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El País: “Promoção de filho de Mourão é legal, mas causou desgaste”, diz Major Olímpio

Candidato à presidência do Senado pelo PSL, Olímpio diz que apoio a Rodrigo Maia é pragmático e que é aliado do presidente, mas não é um alienado

Por Afonso Benites, do El País

Senador em seu primeiro mandato, Sergio Olímpio Gomes, major da reserva da Polícia Militar de São Paulo, tenta dar um passo longo na carreira. Quer ser presidente do Senado. Filiado ao PSL, mesmo partido do presidente da República, Jair Bolsonaro, o parlamentar diz representar uma tentativa de mudança no país. Admite que seu partido está encontrando sua “essência”, afirma que a aliança com Rodrigo Maia (DEM-RJ) para a presidência da Câmara foi pragmática e avalia que a reforma da Previdência tem de ser votada “o quanto antes”.

A entrevista foi concedida ao EL PAÍS em dois momentos. O primeiro ocorreu na quarta-feira, no hall do hotel onde mora, em Brasília, ladeado por policiais que fazem sua segurança. O segundo, por telefone. A escolta de Olímpio ocorre desde o fim do ano passado, quando ele passou a denunciar que a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) planejava resgatar um de seus líderes que está preso no interior paulista. Sua cabeça foi colocada à prêmio. Sobre esse assunto, não se delongou e confirmou que passou a ser acompanhado frequentemente por policiais.

Pergunta. Quando, em tom de brincadeira, eu disse a você que queria tratar da política em Brasília, e não do PCC, você disse que só estaríamos mudando de quadrilha. Com o novo Governo, quadrilhas persistem no poder?
Resposta. Não tenho dúvida. A escolha do novo presidente, a mudança de mais da metade da Câmara, a eleição de 46 novos senadores, demonstram que a população também tem essa sensação. O sumiço das quadrilhas ocorrerá aos poucos. Não podemos ser simplistas e dizer que o Brasil mudou já no dia 1º de janeiro. Enquanto conversamos aqui, em uma cidade pequena há prefeitos articulando com vereadores o pagamento de propinas com valores desviados de merendas escolares. Não podemos ser ingênuos em acreditar que a corrupção acabou de uma hora para a outra. As quadrilhas no poder público vêm sendo desbaratadas. Enquanto o mensalão era descoberto, o petrolão ocorria na sala ao lado. É inocência imaginar que, com um passe de mágica, acabaram as práticas criminosas. O Brasil ainda é o país da impunidade. Nós legislamos pouco para acabar com isso. E uma das coisas mais positivas que legislamos nos últimos anos é alvo de boa parte da classe política hoje, que é a lei da delação premiada. Há um esforço total para revogá-la.

P. Como membro do PSL, você acha que está explicada a situação do Fabrício Queiroz, o ex-assessor do Flávio Bolsonaro (PSL) que movimentou a suspeita quantia de 1,2 milhão de reais?
R. O Queiroz, a família Bolsonaro e a investigação vão esclarecer o que passou. Confio totalmente no presidente Bolsonaro, de que nada de errado chegou a ele. Não tenha dúvida que falta uma explicação do próprio Queiroz. Esse caso se arrasta há uns 40 dias porque faltou um esclarecimento por parte dele.

P. Bolsonaro assumiu com o discurso de que extinguiria a prática de indicações políticas ou apadrinhamentos para os cargos comissionados. A nomeação do filho do vice-presidente Hamilton Mourão para uma assessoria especial no Banco do Brasil não confronta esse discurso?
R. A direção do banco explicou que ele era um funcionário de carreira e capaz. Estava dentro do plano do direito. Se era adequada essa promoção salarial dessa natureza, não pegou bem. Desde os tempos de policial, eu aprendi: “Nunca se explique. Porque, para os amigos, não precisa. E os inimigos não acreditam”. O que interessa é que está dentro do parâmetro de legalidade. Neste momento, ele está sendo prejudicado por ser filho do vice-presidente. Duvido que, pelo perfil do general Mourão, ele fosse interceder pela promoção do filho. Logicamente, essa promoção causou um desgaste.

P. O PSL teve uma crise interna antes mesmo da posse dos deputados federais com brigas por postos-chave na Câmara. Como está essa questão?
R. Está superada. O PSL está se tornando um partido em sua essência agora. Em São Paulo, a primeira reunião que fiz com deputados estaduais e federais eleitos, fiz igual a um curso em que você não conhece ninguém. Pedi para cada um se levantar e dizer o seu nome e de onde era. Eu conhecia todos, mas as outras pessoas não se conheciam. De repente, o partido cresceu e agora que está construindo a sua identidade partidária. Entre os eleitos, muita gente nem abriu o regimento do partido para ler. Uma coisa é você ser um ativista, outra é querer falar em nome de um partido. Respeitamos a inocência e a falta de conhecimento de muita gente. Entendo que estamos em um momento de adequação.

P. Como tem sido essa adequação?
R. O Luciano Bivar [presidente do partido], com uma paciência inigualável, está sabendo lidar com os arroubos midiáticos de alguns e conduzindo o processo adequadamente. Já passamos a fase do pós-eleição, da nomeação de ministros e passaremos por outra até a posse do Legislativo. Aí, tudo se acomoda. Um ou outro tema mais palpitante pode ver o “pau quebrar”. Ainda mais em um partido em que as pessoas mal se conhecem. Tudo vai se ajeitar. Se nós estivermos muito unidos, já vai ser difícil ajudarmos o Bolsonaro a mudar o país. Se estivermos desagregados, fica impossível. Todos os componentes do partido têm esse juízo de valor. Temos de saber que as nossas diferenças não podem ser maiores que nossas obrigações.

P. Por que o PSL apoiou Rodrigo Maia? Esse apoio não vai na contramão do discurso de renovação na política e de confrontar as práticas de conchavos, que a legenda prega?
R. O PSL percebeu que ia ficar completamente isolado, sem participação nos blocos. Quando você olha para os cenários, que opção teria o PSL? Uma seria a candidatura própria, com o Bivar. Ele não quis participar desse processo. Foi simplesmente uma questão de pragmatismo: ou fica completamente isolado, comprometendo a governabilidade, ou fará uma composição para garantir espaço e um assento à Mesa. Em caso de vitória, ficaremos com as comissões de Constituição e Justiça e com a de Finanças e Tributação, além da segunda vice-presidência.

"Votaremos a reforma da Previdência possível"

P. Por que aceitou ser candidato à presidência do Senado?
R. Eu levei um susto quando o Bivar veio até mim no dia da posse do presidente Bolsonaro e me disse que tinha essa missão. Era uma missão de partido porque, diante da isenção, muito oportuna, do presidente e do Governo de não apoiar nenhuma candidatura, o jogo estava aberto. Seria importante o PSL ter um representante. E ele achou que eu teria condição de vencer essa disputa. No momento eu disse para ele: “Você está brincando?”

P. Você não aceitou essa convocação de imediato?
R. Eu pedi um tempo para o Bivar para amadurecer e pensar bem. Eu não tinha a menor expectativa. Mas ele acabou fazendo uma proposta irrecusável, que não me deixou responder. No dia seguinte [2 de janeiro], ele lançou a minha candidatura e eu aquiesci.

P. Como você lida com o fato de ir contra a tradição do Senado de escolher um representante da maior bancada de [no caso o MDB] e de pessoas com mais experiência na Casa?
R. Eu concordei porque, muito embora eu seja um recruta no Senado e que a tradição na Casa seja de ter senadores mais experientes, o meu partido resolveu ousar diante dessa nova dinâmica que vem sendo colocada na política. Senti na obrigação de me colocar à disposição do PSL, do país e do Senado. Eu não sou uma criança. Tenho 12 anos de experiência parlamentar, na Assembleia de São Paulo e na Câmara dos Deputados, e fui eleito para ser um dos 81 senadores. Portanto, tenho de me colocar em condições de exercer qualquer atividade dentro do Senado.

P. Com o voto fechado para a Mesa Diretora, como foi decidido pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal, quem tem mais chances é o senador Renan Calheiros
R. Logicamente, com o voto aberto o maior beneficiário seria eu. Voltou-se à regra original, não significa que eu não tenha chances. Com a votação fechada, reconheço que o Renan volta a ter muita força nesse processo.

P. Sua candidatura é apenas anti-Renan?
R. Não. A definição da Executiva do partido é de que o PSL tem de ocupar seu espaço.

P. Ainda que seja para perder?
R. Ganhar ou perder faz parte da disputa. Houve uma questão de ordem feita à mesa que o presidente Eunício Oliveira definiu que para ser eleito no primeiro turno é necessário ter a maioria absoluta (41 dos 81 votos), e não a maioria dos presentes. Assim aumenta as chances de segundo turno. Eu estando entre o dois, seria uma opção forte.

P. Há um diálogo com outras candidaturas?
R. Sim. Tenho buscado conversar principalmente com os senadores Álvaro Dias (PODE-PR), Davi Alcolumbre (DEM-AP), Espiridião Amim (PP-SC) e Tasso Jereissati (PSDB-CE). Até então meu papel era de interlocutor dizendo: “Respeitamos todas as candidaturas, mas a chance de termos vitória e se estivermos todos juntos”. E, agora, que sou candidato, não mudou isso. Sou mais um nome colocado nesse rol. Agora é uma corrida de obstáculos, mas muito ética e respeitosa em que há 81 participantes, que permite dialogar bem com todos.

P. Quantas candidaturas você trabalha de fato?
R. Seis ou sete, se a Simone Tebet (MDB-MS) se apresentar como candidatura avulsa ou como o nome do MDB. Se a candidatura do MDB fosse a Simone, não o Renan, eu acredito que ela passa a ser uma das candidaturas debatidas de forma mais madura entre esses pré-candidatos eventualmente para uma candidatura única. Tudo pode acontecer.

P. Seria um jogo de todos contra o Renan? Você abriria mão de concorrer em nome de Simone Tebet?
R. Sim. Todos debateriam. Inclusive eu poderia retirar a candidatura. Nesse cenário ninguém é candidato por si só. Eu atendo a determinação de meu partido. Hoje, não tem jogo ganho.

Entre os eleitos pelo PSL, muita gente nem abriu o regimento do partido para ler

P. Em sua carreira você se destacou por ser oposição que costumava falar alto. Como será no papel de governista? Será moderador, caso se eleja presidente do Senado?
R. Em todos momentos você tem de ter o senso do que representa e da responsabilidade. O falar alto e grosso é da minha natureza e também por perda auditiva por ser por tantos anos instrutor de tiro. Minhas convicções eu sempre as manifestei em todos os cenários. Tenho certeza de que nem o Bolsonaro, nem ninguém do Governo vai exigir que eu mude as minhas convicções. Logicamente que, se eu for o presidente do Senado, que é uma casa de equilíbrio da política, a responsabilidade impõem que seja uma figura de mais moderação. Teria mais dificuldade no uso da palavra e da manifestação. O presidente acaba sendo mais o voto de desempate, o que equilibra as sessões, aquele que abaixa a bola de todo mundo. Eu aprendi a fazer isso no serviço policial. Enfrentando criminosos, eu precisava ter uma conduta, dentro da lei, até para o uso da força. Em outro momento, como comandante da região central de São Paulo, eu precisava ser mais moderado quando ia acompanhar manifestações de rua. São momentos em que temos de ter extrema ponderação e ser algodão entre os cristais. A moderação no Senado seria a mesma.

P. Como seria a sua relação com o Governo Bolsonaro?
R. Costumo dizer que não sou tão bom político porque é muito fácil saber como eu vou me posicionar. Posso ser aliado e não ser alienado. Tem circunstâncias que estarei alinhado com o Governo, mas seu eu tiver de tomar uma posição em algo que eu entenda que esteja equivocado ou distorcido, o faço com a maior tranquilidade, de público, de maneira transparente.

P. Você já se manifestou contrário à reforma da Previdência apresentada pelo Governo Michel Temer. Como será agora, com a do Bolsonaro, que parece mais rígida ainda?
R. Ela ainda está em elaboração. Precisamos do conteúdo. Naquele momento da proposta pelo Temer, a base de dados que sustentou a reforma estava equivocada. E o Governo não demonstrou ânimo em corrigir as informações. Aí, ficou fácil a desconstrução do processo como um todo. Eu nunca neguei a necessidade de se fazer uma reforma dessa natureza. No Governo Temer estávamos quase no processo final de votação de um texto para a reforma. O estopim foi pouca coisa, por exemplo, a inclusão dos agentes penitenciários como categoria de risco semelhante ao que foi feito com os policiais. O Governo e o relator [Arthur Maia] prometeram que iria incluí-los, mas não os incluiu. Esgarçaram um processo final de um texto que chegou ruim, e acabou se adequando. Aí, a reforma desandou.

P. Houve algum outro erro?
R. Ao invés de se fazer a sensibilização adequada, o Governo optou por fazer uma publicidade burra. Satanizou o serviço público. Disse que todas as áreas do serviço público era uma casta de privilegiados, sem ter uma fundamentação razoável de dados. Não trouxe a opinião pública e provocou um afastamento da classe política. Se colocasse o texto para votar em plenário, teria sido derrotado. Por fim, o Governo criou a intervenção federal no Rio para não admitir a derrota. Foi o pano de fundo para não se votar uma proposta de emenda constitucional (PEC).

P. Qual a diferença da reforma do Temer para a de Bolsonaro?
R. Por mais que haja a ansiedade da sociedade, do mercado financeiro, da imprensa e de todos os atores do processo, o Governo está fazendo todos os cotejamentos. Vem o projeto perfeito? Eu não sei, espero que seja o mais adequado possível. Mas eu não conheço nenhum projeto de emenda constitucional que tenha saído do Governo e votado ipsis litteris o texto inicial. O texto pode ser o ideal, mas você vai passar em um funil chamado Congresso onde o ótimo é inimigo do bom. Votaremos a reforma da Previdência possível. Por mais que seja a legitimidade do Governo e a capacidade de garantir os votos necessários na Câmara e no Senado, haverá a legítima pressão da sociedade. Entendo que hoje o que o Governo está fazendo é mensurando os riscos e potencialidades. Se eu diminuo as regras de transição [de 21 para 12 anos], eu conquisto um equilíbrio financeiro e previdenciário mais rápido, mas me arrisco mais no sucesso da votação. O mesmo serve para as mudanças na idade mínima, no regime geral da Previdência, inclusão ou não dos militares. Tem uma série de variantes que pode ser analisada. Você não vai conseguir produzir um texto de consenso de todos os segmentos. Mesmo se tivesse, haveria oposição.

P. Você acha que entra os militares? É a favor que eles sejam incluídos nessa reforma?
R. A vida dos militares é não ter. Não tem direito a greve. Não tem fundo de garantia. Não tem adicional noturno. Não pode ser sindicalizado. Posso falar que os militares estaduais, policiais e bombeiros, que os represento. Sou um deles há 41 anos. Esses militares estão no limite das exigências. Não aguentam mais. Tenho visto manifestações de oficiais generais das três forças que entendem que as Forças Armadas podem dar um pouco mais pelo Brasil. Não vou me debruçar a respeito disso. Não sei se eles suportam essa carga maior. De maior tempo de serviço, de diminuir as garantias. Pelo conceito de Previdência, os militares das forças não têm Previdência. Eles estão sob uma malha de proteção social que faz com que tenham uma contribuição só para a pensão. São 300.000 militares que recolhem 6,5%, enquanto os demais trabalhadores recolhem 11%. Aí, a conta não fecha.

