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El País: Com Trump, Bolsonaro e Obrador as Américas abraçam o nacionalismo
Movimentos políticos do continente irão girar em torno de Trump, López Obrador e Bolsonaro
O México, o Brasil e os Estados Unidos. Os três gigantes americanos - onde moram 660 milhões de pessoas do 1 bilhão que vive no continente - serão governados a partir de terça-feira, ao mesmo tempo, por três líderes que abraçam o nacionalismo. Um triunvirato incomum, um equilíbrio, com Washington como principal farol, em que Jair Bolsonaro pretende ser seu parceiro predileto e com o Governo de Andrés Manuel López Obrador receoso dessa aproximação, temeroso de ficar emparedado e com a necessidade de se entender, pelo menos, com seu vizinho do norte. Enquanto isso, um fator permeia o ambiente. A cada vez maior presença da China na região pode terminar por distorcer e ser o convidado externo do jogo a três do nacionalismo americano.
O tabuleiro político da América Latina reordenou suas peças mais determinantes nesse ano. Em linhas gerais, o pêndulo se inclinou cada vez mais à direita. O México, o que não é pouco, foi, de certa forma, a exceção. A vitória esmagadora de López Obrador em julho levou ao poder pela primeira vez um líder de esquerda. Enquanto isso, o Brasil e a Colômbia se voltaram ainda mais à direita e no epicentro da maior crise, a Venezuela, ocorreu um simulacro de eleições que não fizeram outra coisa a não ser perpetuar o caminho autoritário de Nicolás Maduro; uma fratura que Daniel Ortega, por sua vez, intensificou à base de repressão, com um conflito que deixou quase 300 mortos, milhares de exilados e centenas de perseguidos, com uma incansável perseguição à imprensa independente.
A geopolítica do continente irá girar em torno de Trump, López Obrador e Bolsonaro, três líderes com os quais a política externa não pode ser entendida sem um reforço prévio da interna. No papel, López Obrador e Donald Trumpderam demonstrações de querer ter boa relação. Se o inquilino da Casa Branca afirmou que fará grandes coisas com seu novo vizinho, o presidente mexicano, que chegou ao poder em 1 de dezembro, disse que não tem intenção de entrar em conflito com o vizinho do norte. Sua forma de fazer política, as maneiras, os gestos que tanto importam nesses tempos, não é tão diferente, como López Obrador se esforçou em demonstrar em apenas um mês. Os dois não têm exatamente uma boa sintonia com a imprensa tradicional, mas estão permanentemente presentes nela, tentando marcar a agenda. Nenhum hesita em assumir erros, culpar suas equipes e voltar atrás em decisões controversas.
A gestão da crise migratória, entretanto, ameaça destruir o futuro desse casal incerto. Trump tensiona a cada dia a corda em seu país para conseguir financiamento para sua grande promessa eleitoral: o muro fronteiriço que pretende acabar de construir. O Governo mexicano, convencido de que os ataques crescerão nos próximos meses, à medida que a campanha de reeleição de Trump se aproximar, combina o pragmatismo com a moderação. Para isso, toma cuidado ao responder os ataques de um líder que está do outro lado do espectro, ideologicamente.
A Chancelaria mexicana está incomodada com o papel que a partir dessa semana será desempenhado pelo Governo do Brasil, quando Bolsonaro tomar posse na terça-feira. No reordenamento ideológico da região, se alguém tem motivos para levantar os braços é o novo dirigente brasileiro. A vitória do ultradireitista alinhou ideologicamente o maior país da América Latina com a maior potência mundial, na outra ponta do continente. Se não fosse pelo Canadá, criaria no mapa uma espécie de sanduíche do populismo direitista que, por sua vez, avança sem freios por todo o mundo.
Bolsonaro chega decidido a romper com tudo o que foi estabelecido no Brasil, especialmente se for legado do ex-presidente Lula. O hoje preso líder de esquerda promoveu durante seus Governos alianças em comércio exterior e indústria com os países do sul do continente, sob o abrigo da bonança petrolífera da Venezuela de Hugo Chávez, e afastou o Brasil dos Estados Unidos. Bolsonaro, entretanto, pretende se transformar no principal aliado de Trump no sul do continente, econômica e ideologicamente. O novo presidente brasileiro quer ser o interlocutor da Casa Branca para os conflitos sul-americanos e, o que é a mesma coisa, se mostrar ativo para conseguir a saída de Maduro do poder na Venezuela. Os primeiros sinais da boa sintonia foram mostrados nas reuniões que o ainda presidente eleito manteve com John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca.
Bolsonaro, alinhado com Trump, pretende diminuir a influência econômica da China, principal parceiro comercial, no Brasil, apesar das ameaças de uma possível represália de Pequim pairarem sobre o gigante sul-americano. O arqui-inimigo comercial dos Estados Unidos desempenhará um papel importante na geopolítica latino-americana. Nos últimos anos, o gigante asiático conseguiu formar um bloco de países que abandonaram suas relações tradicionais com Taiwan e escancararam as portas da região à China, especialmente na América Central, de pouco valor econômico, mas sim estratégico. A Costa Rica, República Dominicana, Panamá e El Salvador formam o novo grupo aliado de Pequim no Sistema de Integração da América Central (SICA). Os três últimos formalizaram relações com o gigante asiático no último ano. No caso da Costa Rica, o país assinou em outubro a continuação dos laços que criou em 2007 com a segunda maior economia do mundo.
A cada vez maior presença chinesa no centro do continente não significará nada se o México decidir escancarar as portas ao gigante asiático, uma das jogadas - bem arriscadas -, que a Chancelaria considera no caso de Trump ignorar a promessa de investir no país vizinho. Uma nova aliança que também atingiria o Brasil.
El País: Luciano Hang, o mais engajado empresário bolsonarista, casa marketing e militância
Dono da rede varejista Havan se aproximou de apresentadores, jogadores e dirigentes pró-Bolsonaro patrocinando seus times, eventos e programas televisivos
Por Breiller Pires, do El País
Os craques Ronaldinho Gaúcho e Falcão, o Club Atlético Paranaense e os apresentadores de televisão Ratinho, Celso Portiolli e Danilo Gentili possuem outro traço em comum além de terem apoiado publicamente Jair Bolsonaro. Todos eles recebem patrocínios ou já posaram como garotos-propaganda da Havan, rede de lojas do catarinense Luciano Hang, empresário que mais militou a favor do ex-capitão do Exército durante a campanha presidencial. Com faturamento estimado em 5 bilhões de reais por ano, a empresa se tornou uma impulsora do bolsonarismo pelo país atrelando sua imagem a celebridades de orientação ideológica semelhante à de seu líder.
Pouco conhecido e de perfil discreto até então, Luciano Hang começou a apostar em ações de publicidade no fim de 2016. A campanha “De quem é a Havan?” estrelada por ele era a forma que encontrou para combater os boatos de que as lojas distinguidas pela arquitetura inspirada na Casa Branca e réplicas da Estátua da Liberdade em sua fachada pertenciam aos filhos dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff. “A associação com políticos começou a afetar a imagem do meu negócio”, diz Hang, que, sem esconder seu antipetismo, sempre foi admirador dos Estados Unidos e do capitalismo. “Acredite nos empresários. Deixa a gente trabalhar”, costuma pregar ao defender o enxugamento do Estado em suas aparições públicas.
A partir da campanha, dois anos atrás, o dono virou a cara da empresa e turbinou as investidas de marketing. Para isso, contou com parceiros de longa data. Desde 2013, quando iniciou a expansão de lojas para além da região Sul, passou a ser anunciante assíduo do programa SuperPop, da RedeTV!, apresentado por Luciana Gimenez. Naquela época, a atração já servia de escada para a popularidade de Jair Bolsonaro, ainda como deputado federal, habitué dos debates sobre família, homossexualidade e machismo instados pela apresentadora. Mas o grande salto da Havan no mercado de publicidade em televisão toma impulso pelas mãos de dois líderes de programas de auditório com raízes no Paraná, estado que abriga mais lojas da marca depois de Santa Catarina.
Carlos Roberto Massa, o Ratinho, puxou a fila dos embaixadores notáveis da Havan. Começou anunciando produtos em seu programa, que foi palco da maior exposição midiática experimentada por Luciano Hang até então. Uma entrevista de 12 minutos, ao vivo e em rede nacional, onde ele aparecia desmentindo boatos sobre a empresa e detalhando seu projeto de crescimento. Ratinho logo conseguiu patrocínio fixo da rede varejista para um quadro da atração que comanda há mais de 20 anos no SBT. Entre viagens para inauguração de novas lojas pelo Brasil, apresentador e empresário descobriram afinidades políticas, que, pouco antes de se conhecerem, seriam improváveis.
Ratinho era amigo de Lula. Tamanha proximidade acabou lhe rendendo contratempos. Em 2005, teve seu nome envolvido no escândalo do mensalão, suspeito de receber 2 milhões de reais retirados de contas do empresário Marcos Valério como pagamento por uma entrevista realizada com o então presidente no ano anterior. Ele negou a acusação e, por falta de provas, não chegou a ser indiciado no processo. Em 2012, Lula, já retirado da Presidência, voltou a ser entrevistado em seu programa. O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo multou o apresentador e o PT por propaganda eleitoral antecipada, já que Lula levara a tiracolo na atração seu candidato à Prefeitura, Fernando Haddad, em notório esforço para torná-lo mais conhecido. Dizendo-se responsável pelo convite, Ratinho se dispôs a pagar integralmente a multa de 15.000 reais.
A relação entre Lula e Ratinho começaria a azedar no mesmo ano. O apresentador havia negociado nos bastidores para que o ex-presidente se mantivesse neutro na eleição a prefeito de Curitiba, que tinha seu filho, Ratinho Junior, como um dos candidatos. Lula cumpriu o acordo com o amigo, mas o PT decidiu apoiar Gustavo Fruet (PDT), que venceu o pleito no segundo turno. Depois disso, Ratinho, que nunca foi simpático ao partido apesar da amizade com seu principal fundador, se converteu em antipetista de carteirinha, afastando-se de Lula. Seu filho seguiu na política. Em outubro, foi eleito governador do Paraná no primeiro turno pelo PSD – Luciano Hang doou 100.000 reais para sua campanha. Pai e filho apoiaram Bolsonaro no Estado.
No início de dezembro, Ratinho e Portiolli, vestidos com a tradicional pilcha gaúcha, estiveram ao lado de Hang na inauguração da primeira loja da Havan no Rio Grande do Sul. Ambos aplaudiram o discurso inflamado do empresário, que reivindicava “mais liberdade para poder trabalhar sábado, domingo e feriados” e “menos interferências de sindicatos” para abrir mais empreendimentos.
Sbtistas e havanistas
“Somos bons soldados da Havan. O Celso é o sargento”, explica Ratinho sobre a dedicação dos comunicadores em promover a empresa catarinense. Portiolli vai além. “Sou sbtista, mas também havanista”. Ele não hesita, inclusive, em comparar Luciano Hang a Silvio Santos. “Só vi dois na vida. São homens de uma energia incrível, humildes e simples”, diz. Foi ele quem mediou um encontro entre os magnatas. Em maio, Hang esteve nos estúdios do SBT, onde ele investiu cerca de 50 milhões de reais em publicidade em 2018, e foi apresentado a Silvio Santos, que o convidou juntamente com os três filhos para fazer uma ponta em seu programa. Durante a participação, que durou quase seis minutos, o apresentador se mostrou impressionado com o tamanho das lojas do empresário, mas o rebateu após ele dizer “acreditar no Brasil” para justificar investimentos. “Isso é um pouco demagogo”, provocou Silvio Santos.
Em um mercado cada vez mais escasso de anunciantes, a bajulação a Hang tem ganhado novos espaços na emissora. Em dezembro, ele foi o convidado especial do quadro “Pra quem você tira o chapéu”, no Programa Raul Gil. Enquanto o empresário aproveitava o palco para atacar Lula, universidades federais, jornalistas e governos de esquerda na América Latina, o apresentador o exaltava como “um grande apoiador da propaganda na TV”. Três dias depois foi ao ar uma entrevista de Hang a Danilo Gentili, humorista que, assim como Bolsonaro, já foi processado pela deputada Maria do Rosário (PT) por ofensas machistas e apresenta o programa The Noite. Menos de uma semana após participar do “Pra quem você tira o chapéu”, com o colega Raul Gil, em que também criticou a imprensa, “professores esquerdistas” nas universidades e governos socialistas, Gentili fechou contrato para 20 inserções comerciais da Havan durante o ano. Na primeira, em ação com ovos de Páscoa, o apresentador convocou seus fãs a comprar na loja. “A Havan merece todo o nosso dinheiro”, afirmou durante o merchan.
O poder econômico e a disposição em abrir os cofres para publicidade fazem com que Hang seja cortejado por nomes de outras emissoras. Em agosto, o empresário e apresentador Roberto Justus visitou a sede da Havan em busca de patrocínio para seu reality show O Aprendiz, que a partir do ano que vem será exibido pela Band. Saiu com a promessa de uma cota bancada pela rede de lojas. Nas vésperas do segundo turno, Justus anunciou apoio a Bolsonaro alegando que “o PT já demonstrou sua incapacidade de dar uma vida melhor aos brasileiros”. Assim como Hang, o apresentador é signatário do manifesto liderado por Flávio Rocha, presidente da Riachuelo, em que um grupo de empresários defende o livre mercado e se compromete a tomar as rédeas da política.
