançar o status de um verdadeiro guru, se deve principalmente à sua militância online ao longo dos últimos anos. Ele mantém um perfil no Facebook que conta com mais de 543.000 seguidores. Para além disso, disponibiliza em sua web oficial um seminário de filosofia —"o único que pode ajudar você a praticar a filosofia em vez de apenas repetir o que outras pessoas, ilustres o quanto se queira, disseram a respeito dela"— com videoaulas e cuja mensalidade custa 60 reais.
Os temas dos vídeos publicados por Carvalho na Internet são vários. Já definiu o ex-presidente Lula como "líder supremo do comunismo latino-americano"; considera o Foro de São Paulo, fórum criado nos anos 90 que reúne partidos de esquerda da América Latina, "a maior organização política que já existiu no continente"; classificou o fascismo de "variante do movimento socialistas" e afirmou que "ideologia de gênero, abortismo e gayzismo" são parte de uma "revolução cultural" coordenada por esquerdistas.
Nas publicações, não raro as suas análises se misturam com teorias conspiratórias de procedência duvidosa —ou em alguns casos comprovadamente falsas. Em um texto de novembro de 2008 intitulado Milagres da fé obâmica, por exemplo, Olavo de Carvalho descreve Barack Obama, então o presidenciável democrata prestes a arrematar a Casa Branca, como um político "apoiado entusiasticamente pela Al-Qaeda, pelo Hamas, pela Organização de Libertação Palestina, pelo presidente iraniano [Mahmoud] Ahmadinejad, por Muammar Khadafi, por Fidel Castro, por Hugo Chávez e por todas as forças anti-americanas, pró-comunistas e pró-terroristas do mundo, sem nenhuma exceção visível."
Num episódio mais recente, já na última campanha presidencial brasileira, Carvalho publicou em suas redes sociais uma mensagem na qual afirmava que Fernando Haddad, candidato do PT que acabou derrotado, fez em um livro apologia à prática do incesto. O conteúdo da postagem, posteriormente apagada por Carvalho, foi considerado mentiroso por sites de checagem de informações no Brasil.
Para Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e organizadora do livro Ódio como política (editora Boitempo), assim como ocorreu no caso de Bolsonaro, a força de Olavo de Carvalho no movimento neoconservador brasileiro só pode ser entendido a partir do fenômeno das redes sociais. "[Ele] é a típica pessoa que soube se capitalizar com base nesse novo formato de se comunicar: fácil, rápido, polêmico e combativo", afirma. "Ele sabe se comunicar com base em frases polêmicas, conteúdos curtos, mensagens fáceis e ataques. É a forma comunicativa do best seller, daquele palestrante que tem um conteúdo muito simples e mastigado. Uma coisa fácil, polêmica e que faz sucesso."
Guerra cultural
Se em seus textos e vídeos Olavo de Carvalho mostra-se como alguém que transita com naturalidade entre diversos temas filosóficos e da atualidade, um assunto parece merecer sua atenção especial. Trata-se da ideia de "marxismo cultural", teoria conspiratória difundida em diversos círculos de extrema direita ao redor do mundo. Basicamente, ela se apropria de textos do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci para atacar uma suposta infiltração do pensamento comunista em diversas instituições culturais —de escolas e universidades à própria imprensa— com o fim de destruir valores civilizatórios.
Carvalho trata de adaptar essa teoria ao contexto brasileiro. Há gravações na Internet nas quais ele diz que essa ação coordenada de avanço da esquerda sobre as instituições brasileiras ocorreu a partir do golpe militar de 1964. "Na estratégia do [Antonio] Gramsci [filósofo marxista italiano] a maior parte da militância envolvida não saía pregando ideias comunistas. Ao contrário, [ela] atacava pontos específicos que representavam pilares da civilização, como a própria ideia de família, moral sexual e as bases do direito penal e civil", diz Carvalho em um dos seus vídeos. "Gradativamente eles [comunistas] foram ocupando todos os espaços. Para se fazer uma ideia de como levaram isso a sério, no tempo do governo militar a esquerda já dominava a imprensa brasileira inteira. Você não tinha um jornal cujo diretor de redação não fosse comunista", conclui. A teoria propagada por Carvalho pode ter pouco ou nenhum amparo entre historiadores e especialistas, mas encontra solo fértil no neoconservadorismo brasileiro.
De acordo com Bianchi, da Unicamp, Carvalho "reciclou" para o contexto brasileiro "de modo bastante eficaz" um assunto que começou a ser discutido nos Estados Unidos na década de 70. "A ideia de um marxismo cultural que estaria ameaçando os valores e as tradições intelectuais das nossas sociedades é um tema recorrente no debate político norte-americano já há bastante tempo", diz o professor. Para Bianchi, que estuda justamente a obra de Gramsci, não há dúvidas de que as teses apresentadas por Carvalho nessa área são teorias conspiratórias. "Ele [Olavo de Carvalho] atribui um peso ao marxismo nas universidades brasileiras que simplesmente não existe", pontua.
A ascensão de Bolsonaro tirou Olavo de Carvalho das sombras e o colocou como uma das figuras centrais para compreender o que pensam tanto o capitão reformado do Exército quanto algumas pessoas do seu círculo de confiança. Carvalho tem sido alvo de elogios do secretário de relações internacionais do partido do presidente eleito (PSL), Filipe Martins. "O imaginário do jornalista brasileiro médio não é capaz de abarcar um homem de pensamento, dedicado à vida interior e à construção de uma vida bem examinada, como Olavo de Carvalho", publicou Martins recentemente no Twitter.
Para além disso, Carvalho já provou todo o alcance da sua influência sobre Bolsonaro. Na formação do novo governo, o filósofo conseguiu emplacar dois nomes na Esplanada dos Ministérios, justamente os de perfil mais ideológico. Ernesto Araújo, por exemplo, é um diplomata que, à frente das Relações Exteriores, promete combater o "alarmismo climático" e as "pautas abortistas e anticristãs em foros multilaterais", segundo um artigo que ele publicou na semana passada no jornal Gazeta do Povo. Os dias em que Carvalho era retratado apenas como um excêntrico agitador de direita nas redes sociais, sem maiores consequências, ficaram para atrás.