"A vida dos militares é não ter. Não tem direito a greve. Não tem fundo de garantia. Não tem adicional noturno."

P. Pelo que está dizendo, acha que eles devem entrar na reforma, então?
R. Em algum momento você tem que discutir como custear essas diferenças. Você tem a excepcionalidade da atividade, a rigidez da exigência e o país precisa descobrir como se paga essa conta.

P. Qual é o prazo para o início da votação da reforma?
R. Se perguntar para o Paulo Guedes [ministro da Economia] e para a área técnica, eles vão te dizer, ontem. Não há um prazo definido. O que ele discute agora é um sistema de capitalização, que parece ser mais justo. Hoje, quem está trabalhando banca a aposentadoria de quem está aposentado.

P. Mas você defende qual prazo?
R. Entendo que o mais rápido possível. Se pudesse aproveitar o relatório que já foi elaborado e apresentarmos emendas de plenário, seria melhor. Ele está pronto para ordem do dia. E poderíamos superar tempos regimentais, estruturas de audiências públicas, sessões obrigatórias. Se não for assim, o cumprimento do rito do legislativo fará com que se estenda por um tempo maior todo esse debate.

P. Sobre esse decreto que Bolsonaro pretende publicar trazendo novas regras para a posse de armas. Qual é prova de que aumentar o número de cidadãos armados ajudará a reduzir a criminalidade? Especialistas dizem o contrário, que pode aumentar o número de mortes.
R. Nós já temos a prova de que o estatuto do desarmamento só contribuiu para empoderar os criminosos. Quando ele foi aprovado tínhamos 30.000 homicídios no país e agora temos mais de 65.000. Só demos a certeza para o marginal que se a sua vítima não for uma das categorias especiais da polícia, da Justiça e do Ministério Público, ele pode barbarizar à vontade de que nunca terá um revés, de ter alguém se defendendo. A legítima defesa para o cidadão de bem, para quem está nos parâmetros da lei, tem de ser válida. O decreto de Bolsonaro quer corrigir as falhas da regulamentação feita pelo Governo Lula. Ou seja, cumpridos os requisitos formais, você estará habilitado. Será igual a tirar uma carteira de habilitação de motorista. Também por decreto poderia ser incluída a liberação da importação de armas e munições.

P. Como seria isso?
R. Acredito que seria para os órgãos da segurança pública e eventualmente para colecionadores e atiradores. E talvez para os cidadãos em geral. Para nós da segurança pública é um sonho. É importante termos a opção da qualidade e preço quando se tem uma concorrência. No Brasil, quando o Collor abriu o mercado de automóveis, os carros melhoraram. Desde então, abriu-se o mercado da telefonia, da informática, e só sobrou o monopólio das armas.


Chico Buarque: “Com esses ministros, é preferível que Cultura não tenha ministério”

Artistas e intelectuais comentam a aterrissagem de Bolsonaro em Brasília. Temor maior é corte no Sistema S

Por Beatriz Jucá, do El País

"Com esses ministros, é preferível que Cultura não tenha ministério”. A frase dita pelo cantor Chico Buarque ao EL PAÍS ilustra o mal-estar que aflige boa parte da classe artística sobre os rumos do setor no Governo Bolsonaro. As políticas culturais, que ano após ano não chegam perto de 1% do orçamento geral, são uma incógnita até mesmo para os artistas e produtores brasileiros, que têm opiniões divergentes sobre os efeitos da perda de um ministério exclusivo para o assunto. De um lado, há reações bem menos enérgicas contra a extinção da pasta que as de 2016, quando o então presidente Temer recuou da proposta pela pressão de agentes culturais. De outro, o temor de que os cortes pretendidos pela equipe econômica de Paulo Guedes no Sistema S e o enxugamento nos bancos públicos inviabilizem ações que preenchem lacunas deixadas pelo poder público na produção e no acesso à cultura brasileira.

O cantor Chico Buarque, que nunca escondeu sua afinidade com o Partido dos Trabalhadores (PT), é um dos mais contundentes ao comentar a aterrissagem do novo presidente em Brasília. “Só posso dizer o seguinte: em vista da qualidade dos ministros deste Governo, acho que é preferível que a cultura não tenha ministério”, disse ao EL PAÍS. Nem todos concordam que as mudanças promovidas pela extrema direita causarão riscos à cultura brasileira. O presidente da Ancine (órgão público que regula e promove o cinema), Christian de Castro, afirma que o setor não sofrerá nenhum impacto, que a produção é sólida e está amparada por uma legislação que existe há 20 anos. No entanto, enfatiza que a liberdade criativa é necessária para fazer filmes e vendê-los. “Sempre que há censura, perdemos dinheiro”, diz. O cinema brasileiro movimentou mais de 2,7 bilhões de reais em 2017.

Alguns anúncios feitos pela equipe do presidente, no entanto, já vinham causando preocupação a agentes culturais antes mesmo do início desta gestão. Ainda no período de transição, o ministro de Economia, Paulo Guedes, defendeu que é preciso "meter a faca" no Sistema S e cortar verbas públicas que sustentam nove entidades privadas responsáveis por promover educação e cultura no país. Entre elas, está o Sesc, que tem uma das maiores redes de promoção de atividades artísticas no Brasil. A entidade promove ações em distintas linguagens culturais em todos os estados brasileiros, que estabelecem uma agenda conforme a realidade regional, mas é também responsável por grandes ações nacionais. Entre elas, o maior circuito nacional de artes cênicas, Palco Giratório.

Sem especificar de quanto será o corte no Sistema S, Guedes argumentou que há um suposto desvio de finalidade com o investimento em "patrocínios" e não só em capacitação profissional. As declarações motivaram uma resposta do diretor estadual do Sesc de São Paulo, Danilo Miranda, em vídeo publicado nas redes sociais. Nele, alega que o Sistema S tem um caráter sociocultural, com ações voltadas para vários campos.

O diretor estadual do Sesc de São Paulo em exercício, Luiz Galina, diz que a possibilidade de cortes é preocupante, mas que até agora o Governo não fez nenhum movimento formal para efetivá-los. "Se houver redução dos recursos, não há outras entidades que possam cumprir o papel que o Sesc tem hoje. A nossa preocupação é democratizar o acesso, fazer com que pessoas de menor renda possam usufruir dessas atividades, que muitas vezes são gratuitas", defende. Também há preocupação de que os cortes de gastos pretendidos pelos novos presidentes do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal afetem as ações dos centros cultuais mantidos por estas instituições, que em algumas cidades brasileiras são responsáveis por grande parte da agenda cultural disponibilizada para a população.

Lei Rouanet

No centro do furacão das políticas culturais sob Bolsonaro, ainda está a chamada Lei Rouanet, uma controvertida normativa que oferece isenções fiscais às empresas em troca do pagamento de projetos culturais. Aprovada pelo presidente Fernando Collor de Mello em 1991, foi constantemente criticada, mas é o principal meio de financiamento cultural no Brasil. Grande parte dos teatros e museus depende dela. Graças à esta lei, cinco projetos são concretizados por dia desde que entrou em vigor.

A principal crítica é que, embora o Governo deva aprovar os projetos a serem financiados, são os empresários que escolhem o que apoiar. Bolsonaro costuma insistir que essa regra foi usada pelo PT de Lula para “comprar apoio” de artistas famosos. “Vamos eliminar o Ministério da Cultura e teremos apenas um secretário para tratar do assunto. Hoje, o Ministério da Cultura é apenas um centro de negociações da Lei Rouanet”, proclamou Bolsonaro na campanha. Apesar das críticas do presidente, dados do extinto Ministério da Cultura indicam que a Lei Rouanet representa apenas 0,3% das isenções fiscais brasileiras, mas tem um impacto importante na economia: para cada real investido, é gerado 1,59 real.

A atriz Fernanda Montenegro está convencida de que o desaparecimento do ministério prejudicará a produção teatral em particular. E está irritada, tanto que fez uma declaração no Domingão do Faustão: “Eles nos tratam como se fôssemos fora da lei”, disse em um dos programas de domingo de maior audiência da televisão brasileira. “Não somos ladrões da Lei Rouanet. Que procurem os verdadeiros corruptos deste país!”. A atriz sustenta que o presidente “acusou de maneira violenta” o pessoal do teatro porque a criticada lei é sua principal fonte de financiamento.

O cantor Gilberto Gil, que foi ministro da Cultura em um dos Governos Lula, lamenta o fechamento do ministério, porque acredita que o Brasil “teria mais condições de responder às demandas da cultura”, mas pondera que a política cultural sob Bolsonaro ainda é uma incógnita. “Vamos ver como a política cultural chegará ao Governo, qual será o grau de prestígio”, disse em entrevista à Folha de S.Paulo. Apesar de suas críticas e discursos, o presidente anunciou que manterá a polêmica Lei Rouanet, mas submetida a auditorias.


El País: Segunda posse de Maduro marca falência institucional da Venezuela

Presidente começa seu segundo com um país mergulhado em uma crise sem precedentes

Nicolás Maduro inicia seu segundo mandato nesta quinta-feira, um período presidencial que o manterá à frente do Governo venezuelano até 2025. A posse, indicada há meses como ponto de não retorno na gravíssima crise econômica e institucional que atravessa o país, de fato não representa novidade alguma para os cidadãos. Mas culmina a deriva do regime, que controla todos os estamentos do poder político e judiciário, e consuma uma ruptura aparentemente irremediável com as principais instâncias da comunidade internacional: Washington, Bruxelas e a maioria dos Governos da região. Maduro exibe, não obstante, o apoio de Rússia, China e Turquia, e o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, lhe deu um balão de oxigênio há uma semana ao rejeitar as sanções do Grupo de Lima.

Em maio, o sucessor de Hugo Chávez venceu eleições questionadas pela falta de garantias democráticas e observadores independentes. As forças majoritárias da oposição se recusaram a participar, provocando uma abstenção histórica de mais de 54%. O presidente, que assumiu o cargo em abril de 2013, buscava se legitimar diante do aumento da pressão e da deterioração dos direitos. Em resumo, começar um novo ciclo. Agora se formaliza o início dessa etapa, que começa precisamente com uma anomalia, um reflexo do que a Venezuela é hoje.

Maduro prestará juramento perante o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) em vez de fazê-lo na Assembleia Nacional, conforme estabelece a Constituição. A razão é que o Parlamento, com maioria da oposição, eleito em 2015, foi declarado em desacato, não existe mais para o Governo. Esse mesmo tribunal o despojou de suas funções e em julho de 2017, depois de três meses de protestos, que deixaram cerca de 150 mortos, foi realizada a eleição de uma Assembleia Nacional Constituinte na qual não têm assento representantes críticos em relação ao partido no poder. Na prática, é um órgão legislativo — presidido pelo número dois do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) — a serviço do Executivo.

“A revolução bolivariana não é um homem, é um povo que escolheu ser livre e está decidido a defender sua liberdade, custe o que custar, nada nem ninguém o impedirá. Em 10 de janeiro prestarei juramento pelo povo”, proclamou o presidente, que para tentar fazer frente às advertências e sanções anunciadas pelos Estados Unidos e pela União Europeia, brande o fantasma do inimigo externo. “O povo consciente e mobilizado está disposto a defender a soberania e a independência da pátria, pelo seu direito inalienável de ser livre. Só o povo salvar o povo!”, escreveu no Twitter.

A Venezuela está mergulhada em uma catástrofe econômica sem precedentes na qual aos problemas de escassez se juntam uma hiperinflação exorbitante — o Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê um aumento dos preços de 1.800.000% em dois anos — e uma dependência das classes populares das ajudas do Governo. Estas são algumas das causas de um êxodo que, de acordo com as Nações Unidas, se acelerou nos últimos meses e já soma três milhões de migrantes, dos quais mais de um milhão se estabeleceu na vizinha Colômbia.

Nesse contexto, Maduro, que em agosto sofreu um ataque de drones durante um ato militar, se empenha em demonstrar que tem o apoio de potências estrangeiras. “A Venezuela conta com um amplo apoio internacional e um povo consciente para vencer a perseguição econômica e as agressões contra a pátria. Não deterão nossa marcha rumo à prosperidade”, afirmou nesta quarta-feira. A realidade é que os efeitos dos acordos comerciais firmados com Rússia, China e Turquia por enquanto não foram notados e milhões de venezuelanos sobrevivem com um salário mínimo que ronda os cinco dólares.

“Traição à pátria”

A partir desta quinta-feira, além disso, ficarão rompidas as relações diplomáticas com pelo menos 13 países latino-americanos, os integrantes do chamado Grupo de Lima. Na região, o chavismo continua tendo o apoio do presidente boliviano, Evo Morales, do cubano Miguel Díaz-Canel e do nicaraguense Daniel Ortega. O México, no entanto, continua moderado e Andrés Manuel López Obrador insiste em uma saída negociada à crise, embora a oposição esteja desmobilizada ou na ilegalidade.

Os países do Grupo Lima, entre eles Colômbia, Brasil, Argentina, Canadá, Chile e Peru, proibirão a partir de sexta-feira a entrada em seus territórios de altos funcionários, começando com o próprio Maduro.  “Estamos avançando na concretização dessas medidas”, disse o ministro das Relações Exteriores da Colômbia, Carlos Holmes Trujillo. Entre elas, figura a de “exortar outros membros da comunidade internacional a adotarem medidas semelhantes contra o regime de Maduro em favor da restauração da democracia”. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro também se manifestou diversas vezes contrariamente a Maduro. Mas o PT, partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que perdeu a eleição em outubro, enviará sua presidenta para a cerimônia. "Somos solidários à posição do governo mexicano e de outros Estados latino-americanos que recusaram claramente a posição do chamado Grupo de Lima, abertamente alinhada com a postura belicista da Casa Branca", afirmou Gleisi Hoffmann em uma nota.

O Governo venezuelano respondeu com uma ameaça dirigida aos líderes da oposição e legisladores da Assembleia Nacional. A Constituinte ordenou ao Tribunal Supremo de Justiça e ao Ministério Público a abertura de uma “investigação imediata por traição à pátria a todos aqueles que se dobraram à declaração do mal chamado Grupo de Lima”. As condenações para esse crime podem chegar a 30 anos de prisão.


Adam Tooze: “Bolsonaro é terrível, mas é a Itália que poderia quebrar a economia mundial”

Economista britânico Adam Tooze analisa os riscos da ascensão do populismo nas Américas e na Europa

Por Carmen Pérez-Lanzac, do El País

Adam Tooze, de 51 anos, é autor de um dos livros de 2018: Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World (Crashed: Como uma Década de Crise Financeira Mudou o Mundo). Seu estudo de 750 páginas sobre a falência do Lehman Brothers e o colapso financeiro que desencadeou se destaca pela clareza entre os que foram publicados sobre o assunto em 2018, no décimo aniversário do desastre.