Para Luciano Hang, o SBT tem programas “voltados para a família brasileira”. Ele diz que a identificação entre anunciante e investidor é fundamental na hora de fechar acordos comerciais. “Buscamos agregar pessoas com as quais nos identificamos e são capazes de interagir com a população.” De acordo com o departamento de marketing da Havan, a estratégia publicitária da empresa não leva em conta critérios ideológicos nem condiciona patrocínios a posicionamentos políticos de personalidades e veículos de comunicação. Embora Hang seja crítico da Globo, a ponto de desqualificar contratados da emissora como a apresentadora Fernanda Lima, sua empresa já anunciou no programa Encontro com Fátima Bernardes, e também em intervalos comerciais no horário nobre. Em setembro, telespectadores da Globo foram surpreendidos com uma campanha da Havan protagonizada por artistas do SBT, a exemplo de Ratinho, Celso Portiolli, Danilo Gentili e Eliana. Também já posaram como garotos-propaganda da empresa o youtuber Whindersson Nunes e a apresentadora Sabrina Sato, da Record. Ela é casada com o ator Duda Nagle, que engrossou manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff na avenida Paulista. Em dezembro, Luciano Hang gravou entrevista com a mãe de Duda, a jornalista Leda Nagle.
Há um ritual predeterminado para cada celebridade contratada pela Havan. Os famosos são recepcionados pelo helicóptero da empresa no aeroporto internacional de Navegantes, de onde se deslocam até a sede em Brusque. Ao chegar, fazem um tour pela megaloja, tocam um sino reservado a visitantes ilustres e posam para fotos com funcionários. Dos encontros com Luciano Hang, geralmente saem com contratos de publicidade encaminhados, que costumam envolver a realização de entrevistas com o proprietário. Quando entrevistado por Luciana Gimenez, Ratinho, Danilo Gentili, Raul Gil e Silvio Santos, o empresário foi poupado de responder ou se estender sobre temas espinhosos, como o suposto disparo de mensagens contra o PT no Whatsapp, impulsionamento ilegal de conteúdos favoráveis a Bolsonaro no Facebook ou a condenação na Justiça catarinense por evasão de divisas.
Esportistas bolsonaristas bem cotados com a Havan
Este ano, Falcão, um dos maiores jogadores de futsal de todos os tempos, se tornou garoto-propaganda da Havan. Ele gravou ações promocionais para a Copa do Mundo, Dia das Crianças e o 32º aniversário da empresa. Durante as eleições, causou polêmica ao criticar o movimento #EleNão e gritou “Bolsonaro presidente” em sua despedida da seleção brasileira, no mesmo dia do segundo turno. Em novembro, o agora ex-jogador visitou o presidente eleito no Rio de Janeiro. “Fiquei confiante de sentir olho no olho a única vontade dele, que é melhorar nosso país”, comentou sobre o encontro em seu perfil no Instagram.
Mas o apoio ao político de extrema direita que mais repercutiu no círculo do esporte foi o do pentacampeão Ronaldinho Gaúcho, que, em 2014, endossara a candidatura de Aécio Neves (PSDB). O ex-craque do Barcelona postou imagem com uma camisa da seleção e o número 17, revelando seu voto “por um Brasil melhor, desejo paz, segurança e alguém que nos devolva a alegria”. A manifestação pelas redes sociais aconteceu na véspera do primeiro turno, dois dias após seu irmão e representante, Assis Moreira, confirmar sua participação no Jogo das Estrelas, em Santa Catarina, patrocinado pela Havan.
José Pereira, organizador do evento realizado no último dia 13 de dezembro, conta que esteve em um hotel em São Paulo para fechar a presença de Ronaldinho, mas que a Havan só decidiu patrocinar o jogo após a confirmação do ex-jogador. A programação oficial do evento foi divulgada em 30 de outubro, dois dias depois da eleição de Jair Bolsonaro. “Um nome como Ronaldinho abre portas”, diz Pereira. Embora ele afirme que outras marcas ajudaram a pagar o cachê da estrela, que cobra 200.000 dólares (780.000 reais) por exibição em eventos festivos e amistosos, à exceção de jogos beneficentes, o aporte da Havan foi determinante para bancar as despesas com convidados e levar a partida a Brusque pela primeira vez. Tal qual os garotos-propaganda havanistas, Ronaldinho voou no helicóptero da empresa e fez o habitual tour pela sede, ao lado do ex-companheiro de seleção Zé Roberto. No segundo turno presidencial, ele não se manifestou nem votou. Estava em turnê pela Ásia.
Além do Brusque Futebol Clube, a Havan patrocina outros dois clubes de futebol, ambos da primeira divisão nacional. No fim de 2017, assinou contrato de aproximadamente 3 milhões de reais com o Atlético Paranaense para exibir sua marca nas mangas do uniforme por uma temporada. Antipetista convicto, o mandachuva do clube, Mário Celso Petraglia, foi apresentado por Luciano Hang ao clã de Bolsonaro. Ele pretende se aproximar do presidente eleito após utilizar o time para apoiar sua campanha. Um dia antes do primeiro turno da eleição, o Atlético entrou em campo contra o América-MG vestindo uma camisa semelhante à confeccionada por Hang com mensagem de apoio subliminar a Bolsonaro: “Vamos todos juntos por amor ao Brasil”. O clube acabou multado em 70.000 reais pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) por fazer manifestação política.
Em outubro, o Ministério Público do Trabalho (MPT) já havia denunciado Luciano Hang por coagir funcionários a votarem em Bolsonaro, sob ameaças de fechar lojas e promover demissões caso Haddad ganhasse a eleição. O empresário alega que nunca obrigou o voto de empregados da Havan, apenas disse “em quem achava que eles deveriam votar”. Apesar de a rede negar a seleção de funcionários e parceiros comerciais por afinidades ideológicas, seu dono já afirmou mais de uma vez que “petista não aguentaria trabalhar na Havan”.
O outro clube patrocinado pela Havan é a Chapecoense. Ao contrário do Atlético, o clube do Oeste catarinense não tomou posição institucional a favor de Bolsonaro. Porém, o principal apoiador da chapa bolsonarista em Chapecó tem as digitais impressas no clube, sobretudo depois da exposição que ganhou como porta-voz da equipe após a tragédia com o avião que levava a delegação para a Colômbia, em 2016. O prefeito Luciano Buligon comprou briga com o PSB para apoiar Bolsonaro na região. Por causa de sua escolha, foi expulso do partido. A Havan tem duas lojas em Chapecó. Atualmente, a empresa conta com 16.000 funcionários em 120 estabelecimentos espalhados pelo país. Após a vitória de Bolsonaro, Hang promete investir 500 milhões de reais, gerar 5.000 empregos e abrir 20 novas lojas somente em 2019, além de fazer valer ainda mais a máxima de que propaganda é a alma do negócio – e, por tabela, do ativismo político.
El País: “Deus uniu ideias de Olavo de Carvalho ao patriotismo do presidente”, diz chanceler de Bolsonaro
Ernesto Araújo publica texto na edição de janeiro da publicação conservadora dos EUA ‘The New Criterion’. "Meus detratores me chamaram de louco por acreditar em Deus e por acreditar que Deus atua na história, mas eu não me importo"
A nomeação de Araújo, um diplomata considerado por muitos inexperiente demais para o posto e defensor de uma guinada radical em alinhamento às ideias defendidas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, gerou fortes reações dentro do Itamaraty — uma das pastas com maior tradição na Esplanada e que sempre cultuou posições de moderação na área de política externa. O futuro chanceler aproveitou o espaço no The New Criterion para defender-se, redobrando sua aposta em posições polêmicas. "Meus detratores me chamaram de louco por acreditar em Deus e por acreditar que Deus atua na história — mas eu não me importo. Deus está de volta e a nação está de volta. Uma nação com Deus; Deus através da nação. No Brasil (ao menos), o nacionalismo se transformou no veículo da fé, a fé se tornou o catalisador do nacionalismo, e ambos acenderam uma empolgante onda de liberdade e de novas possibilidades".
Defesa da ditadura
Araújo faz uma reinterpretação do processo político vivido pelo Brasil desde o fim da ditadura militar que vigorou entre 1964 e 1985 — "erroneamente chamada de regime militar", anota o diplomata — e afirma que a vitória de Bolsonaro nas urnas faz parte de "uma onda de mudança que está limpando o Brasil". Para Araújo, desde a redemocratização se instaurou no Brasil um sistema corrupto "que sufocou a economia", no qual três partidos (MDB, PSDB e PT) agiam de forma coordenada.
"Um sistema tão estabelecido nunca reformaria a si mesmo. Apenas encontraria novas máscaras para estender seu poder [...] Uma mudança de verdade apenas poderia vir de fora, dos domínios intelectuais e espirituais", escreve Araújo, para em seguida arremeter: "Então o que quebrou esse sistema? Olavo de Carvalho, a Operação Lava Jato e Jair Bolsonaro."
Ernesto Araújo define Carvalho como "a única pessoa no Brasil, durante muitos anos, a usar a palavra comunismo para descrever a estratégia do PT". Além do mais, segundo o novo chanceler o filósofo "talvez tenha sido a primeira pessoa no mundo a ver o globalismo como um resultado da globalização, a entender seus propósitos horríveis e a começar a pensar sobre como derrubá-lo".
"Graças ao boom da Internet, e especialmente à revolução das mídias sociais, de repente as ideias de Olavo de Carvalho começaram a penetrar todo o País, alcançando a milhares de pessoas que até então tinham se alimentado apenas dos mantras oficiais", escreve Araújo. "Essas ideias romperam todas as barreiras e convergiram com as posições corajosas do único político brasileiro verdadeiramente nacionalista dos últimos cem anos, Jair Bolsonaro, dando-lhe um apoio de base sem precedentes."
Stuenkel aposta que, nos bastidores, os chineses convencerão à futura gestão brasileira a agir de forma pragmática. Já um diplomata brasileiro, que preferiu não de identificar, avalia que há diferenças internas da equipe bolsonarista que vão se refletir na política externa: de um lado, há o receituário liberal do Paulo Guedes, que será o superministro de economia, e, de outro, a postura mais soberanista que o próprio Bolsonaro costumava defender. "As relações com a China darão a senha para compreendermos qual dessas visões prevalecerá", diz o funcionário
El País: Educação não é suficiente para reduzir a desigualdade no Brasil, aponta estudo
Se o país tivesse garantido educação secundária para a população desde 1994, disparidade da renda do trabalho teria caído apenas 2%. Para redução da pobreza à metade, seria preciso enormes melhorias
Por Heloísa Mendonça, do El País
O Brasil é hoje um dos países mais desiguais do mundo com quase 30% da renda nas mãos de apenas 1% dos habitantes do país. Para tentar diminuir tamanha brecha entre os ricos e os pobres, o investimento em educação quase sempre aparece como um dos remédios mais promissores. A solução frequentemente repetida para tentar resolver a desigualdade, entretanto, já é relativizada por especialistas.
Um estudo recente mostrou que optar apenas por uma política de expansão de ensino, dentro de um prazo razoável, não é suficiente para melhorar os salários e impactar na distribuição mais igualitária de renda do trabalho no país. A pesquisa foi realizada pelos sociólogos Marcelo Medeiros, do Instituto de Pesquisas Econômica Aplicadas (Ipea), Rogério Barbosa, da Universidade de São Paulo (USP), e Flávio Carvalhes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"Em termos globais, a educação já não é mais uma grande solução para os problemas de pobreza e desigualdade no Brasil. Ela pode ser vista como uma alternativa apenas num prazo muito longo", explica Medeiros.
Através de simulações com dados estatísticos, o grupo concluiu que, se desde 1994 o Brasil tivesse conseguido um sistema educacional "perfeito" em que os alunos de todo o país saíssem da escola com, no mínimo, o ensino médio completo direto para o mercado de trabalho, a desigualdade hoje teria caído apenas 2%.
A pesquisa apontou ainda que o quadro não seria muito diferente caso uma grande reforma garantisse que ninguém deixasse o sistema de ensino sem um diploma universitário. Em um caso hipotético em que todos os alunos tivessem conseguido um diploma semelhante ao de formação de professores e Ciências da Educação, uma das profissões mais mal pagas do mercado, a desigualdade teria recuado 4%.
"É uma queda muito pequena diante do grande esforço que o Brasil teria conseguido fazer para isso. Não dá mais para falar que é a educação que vai diminuir a desigualdade", afirma Marcelo Medeiros. Para o pesquisador, além desta via de combate à disparidade de renda ter um efeito menor do que se idealiza, seria necessário no mínimo meio século para conseguir educar toda a força de trabalho do país. "É tempo demais para esperar diante da urgência do problema", avalia.
Em 2017, o Brasil era o nono país do mundo com a maior desigualdade de renda, segundo o coeficiente de Gini. O mais desigual do continente americano. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano passado, o Gini foi de 0,549, conforme a renda média mensal domiciliar per capita. O indicador varia de zero a um, quanto mais próximo de zero, mais perto de uma situação ideal de absoluta igualdade.
Ensino médio é pouco
Os pesquisadores também simularam os efeitos da educação em um prazo mais longo, mas, novamente, os impactos dos estudos na queda da desigualdade foram aquém do que se imagina o senso comum. Em um cenário hipotético em que, desde 1956, todos os alunos tivessem concluído ensino médio ou tivessem o ensino superior incompleto, a desigualdade não teria caído nem 10% nos dias de hoje. Apenas em um cenário mais extremo, no qual fosse viável para todos, há mais de 60 anos, o ensino superior com retornos financeiro equivalentes aos proporcionados por um diploma em medicina, uma das carreiras mais bem pagas do país, é que a diminuição da brecha poderia chegar a um patamar substancial: 18%. O estudo ressalta, entretanto, que oferecer educação de elite para toda a força de trabalho é algo irrealista, "pelo menos em qualquer cenário futuro minimamente possível".
"O que concluímos é que ter um ensino médio é pouco para combater as diferenças de renda. O Brasil precisa massificar o acesso à universidade para ter um resultado melhor na queda da desigualdade. Nas últimas décadas, o ensino superior foi expandido, mas ainda precisa ser muito mais", diz Medeiros.
As propostas defendidas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, no entanto, parecem ir de algum modo na contramão dessa expansão. Uma das propostas dele é transferir recursos do ensino superior para o ensino básico. No seu programa de Governo, Bolsonaro ressalta que os gastos com educação no Brasil —cerca de 6% do Produto Interno Bruto— são comparáveis aos de países desenvolvidos, mas os resultados estão entre os piores do mundo. Ele propõe uma "reversão da pirâmide" de despesas para priorizar a educação básica. Para o ensino superior, o programa fala em parcerias de universidades com a iniciativa privada para desenvolvimento de novos produtos visando aumentar a produtividade no país.
O país é hoje um dos com o maior número de habitantes sem diploma do ensino médio. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mais da metade dos adultos (52%) com idade entre 25 e 64 anos não possuem esse nível de formação. E apenas 15% da população brasileira tem curso superior.
Na avaliação do pesquisador Rogério Barbosa, os dados do estudo comprovam que é preciso deixar de lado a ideia que a educação é a solução para todos os problemas. Na avaliação dele, a redução da desigualdade poderia ser atacada de forma mais rápida caso fossem adotadas medidas contra a discriminação de gênero, raça e cor no mercado de trabalho e através de uma reforma tributária que adotasse um programa que aumentasse a progressividade dos impostos.
"A educação é mais que necessária, é um requisito de cidadania, que possui inúmeros bens sociais. Mas hoje não é ela a credencial que vai te fazer ganhar mais. Os aumentos do salário mínimo, por exemplo, foram a principal política distributiva na década de 2000. Muito mais rápida e efetiva do que a educação", afirma Barbosa.
Pobreza
Com respeito à pobreza, a pesquisa "Educação, desigualdade e redução da pobreza no Brasil" mostrou que os impactos da educação são um pouco mais relevantes. No entanto, os estudiosos ponderam que o poder de redução da pobreza por essa via diminuiu, ao longo das últimas décadas, já que uma série de políticas do mercado de trabalho e de programas de assistência —como o Bolsa Família, de transferência de renda— tornaram a população menos pobre independentemente da formação escolar.
Para que o Brasil reduzisse a pobreza para menos da metade, seriam necessárias enormes melhorias, como, por exemplo, garantir a universalização da formação superior. Uma mudança ambiciosa, mas mais realista, segundo os pesquisadores, seria a de garantir que ninguém saísse da escola sem o ensino médio completo. No entanto, mesmo com esse nível de instrução da população, a pobreza ainda seria igual a três quartos da atualmente observada.
El País: De ‘ouro verde’ a ‘diamante de sangue’, a queda em desgraça do abacate
Saciar a fome mundial de abacate tem um preço: florestas derrubadas e cartéis no México que entram no negócio de seu cultivo. Restaurantes da Irlanda e Grã-Bretanha pedem que a fruta tropical não seja mais utilizada por critérios éticos e ambientais
Versatilidade. Bom gosto. Valores nutricionais imbatíveis. Propriedades como ingrediente em seus cremes. E uma vistosa cor verde que serve para inúmeras composições no Instagram. Na era do food porn e da comida saudável, o abacate tinha tudo para dar certo. Mas sua reputação está em perigo justamente por conta da voracidade que desperta: somente na União Europeia as importações dessa fruta milenar se multiplicaram por quatro entre 2000 e 2017, chegando a 486.063 toneladas nesse ano de acordo com a base de dados Comtrade da ONU.
Um chef com estrela Michelin, JP McMahon, levantou a polêmica ao fazer um pedido aos restaurantes irlandeses para que eliminem ou pelo menos reduzam a presença dos “diamantes de sangue do México” em seus menus em uma entrevista ao jornal Irish Independent. Compara sua produção à dos frangos em grande escala. Ele não usa abacates “pelo impacto que têm nos países de onde vêm: desmatamento no Chile, violência no México”. Faz referência a informações publicadas, entre outros veículos de imprensa, no The New York Times, que em março já alertava que os cartéis de droga entraram com tudo nesse próspero negócio. O principal país exportador é o México, onde falam de “ouro verde”, com um terço da produção global: são cultivados o ano inteiro na rica terra vulcânica de Michoacán. “É um dos milagres do comércio moderno que em 2017, que teve o recorde de ser o ano mais violento no México, esse Estado cheio de cartéis exportasse mais de 1,7 bilhão de libras de abacates Haas aos Estados Unidos”, afirmou o artigo.
Não são poucos os restaurantes, especialmente na Grã-Bretanha, que decidiram não utilizar abacates em suas cozinhas por motivos éticos e ambientais. Um dos últimos foi o Wild Strawberry Cafe, no condado de Buckinghamshire, após servir 1.000 pratos por semana com a fruta. Como disseram em sua conta no Instagram, vai contra os critérios de sazonalidade e proximidade, ao contrário de produtos locais como as abóboras e as maçãs. “As florestas estão diminuindo para dar lugar a plantações de abacate. A agricultura intensiva a essa escala contribui com o lançamento de gases do efeito estufa na atmosfera e pressiona os fornecimentos locais de água”, afirmaram. Espécies como a borboleta monarca, conhecida por suas longas migrações dos Estados Unidos e Canadá ao México, ficam em perigo com a destruição de seu ecossistema para o cultivo de abacates.
Até mesmo um restaurante vegetariano, o Wildflower, no sul de Londres, se arriscou a prescindir de suas excelentes gorduras. Seu chef, Joseph Ryan, vê semelhanças com a quinoa, que também sofreu uma queda vertiginosa de preços após se tornar moda anos atrás. O dono do Franks Canteen, Paul Warburton, também entrou no boicote. Como disse ao Express, o abacate se transformou no símbolo “chato” da globalização já que pode ser encontrado em qualquer café do mundo. “Além disso consome muita água e significa muitas árvores cortadas. Aqui tentamos trabalhar sazonalmente, e como os abacates serão sazonais no norte de Londres?”.
Mas nem todos os abacates vêm da América do Sul. A controvérsia por enquanto não chegou à Espanha, único país na Europa que se destaca em seu cultivo, com 107.000 toneladas exportadas em 2017: 17% a mais do que ano anterior e 79% a mais do que há cinco anos, de acordo com a Federação Espanhola de Associações de Produtores de Frutas e Verduras. Granada, Málaga e especialmente as Ilhas Canárias têm a temperatura ideal, mas a falta de água impede a expansão do abacate, que os agricultores pedem que seja aliviado com mais infraestrutura. Porque a cremosidade que fez do abacate um hit mundial - pode ser o ingrediente de molhos, comido com pão e batido - se deve justamente a sua grande necessidade hídrica. Uma plantação dessa fruta tropical precisa de quase o dobro em relação a uma floresta de tamanho equivalente, o que transforma sua produção em grande escala em pouco sustentável.
El País: Relatório da OEA denuncia “crimes de lesa-humanidade” na Nicarágua
Grupo de especialistas expulso da Nicarágua documentou dezenas de assassinatos e considera que o regime sandinista tem de ser julgado
Apenas algumas horas antes de a equipe da Organização dos Estados Americanos (OEA) apresentar seu relatório sobre a situação na Nicarágua, o Governo de Daniel Ortega lhe deu 24 horas para deixar o país. Depois de seis meses de trabalho, as conclusões não agradaram ao regime, acusado de coordenar diretamente a repressão, e as autoridades impediram sua divulgação em solo nacional. De acordo com o relatório, a polícia sistematicamente abriu fogo contra a população e lançou uma ofensiva que incluiu tortura e agressão sexual nas prisões e que, segundo o informe, deveria ser julgada como "crimes de lesa-humanidade".
“O exercício da violência pelo Estado não consistiu de atos isolados, mas foi levado a cabo de forma organizada e em diferentes momentos e lugares do país (...) não se tratou de eventos explicados pela decisão individual de um ou mais agentes policiais (...), mas de uma política de repressão impulsionada e endossada pela mais alta autoridade do Estado", diz o relatório.
O Grupo Interdisciplinar de Peritos Independentes (GIEI) conseguiu determinar que a maioria das mortes e ferimentos graves é de responsabilidade da Polícia Nacional, cujas tropas agiram diretamente e de forma coordenada com os grupos armados paramilitares.
A publicação do relatório, cuja apresentação estava marcada para esta quinta-feira em Manágua, foi finalmente realizada sexta-feira em Washington e é o resultado de seis meses de trabalho na Nicarágua, em contato direto com as vítimas, testemunhas oculares, famílias afetadas e organizações de direitos humanos, bem como a revisão de milhares de documentos e consultas constantes com especialistas internacionais de diferentes disciplinas.
Peritos, entre os quais Claudia Paz y Paz e Amerigo Incalcaterra, disseram que a irrupção dos protestos em abril não foi o resultado de acontecimentos isolados, mas de anos de práticas que foram reduzindo liberdades, cooptando as instituições públicas e concentrando poder em Daniel Ortega e Rosario Murillo, sua mulher e vice-presidenta. "Isso foi causando, e acumulando, descontentamento social, que se manifestou ao longo dos anos em diferentes expressões sociais que foram violentamente reprimidas pela Polícia Nacional e as unidades de choque", diz.
O relatório descreve até mesmo a "metodologia de agressão" aplicada pelos grupos violentos ligados ao Governo contra manifestantes e a colaboração policial. "A Polícia Nacional intervém controlando a área, impondo cordões de isolamento, desviando o tráfego, usando gás lacrimogêneo, sem dirigir diretamente o ataque, mas deixando que isso aconteça". Os peritos dizem que quando "o método tradicional de repressão" fracassou e as manifestações aumentaram, o Estado iniciou uma fase mais repressiva e violenta, caracterizada pelo uso desproporcionado e indiscriminado de armas de fogo "que se voltaram diretamente contra os manifestantes".
A onda de violência deixou pelo menos 109 mortos, mais de 1.400 feridos e 690 presos, entre 18 de abril e 30 de maio. A grande maioria das mortes ocorridas nesses 42 dias se deveu a disparos de arma de fogo durante investidas policiais e de grupos paramilitares.
A estratégia repressiva não se limitou à polícia e incluiu tortura e agressões sexuais nas prisões, manipulação judicial e até mesmo demissões em hospitais que atendiam jovens feridos. "O sistema de justiça criminal –Ministério Público e Judiciário– atuou como uma peça a mais do esquema de violação. Das 109 mortes violentas, 100 nem sequer foram levadas à Justiça, isto é, estão impunes. Dos nove casos que resultaram em processos, seis correspondem a vítimas que têm alguma relação com o Estado da Nicarágua ou com o partido do Governo. Em relação aos hospitais, o relatório afirma que muitos médicos que trataram os feridos foram demitidos e "até tiveram que deixar o país por medo de represálias".
As investidas nas ruas foram acompanhadas de uma campanha de criminalização das vítimas, que o Governo criou com um inflamado discurso de construção de um inimigo e desclassificação dos manifestantes, “apresentados como jovens manipulados, vândalos, golpistas, terroristas", diz o relatório.
Para o GIEI, as condutas de Daniel Ortega, Rosario Murillo e alguns ministros e chefes de polícia devem ser considerados crimes de lesa-humanidade e nenhum dos acima mencionados deveria receber uma anistia.
Já o Governo sandinista argumentou que a Comissão, o GIEI e o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos são uma "plataforma para a divulgação de informações falsas para promover internacionalmente sanções contra nosso país", disse o ministro das Relações Exteriores, Denis Moncada. O chanceler também acusou o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, de participar "da escalada criminal, intervencionista, promovendo atividades terroristas na ordem política, econômica e militar que violam os direitos humanos do povo nicaraguense". As ações de Almagro "demonstram que as ações realizadas pelos órgãos da OEA e da ONU respondem à estratégia de sufocar o povo da Nicarágua", afirmou Moncada.
TRUMP ASSINA AS SANÇÕES CONTRA DANIEL ORTEGA
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou nesta quinta-feira o projeto de lei conhecido como "Nica Act", que estabelece o bloqueio à Nicarágua de empréstimos de instituições financeiras internacionais, além de impor sanções individuais a funcionários do Governo que, segundo Washington, participaram da repressão contra as manifestações que exigem desde abril o fim do regime. A lei estabelece que os empréstimos de instituições como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estarão condicionados a que o Governo sandinista mostre interesse em organizar eleições livres e transparentes.
Ortega controla o Tribunal Eleitoral e desde 2007 usou esse poder para garantir duas reeleições contínuas. Ortega reconheceu que a nova lei –aprovada por consenso entre democratas e republicanos– afetará a já frágil economia nicaraguense.
Eliane Brum: A esquerda que não sabe quem é
Como deixar de apenas reagir, submetendo-se ao ritmo imposto pela extrema direita no poder, e passar a se mover com consistência, estratégia e propósito?
Quero propor uma conversa. Ou talvez duas. A esquerda foi demonizada pela turma do Bolsonaro, do MBL (Movimento Brasil Livre), do Olavo de Carvalho e outras. Para uma parte da população, virou tudo o que não presta, seja lá o que for. Às vezes esquerda e comunismo e marxismo viram uma coisa só no discurso repetitivo e feito para a repetição. E essa coisa que viram pode ser qualquer coisa que alguém diz que é ruim. A reação daqueles que se identificam com a esquerda é acusar os que estimulam esse desentendimento, aqui no sentido de não entender mesmo do que tratam os conceitos, de manipuladores e de desonestos. E com frequência é isso mesmo que são. Mas se fosse só isso seria mais fácil.
O problema é que está muito difícil saber o que a esquerda é. E o que a esquerda propõe que seja claramente diferente da direita. O PT se corrompeu no poder. É um fato. Pode se discutir bastante se o PT é um partido de esquerda. Eu, pessoalmente, acho que foi de esquerda só até a Carta ao Povo Brasileiro, durante a campanha de 2002. Outros encontram marcos anteriores de rompimento com um ideário de esquerda.
Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana
Para o senso comum, porém, o PT é um partido de esquerda. Não só é como foi a principal experiência de um partido de esquerda no poder da história da democracia brasileira. Logo, não se corromper no poder, fazer diferente da velha política conservadora, já não é uma diferença da esquerda para a população. Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante — ou mau caráter — quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana.