Britânico, embora criado na Alemanha, fez doutorado em História Econômica na prestigiosa London School of Economics e lecionou nas universidades de Cambridge e Yale. Agora o faz na de Columbia, em Nova York. Uma curiosidade de sua árvore genealógica: é neto do inglês Arthur Henry Ashford Wynn, comunista e recrutador de espiões para a KGB em Oxford. Tooze fica incomodado quando é solicitado a dar detalhes sobre sua relação com o “agente Scott”. Conta que pediu aos serviços secretos do Reino Unido e da Rússia que lhe enviassem seus arquivos com informações. Tanto o avô quanto a avó, que falavam várias línguas e liam diariamente a imprensa internacional, contribuíram para que Tooze se reconhecesse como cidadão europeu mais do que como britânico.

Em Crashed, primeiro mergulha nas causas da crise, demonstrando como o sistema financeiro europeu e o norte-americano estavam podres e em seguida continua detalhando as consequências do colapso. Tooze concedeu esta entrevista na sede da Fundação Rafael del Pino, em Madri. É provavelmente uma das pessoas que, quando um banco central eleva ou reduz o preço do dinheiro, melhor entenda o que se desencadeia em seguida. Ele é alto, e vestia um terno impecável, sem gravata e com o cabelo um tanto despenteado. Em suas respostas, modula o tom de voz passando do entusiasmo à monotonia. Se poderia dizer que dessa maneira dá pistas sobre quais perguntas aprecia e quais não tanto.

Pergunta. Estar ciente das consequências de cada decisão econômica que um Governo toma é um dom ou todo o contrário?
Resposta. Não tenho isso claro. Depois de estudar cuidadosamente o que aconteceu depois da Primeira Guerra Mundial, começou a ser difícil para eu pensar em política ou economia sem ver as consequências de cada coisa, com sua duração e profundidade. Mas isso implica estar disposto a ler e ler e querer ter o conhecimento suficiente para contar o que acontece. Para mim, tornou-se um modo de vida. O que eu faço basicamente é filtrar tudo o que fui lendo, temperando-o com meus conhecimentos em história econômica mundial. Minha formação em macroeconomia me permite chegar a conclusões políticas.

P. O senhor acredita que a política europeia está mais conectada do que parece?
R. Estou convencido disso. Se você observar como a crise se desenvolveu, fica claro. Talvez esteja nas mãos das elites e não afete igualmente todos os cidadãos, mas tanto os leitores do EL PAÍS quanto os do Le Monde ou do Financial Times estão observando o que acontece na Catalunha, na Itália com a Liga Norte ou na Alemanha com as eleições na Baviera... Tudo está registrado no sismógrafo do que acontece na Europa. Não devemos subestimar o impacto que a história e a globalização têm na maneira como nos relacionamos com o mundo. Talvez não tenhamos consciência disso porque é algo que não escolhemos, mas acontece.

P. Devemos ficar tranquilos com as mudanças que foram feitas para evitar outro desastre como o de 2008?
R. No nível bancário, a estrutura permanece a mesma, embora o risco de um banco quebrar agora seja muito menor e o mercado no qual essas entidades podem pedir fundos de curto prazo se restringiu. Tecnicamente, estamos mais protegidos do que há 10 anos.

P. Mas...
R. Por um lado, Trump iniciou um plano para reduzir as regulamentações bancárias que foram lançadas após a crise. Por outro, não sabemos o que pode acontecer. Falta-nos informação interna de cerca de 50 bancos norte-americanos e de cerca de 20 de fora, bem como das relações de cada um deles com os reguladores. As relações podem ser tensas, ou todo o contrário, como acontece agora nos EUA. Lá os reguladores estão com as mãos atadas e os últimos testes de resistência parecem aos bancos mais um brinde ao sol. Até a próxima crise não saberemos se estamos suficientemente protegidos.

P. Em Madri e em Barcelona, o mercado imobiliário está experimentando um aumento alarmante de preços; por outro lado, no resto da Espanha, os preços nem chegam perto.
R. A desigualdade é um assunto tanto na Europa quanto nos EUA. Algumas regiões não crescem desde 2008, mas outras sim, e muito. Um dos problemas atuais é como você se organiza com países que crescem completamente divididos. Porque a taxa de juros e a política fiscal que funcionam para uma parte não funcionam para a outra.

P. E o que faria se dependesse do senhor?
R. O que necessitamos é de uma União Europeia que funcione, com um Banco Central que funcione com uma moeda que sirva de alternativa ao dólar. No final, quem concede liquidez ao planeta é o Federal Reserve (o Banco Central) dos Estados Unidos. Eles não escolheram isso, mas o fato é que é a moeda que a maioria dos países usa. Eles sempre têm dúvidas sobre se suas decisões acabarão causando um efeito rebote em sua própria economia, por isso aumentaram tanto a torneira do crédito depois da crise.

P. A direita está ganhando espaço em todo o planeta. Para onde estamos indo?
R. Você tem que olhar o mapa-múndi. A eleição de Bolsonaro no Brasil é terrível, mas não representa um problema para a economia mundial. Em relação à Rússia já sabemos o que está acontecendo. A Itália poderia quebrar o sistema. É a quarta economia europeia, com uma enorme dívida com muitos bancos da zona do euro. Se sua a qualificação cair, os europeus perderiam o controle da situação. E nos Estados Unidos temos Trump, o maior risco para o planeta. Até agora, o setor que mais influenciou é o comércio, mas as crises mundiais não são desencadeadas por aí. O que ele fez foi dizer ao Fed para reduzir o crescimento das taxas de juros, o que ajudará o resto do planeta. Não parece que Trump, por enquanto, esteja rompendo o pacto.

P. O que o senhor buscava com este livro?
R. Que a Europa e os Estados Unidos entendessem sua inter-relação e interdependência. Há momentos em que o mundo precisa de um líder. Os Estados Unidos, financeiramente, trazem uma estabilidade incrível para a economia mundial. Nenhuma das duas partes costuma mencionar isso e têm pouco reconhecimento por isso, mas o Federal Reserve deu 2,5 trilhões de liquidez ao sistema bancário europeu e outros 2 trilhões aos bancos europeus ali estabelecidos. Mas não lhe interessa contar essa história aos norte-americanos, nem os bancos europeus querem contá-la aos seus Governos, que por sua vez tampouco querem reconhecê-la perante os cidadãos. A globalização financeira até 2008 foi um eufemismo para a integração entre os EUA e a Europa. E continua sem existir um quadro político que articule isso.


El País: Chavismo deixa rastro de corrupção em duas décadas de revolução bolivariana

A Venezuela é percebida como o país mais corrupto da América Latina. Legisladores estimam que o dano patrimonial chegue a 450 bilhões de dólares

Por Maolis Castro e Florantonia Singer, do El País

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, diz que nenhum governo do mundo combate a corrupção como o dele. Sua conclusão contrasta com os indicadores da Transparência Internacional, que situam a Venezuela como o país mais corrupto da América Latina. Mercedes de Freitas, diretora da ONG em Caracas, deduz que foi instalado um modelo com os “elementos de uma cleptocracia” no país. “Há evidências de que a crise econômica seja uma consequência da malversação de fundos públicos”, explica.

Maduro afirmou que essa percepção não passa de ataques da oposição. “Não existe, na história da Venezuela, um processo e um governo que tenham combatido a corrupção, em seu caráter estrutural, com maior rigor que a revolução bolivariana e os Governos de Hugo Chávez e meu. Não ignoro que uma das frentes de ataque de nossos adversários contra nós consiste em nos acusar de frouxidão com respeito à corrupção. É absolutamente falso”, disse Maduro numa entrevista feita pelo jornalista espanhol Ignacio Ramonet e difundida na última terça-feira.

Mas a fama ruim é global. De fato, a Rede de Execução de Crimes Financeiros do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos emitiu, em setembro de 2017, um alerta às instituições financeiras sobre a “corrupção pública generalizada” que impera no país sul-americano.

O Legislativo faz um cálculo sobre o dano patrimonial gerado pela corrupção em 19 anos da autodenominada revolução bolivariana. “Só nos casos de corrupção conhecidos, pode-se dizer que as perdas chegam a 450 bilhões de dólares (oito vezes o orçamento da Venezuela em 2012, o mais alto). Mas essa é a ponta do iceberg, pois cada vez mais escândalos vêm à tona. É inegável que a corrupção é a causa da crise econômica”, diz Freddy Superlano, chefe da Comissão de Controladoria do Parlamento.

A acusação é dirigida ao Governo. O sistema de controle cambial, imposto em 2003 e ainda vigente, está vinculado a um esquema de fraude. Em 2014, Jorge Giordani, ex-ministro do Planejamento dos Governos de Chávez e do próprio Maduro, denunciou que pelo menos 25 milhões de dólares (92,5 milhões de reais) concedidos pela extinta Comissão Nacional de Administração de Divisas (Cadivi) a empresas participantes da rede de corrupção ou fora de operação foram desviados a contas privadas. Pelo esquema, firmas de fachada, sem trajetória e com sede em paraísos fiscais pediam divisas ao Estado venezuelano com preços preferenciais para supostas importações ou serviços. Após obterem grandes quantias alavancadas por funcionários do Governo, contudo, elas não respondiam pelo dinheiro.

A malversação de fundos é ampla. No final de novembro, uma reportagem do EL PAÍS revelou que uma investigação interna da estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA) envolve vários de seus ex-diretores numa fraude à companhia de pelo menos 500 milhões de dólares (1,8 bilhão de reais). Os funcionários teriam concedido contratos de compra de material para suas próprias sociedades, maquiado licitações em benefício próprio e lavado o dinheiro na Espanha.

O promotor Tarek William Saab, designado pela chavista Constituinte, prometeu ser “implacável” com a corrupção, mas ainda não se pronunciou sobre a acusação da Justiça dos EUA contra o empresário Raúl Gorrín, dono da TV Globovisión e vinculado ao Governo. Tampouco investigou denúncias contra Maduro. Segundo Euzenando Azevedo, ex-chefe da Odebrecht na Venezuela, a empreiteira teria dado 35 milhões de dólares (130 milhões de reais) a Maduro para financiar sua campanha presidencial de 2013, como candidato indicado pelo falecido presidente Chávez, em troca de substanciosos contratos no país.

Em contraste, Saab pediu à Interpol a captura de opositores e delatores como o ex-presidente da PDVSA Rafael Ramírez, do ex-tesoureiro Alejandro Andrade e de Claudia Díaz Guillén, uma enfermeira de Chávez acusada na Espanha de lavar dinheiro com seu esposo Adrián Velázquez, antigo chefe da segurança presidencial.

Além disso, a Justiça da Venezuela se tornou seletiva. Luisa Ortega Díaz, procuradora-geral do país, precisou fugir no ano passado por denunciar a repressão nos protestos contra o Governo e outras irregularidades cometidas por Maduro. Seus principais aliados também estão no exílio. Entre eles Zair Mundaray, ex-diretor de Atuação Processual do Ministério Público (2016-2017), que agora denuncia o enriquecimento de funcionários públicos. “Investigamos uma série de operações da Tesouraria com a compra de títulos do Reino Unido e sua revenda no mercado internacional, feitas por empresários aliados do Governo e nas quais a Venezuela perdeu muito dinheiro, porque dali saíram muitas riquezas, incluindo a da enfermeira Claudia Díaz. Pedimos uma ordem de prisão contra ela, mas foi revogada por um tribunal em 2016”, relata.

Apesar das travas, Mundaray diz que conseguiu confiscar duas pousadas, 13 carros e duas coberturas em Caracas. As propriedades da enfermeira foram adquiridas quando ela ganhava o equivalente a seis salários mínimos na Venezuela. “Claudia Díaz faz parte da rede original do saque à Tesouraria, e muitas fortunas surgiram dali. Por isso pediram a extradição, para evitar que mais pessoas falem com o Departamento de Justiça dos EUA”, afirma.

O ex-promotor diz que o modelo econômico instalado pelo chavismo, baseado no controle cambial como uma grande centrífuga de corrupção, e que recebeu abundantes recursos durante uma década de altos preços do petróleo, somou-se a outro elemento: o controle do Poder Judiciário com a chegada de Hugo Chávez, o que propiciou a impunidade e favoreceu o crime. “Qualquer investigação que for feita baterá contra um juiz” afirma.

O DILEMA DAS SANÇÕES

Com o envio de provas e informações ao Departamento de Estado dos EUA, Alejandro Rebolledo, advogado especialista em prevenção de legitimação de capitais, impulsiona há três anos as sanções contra altos funcionários do Governo, militares e empresários envolvidos em crimes na Venezuela.

No exílio, o jurista acusa o chavismo de estimular negócios ilegais em conjunto com “máfias” internacionais que supostamente penetraram no sistema financeiro através de estruturas nos EUA, Europa, Ásia e Emirados Árabes Unidos, auxiliadas por empresários, banqueiros e especialistas em lavagem de dinheiro. Por isso, ele propõe sanções contra funcionários e aliados do regime para enfrentar a malversação de fundos, embora o presidente Maduro denuncie que as restrições tenham gerado a perda de 20 bilhões de dólares (74 bilhões de reais) para o país em 2018 e diga que se trata de uma perseguição dos EUA. Segundo Rebolledo, o mecanismo abre a possibilidade de recuperar o patrimônio perdido assim que for “restabelecida a democracia” no país. “Todos os dias ouvimos notícias de investigações sobre lavagem de dinheiro. Isso não acaba”, afirma.

Mas o advogado não descarta que as sanções contra os altos funcionários propiciem operações de lavagem de dinheiro dentro do país. “Quem imagina que seu dinheiro possa ser congelado e bloqueado o investe na Venezuela: compra edifícios, terrenos, casas. É uma das leituras sobre as sanções contra o regime”, diz ele.


El País: “Criticar ‘ideologia de gênero’ dá permissão ao Estado para atacar um grupo social”, diz Javier Corrales

Cientista político traça paralelos entre Chávez e Bolsonaro e adverte à oposição brasileira: "Se não conseguirem tomar o poder no Congresso, perdem o jogo"

Por Flávia Marreiro, do El País

O cientista político Javier Corrales, do Amherst College, em Massachusetts, lançou há quase uma década Dragon in the Tropics (Dragão nos Trópicos), um livro que mostrava como Hugo Chávez estava, pouco a pouco, afrouxando o sistemas de pesos e contrapesos da democracia assim como Vladimir Putin fazia na Rússia. De lá para cá, o fenômeno que ele chamava de regimes híbridos ou "democracias iliberais" só cresceu. No ano passado, o professor lançou um segundo livro, Fixing Democracy (Oxford Press, 2018), sobre as reformas constitucionais na América Latina nos últimos anos e seus impactos.