Garantir o emprego e os direitos trabalhistas poderia ser uma outra diferença visível, mas o desemprego voltou a crescer e os direitos do trabalhador começaram a ser cortados já no governo de Dilma Rousseff, a última experiência que a população teve de um governo de esquerda. A reforma agrária poderia ser outra diferença, mas ela não avançou de forma significativa no governo de esquerda. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que hoje está sendo criminalizado pelo governo de extrema direita, se domesticou quando o PT estava no poder. O mesmo aconteceu com grande parte dos movimentos sociais, que viraram governo em vez de continuar sendo movimentos sociais, o que teria sido importante para garantir a vocação de esquerda do partido no poder. Esta, aliás, é uma história que precisa ser melhor contada.
Também nos governos do PT foram fortalecidos os laços com a bancada ruralista, que foi ganhando cada vez mais influência no cotidiano do poder, e se iniciou um claro projeto de desmantelamento da Funai (Fundação Nacional do Índio). Não é permitido esquecer nenhuma palavra de Gleisi Hoffmann atacando a Funai, quando era ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff, assim como não é permitido esquecer nenhuma palavra da ruralista Kátia Abreu, ministra da Agricultura de Dilma, sobre as terras indígenas.
Não custa lembrar que, segundo a Constituição de 1988, as terras indígenas são públicas, de domínio da União, mas de usufruto exclusivo dos indígenas. Toda a articulação para enfraquecer a Funai, até hoje, entre outras várias ações, tem por objetivo mudar a Constituição e abrir as terras indígenas para exploração e lucros privados.
Lula chegou a dizer, em 2006, que os ambientalistas, os indígenas, os quilombolas e o Ministério Público eram entraves para o crescimento do país. Dilma foi a presidente que menos demarcou terras indígenas. A lei antiterrorista, que pode ser piorada e usada para criminalizar ativistas e movimentos sociais no governo de Bolsonaro, foi sancionada por ela. Nenhuma dessas ações e omissões podem ser relacionadas com um ideário de esquerda, pelo menos de uma esquerda que mereça esse nome.
Os governos de Lula e de Dilma reeditaram na Amazônia uma versão das grandes obras da ditadura militar, com hidrelétricas como Jirau e Santo Antônio, estas ainda no tempo de Marina Silva como ministra do Meio Ambiente, no rio Madeira; Teles Pires, no rio Teles Pires; e Belo Monte, no rio Xingu. E só não houve (ainda) as grandes hidrelétricas no rio Tapajós por conta da resistência do povo indígena Munduruku e dos ribeirinhos de Montanha-Mangabal. O complexo hidrelétrico no Tapajós foi temporariamente suspenso também pelo enfraquecimento do governo no processo do impeachment, pela desestabilização das empreiteiras pela Operação Lava Jato e pela desaceleração das exportações de matérias-primas para a China.
Nos governos do PT, comunidades urbanas pobres foram expulsas de suas casas para as obras superfaturadas da Copa e da Olimpíada, assim como povos da floresta foram arrancados de suas ilhas e beiradões para a construção de hidrelétricas. Foi também nos governos do PT que a Força Nacional foi usada para reprimir greve de trabalhadores na construção de Belo Monte e também reprimir protestos da população atingida contra a hidrelétrica.
No enfrentamento da questão das drogas, o governo Lula agravou ainda mais os problemas. A chamada Lei de Drogas, sancionada em 2006, é apontada como uma das causas do aumento do encarceramento de jovens e negros, assim como de mulheres, por pequenas quantidades de substâncias proibidas. Além de acentuar o horror do sistema prisional brasileiro, ainda fortaleceu a desastrosa política de “guerra às drogas”, comprovadamente falida. O Brasil perdeu uma oportunidade histórica de alinhar-se com as políticas públicas mais eficientes já testadas em outros países do mundo.
No final do governo de Dilma Rousseff, até mesmo os melhores projetos construídos nos governos do PT, os claramente de esquerda, como na área da saúde mental, começaram a ser desmanteladas para tentar salvar a presidenta ameaçada de impeachment. Espero que ninguém tenha esquecido que as salas da Coordenação de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde foram ocupadas por pacientes e trabalhadores da rede pública em protesto contra a nomeação de um diretor de manicômio para a área. A luta antimanicomial é claramente uma bandeira ligada à esquerda.
Se a esquerda quiser se mover, é preciso enfrentar as contradições do PT no poder
A lista pode continuar. Mas acredito que já está de bom tamanho para expor aquilo que acho importante afirmar se quisermos compreender esse momento tão delicado. De forma nenhuma eu entendo que o governo do PT foi igual aos anteriores, muito menos que seja parecido com o governo de extrema direita que já começou.
O avanço nas cotas raciais, a ampliação do acesso ao ensino superior, a expansão do Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo, a consequente redução da miséria e da pobreza mudaram o país. Já escrevi bastante sobre isso e me posicionei com bastante clareza nestas eleições. Mas não é permitido desviar das contradições. É necessário caminhar com elas e enfrentar as complexidades se a esquerda quiser se mover — e não apenas reagir e reagir. E reagir de novo.
O que afirmo é que a última — e em certa medida única — experiência de esquerda que marca a memória da população foi construída pelos governos do PT. E que as diferenças não são suficientes para que a população possa compreender um projeto de esquerda. Como o cérebro humano em geral recorda e torna totalizante o que vem por último, a diferença de um governo de esquerda para qualquer outro fica ainda mais nebulosa. É possível que, no futuro, quando for um passado mais distante, os anos de Lula ganhem os tons da nostalgia.
Mas não agora. Logo na sequência, os anos de melhoria de vida determinadas por políticas públicas vão sendo apagados pelas dificuldades imediatas num país formado em sua maioria por sobreviventes com medo de perder o que ainda têm. A vitória de Fernando Haddad (PT) sobre Bolsonaro no Nordeste mostra justamente que, nos estados mais pobres do país, a maioria entendia muito claramente qual era a diferença. Mas essa diferença, marcada por políticas públicas como o Bolsa Família, não teve o mesmo impacto nas demais regiões de um país gigante, desigual e culturalmente diverso.
Uma das chaves para compreender por que Lula ocupava um primeiro lugar folgado nas pesquisas pré-eleitorais para a presidência, em 2018, antes de sua candidatura ser impedida pelo judiciário, também aponta para algo importante. O Brasil cheio de potência da primeira década do século está intimamente ligado à figura de Lula, que terminou o segundo mandato com quase 90% de aprovação — e não está ligado ao PT e à esquerda, ou está muito menos ligado ao PT e à esquerda. Também nisso não se fez diferente da extrema direita populista.
O tratamento de eleitores como adultos infantilizados – e não como cidadãos emancipados – é uma conta alta que o PT e toda a esquerda estão pagando agora
A relação de Lula com os eleitores, em especial a partir do segundo mandato, foi populista e paternalista. Os eleitores não eram tratados como cidadãos autônomos, que conferiam ao governante um mandato de poder temporário, que seria rigorosamente fiscalizado por eles, mas sim filhos a quem um pai afetuoso concedia agrados. Foi também como “mãe do PAC” ou “mãe dos pobres” que Dilma foi apresentada na primeira eleição, embora não tenha funcionado graças ao desconforto louvável que ela sentia com o figurino.
O tratamento de eleitores como adultos infantilizados — e não como cidadãos emancipados — é uma conta alta que o PT e toda a esquerda estão pagando agora. O PT tem grande responsabilidade em converter direitos em concessões ou favores no imaginário popular, o que marca o pior da política.
Não me parece, portanto, que a demonização da esquerda seja apenas conferida pela manipulação articulada pela extrema direita e também resultado da ignorância de grande parte da população sobre conceitos básicos. Em parte, sim. Mas há algo concreto, factual e legítimo, embora nem sempre claro, na reação de parte da população contra a esquerda. Se você não consegue ver a diferença entre os projetos e a sua vida está ruim, o culpado é quem estava no governo. E o PT esteve no governo por mais de 13 anos. Se você não consegue ver diferença, esquerda é o nome de tudo o que você odeia.
É óbvio que esse sentimento é manipulado pelos grupos que disputam o poder, mas isso não significa que não exista lastro, experiência e racionalidade nessa interpretação. Todos têm direito a querer uma vida melhor e todos sabem qual é a vida que estão vivendo.
A eleição de Bolsonaro mostrou que a esquerda não convenceu a maioria dos eleitores de que pode mudar sua vida para melhor. Então muita gente preferiu tentar algo extremo, porque o desamparo é grande. E como a vida no Brasil está ruim mesmo, é catártico poder culpar alguém por todas as merdas que acontecem no seu dia, assim como pela imensa sensação de fracasso e de insegurança. A esquerda — ou o comunismo ou o marxismo — virou esse nome para tudo o que não presta, já que não dá para saber o que ela é e o que propõe de fato.
Quando se exige uma autocrítica do PT é exatamente porque sem ela não é só o PT que não avança, mas todo o campo da esquerda que foi identificado com o PT, com ou sem razão. Como o PT usa inúmeras justificativas para não fazer autocrítica, o que me parece não só desrespeito aos eleitores, mas também um tremendo equívoco político, nada avança. Se você não pode falar sobre o que errou, e que todo mundo viu que errou, como alguém vai acreditar em seus acertos?
Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro projeto para o país
A credibilidade se dá também pela coragem de assumir os erros cometidos e de ter respeito suficiente pelo voto de quem o elegeu para debater seus equívocos publicamente. Quando insisto na autocrítica do PT não estou preocupada com o futuro do partido, mas sim com a necessidade de a esquerda ser capaz de criar um projeto que mostre a sua diferença. Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro projeto. Autocrítica não como expiação cristã, mas como dever democrático, compromisso público com o público.
No início de dezembro, durante uma palestra na Universidade de Londres, a ativista Bianca Jagger afirmou que o movimento que confronta a ditadura de Daniel Ortega, na Nicarágua, não é de esquerda ou de direita. Os manifestantes, muitos deles estudantes, “walk for life”. Esta é possivelmente a interpretação acurada da ativista sobre movimentos que se caracterizam por não serem marcados por uma coesão ideológica. Mas é também uma resposta à estratégia dos apoiadores do regime de opressão.
Daniel Ortega e Rosario Murillo, sua mulher e vice-presidente, assim como seus partidários e parte da esquerda mundial tentam vender à opinião pública internacional a ideia de que Ortega estaria sendo atacado por um complô de direita. O problema da teoria conspiratória é que Ortega não tem mais qualquer resquício de identificação com um projeto de esquerda há vários anos. Mas essa parcela da esquerda, corroída e ultrapassada, finge não saber disso e insiste em contornar os fatos porque eles mancham seus heróis e suas revoluções.
As ditaduras de Daniel Ortega e Rosario Murillo, na Nicarágua, e de Nicolás Maduro, na Venezuela, colaboram bastante para que as diferenças entre esquerda e direita sejam apagadas. Há muitos anos Ortega traiu a revolução sandinista e qualquer ideário de esquerda e está fortemente conectado ao que há de pior na direita. Da mesma forma, Maduro não pode ser considerado um democrata de esquerda por várias razões, uma delas a de matar e prender opositores de um regime que há muito deixou de ser uma democracia.
Essa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada
Parte da esquerda mundial, dos partidos que se dizem de esquerda e dos intelectuais que se dizem de esquerda, porém, simplesmente ignora os fatos ou torce as evidências para defender o indefensável. Como afirmar então que a população é que é ignorante e não consegue compreender a diferença entre esquerda e direita? Se a esquerda não se dá o respeito, a esquerda não merece respeito. Essa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada. Essa esquerda que já não é está atrapalhando a esquerda que quer ser.
Há muita gente, de diferentes matizes ideológicos, defendendo que “essa coisa de esquerda e direita acabou”. Não é minha posição. Pelo contrário. Acho mais urgente do que nunca a criação de um projeto de esquerda para o Brasil, uma visão de esquerda para um dos países mais culturalmente diversos do mundo. Um projeto criado junto com os vários povos brasileiros, porque uma das diferenças da esquerda é criar junto, como num dia longínquo o PT fez com o orçamento participativo de cidades como Porto Alegre.
Em artigo no The Intercept, a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado escreveu sobre o que tem chamado de “revoltas ambíguas”. Aquelas que não se definiriam por estar alinhadas com a esquerda ou com a direita, como aconteceu nas manifestações de 2013, com a greve dos caminhoneiros, em 2018, no Brasil, e acontece agora com os “coletes amarelos”, na França. Tentar enquadrá-las como de esquerda ou de direita é um equívoco:
“Fruto da crise econômica de 2007 e 2008, as revoltas ambíguas são um fenômeno que veio para ficar. Elas são uma resposta imediata do acirramento de austeridade do neoliberalismo do século 21, marcado pela crescente captura dos estados e das democracias pelas grandes corporações. Se o neoliberalismo flexibiliza as relações de trabalho e, consequentemente, as formas de fazer política sindical, atuando como uma máquina de moer coletividades, des-democratizar, desagregar e individualizar, os protestos do precariado tendem a ser desorganizados, uma vez que a esfera de politização deixa de ser o trabalho, mas ocorre de forma descentralizada nas redes sociais. Os protestos ocorrem mais como riots (motins) para chamar atenção. Eles nascem, muitas vezes, de forma espontânea e contagiosa, sem grande planejamento centralizado e estratégico, expressando um grande sentimento de revolta contra algo concreto vivenciado em um cotidiano marcado por dificuldades. São um grito de ‘basta”.
Ao voltar a entrevistar os jovens que participaram dos “rolezinhos”, em 2016, Rosana e a antropóloga Lúcia Scalco constataram que parte deles virou “bolsominion”, nome pejorativo dado aos seguidores de Bolsonaro. Outra parte aderiu a lutas mais identificadas com a esquerda, como contra o machismo, contra o racismo e contra a homofobia. Mas os rolezinhos não eram um movimento de a esquerda ou de direita quando aconteceram, como ficou claro, embora tivessem uma expressão política. “Direita e esquerda são os polos para onde as rebeliões ambíguas podem pender. São, portanto, uma disputa, um fim. (...) Isso significa que a ambiguidade não é um lugar no qual conseguimos nos manter por muito tempo”, escreveu Rosana.