É com essa ampla lente comparativa que Corrales analisa agora a chegada ao poder de Jair Bolsonaro. Ele não duvida em traçar paralelos entre o militar reformado brasileiro e o líder venezuelano morto em 2013. "Bolsonaro e Chávez acham que seus mandatos são para agradar seus seguidores e castigar e ignorar seus opositores", afirmou em entrevista por e-mail, horas antes da posse do presidente ultradireitista.

“Criticar ‘ideologia de gênero’ dá permissão ao Estado para atacar um grupo social” Assine nossa newsletter diária: mais jornalismo para um ano sem precedentes
O professor, que também estuda a mobilização por direitos LGBT na América Latina, diz que a retórica usada pelo novo Governo brasileiro contra a "ideologia de gênero", um termo pejorativo para iniciativas de promoção da diversidade sexual e de gênero, não deve ser minimizada. "Quando se critica a 'ideologia de gênero', se declara um grupo nacional como inimigo".

Pergunta. O senhor e outros acadêmicos já apontaram semelhanças entre Chávez e Bolsonaro, especialmente a maneira como chegaram ao poder e os discursos de “a minoria deve ser curvar à maioria". Vê um novo dragão nos trópicos, com vontade de afrouxar pesos e contrapesos?

Resposta. Existem muitas diferenças, sem dúvida, mas há muitas semelhanças. Comecemos com as semelhanças. A semelhança principal é que são movimentos que não colocam a democracia liberal como prioridade. Democracia liberal significa respeito aos freios e contrapesos que são responsabilidade do poder executivo e respeito à oposição. Bolsonaro e Chávez não acham que o propósito de seus mandatos é fortalecer a democracia liberal. Acham que seus mandatos são para agradar seus seguidores e castigar e ignorar seus opositores. Outra semelhança é uma agressividade aberta contra o status quo, contra tudo o que foi feito no passado, e vontade de refundar o sistema político. Isso os leva a ser mais impacientes com a questão da reforma e a querer se impor. Existe também um desejo de romantizar o papel das Forças Armadas. Chávez desde o começo falou de uma aliança cívico-militar. Foi horrível ver a esquerda da Venezuela e da América Latina ser tão tolerante com a mensagem tão militaróide de Chávez. Para Bolsonaro, a aliança cívico-militar proposta terá propósitos diferentes (combater a criminalidade, enquanto para Chávez era impulsionar e melhorar a prestação de serviços por parte do Estado), mas na hora da verdade, eram movimentos alinhados às forças de segurança. Por último, os dois movimentos enfatizam muito a luta contra a corrupção. Colocam a culpa pela corrupção na ideologia e nos partidos anteriores, e não à falta de freios e contrapesos. Ou seja, para Chávez, a corrupção da Venezuela era produto do neoliberalismo, que em si, era produto de partidos em decadência. Para Bolsonaro, a corrupção é produto do esquerdismo, e certamente do PT em decadência. A solução, portanto, é exterminar essas ideologias / partidos. Não é criar sistemas de freios e contrapesos ao executivo.

P. E as diferenças?

R. A primeira é que Bolsonaro procura melhor relação com os EUA. Isso irá fortalecê-lo. Bolsonaro também tem uma equipe econômica melhor do que a de Chávez, apesar de existirem divisões internas. Bolsonaro tem mais apoio dos evangélicos, que são mais fortes no Brasil do que eram na Venezuela há 20 anos. Essas são as diferenças que ajudarão Bolsonaro. As diferenças que irão enfraquecer Bolsonaro estão relacionadas às instituições, que não estão desprestigiadas no Brasil como eram na Venezuela em 1999, após duas décadas de crises econômicas profundas. A outra diferença é que a oposição a Chávez praticamente acabou na eleição presidencial de 1998 e durante o período da assembleia constituinte de 1999 na Venezuela. Ela se fragmentou demais e muitos aderiram ao chavismo. No Brasil, Bolsonaro tem uma oposição forte. O PT perdeu as eleições, mas não acabou. Há um melhor entendimento no Brasil hoje dos perigos de se perder a democracia liberal do que existia na Venezuela em 1999, quando as pessoas pensavam que a democracia participativa era melhor do que a liberal. Por fim, Bolsonaro nunca terá uma mina de ouro, como é a indústria do petróleo na Venezuela, em poder do Estado e que foi transformada por Chávez em seu talão de cheques pessoal.

P. O senhor diz que essa aliança entre evangélicos e partidos de direita é um "casamento perfeito" não só no Brasil e está revolucionando a balança da política na região, por dar à direita um caminho para acessar os eleitores mais pobres. O que é o "modelo brasileiro" e por que é tão bem-sucedido?

R. Porque no Brasil os evangélicos fazem tudo o que se espera das ONGs mais bem-sucedidas e muito mais. Têm presença em todos os setores da sociedade, de pobres a ricos, brancos e não brancos, urbanos e não urbanos. Prestam serviços sociais aos seus fiéis, com os quais recebem muitos agradecimentos por parte deles. Predicam sua mensagem semanal, e quase sem ser criticados dentro de seus âmbitos de discussão - não há pluralismo interno. Mobilizam enormes recursos econômicos quase sem prestar contas. Eles se uniram em relação a várias questões fundamentais: sexualidade, criminalidade, o que lhes dá força política. Têm presença nas redes sociais e na imprensa. Além disso, têm presença no Congresso, que é muito mais do que conquistaram os evangélicos no restante da América do Sul.

P. Qual o papel dos católicos e do papa Francisco nisso?

R. O Brasil tem uma tradição de católicos progressistas, que agora precisa coexistir com o renascer de um catolicismo mais conservador, mais evangélico, menos tolerante com a diversidade. Acho que o Governo de Bolsonaro dividirá os católicos mais do que qualquer outra religião.

P. Existem sinais de que o novo Governo irá explorar mensagens religiosas de maneira muito central. Essa cruzada tem potencial para afetar os direitos já conquistados da comunidade LGBT e das mulheres?

R. Acho que sim. Por todos os lados vemos mensagens contra a "ideologia de gênero". É preciso ser claro. Quando se critica a "ideologia de gênero", se declara um grupo nacional como inimigo: aquele que representa e defende a diversidade de gênero e sexual. Para mim, criticar a "ideologia de gênero" ocupa o mesmo lugar que a questão dos “imigrantes ilegais” de Trump. Dá permissão ao Estado para atacar esse grupo. Virá um ataque no Brasil contra feministas e grupos pró LGBT, que será um ataque defendido por setores religiosos.

P. Antes de ser uma questão mainstream, o senhor estudou os “regimes híbridos”, como os de Chávez e Putin. De seu livro para cá, o fenômeno só cresceu. De onde vem essa onda “iliberal”? Existem fatores que os unem atravessando territórios e espectros ideológicos?

R. Acho que a questão se espalhou por duas razões: primeiro, a maneira como os regimes híbridos crescem. Esses governos não suspendem a democracia liberal de uma vez, o que seria escandaloso em todos os lugares. Eles o fazem, como diz a canção, despacito (devagarzinho). E além disso, o fazem com medidas complementares, como gostam, e que alguns chamam de participativas. Ou seja, tiram e põem simultaneamente. Chávez concentrava poder, mas gastava em programas sociais. Muita gente, portanto, não vê claramente a gravidade do assunto da erosão do sistema de freios e contrapeso no começo. É um pouco como a velhice. As pessoas não se dão conta do que acontece enquanto está acontecendo.

Outra razão é que os regimes iliberais geram polarização, e essa polarização no final acaba ajudando o poder executivo. No começo, a polarização enfraquece esses regimes, mas depois os ajuda. E essa é a explicação. Os partidos da oposição se tornam aborrecidos. A única coisa que fazem é criticar, criticar e criticar. O que é necessário. Mas as pessoas se cansam de tanta crítica. Além disso, começam a se dividir entre quanto criticar, o que criticar e, certamente, sobre o que fazer. Vemos então que nos regimes híbridos há um ponto em que a oposição, mesmo começando forte, começa a se dividir, a gerar repúdio, e termina se enfraquecendo. Se não conseguirem tomar o poder no Congresso, perdem o jogo.


El País: As meninas em uma crise humanitária

Reconhecer o direito à vida digna de uma menina nômade é reconhecer como sua sobrevivência depende da proteção de seus direitos sexuais e reprodutivos

Por Débora Diniz e Giselle Carino, do El País

Quando falamos em crise humanitária, nossa imaginação é curta para ter a América Latina e o Caribe no mapa global. A lista tem tsunamis na Indonésia ou conflito armado na Síria. Não há Haiti pós-terremoto, Nicarágua em conflito armado, Porto Rico ainda no chão após o furacão Maria ou os milhares de caminhantes venezuelanos que atravessam a fronteira do norte da Colômbia todos os dias. As crianças aprisionadas na fronteira entre o México e o Estados Unidos foram as que ascenderam à comoção internacional, sem que a elas seja concedido o título de vítimas de uma tragédia humanitária. Um dos principais desafios para 2019 é incluir a América Latina e Caribe na geopolítica global das crises humanitárias.

Nomear uma crise humanitária exige pensar as causas, antecipar soluções e apresentar-se às suas vítimas. As tragédias ambientais ou políticas recebem nome, como foi o furacão Maria ou o populismo na Venezuela, mas as vítimas são aglomeradas em estatísticas populacionais. São mais de mil caminhantes os que atravessam a fronteira da Venezuela e da Colômbia diariamente em Alta Guajira — a cena é de um desamparo inesquecível. Muitas são famílias indígenas Wayuu que carregam o que podem pelo nomadismo sem fronteiras. Nem tanto venezuelanos ou colombianos, os indivíduos transitam entre um lado e outro à espera que sejam protegidos ou reconhecidos por um ou outro país. Se estima que metade dos caminhantes diários sejam indígenas.

Os caminhantes são o corpo do desamparo imposto por uma crise humanitária. É gente que antes tinha teto, trabalho, nome e sobrenome. Peregrinam para sobreviver — por isso, caminham. Os caminhantes da Venezuela são nômades que atravessam a fronteira da Colômbia ou do Brasil. Os que escolhem a região andina seguem marcha até o Chile e Argentina, mas alguns param pelo caminho. Os que arriscam o Brasil vivem em campos de confinamento, em um país pouco cuidador aos refugiados ou desalojados forçados. Tomamos a missão como um fardo ou favor.

Os campos de refugiados são espaços complexos à imaginação política nacionalista que não reconhece os caminhantes como gente em busca de amparo existencial. Essas pessoas são definidas como “sem estado, ou seja, vivem em uma espécie de purgatório terrestre, como se ninguém tivesse o dever de reconhecê-las ou protegê-las. Na multidão nômade das crises humanitárias, há populações mais vulneráveis que outras. Uma delas são as meninas e mulheres — são as que mais tardiamente iniciam a fuga dos espaços de risco e quando migram seus riscos são semelhantes aos contextos de conflito armado, em que a violência e o estupro são práticas comuns. Conhecemos mulheres na ponte da travessia em Alta Guajira, na Colômbia, que, no trajeto sem rumo, engravidavam e batiam à porta de nossas clínicas para realizar um aborto legal por estupro. Conhecemos outras milhares que chegaram em busca de anticoncepção, escapando da fome e da desesperança, imaginando um futuro sem rumo.

A dramática conexão entre migração, gênero e saúde foi descrita em um relatório recente da prestigiosa revista acadêmica The Lancet. No marco de crises humanitárias de migração forçada, refugiados e desalojados podem se diferenciar pelas causas que provocam o deslocamento, mas se assemelham na insegurança vivida para sobreviver típica dos peregrinos involuntários. Somente na região conhecida como o triângulo norte da América Central (El Salvador, Guatemala e Honduras) se estima que 215.000 pessoas se puseram em marcha no primeiro semestre de 2017, um número que aumentou em 2018. Ainda sabemos pouco como sobrevivem as meninas nesta multidão de gente que caminha, como fazem para sobreviver ao trauma de um estupro ou de uma gravidez forçada.

Se ignoramos que há crise humanitária em nossa região, somos incapazes de imaginar quais vítimas são mais vulneráveis. Se a todos os peregrinos involuntários as causas da crise podem ser compartilhadas — como mudanças climáticas, corrupção política ou violência do Estado — as formas de cuidado e enfrentamento do desamparo são específicas às mulheres e meninas em nomadismo forçado. Reconhecer o direito à vida digna de uma menina nômade é reconhecer como sua sobrevivência depende da proteção de seus direitos sexuais e reprodutivos. Não é um corpo que caminha, é uma menina que carrega consigo o desamparo prévio imposto pela desigualdade de gênero que define os efeitos das crises humanitárias em nossa região.

 


El País: Por que a guerra de Bolsonaro contra a mídia prejudica a imagem do Brasil no mundo

O capitão reformado chegou à chefia de Estado com uma imagem internacional negativa, e isso não o ajuda a ampliar relações políticas e comerciais

Alguém deveria explicar ao presidente Jair Bolsonaro que sua guerra inútil contra os meios tradicionais de comunicação acabará prejudicando gravemente a imagem do Brasil no mundo. Acreditar que alguém em uma democracia pode governar só com as redes sociais é um erro pelo qual os políticos pagarão caro. Nenhum presidente nem chefe de Governo se manteria no poder contra os jornais e redes de televisão nacionais. Até os ditadores que silenciaram ou censuraram os meios de comunicação que os criticavam mimaram os que lhes eram fiéis.

O Brasil já viveu, no primeiro Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, um confronto com o então correspondente do The New York Times no Brasil, Larry Rohter. Depois que o jornalista denunciou os excessos etílicos do popular presidente, Lula quis expulsá-lo do país. O então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, um dos personagens mais inteligentes de seu Governo, aconselhou Lula a não expulsar o jornalista norte-americano. Mesmo assim, a notícia correu o mundo, criando a primeira sombra sobre o caráter democrático do Governo progressista brasileiro.

Sem negar os méritos do ex-presidente sindicalista, que foram muitos, ele nunca teria tido a imagem positiva que teve internacionalmente sem a ajuda dos meios tradicionais de informação, que são os que criam a imagem de um país fora de suas fronteiras. Bolsonaro deve saber que sua política como candidato, centrada nas redes sociais, não poderá ser a mesma no Planalto, onde sua imagem tem projeção no mundo.

O capitão reformado chegou à chefia de Estado com uma imagem internacional negativa. Foi apresentado ao mundo como um ultradireitista autoritário com saudade da ditadura, cercado de generais e com tentações teocráticas, colocando, em um país laico como o Brasil, Deus como guia de seus passos. Essa imagem não o ajuda a ampliar relações políticas e comerciais com as grandes democracias mundiais.

Não adianta citar como exemplo o presidente norte-americano, Donald Trump, que também tenta governar com as redes sociais, em luta contra os meios tradicionais de informação. O presidente norte-americano não é Bolsonaro, e os Estados Unidos não são o Brasil. No caso dos EUA, estamos falando da maior potência mundial e de uma democracia com instituições fortes, capazes de desafiar as piores loucuras de seus presidentes.

O Brasil, apesar de ser um país continental, não deixa de ser um país periférico no planeta que precisa estabelecer relações positivas com os países que hoje contam no mundo. E para isso Bolsonaro vai precisar desfazer a imagem negativa com a qual chegou ao Planalto. Não conseguirá isso, no entanto, em guerra contra os meios de comunicação. Não se pode esquecer que o declino tanto de Lula como do PT começou com a tentação do fatídico “controle social” da mídia, um eufemismo para tentar impor a censura. Chegou-se a planejar até uma cartilha com pontos positivos e negativos dados a cada jornalista por um conselho criado pelo Governo. Foi Dilma Rousseff, quando chegou ao Planalto, quem abandonou aquele projeto, depois de afirmar em seu discurso de posse que ela não só não iria impor nenhum controle sobre a mídia, como preferia “o barulho da imprensa livre ao silêncio das ditaduras”.

O barulho da imprensa, ou seja, o controle crítico dos governantes, sempre incomoda um Governo, mas também o faz crescer. O que o leva à morte é o silêncio provocado pelo medo da transparência, um dever sagrado em relação àqueles que o elegeram para governar à luz do sol e não na escuridão dos esgotos da prevaricação e até da mentira. Bolsonaro e seu novo Governo ainda estão a tempo de evitar esse perigoso desafio aos meios de comunicação governando sem medo do escrutínio público de seus atos.


El País: “Brasil tem direitos em excesso. A ideia é aprofundar a reforma trabalhista”, diz Bolsonaro

Proposta de campanha inclui carteira de trabalho “verde e amarela” que, segundo especialistas, vai precarizar ainda mais o trabalho

Em sua primeira entrevista concedida como presidente, Jair Bolsonaro reafirmou sua visão de que é preciso aprofundar a reforma trabalhista aprovada pelo Governo Temer: “O Brasil é o país dos direitos em excesso, mas faltam empregos. Olha os Estados Unidos, eles quase não têm direitos. A ideia é aprofundar a reforma trabalhista”, afirmou a jornalistas do canal SBT.

O discurso explícito sobre a necessidade de mudanças nas regras trabalhistas é uma relativa novidade no cenário político, já que propostas de mudanças mais profundas na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), originalmente de 1943, costumava provocar reações negativas.

Com o bolsonarismo, no entanto, a questão não é tabu e foi explorada na campanha. Uma pista para uma maior aceitação do tema apareceu em uma pesquisa Datafolha de setembro: num país com 13,2 milhões de desempregados, metade dos eleitores afirmaram preferir ser autônomo, com salários mais altos e pagando menos impostos, ainda que sem benefícios trabalhistas, contra 43% que preferiram ter a carteira de trabalho registrada, com todos os direitos previstos na lei.

Em dezembro, o então presidente eleito havia sido incisivo ao dizer que a legislação trabalhista teria "que se aproximar da informalidade" para que empregos pudessem ser gerados. Em outras ocasiões, Bolsonaro já havia falado sobre o "tormento" de ser patrão no país, algo que repetiu em teor semelhante nesta quinta: "Eu não quero, eu podia ter uma micro empresa com cinco funcionários. Não tenho por quê? Eu sei das consequências depois se o meu negócio der errado, se eu mandar alguém embora, entre outras coisas. Devemos mudar isso daí". Por fim, o presidente faz ataques contumazes atacou o Ministério Público do Trabalho, cujas atribuições incluem fiscalizar trabalho em condições análogas à escravidão, trabalho infantil e outras irregularidades, e a própria existência da Justiça do Trabalho. "O Ministério Público do Trabalho. Pelo amor de Deus, se tiver clima a gente resolve esse problema. Não dá mais para continuar – quem produz sendo vítimas de ações de uma minoria, mas de uma minoria atuante", afirmou o capitão.

Carteira "verde e amarela"
Esta proposta aumenta a desigualdade e impede que o motor do consumo possa ser um ente dinamizador da economia

Ainda não está completamente claro como o Governo Bolsonaro pretende mexer na questão e se ela será tão prioritária como a reforma da Previdência. Durante a campanha, a proposta de criar uma carteira de trabalho alternativa, "verde e amarela", foi apresentada como um dos grandes trunfos do plano de Governo para resolver o problema do desemprego. Além da capa inovadora, nas cores da bandeira nacional ao invés da tradicional azul-escuro, o documento contemplaria novas regras para um regime de trabalho “flexibilizado” – e, pela legislação vigente, contrário à Constituição Federal e à CLT. Paulo Guedes, o poderoso ministro da Econômica do Governo Bolsonaro, já adiantou que estes contratos que sua pasta pretende criar "não têm encargos trabalhistas e a legislação é como em qualquer lugar do mundo: se for perturbado no trabalho, você vai à Justiça e resolve". No discurso de posse, nesta quarta, Guedes disse que estes contratos vão “libertar” o trabalhador da “legislação fascista” da CLT.

No plano de Governo apresentado na campanha, a proposta de mudança nos regimes de trabalho não é esmiuçada - apesar da magnitude da medida, são dedicadas a ela cinco linhas no programa. Mas, de acordo com Guedes, caberá ao jovem optar por qual regime de trabalho ele quer: "Porta da esquerda tem sindicato, legislação trabalhista para proteger e encargos. Porta da direita tem contas individuais e não mistura assistência com Previdência". Em entrevista à Globo News em outubro, Guedes deu alguns detalhes de sua proposta, e afirmou que o FGTS como “mecanismo de acumulação” será extinto neste regime. Estas alterações vão de encontro ao artigo 7º da Constituição Federal, que trata dos direitos trabalhistas, logo sua implementação dependeria de forte base no Congresso para aprovar, por exemplo, uma Proposta de Emenda à Constituição.

Desde antes de ser eleito Bolsonaro já vinha sinalizando que um tempo com menos direitos poderia estar no horizonte do trabalhador brasileiro como uma espécie de remédio amargo para a criação de empregos. "O que o empresariado tem dito pra mim, e eu concordo, é o seguinte: o trabalhador vai ter que viver esse dia: menos direitos e [com mais] emprego, ou todos os direitos e desemprego”, afirmou o presidenciável. A alteração exigiria mudanças na legislação que não foram feitas na reforma trabalhista, aprovada no Senado em julho de 2017 e sancionada pelo presidente Michel Temer.

Causa e efeito
A proposta bolsonarista não foi vista com bons olhos por economistas em um cenário de crise e falta de investimentos. “Essa medida parte do pressuposto equivocado de que a contratação se dá por conta do custo de mão de obra. As empresas não contratam porque é barato ou caro, mas sim porque a economia está demandando”, explica Antônio Correa de Lacerda, economista da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “A solução é fazer a economia crescer, e não achar que um ajuste fiscal por si só provoca um aumento da confiança. É preciso investimento do Estado e financiamento à atividade econômica, isso gera emprego de qualidade”.

Ruy Braga, especialista em sociologia do trabalho da Universidade de São Paulo, também concorda que no momento atual uma flexibilização dos contratos não surtiria o efeito desejado. “Você tem hoje no país uma taxa alta de desemprego por uma combinação de crise econômica com supercapacidade das empresas. O que cria emprego não é rebaixamento dos contratos, é investimento público e privado”, afirma. “Por que um empresário vai ampliar sua planta se não está nem usando toda a capacidade? Esta proposta aumenta a desigualdade e impede que o motor do consumo possa ser um ente dinamizador da economia. Uma proposta como essa não resolve o problema do investimento e piora a situação ao não oferecer ampliação do emprego”.

Além de não resolver o problema, a adoção de dois regimes de trabalho diversos poderá provocar insegurança jurídica. “Para ele propor a criação de um documento desse teria que haver uma nova rodada de revisão na lei trabalhista, Bolsonaro teria que aprovar uma nova reforma que abra essa possibilidade de dois vínculos diferentes”, afirma Alexandre Chaia, economista do Insper. Além disso, caberia ao capitão provar que esta alteração é constitucional. “Isso pode gerar contestações no Supremo Tribunal Federal, não é uma ideia simples de se concretizar”. Chaia acredita que a existência de dois regimes provocará processos por “assédio moral” e outros problemas trabalhistas.

Além disso, o professor também não acredita que no contexto atual a carteira verde e amarela geraria empregos. “No momento em que vivemos, mesmo tendo uma carteira de trabalho sem encargos não necessariamente haveria um aumento das contratações, tendo em vista o cenário de mercado nervoso e expectativas econômicas que não são boas”, explica. “Em outro momento econômico e expandindo o regime para todos poderia fazer sentido. Hoje não acho que alteraria o quadro do trabalho no país, o que resolve é construção civil, consumo, comércio...”.

A reportagem enviou uma série de questionamentos ao ainda gabinete de transição do Governo para elucidar pontos nebulosos envolvendo a carteira de trabalho "verde e amarela", mas não obteve resposta.


Eliane Brum: O homem mediano assume o poder

O que significa transformar o ordinário em “mito” e dar a ele o Governo do país?

O homem mediano assume o poder
A esquerda que não sabe quem é
O homem mediano assume o poder
Os “malucos” sapateiam no palco
O homem mediano assume o poder
O ataque dos machos brancos

Desde 1 de janeiro de 2019, o Brasil tem como presidente um personagem que jamais havia ocupado o poder pelo voto. Jair Bolsonaro é o homem que nem pertence às elites nem fez nada de excepcional. Esse homem mediano representa uma ampla camada de brasileiros. É necessário aceitar o desafio de entender o que ele faz ali. E com que segmentos da sociedade brasileira se aliou para desenhar um Governo que une forças distintas que vão disputar a hegemonia. Embora existam várias propostas e símbolos do passado na eleição do novo presidente, a configuração encarnada por Bolsonaro é inédita. Neste sentido, ele é uma novidade. Mesmo que seja uma difícil de engolir para a maioria dos brasileiros que não votou nele, escolhendo o candidato oposto ou votando branco, nulo ou simplesmente não comparecendo às urnas. Bolsonaro encarna também o primeiro presidente de extrema direita da democracia brasileira. O “coiso” está no poder. O que significa?

Quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Palácio do Planalto pela primeira vez, na eleição de 2002, depois de três derrotas consecutivas, foi um marco histórico. Quem testemunhou o comício da vitória na Avenida Paulista, tendo votado ou não em Lula, compreendeu que naquele momento se riscava o chão do Brasil. Não haveria volta. Pela primeira vez um operário, um líder sindical, um homem que fez com a família a peregrinação clássica do sertão seco do Nordeste para a industrializada São Paulo de concreto, alcançava o poder. Alguém com o “DNA do Brasil”, como diria sua biógrafa, a historiadora Denise Paraná.

O Lula que conquistou o poder pelo voto era excepcional. “Homem do povo”, sem dúvida, mas excepcional. Um líder brilhante, que comandou as greves do ABC Paulista no final da ditadura militar (1964-1985) e se tornou a figura central do novo Partido dos Trabalhadores criado para disputar a democracia que retornava depois de 21 anos de ditadura. Independentemente da opinião que cada um possa ter dele hoje, é preciso aceitar os fatos: quantos homens com a trajetória de Lula se tornaram Lula?

Lula era o melhor entre os seus, o melhor entre aqueles que os brancos do Sul discriminavam com a pecha de “cabeça chata”. Se sua origem e percurso levavam uma enorme novidade ao poder central de um dos países mais desiguais do mundo, a ideia de que aquele que é considerado o melhor deve ser o escolhido para governar atravessa a política e o conceito de democracia. Não se escolhe um qualquer para comandar o país, mas aquele ou aquela em que se enxergam qualidades que o tornam capaz de realizar a esperança da maioria. Neste sentido, não havia novidade. Quando parte das elites se sentiu pressionada a dividir o poder (para manter o poder), e depois da Carta ao Povo Brasileiro assinada por Lula garantindo a continuidade da política econômica, era o excepcional que chegava ao Planalto pelo voto.

O que a chegada de Lula ao poder fez pelo Brasil e como influenciou o imaginário e a mentalidade dos brasileiros é algo que merece todos os esforços de pesquisa e análise para que se alcance a justa dimensão. Mas grande parte já foi assimilada por quem viveu esses tempos. Os efeitos do que Lula representou apenas por chegar lá sequer são percebidos por muitos porque já foram incorporados. Já estão. Como disse uma vez o historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014), em outro contexto: “Há coisas que não devemos perguntar o que farão por nós. Elas Já fizeram”.

Marina Silva, derrotada nas últimas três eleições consecutivas, em cada uma delas perdendo uma fatia maior de capital eleitoral, seria outra representante inédita de uma parcela da população que nunca ocupou a cadeira mais importante da República. Diferentemente de Lula, como já escrevi neste espaço, Marina encarna um outro amplo segmento de brasileiros, muito mais invisível, representado pelos povos da floresta. Carrega no corpo alquebrado por contaminações e também por doenças que já não deveriam existir no Brasil uma experiência de vida totalmente diversa de alguém como Lula e outros pobres urbanos. Mas este é o passado de Marina.

Cada brasileiro conhece vários Jair Bolsonaro – ou tem um na família

A mulher negra, que se alfabetizou aos 16 anos e trabalhou como empregada doméstica depois de deixar o seringal na floresta amazônica, empreendeu uma busca pelo conhecimento acadêmico e hoje fala mais como uma intelectual da universidade do que como uma intelectual da floresta. Também deixou a Igreja Católica ligada à Teologia da Libertação para se converter numa evangélica genuína, daquelas que vivem a religião no cotidiano em vez de instrumentalizá-la nas eleições, como tantos pastores neopentecostais. Se Marina tivesse conseguido chegar ao poder, ela representaria toda essa complexa trajetória, mas também encarnaria uma excepcionalidade entre os seus. Quantas mulheres com o percurso de Marina se tornaram Marina?

Jair Bolsonaro, filho de um dentista prático do interior paulista, oriundo de uma família que poderia ser definida como de classe média baixa, não é representante apenas de um estrato social. Ele representa mais uma visão de mundo. Não há nada de excepcional nele. Cada um de nós conheceu vários Jair Bolsonaro na vida. Ou tem um Jair Bolsonaro na família.

Na campanha, Bolsonaro não deveria parecer melhor que seus eleitores, mas igual

Durante as várias fases republicanas do Brasil, a candidatura e os candidatos foram acertos das elites que disputavam o poder – ou resultado de uma disputa entre elas. O mais popular presidente do Brasil do século 20, Getúlio Vargas (1882-1954), que em parte de sua trajetória política foi também um ditador, era um estancieiro, filho da elite gaúcha. Ainda que tenha havido alguns presidentes apenas medianos durante a República, eram por regra homens oriundos de algum tipo de elite e alicerçados por ela.

Lula foi exceção. E Bolsonaro é exceção. Mas representam opostos. Não apenas por um ser de centro esquerda e outro de extrema direita. Mas porque Bolsonaro rompe com a ideia da excepcionalidade. Em vez de votar naquele que reconhecem como detentor de qualidades superiores, que o tornariam apto a governar, quase 58 milhões de brasileiros escolheram um homem parecido com seu tio ou primo. Ou consigo mesmos.

Essa disposição dos eleitores foi bastante explorada pela bem sucedida campanha eleitoral de Bolsonaro, que apostou na vida “comum”, falseando o cotidiano prosaico, o improviso e a gambiarra nas comunicações do candidato com seus eleitores pelas redes sociais. Bolsonaro não deveria parecer melhor, mas igual. Não deveria parecer excepcional, mas “comum”.