Parte dos pensadores de esquerda decidiu parar de pensar com medo de enfrentar as contradições da experiência concreta de poder
Se a ambiguidade é uma marca das revoltas recentes no Brasil e no mundo, me parece que o desafio não está em superar os conceitos de esquerda ou de direita, mas sim de atualizar os conceitos de esquerda e de direita, exatamente para que as pessoas consigam estabelecer as diferenças. Não são os conceitos que estão ultrapassados, mas muitos dos pensadores de esquerda é que decidiram parar de pensar, com medo de enfrentar as contradições, e se blocaram em significados de um mundo que já não é. O pensador só é vivo enquanto continuar pensando e se pensando. O que estanca, paralisa, é dogma.
Há um enorme risco quando tudo se confunde, como hoje. Se os limites entre esquerda e direita são borrados, como fazer escolhas consistentes? Como criar um projeto se você não consegue dizer claramente nem mesmo aquilo que não é?
No caso dos “coletes amarelos”, na França, há um ponto que também vale a pena prestar atenção, como assinalaram alguns analistas. Como se sabe, o presidente francês, Emmanuel Macron, colocou um “imposto ecológico” sobre os combustíveis, causando revolta naqueles que dependem deles para trabalhar. A taxação de combustíveis fósseis é uma das medidas importantes para enfrentar as mudanças climáticas provocadas por ação humana, que podem destruir o planeta e nossa vida nele, assim como a das outras espécies, se não forem tomadas medidas urgentes.
O aumento dos combustíveis seria um dos vários passos em direção ao compromisso da França de reduzir as emissões de carbono em 40% até 2030 e proibir a venda de veículos a gasolina e a diesel até 2040. Aumentar o preço do carbono tem sido apontado por alguns economistas como uma ferramenta essencial para manter o aquecimento global abaixo do nível perigoso de 1,5 graus Celsius.
O problema foi a escolha feita por Macron: o ônus não estava sendo compartilhado de forma justa. A maioria dos manifestantes estava nas ruas porque gasta uma parte desproporcional de seus ganhos em combustível e transporte. Em contrapartida, o imposto seria usado principalmente para reduzir o déficit orçamentário da França, pagando credores ricos. Na prática, o “imposto ecológico” de Macron agravaria a desigualdade.
Embora alinhada com a necessidade de tomar medidas urgentes diante do aquecimento global, a escolha de Macron não foi orientada por princípios de esquerda, mas sim por princípios de direita. Visto como um político de centro, quando foi eleito, o presidente francês é da nova safra de políticos que se elegeu repetindo não ser “nem de direita nem de esquerda”. No Brasil, a principal expoente dessa linha nem cá nem lá é Marina Silva.
A esquerda brasileira é incapaz de dar à mudança climática o lugar central que ela tem na realidade
Cito o caso francês não só porque está se desenrolando nestes dias, mas porque uma grande parcela do que se chama esquerda, principalmente no Brasil, é incapaz de colocar a mudança climática como uma questão central que deve ser enfrentada a partir de princípios de esquerda. A mudança climática foi causada por ação humana, mas não de todos os humanos. Alguns humanos, os mais ricos, assim como os países mais ricos, Estados Unidos na liderança, são os grandes responsáveis pela destruição em curso do planeta. Mas as consequências atingirão primeiro os mais pobres e muito mais os mais pobres. É o que já está acontecendo.
Não há nenhuma grande questão atual que não seja atravessada e determinada pela crise do clima. Um outro exemplo deste momento: a caravana de milhares de pessoas de Honduras, El Salvador e Guatemala que marchou rumo à fronteira do México com os Estados Unidos pode apontar a primeira migração em massa da América Latina provocada por mudança climática. Eles falam de fome e de violência, mas porque isso é o que aparece como causa imediata. Ao serem entrevistados por jornalistas que sabem perguntar, porém, uma parcela significativa conta que o clima começou a mudar e as colheitas diminuíram, causando um série de consequências que os levou a essa marcha desesperada.
Qual é a resposta da esquerda brasileira para a mudança climática? Qual é o projeto para enfrentar e se adaptar ao que virá, para além dos discursos habituais? Não há. Fora iniciativas pontuais, parte dos partidos e políticos de esquerda sequer compreende o que está em jogo.
Quando Ernesto Araújo, o chanceler de Bolsonaro, afirma que a mudança climática é uma “ideologia de esquerda”, ele não está apenas sendo irresponsável e falando uma tremenda bobagem. Ele está também superestimando a esquerda. E especialmente o PT. Alguns, inclusive, devem ter acordado naquele instante para o aquecimento global e corrido para a Wikipédia.
Lula e Dilma Rousseff, os dois últimos presidentes do PT, nunca chegaram sequer perto de compreender que a mudança climática era assunto deles. Ao contrário. Deixavam claro que adoravam ver as ruas cheias de carros individuais, movidos a combustíveis fósseis, construir hidrelétricas na Amazônia e ver a floresta convertida em soja e boi. Os dois estavam cimentados no século 20, às vezes no 19. Como afirmou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, em entrevista a esta coluna, a esquerda que estava no poder era uma “esquerda velha”, que não alcançou sequer 1968, referindo-se às mudanças profundas provocadas pelos movimentos de maio daquele ano, na França.
Há vários pensadores no mundo elaborando respostas de esquerda para o desafio da mudança climática provocada por ação humana. Ou enfrentando a necessidade de refletir sobre o que pode ser uma resposta de esquerda para um fenômeno que é, ao mesmo tempo, causado pela desigualdade e causador de desigualdades.
Uma resposta de esquerda, por exemplo, seria taxar os grandes produtores de combustíveis fósseis ou taxar todos aqueles que causam danos ao que é comum a todos, ao que é patrimônio coletivo, inclusive de outras espécies. Se há bastante sendo pensado no mundo, essa reflexão não parece estar acontecendo no Brasil, para além de nichos especializados. Acredito não cometer injustiça ao dizer que a maior parte dos intelectuais brasileiros não tem ideia das implicações e efeitos da mudança climática, o que compromete qualquer análise do momento atual.
Se a esquerda não tem resposta consistente nem mesmo para o maior desafio da trajetória humana, para que serve a esquerda?
Em várias partes do mundo, os jovens estão chamando os atuais líderes e também seus pais de “uns merdas” que estão ferrando o planeta que viverão. São adolescentes como a sueca Greta Thunberg, de 15 anos, que em setembro deixou de ir à escola para se plantar em frente ao parlamento para protestar contra a falta de medidas para combater o aquecimento global, ou os estudantes australianos que foram às ruas no final de novembro inspirados por ela.
Esses adolescentes vão virar adultos num mundo em que a esquerda não mostrou a sua diferença. Mesmo que tenham sido beneficiados por políticas públicas de esquerda no passado, eles não saberão. Se a esquerda não tem resposta consistente nem mesmo para o maior desafio da trajetória humana, para que serve a esquerda?
Qualquer projeto de esquerda para o Brasil precisa ter uma resposta de esquerda para o enfrentamento da mudança climática e do desmatamento da Amazônia e do Cerrado. Sem isso não há qualquer possibilidade de começar qualquer conversa que possa interessar quem vive no século 21 e que sabe que suas crianças viverão num planeta pior, o que já é uma certeza, ou num planeta terrível, o que acontecerá caso as medidas necessárias não sejam tomadas nos próximos 12 anos. Sem isso não há qualquer possibilidade de começar qualquer conversa que possa interessar quem vive no país que tem a maior porção da maior floresta tropical do planeta no seu território e no país mais biodiverso do mundo.
Ao contrário de muitas pessoas engajadas no enfrentamento da mudança climática e nas medidas de adaptação à nova realidade do planeta, eu acredito que esse enfrentamento precisa ser travado a partir de princípios de esquerda. Não estamos todos no mesmo barco. Não estamos mesmo. Muitos só têm barquinhos de papel.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
El País: “Se alguém da bancada do PSL cair na velha política, serei o primeiro a denunciar”, diz Orléans e Bragança
Eleito deputado na onda Bolsonaro, Luiz Philippe de Orléans e Bragança propõe uma democracia parlamentarista e diz que disputa da base do PSL ainda não acabou
Por Afonso Benites, do El País
Eleito para seu primeiro mandato de deputado federal, o cientista político e empreendedor Luiz Philippe de Orléans e Bragança (Rio de Janeiro, 1969), carrega o DNA da família real brasileira. É chamado de príncipe, mas esse seria apenas um título simbólico, caso o Brasil ainda fosse um país monárquico. Na prática, ele não está na linha de sucessão. É daqueles membros da família real que recebem críticas por não lutar veementemente pelo retorno do império brasileiro, apesar de o desejar. Defende o parlamentarismo.
Pergunta. O seu nome chegou a ser cotado para ser vice de Jair Bolsonaro. Por que as conversas não prosperaram?
Resposta. Foi pouco tempo de interação com o Jair e houve muita urgência de se tomar essa decisão. É um cargo de extrema confiança. Fiquei muito grato e surpreso por ele ter me considerado. Eu não me considerava nem próximo do radar e me colocaram ali. Foi uma validação muito respeitosa do ponto de vista dele. Ele tinha uma necessidade de escolher quem de fato ele conhece porque o cargo é de alta confiança. O vice tem de ser alguém que nunca vá trair ele e esteja alinhado na perspectiva ideológica. O general [Hamilton] Mourão já tinha esse alinhamento anterior. O Mourão sempre foi o candidato que ele tinha como uma das principais opções. Quando ele avaliou o meu nome, talvez ele estivesse buscando uma segunda opção que neutralizasse esse aspecto que a imprensa poderia construir contra ele de unir apenas militares, de que os militares estariam de volta ao poder. Não acho que eu alteraria o resultado, o Bolsonaro iria ganhar de qualquer maneira e o Mourão é uma ótima escolha. É uma pessoa equilibrada, culta, superpreparada. Ele escolheu quem ele confiava mais.
P. Qual foi o peso de Jair Bolsonaro em sua campanha? Acredita que ele foi fundamental para sua eleição?
R. Fiz minha campanha totalmente independente da vinculação de meu nome com o dele. É óbvio que todos que vinham para as minhas palestras, como o processo eleitoral foi um mês depois da quase nomeação como vice, boa parte estava ali porque entendia que eu estava favorável ao Jair Bolsonaro. O jeito que eu conduzi a campanha eu não era contra, naturalmente eu me colocava a favor. Eu conduzi através das ideias. Fiz uma militância ideológica, com relação à mudança de sistema. Aqueles que votaram em mim estão mais vinculados à mudança no sistema do que vinculados a mim próprio ou Jair Bolsonaro. Não considero meu eleitor o eleitor típico do Jair Bolsonaro. Eu abranjo uma gama mais diversa, alguns eleitores que não votariam no Jair, votariam em mim, em função de conhecer minhas ideias. Mas não diria que são todos. A maioria é de apoiadores do Bolsonaro, sim. Mas, como prioridade eles estão confiando nas ideias que estou carregando comigo.
P. A volta de militares ocupando postos-chaves da política brasileira causa temor em parcela da população. Você acha que Bolsonaro tem compromisso com a democracia? Descarta a possibilidade de qualquer intervenção militar?
R. É uma narrativa totalmente falsa. Criada por todos esses partidos da esquerda, junto com o Supremo Tribunal Federal e alguns juízes que sempre foram contrários ao conservadorismo e que taxam de antidemocrático qualquer coisa que venha do Jair. Na minha experiência com o Jair, que foi pouca, mas intensa, mostra o contrário. A minha seleção para ser vice ele colocou a voto quem deveria ser o vice dele. Teve uma seleção prévia entre mim, Janaína Paschoal e Marcos Pontes. Qual outro presidente colocou a voto seu vice?
P. A voto, como? Pelas redes sociais? Quem eram os eleitores?
R. Era a própria base do Jair. Ele fez pelas redes sociais e também em um evento em que ele perguntou quem o público queria que fosse o vice. Foi por aclamação. Pelas redes sociais eu tinha perto de 70% dos seguidores dele e, na aclamação também. Apesar de ser difícil se medir aplausos. Enfim, esse aspecto de democracia que tentam colocar contra o Jair é totalmente falso. Nesse ponto, precisamos ter uma discussão mais profunda, porque essa questão de democracia que o PT e a esquerda pregam é, no melhor dos casos, uma democracia de massa.
P. O que seria essa democracia de massa?
R. São mobilizações de hordas que não são cognitivas. Não são pessoas que estão ali, dotadas de querer de fato eleger um representante. Muito pelo contrário. São mobilizações de desespero em que os problemas são distantes. São problemas nacionais monumentais e que somente um líder forte, igualmente magnânimo e grandioso poderia resolver. Essa democracia que o PT criou, que é uma democracia de massa, é totalmente o problema do Brasil. Temos de ter uma democracia local, próxima, distrital. Que os problemas sejam resolvidos localmente. E que a população se sinta forte o bastante para resolver por conta própria, não precisa de representante. A democracia do PT é pró-grandes líderes. Nesse aspecto, também sou contra essa democracia. Se por acaso ainda se chamarem de democratas, que de democratas não tem nada. O plano do Fernando Haddad era de censura da mídia, controle do Judiciário, interferência em toda a economia. Como se chama aquilo de democrático? Não tem nenhuma nuance de democracia ali.
P. Como está avaliando essa questão do Coaf envolvendo um ex-funcionário do senador eleito Flávio Bolsonaro? Acha que faltaram explicações?
R. Tudo tem de ser averiguado. Estamos vindo com força e legitimidade mudar as coisas. Então, a gente tem de dar o exemplo. Se tem coisa errada, tem de ser investigado e levado a cabo até o final. Seja de quem for.
P. E a disputa pelo protagonismo da bancada do PSL? Brigas no WhatsApp, discussões por espaço. Isso foi superado?
R. Ainda não está superado porque temos de eleger quem será líder do partido. O processo tem de ser respeitado, mas ele ainda precisa ocorrer. Esse foi o debate. O Eduardo Bolsonaro não quer esse protagonismo, e então ele abre um flanco que é uma pena que existe. E vamos definir uma liderança que seja representativa, que seja um bom interlocutor.
P. Vai entrar nessa disputa? Deve concorrer a líder do partido ou se coloca para líder do Governo?
R. Não coloco meu nome na disputa. Não me cabe disputar nada neste primeiro momento. Eu tenho de aprender o que é esse negócio de ser político. Na prática eu não conheço nada. Zero de prática. Teoria eu tenho alguma coisa.
P. Por que entrou na política?
R. Não foi por nada positivo. Não foi nenhuma motivação por conquista de glória nem nada do gênero. Foi revolta com o sistema atual. Indignação, mesmo. E frustração com o ativismo que surgia contrário ao sistema.
P. O que significa isso?
R. Significa que lá em 2014, as manifestações estavam muito rasas, estavam focadas em personalidades, em questão de corrupção, era contra a Dilma Rousseff. Tudo muito vago. E eu já estava vendo um problema sistêmico do negócio. Via que não era só a Dilma, o problema. Ela fez o que o sistema permitiu que ela fizesse. Assim como o Lula, o Temer, o FHC e o Collor. Você tem um sistema que é realmente o problema. A gente tem um presidencialismo com poucos freios e contrapesos. Há muita concentração de poder, e pouca transparência. Vamos colocar em perspectiva. O Brasil é o melhor sistema presidencialista dos países organizados como o próprio Brasil.
P. Quais seriam esses países?
R. Os países da América Latina, da África e de boa parte da Ásia. Temos instituições, separação de poderes, Judiciário independente, uma série de coisas. Agora, tudo é grau de intensidade. É tão sofisticado como o modelo europeu? Não. É tão descentralizado como modelo presidencialista norte-americano? Não. Nós não temos a prática de buscar outros canais ao poder, senão o de eleição de legislativos e de poderes executivos.
P. Aí está a concentração de poder?
R. Sim. Acabamos concentrando o poder no Executivo, com um presidencialismo extremamente poderoso. E há uma concentração de poder em Brasília. O que seriam os dois grandes problemas aqui.
P. Qual o modelo ideal, em sua opinião?
R. O parlamentarismo. Os modelos parlamentaristas europeus são mais estáveis, com muito mais freios e contrapesos. Em que a sociedade não fique à mercê de um poder Executivo em tamanho grau que o Brasil fica. É intensa uma eleição presidencial. Não é intensa uma eleição para primeiro ministro. Você faz uma troca de primeiro ministro tranquilamente. E o sistema é tão desfavorável a quem quer fazer dinheiro do próprio sistema.
P. Está dizendo que o parlamentarismo reduz a corrupção?
R. Sim. O sistema parlamentarista europeu é péssimo para quer ser corrupto. Um sistema presidencialista como o nosso, não. Você vê o tamanho do Orçamento que o Jair Bolsonaro vai concentrar. É mais de 2,3 trilhões de reais. Em nível estadual também é grande a concentração. São volumes monumentais. Em um sistema em que o Executivo é dono do Orçamento e pode cooptar o Legislativo – em todos os níveis, do municipal ao federal— temos corrupção. Há compra de favores do Legislativo. Aí, você tem um agravante, as políticas estatizadoras. Criou-se várias estatais com o argumento de que tudo é estratégico. Correio, banco, alimento, mineral. Tudo é nacionalizado, tudo vai para a mão do Estado. Cria-se milhares de cargos a serem preenchidos a cada Governo. Aí você tem deputados da velha política correndo para os novos ministérios querendo dar seu cartãozinho, querendo nomear pessoas na máquina estatal em seus Estados. Isso é um absurdo. Isso continua.
P. Você testemunhou essa corrida por cargos no Governo Bolsonaro?
R. Testemunhei, mas não vou citar nomes. Dos 52 deputados do PSL, 48 são deputados novos. Eu me incluo entre eles. Você tem alguns que já são tarimbados. Tenho levantado essas questões para os novos, principalmente. A maioria é ativista político e quer mudar o Brasil. Tem poucos que já são de segundo ou terceiro mandato, que tem carreira política, e que já sabem trabalhar o sistema. Se eu não tivesse levantado esse assunto, eles estariam aparelhando o Brasil inteiro sozinhos sem os outros deputados saberem. Aí, os novos dizem: “Pô, como é que eu também vou nomear”.
P. Você citou essa questão dos cargos para os seus colegas em alguma das reuniões que tiveram recentemente. É isso?
R. Sim. Citei para eles. E agora eu usaria um termo em inglês que é muito bom para este momento: the cat is out of the bag (o gato está fora do saco). Tá todo mundo vendo o que está fora do saco. E estamos todos atentos. Eu estou muito feliz com a bancada do PSL. Estou me surpreendendo, eu achava que ia me decepcionar, mas me enganei. Você tem uma dinâmica de ativistas que entraram para o partido e que estão fiéis em sua missão como ativistas. E, se os ativistas caírem para a velha política, eu serei o primeiro a denunciar. Eles estão sendo bem rigorosos e salvando várias reuniões. Também tem os militares que, de fato, estão comprometidos com essa mudança. Classistas que ainda têm dentro do grupo do PSL terão de se readequar.
P. Como seria essa readequação? Serão chamados para uma conversa?
R. Essa é uma dinâmica que perpassa por todos os partidos. Você tem partidos que são dominados pelo classismo. O PSL é um dos mais limpo em termos dessa dinâmica, mas ainda têm alguns com essa visão. E tem um que é zero de classismo, que é partido NOVO, mas tenho algumas reticências a esse partido. Em termos ideológicos e de coerência de postura política. Analisando nossa bancada, temos uma base interessante, muito boa, de novos deputados que vão realmente querer fazer mudança e vão ter vergonha na cara, de apontar alguma incoerência do partido de algum quesito.
P. Inclusive na nomeação de pessoal para cargos no Governo?
R. Te dou um exemplo com relação à nomeação. Alguns colegas já levantaram a pergunta sobre quem estava aparelhando um ou outro ministério. Na Infraestrutura já notaram que geralmente era o pessoal do PR. Aí uns disseram: “Vamos botar o nosso pessoal lá”. A priori, eu sou pró-limpeza. Somos contra a nomeação de pessoas sem o preparo técnico para ocupar tal posição. Agora, o problema é a gente estar nomeando para esses cargos. Porque neste momento somos nós, em um segundo momento pode ser qualquer outro partido. E o brasileiro fica à mercê desse jogo.
P. Pelo que estou entendendo, em sua opinião, o Bolsonaro deve fugir desse loteamento. Mesmo ele cedendo ministérios para alguns políticos filiados a partidos como MDB, NOVO e DEM. É isso?
R. Absolutamente. E ele está fazendo isso. Ele está nomeando para os ministérios rigorosamente seguindo critérios técnicos. É claro que tem abertura para um ou outro deputado. Mas são pessoas preparadas que acabam escolhendo um ou outro técnico preparado. Agora, a dinâmica de nomear só pelo partido, só pela indicação de algum parlamentar, não é boa para o Brasil. A cada mudança de Governo você ter esse tipo de coisa acontecendo é muito perigoso. É isso o que tínhamos com o PT. A grande luta com o PT foi essa. São 4.000 cargos.
P. Não, deputado. São mais de 23.000 cargos comissionados.
R. Pois é. Bem maior. Fora a máquina estadual. Enfim, tem de acabar com estatais. É isso o que cria o maior problema para o Brasil. O Brasil é aparelhável sistematicamente. Ninguém olha o óbvio. No fundo estamos nomeando para a burocracia. A sua burocracia é aparelhável a cada quatro anos. Ela muda em função da mudança de Governo. E ela está mais leal a questões ideológicas, partidárias do que a questões técnicas. Você não tem estabilidade jurídica. Na estrutura atual tudo depende dos partidos.
P. E essa dependência dos partidos é sustentável?
R. Veja, o Jair Bolsonaro entrou com 57 milhões de votos. O que representa quase 60% do eleitorado, e não temos nenhum partido que representa esses 60% do eleitorado no Congresso Nacional. O PSL chega a 15%. Aí, temos um Executivo que concentra um posicionamento político majoritário, mas não reflete na parte legislativa. Aqueles que elegeram Jair Bolsonaro também votaram em deputados do MDB, do PSDB, e em outros partidos que poderiam compor uma grande base de apoio, que daria mais segurança legislativa para o Governo. Essa base, na teoria, não existe. E é exatamente nesse ponto que o parlamentarismo é melhor, você não consegue formar um Executivo se você não tiver uma maioria legislativa. Eu não preciso falar que o Lula é bandido ou a Dilma é uma idiota, porque tem trilhões de pessoas dizendo isso, mas eu preciso apontar é como funciona o sistema que permite essas pessoas de fazerem o que elas fizeram. E elas não o fizeram só porque eram más intencionadas. Uma pessoa de mal intento, em um sistema transparente, com freios e contrapesos, ela tem sua capacidade de fazer o mal limitada.
P. Em seu mandato vai tentar trazer o parlamentarismo de volta?
R. Absolutamente. Estarei sempre discutindo essas questões.
P. Em alguns eventos notei que há militantes que te procuram para tirar fotos com a bandeira do período imperial. A volta da monarquia é algo que está em sua agenda?
R. Esse é um movimento social que cresceu muito e espontaneamente. A família [real] não está fazendo nada, não estabeleceu data, não tem mobilização. Acontece à medida em que as pessoas sabem a história e contextualizando e desmistificando mitos de mais de cem anos. São pessoas que notam que nenhum sistema é perfeito, mas começam a questionar o que tínhamos no período do império e perdemos agora. Isso tudo vem à tona espontaneamente. Mas eu não tenho nenhuma proposta na mesa para a volta da monarquia. Eu quero estabilizar os nossos sistemas político e econômico. Eu conseguindo fazer isso, minha missão está dada.
P. Como seria essa mudança que você almeja?
R. O que causa instabilidade de nosso sistema é você ter muita intervenção de Estado na economia, muito dirigismo e regulamentação e não ter a livre iniciativa no comando. Você tem o Estado no comando disso tudo. Portanto, é desestabilizador a longo prazo. A curto prazo pode até ver um benefício aqui e acolá. Nada mais é que uma distorção de uma realidade que não é insustentável. É o que causa quebras. O Estado intervém, cria-se uma bonança falsa e dez anos depois tem uma quebra geral do país. E isso causa também efeitos políticos. Nos anos 1970 foram de bonança no Brasil, liderado pelos militares, crescimento absurdo, dois dígitos por ano, o milagre econômico. E nos anos 80 foram os da falência do Brasil. Tivemos de pagar tudo aquilo que foi feito nos anos 70. O mesmo se gerou com Lula e Dilma. Altos investimentos e uma alta propensão a fazer grandes obras. E agora, vemos a quebra desse modelo que não é sustentável. Esse modelo não gera riqueza e você tem de girar riqueza para criar uma classe média mais forte e maior, tirar gente da pobreza. Temos de fato de nos tornarmos um país favorável à livre iniciativa e desfavorável às intervenções de Estado, planos nacionais e todas essas baboseiras que vivemos nos últimos 100 anos.
P. E no campo político?
R. Do ponto de vista político, você precisa fragmentar o poder. O problema é a concentração demasiada, o controle muito fácil de dinheiro com prefeitos, governadores e presidente controlando orçamentos monumentais e poucos mecanismos de freio dos diversos poderes. Como você tem pouca representatividade legislativa, você tem de esperar que ele cometa um crime grave para que sofra o impeachment. Ou esperar para exercer um voto contrário em um ciclo eleitoral futuro. Isso é muito pouco. Temos de criar mecanismos de democracia como um recall de mandato para começar frear essa dinâmica política que também é destrutiva. O governador ou presidente eleitos hoje têm o poder de criar mais poderes, cria bancos, estatais, autarquias. Se eles querem criar mais poder para eles mesmos, tem de ter um referendo. Tem de ter uma maneira de frear ou plebiscitar essas medidas. Isso neutraliza a ascensão de poderes nominativos que não são validados democraticamente pelo voto ou por interferência direta nossa. A descentralização política é fundamental nesse processo. Trazer o eleito mais próximo do eleitor, através do voto distrital, do recall de mandato e referendar as medidas de criação de mais Estado.
P. Não te interessa o retorno da monarquia?
R. Eu adoraria que tivéssemos um sistema monárquico. Eu não estou na linha sucessória, não seria eu o rei. Esse movimento tem caminhado naturalmente com a população, que tem acesso à informação independente. Eu até sou criticado pelos monarquistas: “pô, você não está fazendo nada pela monarquia”! Não estou, mesmo. Tem de ser algo natural. Tem vários cabos eleitorais. As pessoas capturam a realidade e tomam suas próprias opiniões. Cada monarquista que se apresenta é o nascimento de um novo brasileiro. O que para nós é uma realidade muito positiva. Essas pessoas concluírem que, em um momento, vivemos em um país sério.
P. Você costuma dizer que um dos primeiros golpes brasileiros foi o fim da monarquia, em 1889. É isso, mesmo?
R. Isso está bem aceito entre a academia, seja o historiador de esquerda ou de direita. É um fato consumado. Foi um golpe militar. Não tem nenhum observador independente que não conclua isso. Obviamente que, tem uns que foram favoráveis a esse golpe e pormenorizam o fato que houve um golpe. Dizem que o Pedro II era velho, o modelo era antigo, que monarquia era um retrocesso. Eles não falam que foi golpe.
P. Boa parte da bancada eleita pelo PSL contra o casamento de homossexuais e aborto. Nesses temas como você se posiciona?
R. Não sei por que se posicionar. Não vejo nenhuma lei sendo colocada contrária ao casamento homossexual. Não vejo nenhum político conservador sugerindo uma lei para alterar a atual regra do aborto. Você faria um grande favor aos seus colegas em definir melhor o que significa esse “se posicionar”. Não há nenhuma urgência de nada, nenhum candidato conservador está propondo nada diferente. Não somos nós que queremos alguma coisa. São os progressistas que querem algo muito além do razoável. Eles é que querem dar o direito universal ao aborto, eles que querem promover todo o tipo de casamento como algo legítimo e legal. Isso está errado. A lei atual já incorpora os homossexuais e já incorpora exceções à possibilidade de aborto. Então, para que mudar isso?