A mesma estratégia foi mantida depois de eleito, como a mesa bagunçada de café da manhã com que recebeu John Bolton, o conselheiro de Segurança Nacional do presidente americano Donald Trump. Neste sentido, Bolsonaro jamais pode ser considerado o “Trump brasileiro”. Trump, além pertencer a uma parcela muito particular das elites americanas, tem uma trajetória de destaque. Bolsonaro não. Como militar, ele só se notabilizou por quebrar as regras ao dar uma entrevista para a revista Veja reclamando do valor dos soldos. Como parlamentar por quase três décadas, conseguiu aprovar apenas dois projetos de lei. Era mais conhecido como personagem burlesco e criador de caso.

Quando Tiririca foi eleito, por exemplo, sua grande votação foi interpretada como a prova de que era necessária uma reforma política urgente. Mas Tiririca foi um grande palhaço. Num mundo difícil para a profissão desde a decadência dos circos, Tiririca conseguiu encontrar um caminho na TV, fazer seu nome e ganhar a vida. Não é pouco.

“Eu não sou ninguém aqui”, afirmou em 2011

Bolsonaro não. O grande achado foi se eleger deputado e conseguir continuar se elegendo deputado. Em seguida, colocar todos os filhos no caminho dessa profissão altamente rentável e com muitos privilégios. A “família” Bolsonaro tornou-se um clã de políticos profissionais que, nesta eleição, conseguiu um número assombroso de votos. Mas não pela excepcionalidade de seus projetos e ideias.

O novo presidente do Brasil passou quase três décadas como um político daquilo que no Congresso brasileiro se chama “baixo clero”, grupo que faz volume mas não detém influência nem arquiteta as grandes decisões. A alcunha é uma alusão injusta ao clero religioso que faz o trabalho de formiguinha, o mais difícil e persistente, seguidamente perigoso, no mundo das igrejas. O próprio Bolsonaro já comentou que não tinha prestígio. Quando disputou a presidência da Câmara, em 2017, só obteve quatro votos dos mais de 500 possíveis. “Eu não sou ninguém aqui”, afirmou em um discurso no plenário, em 2011.

Os deputados do “baixo clero” do Congresso descobriram a sua força nos últimos anos e também como podem se locupletar unindo-se e fazendo número a favor dos interesses que lhes beneficiam. Ou simplesmente chantageando com o seu voto. Bolsonaro é dessa estirpe. Se ocupava um lugar no Congresso, era o de bufão. Até um ano atrás poucos acreditavam que poderia se eleger presidente. Parecia impossível que alguém que dizia as barbaridades que ele dizia poderia ser escolhido para o cargo máximo do país.

A massa que foi assistir à posse gritava: “WhatsApp! Facebook!”

O que se deixou de perceber é que quase todos tinham um tio ou um primo exatamente como Bolsonaro. Logo essa evidência ficou clara nos almoços de domingo ou nas datas festivas da família. Mas ainda assim parecia apenas uma continuação do que as redes sociais já tinham antecipado, ao revelar o que realmente pensavam pessoas que até então pareciam razoáveis. Deixou-se de enxergar, talvez por negação, o quanto esse contingente de pessoas era numeroso. Os preconceitos e os ressentimentos recalcados em nome da convivência eram agora liberados e fortalecidos pelo comportamento de grupo das bolhas da internet. As redes sociais permitiram “desrecalcar” os recalcados, fenômeno que tanto beneficiou Bolsonaro.

Os gritos das pessoas que ocuparam o gramado da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, foram a parte mais reveladora da posse de Bolsonaro, em 1o de Janeiro. Eufórica, a massa berrava: “WhatsApp! WhatsApp! Facebook! Facebook!”. Quem quiser compreender esse momento histórico terá que passar anos dedicado a analisar a profundidade contida no fato de eleitores berrarem o nome de um aplicativo e de uma rede social da internet, ambos de Mark Zuckerberg, na posse de um presidente que as elegeu como um canal direto com a população e deu a isso o nome de democracia.

Bolsonaro representa, sim – e muito – um tipo de brasileiro que se sentia acuado há bastante tempo. E particularmente nos últimos anos. E que estava dentro de cada família, quando não era a família inteira. Todas as famílias gostam de se pensar como diferentes – ou, pelo menos, melhores (ou piores, conforme o ponto de vista) que as outras. A experiência de um confronto político determinado pelos afetos – ódio, amor etc – nestas eleições deixou marcas profundas.

Bolsonaro representa, principalmente, o brasileiro que nos últimos anos perdeu privilégios

Não engendrasse tantas possibilidades destruidoras para o país, o fenômeno Bolsonaro seria bastante fascinante quando olhado como objeto de estudo. Sugiro algumas hipóteses para compreender como o mediano entre os medianos se tornou presidente do Brasil. As pesquisas de intenção de voto mostraram que Bolsonaro era o preferido especialmente entre os homens e especialmente entre os brancos e especialmente entre os que ganhavam mais. Isso não significa que não tenha tido uma votação significativa entre as mulheres, os negros e os que ganham menos. Se não tivesse, Bolsonaro não conseguiria se eleger. Mesmo no Nordeste, a única região do Brasil em que perdeu para Fernando Haddad (PT), no segundo turno das eleições, Bolsonaro recebeu uma votação significativa.

O novo presidente representa, principalmente, o brasileiro que nos últimos anos sentiu que perdeu privilégios. Nem sempre os privilégios são bem entendidos. Não se trata apenas de poder de compra, o que é determinante numa eleição, mas daquilo que dá chão a uma experiência de existir, aquilo com que faz com que aquele que caminha se sinta em terra mais ou menos firme, conheça as placas de sinalização e entenda como se mover para chegar onde precisa.

Vária irrupções perturbaram esse sentimento de caminhar em território conhecido, em especial para o homem branco e heterossexual. As mulheres disseram a eles com uma ênfase inédita que não seria mais possível fazer gracinhas nas ruas nem assediá-las nos trabalho ou em qualquer lugar. A violência sexual foi exposta e reprimida. A violência doméstica, quase tão comum quanto o feijão com arroz (“um tapinha não dói”) foi confrontada pela Lei Maria da Penha. Afirmar que uma “mulher era mal comida” se tornou comentário inaceitável de um neandertal.

Na mesma direção, os LGBTI se fizeram mais visíveis na exigência dos seus direitos, entre eles o de existir, e passaram a denunciar a homofobia e a transfobia. Figuras públicas como Laerte Coutinho anunciaram-se como mulher sem fazer cirurgia para tirar o pênis. O que há entre as pernas já não define ninguém. E a posição de homem heterossexual no topo da hierarquia nunca foi tão questionada como nos últimos anos.

Tanto que, como reação, surgiram proposições como criar o “Dia do Orgulho Heterossexual” ou o “Dia do Homem” e até o “Dia do Branco”. Não faz sentido criar datas para quem tem todos os privilégios, mas as propostas apontam como mesmo a perda destes privilégios em particular parece balançar o mundo de quem sempre teve a coleção completa de vantagens como direito inalienável.

Em discurso, Bolsonaro prometeu “libertar” o Brasil do “politicamente correto”

O que a maioria dos homens entendia como direito – falar o que bem entendesse, especialmente para uma mulher – já não era possível. “Não dá para falar mais nada” se tornou uma frase clássica na boca destes homens. As já tradicionais piadas de “viado”, um tema clássico de fortalecimento da identidade de macho, tornaram-se inaceitáveis. O “politicamente correto”, que Bolsonaro e seus seguidores tanto atacaram nesta eleição, foi interpretado como agressão direta a privilégios que eram considerados direitos.

Para um homem pobre, seja ele branco ou negro, tripudiar sobre gays e/ou mulheres na vida cotidiana pode ser a única prova de “superioridade” enquanto enfrenta o massacre diário de uma jornada extenuante e mal paga. Bolsonaro compreendeu isso muito bem. Em seu discurso para a população aglomerada na Praça dos Três Poderes, nesta terça-feira, o presidente recém-empossado colocou o combate ao “politicamente correto” como uma das prioridades do seu governo. Não a assombrosa desigualdade social, que até mesmo presidentes conservadores achavam de bom tom citar, mas a necessidade de “libertar” a nação do jugo do “politicamente correto”.

Logo no início do discurso, Bolsonaro afirmou: “É com humildade e honra que me dirijo a todos vocês como presidente do Brasil e me coloco diante de toda a nação neste dia como um dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, se libertar da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”.

É esse brasileiro “acorrentado” que votou para retomar seus privilégios, incluindo o de ofender as minorias, como seu representante fez durante toda a carreira política e também na campanha eleitoral. Para muitos, o privilégio de voltar a ter assunto na mesa de bar – ou o de não ser reprimido pela sobrinha empoderada e feminista no almoço de domingo.

Somado a isso, as cotas raciais nas universidades, assim como o Estatuto da Igualdade Racial, conquistas dos movimentos negros reconhecidas pelos governos do PT, atingiram fundo os privilégios de raça, tão enraizados quanto os privilégios de classe e de gênero no Brasil, possivelmente mais.

Os negros passaram a não aceitar passivamente ser maioria nas piores estatísticas, ter menos tudo, assim como morrer mais e mais cedo. É desse confronto que vem a frase sem qualquer lastro na realidade, mas repetida com persistência por Bolsonaro e seus seguidores: a de que “o PT inventou os conflitos raciais”. É claro que, enquanto os negros seguissem aceitando o seu lugar subalterno e mortífero na sociedade brasileira, não haveria conflito. Mas esse tempo acabou e até mesmo lugares que pareciam reservados apenas aos filhos dos brancos, como as carreiras mais disputadas das universidades públicas, começaram a ser ocupados pelos negros.

Para as famílias, especialmente as brancas, outra mudança atingiu profundamente um privilégio arraigado que está na formação do Brasil, e que foi pouco alterado pela abolição da escravidão negra. No início da segunda década do século, a “PEC (Proposta de Emenda Constitucional) das Domésticas” deu a essa categoria formada majoritariamente por mulheres, a maioria delas negras, direitos trabalhistas que outras categorias tinham há décadas mas que sempre foram negados a elas, como o limite da jornada de trabalho e o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço).

O ódio dos bolsonaristas se expressa não pela ação, mas pela reação: a de quem se defende do que acredita ser um ataque

Isso fez com que muitas famílias de classe média temessem não poder mais manter a sua escrava contemporânea fazendo todo o serviço dentro de casa e/ou cuidando dos filhos dos patrões por um tempo ilimitado de horas. Essa medida afetou profundamente as mulheres brancas de classe média, ainda hoje em grande parte responsáveis pela administração doméstica, apesar dos avanços feministas. As reclamações ocupavam todos os espaços. Os direitos das empregadas domésticas eram compreendidos como privilégios, quando na verdade era o privilégio dos brancas de ter uma mulher negra explorada e mal paga fazendo o serviço doméstico que estava em jogo.

Os direitos de gênero, classe e raça estão conectados. O reconhecimento destes direitos e a ampliação do acesso dos negros a espaços até então reservados aos brancos teve grande impacto no resultado eleitoral e também no antipetismo. O ódio dos bolsonaristas se expressa não na ação, mas na reação: a de quem se defende do que acredita ser um ataque. Também por isso sentem ser legítimo lançar as piores e mais violentas palavras contra o outro. Acreditavam – e ainda acreditam – estar apenas se defendendo, o que na sua visão de mundo justificaria qualquer violência. Também por isso o outro é inimigo – e não opositor.

Quando Bolsonaro assume o poder, este homem sente que também ele volta a governar um mundo que já não compreendia

Mas qual é o ataque que acreditam estar sofrendo? A suspensão de privilégios que consideravam direitos, acirrada pelo desamparo que uma crise econômica e a ameaça de desemprego provocam. Era gente – principalmente homens, heterossexuais e brancos – que nos últimos anos via o chão desaparecer debaixo dos seus pés. Excluídos das elites intelectuais, pressionados a ser “politicamente corretos” porque outros saberiam mais do que eles, ridicularizados na sua macheza fora de época, assombrados por mulheres até mesmo dentro de casa, reagem. Como se sentem fracos, reagem com força desproporcional.

Esses brasileiros não querem um homem melhor do que eles na presidência. O que querem é um homem igual a eles no governo. Numa época em que até as metáforas se literalizaram, Bolsonaro lhes devolve – literalmente – aquilo que sentem que lhes foi tirado. Ao assumir o poder, Bolsonaro mostra que a ordem do mundo volta ao “normal”. Com Bolsonaro, eles voltam também ao Governo de suas próprias vidas, sem serem questionados nem precisarem ser questionados sobre temas tão espinhosos como, por exemplo, a sexualidade e seu lugar na família e na sociedade.

São principalmente homens, mas também são mulheres que sentem que a opressão é um preço baixo a pagar para voltar a um território que, mesmo asfixiante, é conhecido e supostamente mais seguro num mundo movediço. São brasileiros que pertencem a diferentes religiões, mas a votação mais expressiva recebida por Bolsonaro foi entre os evangélicos. As igrejas evangélicas neopentecostais têm multiplicado o número de fiéis e aumentado sua representação no Congresso nos últimos anos, encarnando uma das mais importantes mudanças culturais – e políticas – do Brasil.

Como disse Bolsonaro em seu discurso às massas, logo após ser ungido com a faixa presidencial: “Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros. Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade. Podemos, eu, você e as nossas famílias, todos juntos, reestabelecer padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil”.

Bolsonaro se torna herói porque enfrenta o “politicamente correto” e liberta os sentimentos reprimidos de seus iguais

Como se sentiam burros diante da intelectualidade acadêmica que sempre lhes torceu o nariz pontudo, os bolsonaristas adotaram seus próprios intelectuais. E também foram adotados por eles, como fez Olavo de Carvalho, que graças a isso se tornou um autor best-seller e passou a exercer seu autoproclamado “anarquismo” de forma bastante interessante.

Bolsonaro torna-se então aquele que “não tem medo de dizer o que pensa” ou “aquele que diz a verdade”. Bolsonaro se torna herói porque enfrenta o “politicamente correto” e liberta os sentimentos reprimidos de seus iguais. Eles, que começam a se sentir uns merdas diante de mulheres cada vez mais assertivas e de negros que não aceitam mais um lugar subalterno podem então voltar a mentir sobre privilégios serem direitos – e afirmar que esta é “a verdade”. Bolsonaro prega “transformação”, mas só se elegeu porque sua proposta de “mudança” trabalha com a ilusão do retorno. Essa “nova direita” compreende muito bem os anseios de uma parcela dos homens desesperados desse tempo.

Na tentativa de volta ao passado que já não pode ser, mesmo com Bolsonaro no poder, os privilégios perdidos foram tachados de “ideologia”. Aqueles que ideologizam tudo, até mesmo a orientação sexual e a religião alheias, culpam a ideologia por tudo. Se não gostam dos fatos, como o aquecimento global, convertem-nos em “ideologia marxista”. Transformam “politicamente correto” num palavrão. Qualquer limite torna-se uma afronta à liberdade, em especial a liberdade de ser violento. Chamam todos aqueles que apontam a necessidade de limites de “comunistas” ou “esquerdistas”, como se ambas as palavras significassem uma espécie de pecado capital.

Bolsonaro e seus seguidores corrompem a realidade e afirmam sua mediocridade como valor

Como sentiam-se oprimidos por conceitos que não compreendiam, os bolsonaristas descobriram que poderiam dar às palavras o significado que lhes conviesse porque o grupo os respaldaria. E, graças às redes sociais, o grupo os respalda. O significado das palavras é dado pelo número de “curtir” nas redes sociais. Esvaziadas de conteúdo, história e consenso, esvaziadas até mesmo das contradições e das disputas, as palavras se tornaram gritos, força bruta.

É assim que um homem medíocre como Bolsonaro vira “mito”. Ameaçados de perder a diferença que lhes garante privilégios que já não podem ter, Bolsonaro e seus seguidores corrompem a realidade e afirmam sua mediocridade como valor. Macho. Branco. Sujeito Homem.

Mas é este brasileiro que chega ao poder com Bolsonaro? Em parte sim. Mas em parte não. Este é o enredo que assistiremos a partir de agora. Tornar-se adulto não é apenas uma condição biológica. É, no sentido mais amplo, reconhecer seus limites e responsabilizar-se pelas próprias escolhas. Bolsonaro, claramente, é uma criança voluntariosa e mal educada que precisa da aprovação dos maiores.

Ao vislumbrarem que Bolsonaro poderia ganhar a eleição, diferentes grupos das elites se aproximaram e respaldaram sua candidatura. Cada um com seu projeto próprio. Há Paulo Guedes, o ultraliberal ambicioso e intoxicado pela própria importância que quer marcar a história, comandando o superministério da Economia. Há Sergio Moro, o juiz que mostrou que pode violar a lei caso ela perturbe seu projeto pessoal, porque acredita que seu projeto pessoal é público e acredita saber o que é melhor para a nação, como acreditam todos os que se creem superiores ou mesmo super-heróis.

Como o garoto Bolsonaro vai lidar com as disputas no mundo dos adultos?

Há os representantes do “agronegócio”, ramo que no Brasil se confunde com crimes como grilagem (roubo) de terras públicas e conflitos agrários causadores de dezenas de assassinatos a cada ano. Fiadores do governo de Michel Temer (MDB) e também da candidatura de Bolsonaro, os ruralistas não apenas estão no governo, mas “são” o governo.

Esse grupo vai abrir a Amazônia para a exploração – soja, gado e mineração, além de grandes obras. Isso significa, entre outras medidas, mudar ou “regulamentar” a Constituição para abrir as terras públicas de usufruto exclusivo dos indígenas ou as terras coletivas dos quilombolas para lucros de grupos privados. Uma das primeiras medidas de Bolsonaro, logo após ser empossado na presidência, foi transferir a demarcação das terras indígenas e das terras dos quilombolas para o Ministério da Agricultura. Já no primeiro dia Bolsonaro entregou o futuro da floresta e do cerrado àqueles que os destroem.

No escalão mais subalterno, há um ministro do Meio Ambiente condenado por violar o meio ambiente, um ruralista escolhido pelos ruralistas. Há uma ministra da cota evangélica que vai cuidar de temas tão amplos como direitos humanos, mulheres e indígenas, a partir de uma leitura literal da Bíblia. Há um ministro de Cidadania que será responsável também pela área da cultura, mas já afirmou não entender nada da área.

Há ainda os ministros da cota afetiva de Bolsonaro, como o chanceler Ernesto Araújo, que assumiu para si a tarefa de construir a base intelectual da ideologia de Bolsonaro. Em artigo publicado numa revista americana, o diplomata que parece desprezar a diplomacia lançou uma espécie de nacionalismo religioso: “Deus através da nação”. E há o ministro da Educação que acredita que o golpe que levou o Brasil a 21 anos de ditadura deve ser comemorado. O apagamento da história, sacrificando os fatos em nome da ideologia, é uma das missões do governo Bolsonaro.

E há, finalmente, aquele que é talvez o grupo mais significativo, composto por sete militares ocupando postos chaves no governo. Nem sempre esses grupos concordam sobre o que é melhor para o Brasil. É provável que em alguns pontos possam discordar radicalmente. Como então o garoto Bolsonaro vai lidar com a disputa de gente grande?

Como o menino mimado vai se haver com a realidade, agora que a campanha acabou? Como vai ser quando a corrosão dos dias ameaçar a paixão das massas? E, no lado oposto, como os adultos da sala vão lidar com a criança cheia de vontades quando ela não puder ser manipulada – ou estiver sendo manipulada pelo grupo adversário – e ameaçar seu projeto de poder? Como se dará essa negociação? Quais são os riscos de ruptura?

Como todo medíocre, Jair Bolsonaro arrota ignorância como se fosse sabedoria. Mas, também como todo medíocre, no fundo, bem no fundo, ele suspeita que é medíocre. E busca desesperadamente a aprovação dos adultos.

No momento, Bolsonaro está encantado por ter um intelectual ligado à Escola de Chicago dizendo a ele o quanto é especial. Um herói da Operação Lava Jato lhe tecendo elogios. E, principalmente, generais batendo continência ao capitão. Mas a realidade é implacável com as ilusões.

Para acirrar a possibilidade de conflitos, há ainda a família de Bolsonaro, com seu trio de principezinhos, desta vez mimados pelo pai, que ainda chama marmanjos sem limites de “garotos”. Extasiados com o poder, eles já mostraram o quanto gostam do palco e quanta confusão podem aprontar. Como pai típico deste momento histórico, Bolsonaro protege seus meninos. Neste caso, da própria mediocridade. Os Bolsonaros Júnior parecem ter certeza de que são excepcionais e que a realidade vai se dobrar à sua vontade. Se não se dobra, sempre podem chamar “um cabo e um soldado” para fazer o serviço.

A experiência de Brasil que agora se inicia é fascinante. Mas só se vivêssemos em Marte e se a maior floresta tropical do planeta não estivesse ameaçada. Em algum momento, Jair Bolsonaro se olhará no espelho e verá apenas Fabrício Queiroz, o PM e ex-assessor do filho que não consegue explicar de onde vem o dinheiro que depositou na conta da primeira-dama. Em algum momento, Jair Bolsonaro poderá se olhar no espelho e verá apenas a imagem mais exata de si mesmo. Assombrado pela verdade que não poderá chamar de “fake news”, ele correrá para as ruas para ouvir os Queiroz gritarem: “Mito! Mito! Mito!”. Mas o grito pode ter sido engolido pela realidade dos dias. Saberemos então, em toda a sua magnitude, o que significa Bolsonaro no poder.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A


Os 22 ministros de Bolsonaro: ala ultraliberal, militares e só 2 mulheres

Paulo Guedes, Sergio Moro e Onyx Lorenzoni encabeçam o time do primeiro escalão formado pelo novo chefe do Executivo

Técnicos, políticos de carreira, militares e até um astronauta. O Ministério de Jair Bolsonaro conta com perfis diversos, porém comprometidos com as determinações do presidente para uma guinada liberal na economia e conservadora nos costumes, nas relações internacionais e nas políticas de segurança. Por enquanto, a única missão estipulada pelo comandante a seus subordinados é elaborar, nos primeiros dez dias de governo, um relatório sobre suas respectivas pastas – além de sugestões de medidas imediatas, incluindo a revogação de atos dos últimos meses da gestão Temer. Conheça os 22 ministros nomeados por Bolsonaro.

1) Economia – Paulo Guedes
Economista formado pela Universidade de Chicago, Paulo Guedes é chamado por Bolsonaro de seu “posto Ipiranga”, o local onde ele poderia resolver qualquer pendência ou dúvida econômica. É um técnico com poucos laços políticos e o nome mais poderoso da Esplanada depois do presidente. Tem montado uma equipe de economistas liberais, como ele, muitos com passagem pela ortodoxa Chicago. É ferrenho defensor da privatização de todas as empresas estatais. Sua pasta é um dos superministérios de Bolsonaro, pois será a fusão dos ministérios da Fazenda, do Planejamento e de Indústria e Comércio Exterior.

2) Casa Civil – Onyx Lorenzoni
Deputado federal há seis legislaturas, Onyx Lorenzoni se aproximou de Bolsonaro nos últimos quatro anos. Ele encampou a candidatura presidencial do capitão reformado e passou a fazer jantares em sua casa, em Brasília, para discutir as estratégias. Na primeira reunião, havia menos de dez comensais. Na última, quase uma centena. Filiado ao DEM, Lorenzoni será o elo de Bolsonaro com o Congresso Nacional. É quase tão explosivo como seu chefe. Admitiu ter recebido caixa dois da JBS na campanha eleitoral de 2014, mas a investigação foi arquivada.

3) Justiça e Segurança Pública – Sérgio Moro
Juiz estrela da Operação Lava Jato, Sérgio Moro abandonou 22 anos de magistratura para fazer parte de um Governo. Ele foi o responsável por condenar centenas de políticos, empreiteiros, lobistas e doleiros que desviaram recursos públicos, principalmente da Petrobras. Foi por conta de uma decisão dele, que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi preso e, após condenação em segunda instância, foi retirado da disputa eleitoral de 2018. No ministério, tem se cercado de antigos companheiros de Lava Jato, principalmente policiais federais.

4) Gabinete de Segurança Institucional – Augusto Heleno
Ex-comandante da missão de paz no Haiti, o general Augusto Heleno é considerado o principal estrategista de Jair Bolsonaro. Foi ele quem coordenou uma equipe de 50 profissionais que elaboraram o plano de Governo do então candidato. Chegou a ser anunciado como ministro da Defesa, mas o presidente eleito decidiu que o queria mais próximo de seu gabinete e o “promoveu” ao GSI. Será o responsável por todas as atividades de inteligência da gestão federal.

5) Defesa – Fernando Azevedo e Silva
Considerado o mais político dos generais, Fernando Azevedo e Silva já ocupou cargos nos três poderes. Foi assessor legislativo do Exército, autoridade pública olímpica na gestão Dilma Rousseff (PT), ajudantes de ordem do presidente Fernando Collor (PTC) e, antes de aceitar o convite de Bolsonaro, era assessor especial do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Seu primeiro ato no cargo foi valorizar a hierarquia militar e nomear como futuros comandantes das forças os oficiais mais antigos de cada corporação, Exército, Aeronáutica e Marinha.

6) Secretaria-Geral da Presidência – Gustavo Bebianno
Quando Bolsonaro decidiu se filiar ao PSL, precisava de alguma segurança para tocar sua campanha eleitoral. Sugeriu que o então presidente da legenda, Luciano Bivar, cedesse a direção para alguém em que o presidenciável confiasse. Foi aí que o advogado Gustavo Bebianno se destacou no cenário nacional. Profissional com passagem pelo departamento administrativo do Jornal do Brasil, Bebianno se aproximou do político no Rio de Janeiro. Sem nenhuma experiência em grandes campanhas, coordenou os trabalhos de Bolsonaro e controlou com mão de ferro boa parte dos diretórios regionais. Será o responsável pela espécie de prefeitura do Palácio do Planalto.

7) Relações Exteriores – Ernesto Araújo
Trumpista e antiglobalista, o embaixador Ernesto Araújo chegou ao topo da carreira diplomática sem nunca ter ocupado uma função de relevância no exterior. Até ser indicado para o ministério, ele ocupava um cargo de terceiro escalão no organograma do Itamaraty. Adquiriu a confiança de Bolsonaro por ter um blog em que se posiciona de maneira similar ao do presidente eleito. E por ter feito campanha para ele. Também foi indicado pelo escritor Olavo de Carvalho. Seu desafio será o de reduzir o impacto de falas polêmicas de Bolsonaro como a que a China compra o Brasil e não do Brasil. Caberá a ele também orientar o presidente na decisão de trocar a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém.

8) Saúde – Luiz Henrique Mandetta
Médico ortopedista, Luiz Henrique Mandetta (DEM) cumpre seu segundo mandato como deputado federal. Não concorreu à reeleição por discordar dos rumos de seu partido no seu Estado, Mato Grosso do Sul. Auxiliou Bolsonaro na pré-campanha dando sugestões de projetos de saúde. Responde a uma investigação por fraude no período em que foi secretário municipal de Saúde em Campo Grande (MS).

9) Secretaria de Governo – Carlos Alberto dos Santos Cruz
General que chefiou missões de paz no Haiti e no Congo, Santos Cruz será o interlocutor de Bolsonaro para os assuntos relacionados à segurança pública. O ministério que ocupará costuma ser ocupado por um articulador político. É a primeira vez que um militar estará neste posto. Santos Cruz chegou a ser cotado para a Secretaria Nacional de Segurança.

10) Ciência e Tecnologia – Marcos Pontes
Tenente-coronel da Aeronáutica e primeiro astronauta brasileiro, Marcos Pontesé mais um da cota militar de Jair Bolsonaro. Desde a pré-campanha já era apontado como futuro ministro. Lançou a ideia de que o ensino superior passasse a ser administrado por sua pasta, mas depois das reações da academia, recuou na proposta.

11) Agricultura – Tereza Cristina
A única mulher a ocupar um cargo na esplanada até o momento, a deputada federal e produtora rural Tereza Cristina (DEM) foi indicada ao cargo pela bancada ruralista. Presidente da Frente Parlamentar Agropecuária, ela declarou apoio à candidatura de Bolsonaro na reta final da campanha. A futura ministra é investigada por conceder benefícios fiscais à JBS no período em que foi secretária estadual em Mato Grosso do Sul.

12) Controladoria Geral da União – Wagner Rosário
Técnico de carreira, Wagner Rosário é o atual ministro da Transparência do Governo Michel Temer. Por um ano ocupou o cargo de maneira interina. Formado em ciências militares pela Academia Militar dos Agulhas Negras (AMAN), a mesma de Bolsonaro, ele abandonou a atividade no Exército para se tornar auditor federal. Foi o primeiro funcionário de carreira a ocupar o ministério.

13) Educação – Ricardo Vélez Rodríguez
Um liberal crítico ao PT, o filósofo Ricardo Vélez é colombiano, naturalizado brasileiro. Não era o favorito para assumir o ministério da Educação. Seu nome surgiu depois que a bancada evangélica refutou o nome de Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna e ex-secretário de Educação de Pernambuco que foi apontado erroneamente como um professor de esquerda. Vélez é a favor do projeto Escola Sem Partido. Foi um dos dois indicados pelo escritor Olavo de Carvalho, um dos ideólogos do bolsonarismo.

14) Infraestrutura – Tarcísio Gomes de Freitas
O futuro ministro da Infraestrutura, pasta responsável pelos setores de transporte aéreo, terrestre e aquaviário, é consultor legislativo na Câmara. É formado em Engenharia Civil pelo Instituto Militar de Engenharia (IME) e iniciou a carreira no Exército. Atuou como chefe da seção técnica da Companhia de Engenharia do Brasil na Missão de Paz da ONU, como coordenador-geral de Auditoria da Área de Transportes da Controladoria-Geral da União (CGU) e foi diretor executivo do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), cargo para o qual foi nomeado ainda no Governo Dilma Rousseff, em 2011.