P. E por que não mudar?
R. Os progressistas querem destruir mais. Querem promover o casamento homossexual para criancinhas nas escolas. É isso o que a gente é contra. Essa questão tem de ser pontuada de maneira mais inteligente. Os conservadores estão dando risadas sobre esse debate e que fulano é contra o aborto. Somos a favor e manter a lei como está. O que ocorre sistematicamente na imprensa é que se faz um frame da pergunta de maneira errada. É claro que eu não sou a favor do aborto. Agora, eu sou contra o progressismo que quer transformar o aborto como algo fundamental e um direito universal de toda mulher. Eles estão se mobilizando do outro lado lá e querem mexer na lei. Ela está certa já.
O MONARQUISTA DO CONGRESSO
Nos últimos três anos Bragança, formado em administração pela FGV e com mestrado em Stanford, nos EUA, dedicou-se a militar politicamente por intermédio do movimento liberal Acorda Brasil. Esteve entre os defensores do impeachment de Dilma Rousseff (PT) e percorreu boa parte do país participando de debates sobre as crises política, econômica e institucional. O assunto lhe rendeu um livro: “Por que o Brasil é um país atrasado?” (Ed. Novo Conceito). Os temas que desenvolveu nessa obra se transformaram em longa explanações feitas em uma espécie de palanque.
Na campanha eleitoral, ao invés de comícios ou passeatas, ele fazia palestras de até três horas –já eleito explicou, por exemplo, que em sua visão o DEM de Rodrigo Maia, ex-PFL e ex-Arena na ditadura, é de "esquerda". Segundo ele, foram essas apresentações que lhe renderam parte considerável de seus 118.457 votos pelo PSL de São Paulo. “Aqueles que votaram em mim estão mais vinculados à mudança no sistema do que vinculados a mim próprio ou a Jair Bolsonaro”, afirmou ele ao EL PAÍS, sem negar o peso que a onda Bolsonaro teve para o seu sucesso. O príncipe chegou a ser cotado para ser vice-presidente de Bolsonaro, mas foi preterido pelo general Hamilton Mourão (PRTB).
Por quase todo evento público em que transita, Bragança é parado por algum “monarquista”, que pede para tirar uma foto. Geralmente portam a bandeira imperial do Brasil (como a de uma das fotos que ilustram essa reportagem). Os pedidos são atendidos e as conversas, ou entrevistas, encerradas com um discreto sorriso.
El País: China comemora 40 anos da reforma e da abertura econômica, mais rica, mais forte e autoritária
Uma grande exposição em Pequim exalta o presidente Xi Jinping e marginaliza Deng Xiaoping, o arquiteto do processo
Xi Jinping, o presidente chinês, de uniforme militar e dialogando com as tropas. Xi Jinping na cabine de um caça da força aérea ouvindo o piloto com atenção. Xi recebendo presidentes estrangeiros. Xi fazendo um discurso no Grande Palácio do Povo em Pequim. Xi supervisionando a construção de obras públicas com um sorriso benevolente.
Mas na monumental exposição oficial Grandiosa Reforma, que acontece no Museu Nacional de História – um dos principais eventos com que a China não poupou esforços para marcar o aniversário – Deng, o pai dessas reformas, ocupa apenas um papel secundário. Como no resto das pompas, os grandes protagonistas das comemorações são Xi Jinping, o líder cada vez mais autocrático da China há seis anos, e sua “nova era”.
Uma nova era na qual, segundo denunciam seus críticos, Xi desmantelou sistematicamente a maior parte do legado de Deng. Foram eliminados os limites temporais impostos pelo “pequeno timoneiro” ao mandato presidencial, pensados para evitar que um líder se perpetuasse no comando; o segundo plano em política externa recomendado pelo veterano dirigente é coisa do passado; na economia, o setor público ganha terreno novamente em relação a um setor privado que foi o motor do crescimento nas últimas décadas, enquanto as reformas anunciadas há seis anos não foram postas em operação.
“Unidos ao redor do líder Xi Jinping, núcleo do Partido Comunista”, diz uma enorme faixa que recebe o público que lotou a exposição esta semana: grupos escolares, turistas de outras províncias, militantes do partido em visitas organizadas. No interior, sala após sala dedicada às realizações da China ultramoderna (e do Partido Comunista): a China que chegou à Lua, que implantou a maior rede ferroviária de alta velocidade, a que inova em robótica e inteligência artificial.
E imagens e mais imagens do presidente chinês. Todas elas sempre alguns centímetros maiores ou mais altas do que o resto dos elementos da exposição. Deng aparece como apenas mais um dos líderes que precederam Xi: seu retrato é do mesmo tamanho do que os dos outros líderes, Hu Jintao e Jiang Zemin. Na sala dedicada à história, o espaço ocupado por todos eles é a metade daquele dedicado ao atual chefe de Estado.
“Deng Xiaoping deve estar se revirando no túmulo”, diz o professor Willy Lam, da Universidade Chinesa de Hong Kong. “Quase todas as suas reformas foram abandonadas: a liderança coletiva e a proibição do culto à personalidade; a separação do Partido e do Estado; na economia, ênfase no mercado e bom tratamento aos empresários privados e aos capitalistas estrangeiros...”.
Apesar disso, dentro da China a situação é menos monolítica do que a exposição – e o Governo chinês – querem apresentar. O aniversário, que deveria ser uma apoteose das realizações do sistema, chega em meio a mais dúvidas do que o previsto. A economia chinesa não está crescendo como em anos anteriores. A guerra comercial com os Estados Unidos que a China inicialmente pensava que poderia resolver aumentando suas importações, se transformou em algo mais profundo e se espalhou a outras áreas da relação bilateral, a tal ponto que em Pequim já se considera o início de uma guerra fria. A Europa compartilha muitas das críticas que Washington faz sobre as práticas chinesas. E nos últimos dias, a prisão no Canadá de Meng Wanzhou, diretora financeira do gigante das telecomunicações Huawei, foi recebida como uma bofetada em Pequim.
Ninguém, dentro ou fora da China, duvida de que Xi mantenha um controle total do poder. Mas nos últimos meses foram ouvidas vozes dissidentes que pedem mais reformas econômicas para recuperar o caminho das reformas pró-mercado que Deng definiu.
Em outubro, foi o filho do “pequeno timoneiro”, Deng Pufang – homem com enorme ascendência moral dentro do sistema chinês – que fez críticas. As mudanças impostas por seu pai “na estrutura social, na divisão de interesses e no modo de pensar são fundamentais, históricas e irreversíveis”. “Temos de continuar neste caminho, sem regressões e sem hesitar durante cem anos”, insistiu em um discurso que os meios de comunicação oficiais não divulgaram. Outros representantes do clã reformista – os filhos do ex-secretário geral do partido, Hu Yaobang; o general Liu Yuan, filho do ex-presidente Liu Shaoqi – também fizeram comentários críticos.
E talvez como resultado das pressões externas e das vozes dissonantes internas, parece que algumas mudanças podem estar chegando. “De certo ponto de vista, podemos dizer que Trump está forçando Xi a voltar aos ensinamentos de Deng”, especialmente na ênfase no mercado, no tratamento não discriminatório às empresas estrangeiras e no tom mais baixo na política externa, aponta Lam.
O chefe de Estado chinês fará um discurso na terça-feira sobre o aniversário, no qual poderia anunciar algumas medidas de aprofundamento do Gaige Kaifang; ou de conciliação na guerra comercial, como são interpretadas em alguns setores.
“Há alguns sinais de tentativas de que um novo impulso para as reformas está sendo planejado”, indica a consultoria Capital Economics. A China, como adiantou o The Wall Street Journal, poderia modificar seu plano Feito na China 2025, pelo qual quer se tornar líder em tecnologia nesse época, e permitir uma maior participação estrangeira.
Mas também, acrescenta a consultoria, as novas medidas anunciadas podem significar pouco mais que uma tentativa de salvar as aparências para evitar mais tarifas e ganhar tempo. “Embora alguns funcionários em Pequim vejam as reformas baseadas no mercado como uma solução para as tensões comerciais e os problemas estruturais mais amplos que afetam o crescimento econômico, outros veem as pressões dos EUA como uma reivindicação das posições atuais”, lembra.
E depois do caso Huawei no Canadá, a China respondeu prendendo dois cidadãos canadenses por supostas “atividades prejudiciais à segurança nacional”. Um passo que em geral provocou tanto apoio entre a população chinesa quanto preocupação no exterior.
Na exposição no Museu Nacional de História, o público, por sua vez, continua tirando fotos ao lado de uma maquete inteligente da Barragem das Três Gargantas, de uma locomotiva do trem de alta velocidade ou do robô policial. “Como me sinto vendo isso? Me sinto rico”, ri um jovem.
El País: Antropóloga convive com a “covardia da dúvida” de quem a ameaça de morte
Professora da Universidade de Brasília (UnB) Debora Diniz teve que deixar o país. Advogados criam rede em defesa dela e estudam oferecer apoio jurídico gratuito a outros ameaçados
Já faz quase 15 anos que o trabalho de Debora Diniz reverbera além dos debates acadêmicos sobre os direitos das mulheres. Em 2004, a professora e antropóloga da Universidade de Brasília (UnB) ajudou a encampar uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para permitir o aborto em gestações de fetos anencéfalos. Em todo esse tempo, apesar das controvérsias levantadas pela causa, nunca tinha passado por um processo tão doloroso quanto o que se iniciou em maio deste ano, quando ela se tornou idealizadora de uma nova empreitada no STF, desta vez pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez. Não bastasse o linchamento virtual nas redes sociais, ela recebeu ao longo dos últimos meses dezenas de ameaças de morte e, incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Governo federal, foi aconselhada a deixar o país. “Sou vítima de ataques que colocam em risco o sentido de democracia no Brasil.”
Desde maio, a cada aparição pública ou evento que anunciava sua presença, Debora Diniz era arrebatada por uma avalanche de ofensas. Por causa das investidas, antes de se mudar para o exterior, teve de cancelar a participação em um fórum mundial no Rio de Janeiro, recusar o convite para ser paraninfa de formandos em Brasília e sair pela porta dos fundos de um congresso para não cruzar com um grupo de manifestantes que a aguardava na entrada principal do evento. As táticas de intimidação se assemelham em todos os casos. Os haters miram seu círculo de relacionamentos. A reitora da UnB e a diretora da Faculdade de Direito, onde ela leciona, também já foram ameaçadas, assim como o marido, os pais e até seus alunos. “Chegaram ao ponto de cogitar um massacre na universidade caso eu continuasse dando aulas. A estratégia desse terror é a covardia da dúvida. Não sabemos se são apenas bravateiros. Há o risco do efeito de contágio, de alguém de fora do circuito concretizar a ameaça, já que os agressores incitam violência e ódio contra mim a todo o momento”, afirma Diniz.
A Delegacia Especial de Atendimento a Mulher (Deam) investiga o caso e trabalha com a hipótese de que os ataques possam ser orquestrados por redes internacionais que focam seus canhões em ativistas de direitos humanos. Sem dar aulas na universidade há mais de um semestre devido ao exílio forçado, a pesquisadora tem se dedicado a estudar o perfil dos haters que a perseguem nas redes sociais, Whatsapp e até por telefone. “Basicamente são homens ressentidos, de 30 a 40 anos, ligados a grupos de extrema direita, neonazistas e incels (celibatários involuntários que atrelam o fracasso de suas vidas amorosas a uma suposta banalização das relações sexuais). Enxergam a ascensão de mulheres e LGBTs como afronta à masculinidade e não costumam deixar rastros nem indícios de uma célula de articulação do movimento.”
Na quinta-feira, advogados criminalistas, incluindo juristas renomados como Alberto Silva Franco, Alberto Zacharias Toron e Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, anunciaram a criação de uma rede em defesa de Debora Diniz. O grupo também estuda a possibilidade de oferecer apoio jurídico gratuito a outros ativistas ameaçados de morte. “Se trata de uma mobilização de resistência contra um tipo de crime difícil de combater”, afirma Kakay. “São ameaças covardes e orquestradas, que representam bem o momento de repressão e retrocesso vivido pela sociedade brasileira.” De acordo com Silva Franco, o caso da professora é crucial para a defesa da liberdade acadêmica. “Este é um país onde se pode desenvolver pesquisas livremente, onde a sala de aula é protegida para o amplo debate de ideias, ou onde se teme morrer por aquilo que se pensa? Acreditamos na defesa intransigente da primeira opção.”
Apesar dos extensos debates já travados, a ação pela descriminalização do aborto ainda não tem data para ser votada no STF. Grupos conservadores e religiosos contrários à medida seguem mobilizados. Nesta semana, a futura ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, ventilou a possibilidade de oferecer suporte financeiro a mulheres que engravidam após serem estupradas e optem por manter a gestação. Já a advogada Janaína Paschoal, eleita deputada estadual pelo PSL em São Paulo e que também já afirmou ter sido vítima de ameaças, criticou o grupo de advogados que atua em defesa de Debora Diniz. “Nenhum desses colegas foi solidário diante das muitas ameaças que recebi”, afirmou ela, que já comparou a descriminalização do aborto à legalização do tráfico de drogas, ao insinuar um suposto posicionamento pró-aborto da rede.
Diniz, por sua vez, se emociona ao falar sobre o desgaste emocional diante das ameaças, longe da universidade e do país. “Assim como outros defensores dos direitos humanos, não posso me permitir a cruzar limites sob o risco de virar mártir.” Às vésperas da posse do presidente eleito Jair Bolsonaro, ela teme pelo recrudescimento de ataques a militantes feministas no Brasil. “Orientadas por uma lógica religiosa messiânica, as políticas anunciadas pelo novo governo e a futura ministra [Damares Alves] colocam em risco os direitos das mulheres.” A professora entende ainda que é preciso um pacto da sociedade brasileira para se opor à “crueldade das ameaças”, destacando a vulnerabilidade de políticos como os deputados do PSOL Jean Wyllys e Marcelo Freixo, ambos ameaçados de morte por causa de seus posicionamentos ideológicos ou atividade parlamentar. “É um perigo constante defender posições no país que mais mata ativistas dos direitos humanos.”