15) Cidadania e Ação Social – Osmar Terra
Osmar Terra, ex-ministro do Desenvolvimento Social do Governo Michel Temer foi escolhido por Bolsonaro para ocupar o Ministério da Cidadania, ainda a ser criado pelo presidente eleito. Deputado federal pelo MDB do Rio Grande do Sul, o médico comandará a pasta que deve concentrar atribuições antes administradas pelos ministérios da Cultura, do Esporte e do Desenvolvimento Social.

16) Turismo – Marcelo Álvaro Antonio
O Ministério do Turismo será comandado pelo deputado federal e integrante da Frente Parlamentar Evangélica da Câmara, Marcelo Álvaro Antônio, do PSL-MG, partido da base aliada de Bolsonaro na Câmara. Ex-filiado de PRP, PMB e PR, ele chegou a estudar engenharia civil em Belo Horizonte, mas não concluiu o curso.

17) Minas e Energia – Bento Costa Lima Leite
O presidente Jair Bolsonaro anunciou via Twitter a escolha de Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Junior para chefiar o ministério de Minas e Energia. Ele é Diretor Geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico da Marinha e Almirante de Esquadra. Chefiou os programas Nuclear da Marinha (PNM) e o de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub).

18) Desenvolvimento Regional – Gustavo Canuto
A nova pasta do Governo, que vai incorporar as atribuições dos ministérios da Integração Nacional e das Cidades, será comandada por Gustavo Henrique Rigodanzo Canuto. Servidor de carreira no Ministério do Planejamento, ele é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Foi chefe de gabinete do Ministério da Integração Nacional e da Secretaria de Aviação Civil.

19) Mulher, Família e Direitos Humanos – Damares Alves
Damares Alves era uma desconhecida quase completa até ser anunciada como indicada ao novo ministério, que abrigará também a Fundação Nacional do Índio (Funai). Pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular, a advogada era desde 2015 assessora parlamentar do senador Magno Malta (PR), uma das principais figuras da bancada evangélica e, até então, o principal cotado para a pasta.

20) Meio Ambiente – Ricardo Salles
Presidente do Movimento Endireita Brasil, o advogado Ricardo de Aquino Salles comandará o Ministério do Meio Ambiente. Filiado ao Partido NOVO, ele já foi secretário particular do ex-presidenciável Geraldo Alckmin e ocupou também a pasta de Meio Ambiente de São Paulo durante o Governo do tucano. Salles é alvo de ação de improbidade administrativa, acusado de manipular mapas de manejo ambiental do rio Tietê, e, durante a campanha eleitoral deste ano, chegou a sugerir o uso de munição de fuzil contra a esquerda e o MST.

21) AGU – André Luiz de Almeida Mendonça
Conhecido como Mendonção, o novo chefe da Advogacia-Geral da União é formado em direito pela Faculdade de Direito de Bauru e estudou sobre corrupção na Universidade de Salamanca, na Espanha. Com longa trajetória na AGU, já foi Corregedor-Geral, Adjunto do Procurador-Geral da União e Diretor do Departamento de Patrimônio e Probidade. Seu último cargo foi como assessor especial da Controladoria Geral da União (CGU).

22) Banco Central – Roberto Campos Neto
Diretor do banco Santander e especialista em finanças pela Universidade da Califórnia, Roberto Campos Neto tem seu currículo marcado por experiências na iniciativa privada. Ele é neto de Roberto Campos, economista liberal que foi ministro do Planejamento durante a ditadura militar, no governo de Castelo Branco.


El País: “O Brasil começa a se libertar do socialismo, e do politicamente correto”, diz Bolsonaro

Presidente toma posse reforçando que vai trabalhar contra a ideologia de gênero em seu Governo e repete promessas de campanha, que dependem de aval do Congresso

Por Afonso Benites, Naiara Gortázar e Ricardo Della Coletta, do El País

A cerimônia de posse de Jair Messias Bolsonaro como 38º presidente do Brasil, aos 63 anos, nesta terça-feira, exibiu nuances que surpreenderam o público. Teve o filho do presidente eleito, Carlos Bolsonaro, em pose de guarda-costas no banco de trás do Rolls Royce presidencial, onde o pai desfilava ao lado de Michele Bolsonaro. Teve o vice-presidente, o general da reserva Hamilton Mourão, discursando em decibéis acima da fala do presidente durante a diplomação no Congresso, como se estivesse falando com a tropa. E houve a quebra de protocolo da primeira-dama que discursou em libras.

Mas algumas coisas definitivamente não mudaram, como o tom adotado pelo primeiro presidente de extrema direita a assumir o comando do Brasil desde a ditadura. Em seus discursos ao longo do dia, Bolsonaro recorreu a sua habitual provocação ao Partido dos Trabalhadores (PT) para convocar os integrantes do Congresso a se unirem “na missão de reconstruir a pátria libertando-a do crime, da corrupção, da submissão ideológica e da irresponsabilidade econômica”. Era o primeiro discurso do dia, ao lado do presidente do Congresso, Eunício de Oliveira, numa cerimônia que contou também com a presença do presidente do Supremo, Antonio Dias Toffoli.

A  ideologia e os "perigos" do adversário vermelho seriam lembrados novamente, quando o presidente eleito se dirigiu ao público que tomou as ruas da capital para seguir a cerimônia de posse. “É com humildade e honra que me dirijo a todos vocês como presidente do Brasil. E me coloco diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, se libertar da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”, discursou Bolsonaro, arrancado aplausos. Foi a demonstração da penetração de de suas palavras em sua base, ainda que os "socialistas" a que se refere terem feito um governo de centro-esquerda e sem nenhuma mudança profunda na economia, por exemplo.

A posse foi acompanhada por 115.000 pessoas, segundo dados oficiais do Gabinete de Segurança Internacional (GSI), abaixo da estimativa inicial que circulou em Brasília às vésperas da posse. Falava-se em 250.000 a 500.000 pessoas. Mesmo assim, foi uma presença bem superior ao público na posse nos dois mandatos de Dilma Rousseff. Mas um pouco abaixo do número do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que teve 150.000 pessoas, segundo levantamento do jornal Metrópoles. Não importa. Uma multidão recebeu empolgada o ex-militar da reserva. Ali do Palácio do Planalto, Bolsonaro discursou e aproveitou para abrir uma bandeira do Brasil, e alertar: “Nossa bandeira jamais será vermelha”, o grito de guerra antipetista que nasceu dos protestos contra Dilma.

Nas redes sociais, outro sinal de prestígio de Bolsonaro foi dado pelo presidente americano Donald Trump, que saudou Bolsonaro no Twitter: “Estados Unidos estão contigo”. Minutos depois, o presidente brasileiro agradeceu Trump: “Juntos, com a proteção de Deus, traremos mais prosperidade e progresso a nossos povos”, disse o novo presidente, que já deixou clara sua intenção de ampliar de maneira inédita a aproximação com os Estados Unidos, uma proposta bem-vinda para os norte-americanos em tempos de guerra comercial com a China.

Os presentes na cerimônia de posse também desenharam as pontes que Bolsonaro já tece no mundo e as relações as quais herda pelo próprio peso do Brasil na região. A cerimônia contou com a presença do israelense Benjamín Netanyahu, concluindo uma visita oficial de cinco dias, e o húngaro Viktor Orbán, de nacionalista de extrema direita, cujo ideário de Governo é elogiado pelo novo presidente. Os presidentes conservador Sebastián Piñera, do Chile, e o esquerdista Evo Morales, da Bolívia, foram os principais nomes da América Latina a cumprimentar Bolsonaro em sua posse –com o primeiro o brasileiro busca elos enquanto o segundo se apresentava como um pragmático mandatário que precisa negociar com o Brasil a venda de gás boliviano. Um ausente foi o mandatário Mauricio Macri, da Argentina, tradicional aliado brasileiro que se mostra reticente com a retórica anti-Mercosul do novo ocupante do Planalto.

O caso de Macri é um símbolo da incógnita no ar entre os países que se relacionam com o Brasil. Os discursos agressivos vão se sustentar ao longo do novo Governo? Se o Governo não mostrar resultados e habilidade para lidar com as diferenças, isso poderia afetar a economia. O clima de desconfiança é um fato e alguns especialistas apontam que o número menor de delegações estrangeiras presentes na posse de Bolsonaro podem ser um indicativo. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, foram 46 delegações, contra 130 na posse de Dilma, 110 com Lula e 120 com Fernando Henrique Cardoso.

Flexibilização das armas

O 38º presidente do Brasil triunfou nas eleições de 2018 com um discurso muito nacionalista, ultraconservador nos costumes, privatizador na economia e que defende matar delinquentes se as vidas de suas vítimas ou de policiais estiverem em perigo. Todos os pontos foram repetidos nos curtos discursos desta terça, ainda que ele não tenha detalhado os planos econômicos. No Congresso, ele falou da flexibilização para a posse de armas, garantiu que o Estado não gastará mais do que recebe e prometeu "combater a ideologia de gênero". Coube a Eunício de Oliveira, presidente do Congresso Nacional até fevereiro, lembrá-lo de que é necessário respeitar a Constituição e de que terá de dialogar. “Mesmo as melhores ideias podem ser aperfeiçoadas. Saber divergir, com argumentos sólidos, enriquece a política e a vida”, afirmou Oliveira. “É no Parlamento que o diálogo, bem exercitado, leva ao entendimento e, assim, às melhores soluções para a nacionalidade”, continuou.

O novo Congresso assume em fevereiro, e há uma tensão clara sobre o que Bolsonaro fará para apaziguar ânimos até lá. Deputados do PT e do PSOL, por exemplo, se recusaram a comparecer à cerimônia de posse. A decisão revela o nível de polarização política numa Casa que precisa se entender para aprovar projetos caros para o país e para a equipe liberal de Bolsonaro, como a reforma da Previdência, para controlar o rombo das contas públicas.

Bolsonaro prometeu que vai atuar “guiado pela Constituição e com Deus no coração”. É o que basta para eleitores do capitão da reserva como Fátima Braga, uma das milhares de pessoas que se aproximaram da praça de Três Poderes para escutar seu discurso ao país. “Damos as boas vindas a um novo Brasil que acabe com o regime do PT”,  disse Fátima, aposentada de 63 anos, que insiste que Bolsonaro tem uma trajetória no Congresso “e não é corrupto”.

Já no Palácio do Planalto, na segunda etapa da cerimônia, o presidente já empossado foi recepcionado no salão nobre aos gritos de "mito, mito", e deu posse aos seus 22 ministros. O ex-juiz da Operação Lava Jato Sergio Moro e o general Augusto Heleno, no comando respectivamente do Ministério da Justiça e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), foram os mais aplaudidos pelos convidados.

A seleta plateia confirmava a consagração dos políticos que chegaram ao poder em outubro em meio ao movimento conservador que culminou com a vitória de Bolsonaro. Entre os presentes estavam os governadores recém-empossados João Doria (SP), Ratinho Júnior (PR), Wilson Witzel (RJ), Ibaneis Rocha (DF) e Ronaldo Caiado (GO). Todos, em maior ou menor grau, surfaram na onda de eleitores de direita cujo principal expoente é o novo presidente da República.

A nova corte também tomava forma com outros personagens que ganharam notoriedade durante a campanha presidencial, como o empresário Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan e acusado de coagir funcionários durante as eleições a votarem em Bolsonaro. Outra estrela da posse foi o juiz Marcelo Bretas, responsável pelos processos da Lava Jato que correm no Rio de Janeiro. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, ele viajou num avião da Força Aérea Brasileira (FAB), convidado pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia.

Apenas dois dos cinco ex-presidentes da República vivos compareceram ao ato: Fernando Collor e José Sarney. Horas antes do início do evento, o cerimonial do Itamaraty avisou que todos os ex-mandatários, com a exceção de Lula, que está preso, foram convidados, o que implica que tanto FHC como Dilma teriam declinado o convite. Não é de surpreender, Dilma Rousseff e seu partido, o PT, são constantemente fustigados por Bolsonaro. E o capitão reformado do Exército defendeu no passado que o tucano deveria ser "fuzilado".

Surpresa e irritação

A posse trouxe surpresas em mais de uma ocasião. E a primeira delas foi revelada logo no início, quando Carlos Bolsonaro, um dos filhos do presidente eleito, se acomodou no banco de trás do Rolls-Royce presidencial e percorreu todo o trajeto até o Congresso Nacional ao lado de seu pai e da agora primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Vereador no Rio de Janeiro, Carlos é apontado como o filho de ligação mais estreita com o pai e é um dos conselheiros mais considerados pelo novo presidente, sobretudo em temas relacionados à comunicação e às mídias sociais.

A segunda surpresa foi protagonizada no parlatório do Palácio do Planalto. Antes que Bolsonaro se dirigisse ao público que o aguardava na Praça dos Três Poderes, a primeira-dama Michelle realizou um discurso em libras (Língua Brasileira de Sinais) no qual prometeu que as pessoas com deficiência serão valorizadas. A intervenção firme de Michelle provocou empatia no público na praça e com os telespectadores.

Ficou a desejar o tratamento conferido à imprensa neste 1º de janeiro, em mais um sinal de como deve ser sua relação com os meios de comunicação. Jornalistas ficaram confinados por mais de sete horas à espera do início de cerimônias nas três áreas onde a cerimônia ocorreu: no Legislativo, no Itamaraty e no Palácio do Planalto. Foi uma mudança de protocolo que limitou a atuação de profissionais. Duas equipes internacionais decidiram boicotar o evento no Ministério das Relações Exteriores em protesto ao isolamento a que foram impostos. A justificativa da equipe presidencial era a necessidade de um forte esquema de segurança depois que o presidente eleito foi vítima de um atentado, acertado com uma faca que atingiu seu intestino, durante a campanha eleitoral.

O zelo com a segurança também incomodou alguns deputados federais, que passaram por até três procedimentos de segurança antes de adentrar ao plenário. "Foi exagerado", reclamou Alberto Fraga (DEM-DF), um apoiador de Bolsonaro que chegou a ser se tornou membro de seu Governo, mas uma condenação em primeira instância o afastou de qualquer cargo.

Bolsonaro encerrou o dia com seus primeiros ato de Governo: o aumento do salário mínimo de 954 reais para 998 reais. Será o primeiro aumento real (acima da inflação) em três anos, ainda que a alta seja menor do que a prevista no orçamento deste ano (1.006 reais). Também editou sua primeira Medida Provisória, reformulando os ministérios e suas atribuições. O texto traz uma vitória para os ruralistas, seu apoiadores: muda radicalmente a maneira de demarcar terras indígenas, que antes ficavam com a Funai e agora estarão sob a batuta do Ministério da Agricultura. A pasta também terá a palavra sobre quilombos. "Já viram? O desmanche já começou", lamentou no Twitter, Sonia Guajajara, coordenadora executiva da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e ex-candidata a vice-presidente pelo PSOL.