Aos 48 anos, a antropóloga espera poder voltar logo a Brasília para retomar a rotina na universidade. Enquanto isso, se mantém firme na defesa de seus princípios e no desenvolvimento de pesquisas, reforçando que a mudança não significa uma renúncia às causas que defende. “Não saí do Brasil porque fui ameaçada, mas para proteger outras pessoas. Se as ameaças fossem somente contra mim, eu jamais sairia. Mais do que nunca, mesmo à distância, eu sigo fazendo meu trabalho. Não vão me calar.”
El País: Ameaças a defensores dos direitos humanos colocam a democracia brasileira em xeque
Polícia desbaratou plano de milicianos para executar deputado do PSOL Marcelo Freixo. Brasil é um dos que mais mata ativistas: só em 2017 foram registradas mais de 60 execuções
Na última sexta-feira, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) comparecia na frente de jornalistas na Assembleia Legislativa do Rio (ALERJ) para comentar a revelação feita pelo Jornal O Globo, um dia antes, de que sua vida poderia não ter passado deste sábado. A polícia carioca havia descoberto que milicianos, grupos paramilitares formados por ex-policiais que dominam atividades ilícitas em bairros pobres, planejavam matá-lo. Se a ação não tivesse sido descoberta, ele poderia ter sido o segundo político de visibilidade a ser morto na cidade em menos de um ano —em março, a vereadora Marielle Franco, também do partido de esquerda PSOL, foi fuzilada em plena rua, junto a seu motorista, em uma das áreas mais populares do centro, em um crime até hoje não esclarecido.
A coletiva chamada pelo político se deu em uma semana simbólica: no mesmo dia em que a brutal execução de Marielle completava nove meses; um dia depois do aniversário de 50 anos do Ato Institucional de número 5 (AI-5), que representou o endurecimento da ditadura militar brasileira; quatro dias depois que a Declaração Universal dos Direitos Humanos fez 70 anos. E em meio a uma preocupação crescente dos defensores de direitos humanos do país com um possível cenário de maior vulnerabilidade a partir do ano que vem, quando chega ao poder Jair Bolsonaro, um presidente de extrema direita que declarou, pouco antes de ganhar a eleição, que era preciso "metralhar a petralhada" ou que costumava repetir o bordão "direitos humanos para humanos direitos".
As ameaças contra Freixo são a ponta do iceberg e se estendem não só a outras figuras públicas, como também às que atuam longe dos holofotes, principalmente no campo, com a defesa da Reforma Agrária, dos direitos indígenas ou dos recursos naturais. De acordo com a Front Line Defenders, que utiliza dados da ONG brasileira Comissão Pastoral da Terra, o país é um dos que mais mata ativistas: só em 2017 foram registradas mais de 60 execuções entre as mais de 300 registradas em todo o mundo. Isso coloca o país no seleto grupo de nações, junto a Colômbia, México e Filipinas, que concentra a maior parte destes homicídios. "Essa questão do Marcelo Freixo é como se coroasse isso tudo hoje. A gente não consegue ter esclarecida a morte da Marielle, e agora a gente tem uma ameaça a uma pessoa diretamente ligada a ela", argumenta Eliana Sousa, ativista e fundadora da ONG Redes da Maré.
Freixo, que há dez anos presidiu na Assembleia do Rio uma investigação contra as milícias, foi eleito neste ano deputado federal. Atuará em Brasília com escolta da polícia legislativa ao mesmo tempo que espera continuar contando com sua escolta pessoal, com ele há dez anos e fornecida pela Secretaria de Segurança do Rio, nos dias em que estiver em seu Estado. "A morte de Marielle tem que ser esclarecida. Foi um grupo político, mas que grupo foi esse? Foi um dos crimes mais sofisticados da história do Rio. Que grupo é capaz no século XXI de mandar matar uma vereadora?", cobrou o deputado. "Enquanto isso não acontecer não tem como dizer que existe democracia no Rio". "Defensor de direitos humanos não é defensor de bandidos. Defensor de direitos humanos defende a lei. E a lei não pode permitir que um grupo tão criminoso domine a vida das pessoas", complementa Freixo.
Em Brasília, Freixo terá como companheiro de bancada partidária o deputado Jean Wyllys, que também relatou estar recebendo ameaças. Ele foi um dos maiores rivais de Bolsonaro na Câmara federal e o confrontou diretamente quando o agora presidente eleito homenageou o coronel Brilhante Ustra, torturador de Dilma Rousseff na ditadura, durante a votação do impeachment dela, em 2016. Após a fala de Bolsonaro, Wyllys cuspiu em direção a ele.
As ameaças ao deputado federal fizeram com que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicitasse ao Governo brasileiro que tome medidas para proteger a sua vida, ao mesmo tempo sejam investigadas as ameaças. "A decisão da CIDH é uma reação da comunidade internacional à inação do Estado brasileiro diante de uma situação que tem se prolongado no tempo e que, no último ano, agravou-se muito", disse o parlamentar ao EL PAÍS. "As constantes ameaças de morte que recebo há anos, e que passaram a incluir referências explícitas à minha família, se intensificaram especialmente durante o processo de impeachment da presidenta Dilma e depois do assassinato da Marielle", acrescentou Wyllys. "Não posso ir a lugar nenhum sem a escolta, porque essas são as condições para me proteger, de modo que é como se eu estivesse em cárcere privado sem ter praticado crime nenhum, sendo eu a vítima. Isso tem afetado muito minha saúde física e emocional."
A antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) que atua na defesa dos direitos das mulheres, também teve sua vida completamente modificada recentemente. Ela recebeu ao longo dos últimos meses dezenas de ameaças de morte e acabou incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Governo federal, sendo aconselhada a deixar o país, o que fez. As ações contra ela, que atua publicamente há ao menos 15 anos, não são novidade, mas se tornaram mais graves depois de ela acionar o Supremo Tribunal Federal em prol da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez. “Sou vítima de ataques que colocam em risco o sentido de democracia no Brasil”, afirmou ao EL PAÍS.
Participação do Estado
"Em um país como o nosso, ninguém que luta está protegido. Existem várias medidas que devem ser tomadas pelas autoridades para garantir um ambiente e valorização para essas pessoas", argumenta Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional no Brasil. Ela diz que "esse tipo de ameaça e de assassinato de defensores não acontecem sem a participação do Estado" e destaca a diferença entre as mortes que são fruto "de um ambiente de extrema violência armada" e o assassinato de ativistas pelos direitos humanos. "Eles foram calados para que essas violações [aos direitos humanos] continuem. No caso de ameaças a parlamentares, como Freixo, Wyllys e Marielle, existe uma ameaça à democracia adicional uma vez que são "ferramentas, independentemente de sua coloração partidária, para o exercício" dela.
Atila Roque, diretor da Ford Foundation no Brasil e ex-diretor da Anistia Internacional no país, concorda que "todos e todas que se empenham na luta pelos direitos humanos" no Brasil já se viram diante de alguma ameaça. "Comigo não foi diferente e lidei tomando as precauções e adotando os protocolos de segurança que me foram então recomendados".
Na década de 1980, ainda muito jovem, Roque trabalhava diretamente com conflitos agrários e convivia com o assassinato "quase cotidiano" de lideranças camponesas, religiosas e advogados que atuam em defesa do direito a terra. "Um dos crimes que me marcou mais profundamente foi o assassinato do Padre Josimo Tavares, em 1986, poucos dias antes de um encontro que tínhamos marcado em Imperatriz, Maranhão. Acabei indo para o seu enterro". "Essa é também uma rotina na vida da juventude de favelas e periferias, especialmente dos jovens homens e mulheres negros que vivem o cotidiano do racismo e da militarização dos territórios onde vivem", acrescenta.
Sousa, a fundadora da ONG Redes da Maré que também já foi alvo de ameaças em diferentes momentos, acredita que a vulnerabilidade hoje é maior porque também as denúncias são maiores. Há mais resposta e resistência daqueles que são vítimas de uma violência que também é causada pelo próprio Estado. "Depois de uma operação na favela, sempre no final você tem uma fala oficial que vai para o jornal que cria uma narrativa sobre o resultado da operação e que coloca os moradores em condição de suspeitos. Hoje, por conta das redes e outros meios, você acaba conseguindo pautar outras vozes e mostrar que a coisa não é bem assim. Se por um lado isso é positivo, expõe o que acontece, por outro nos torna mais vulneráveis", argumenta ela. Existe, segundo diz, um projeto que "tem como ideologia um enfrentamento que gera mais violência", o que se materializa em uma ameaça à democracia porque "nas áreas de favela e periferias as mesmas leis não são obedecidas ou vistas porque ali é uma favela, e as pessoas não são reconhecidas como pessoas de direito". Se uma democracia presume direitos iguais para todos, "um morador da favela não vive essa experiência de direitos estabelecidos, como o de ir e vir".
El País: Cúpula do clima sela um pacto pouco ambicioso para evitar o fracasso
A cúpula climática da ONU na cidade polonesa de Katowice, conhecida como COP24, conseguiu selar na noite deste sábado um pacto que servirá para desenvolver o Acordo de Paris a partir da próxima década. As tensões entre os blocos de países na hora de assumir a necessidade de mais ambição na luta contra a mudança climática estiveram muito presentes nas negociações. No lado mais conservador, situaram-se os Estados Unidos e a Arábia Saudita; no outro, a União Europeia e um grupo de países em desenvolvimento, além de pequenos Estados insulares ameaçados pelo aumento do nível do mar, que almejavam um texto mais ambicioso.
Em cúpulas desse tipo, com a participação de quase 200 países, os acordos devem ser aceitos por unanimidade. Daí que as negociações possam se prolongar e passar horas bloqueadas, como ocorreu novamente na sexta, quando a cúpula deveria ter acabado.
O texto final aprovado é menos ambicioso que os seus rascunhos, especialmente no capítulo referente a reduções das emissões de gases do efeito estufa. “A COP24 não refletiu a ambição necessária nem os compromissos dos países para que a ação climática aumente”, resume Tatiana Nuño, especialista em negociações climáticas do Greenpeace.
Duas coisas deveriam sair desta cúpula. Por um lado, uma nova etapa na regulamentação do Acordo de Paris. Por outro, uma declaração que refletiria as conclusões do relatório de especialistas que assessoram a ONU, segundo os quais está terminando o prazo para que o mundo evite as piores consequências da mudança climática.
Com relação ao primeiro ponto, a parte mais importante da regulamentação do Acordo de Paris foi aprovada, mas de forma inconclusa. O capítulo relativo aos mercados de carbono (o intercâmbio de cotas nacionais de emissões de gases do efeito estufa) bloqueou a negociação durante horas. Finalmente, diante das pretensões do Brasil, que se beneficia economicamente desses mecanismos, por contar com amplas zonas florestais, decidiu-se que esse assunto será concluído dentro de um ano, na próxima cúpula.
O resto da regulamentação, que inclui medidas de transparência comum, cortes nas emissões, adaptação aos impactos do aquecimento global e financiamento, pôde ser satisfatoriamente concluída.
Teresa Ribera, a ministra espanhola para a Transição Ecológica, participou até o último momento das negociações na cúpula. Ela lamentou que o resultado final não seja “tão ambicioso” quanto a Espanha e a UE gostariam, mas destacou que se trata de um momento muito complicado para o multilateralismo, numa referência aos países, como os Estados Unidos, que boicotam instituições como a ONU.
Por esse motivo, alguns observadores acreditam ser quase milagroso que algum pacto tenha sido selado na cúpula de Katowice; outros, entre eles muitos ambientalistas, se mostram decepcionados com o resultado, por sua pouca ambição. “Ninguém vai ficar satisfeito depois destas negociações”, alertou António Guterres, secretário-geral da ONU, falando na sexta-feira às ONGs. Frente ao risco de fracasso, Guterres teve que comparecer a Katowice para se envolver na reta final das negociações. As mudanças em muitos Governos, com a irrupção de líderes que inclusive flertam com o negacionismo da mudança climática – caso do norte-americano Donald Trump –, complicaram o evento.
Uma das batalhas mais duras foi a que afeta a declaração final da cúpula, a chamada decisão, que tem um caráter mais político. Esse texto deveria insistir aos países para que sejam mais ambiciosos e apresentem planos mais duros para as reduções das emissões de gases do efeito estufa. E, no centro da discussão sobre esse texto (que deveria ser acatado pelos quase 200 países presentes) estava o relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, na sigla em inglês). Esse documento detalha os riscos que o planeta enfrenta se a temperatura subir 1,5 grau em relação aos níveis pré-industriais (atualmente, já subiu 1 grau). As alusões ao relatório e às suas principais conclusões – basicamente, que o tempo está se esgotando para o mundo – estiveram no centro da discussão em Katowice. Enquanto os Estados Unidos, Arábia Saudita, Rússia e Kuwait buscavam minimizar a importância do relatório e de suas conclusões, outros Estados queriam que esse documento científico estivesse no centro da discussão.
O Acordo de Paris tem como objetivo que a temperatura média do planeta não suba além de 2 graus acima dos níveis pré-industriais, e se possível que fique abaixo de 1,5 grau. Para isso, todos os países devem apresentar planos para reduzir suas emissões de gases do efeito estufa. As propostas sobre a mesa não são suficientes, já que levariam o planeta a um aumento de 3 graus até o final deste século. E o relatório do IPCC deixava claro o que os países devem fazer para cumprir o objetivo mais ambicioso, de 1,5 grau: reduzir suas emissões em cerca de 45% sobre os níveis atuais. Mas as referências diretas a esse corte foram eliminadas da declaração final de Katowice, devido à pressão dos EUA e da Arábia Saudita, o que poderia levar a um fracasso total. “Eu preferia uma linguagem mais explícita”, admite a espanhola Ribera sobre esse relatório científico.