el país
Ana Flauzina: Chacina do Jacarezinho impõe que STF dê uma resposta
No último dia 05 de maio, o presidente Jair Bolsonaro declarou no Palácio do Planalto que poderia editar um decreto contra as medidas restritivas impostas por governadores e prefeitos como forma de controle da pandemia. De forma taxativa, disse que a medida não poderia ser “contestada por nenhum tribunal”. À tarde, se encontrou com um de seus aliados políticos, o governador do Rio de Janeiro Cláudio Costa (PSC), no palácio das laranjeiras em reunião a portas fechadas.
No dia seguinte, um banho de sangue inundou a favela do Jacarezinho. Com a justificativa de cumprir mandados de prisão contra 21 suspeitos de envolvimento com tráfico de drogas, a operação se transformou em um massacre após um dos policiais envolvidos na ação ser assassinado. Dos 27 homens mortos pelas forças policiais, apenas 4 eram alvos iniciais da operação. Relatos de testemunhas indicam que o alegado confronto que integra a narrativa policial não se verificou em todos os casos, com pessoas implorando para serem presas e sendo executadas a sangue frio.
Conectar esses dois eventos me parece fundamental para compreendermos o cenário político atual. De um lado, temos um pronunciamento presidencial que dá um recado claro ao Supremo Tribunal Federal, seguindo com a lógica de desgaste institucional que a todo tempo flerta com imposição de um governo militar. De outro, uma cena aterradora de desrespeito a parâmetros constitucionais básicos, em uma ação deflagrada à despeito da decisão do Supremo na ADPF 635, que impõe restrições à realização de operações policiais nas comunidades do Estado do Rio de Janeiro durante o período da pandemia.
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Há claramente uma linha de continuidade entre o pronunciamento e o massacre realizado no curral eleitoral do presidente por agências policiais que contam com muitos de seus adeptos. Fica claro que o recado abstrato que paira no ar clamando por ditadura no plano federal, vai sendo experimentado e publicitado com o aprofundamento do genocídio negro na capital fluminense. Se há ainda dificuldade de se impor uma agenda totalitária em nível nacional, essa toma cada vez mais fôlego em propagandas letais de caráter racista como as que ocorreram no Jacarezinho. O recado dado no pronunciamento se materializa indiscutivelmente na operação policial: quem controla e governa os destinos do povo são as armas, não as togas. O que é sussurrado indiretamente por Bolsonaro é concretizado de forma aberta pelo racismo, com o Supremo sendo exposto por sua incapacidade de conter a barbárie.
A verdade é que a atuação desse governo miliciano, para usar a palavra que qualifica tanto suas práticas quanto os indivíduos que ocupam seus principais cargos institucionais, está assentada em um amplo laboratório de produção de violências. Violências essas produzidas pela adesão histórica das forças institucionais, incluindo o Judiciário, no fortalecimento do apetite genocida contra a população negra: dando base para a formação das milícias, sustentando o discurso social do ódio, garantindo a naturalização do ataque à vida e à liberdade das pessoas negras como um dado quotidiano.
A questão que agora parece se impor é que as consequências perversas do racismo começam a também atentar contra os parâmetros democráticos que protegem as elites. Há muito se denuncia o fato de que o racismo é uma estrutura de poder que foi fabricada e é cultivada para controlar e trucidar pessoas negras. Até aí não há novidades. O que parece escapar à compreensão é que para se conduzir ações genocidas, há uma energia que transforma as instituições em agências de letalidade e restrições de direito. Ao fim e ao cabo, trata-se da construção de um aparato público, em associação a forças privadas, autorizadas a ameaçar, torturar, silenciar, e, claro, matar pessoas, sem maiores consequências entre nós. É esse ethos do racismo, que atropela padrões éticos básicos, direitos e vidas que começa a querer extrapolar para fora das periferias e dar o tom da atuação pública de forma mais ampla nas ameaças presidenciais dirigidas ao Supremo.
Diante disso, só se pode constatar que se opor a esse Governo e suas posturas despóticas é, antes de tudo, se opor ao racismo. Há um pacto de solidariedade entre as elites de todos os espectros políticos que sustenta o massacre das pessoas negras como um dado para a manutenção das desigualdades no Brasil. O problema é que o racismo é um cachorro raivoso que gera instituições e práticas perversas. Logo, se os efeitos mais cruéis dessas dinâmicas são sempre sentidos por negros e negras, em tempos de democracia, ditadura oficiosa ou oficial, fato é que as lógicas de tortura, da censura da e morte, tão comuns no dia a dia das periferias brasileiras, tendem a ser também usadas seletivamente contra grupos políticos em momentos de ruptura institucional.
Por isso, no atual contexto político, enfrentar o genocídio negro é uma demanda que passa tanto pela defesa da vida e dignidade das pessoas negras quanto pela preservação do pacto constitucional que salvaguarda a segurança e os privilégios dos setores de elite que se opõe ao governo de Jair Bolsonaro. Isso porque as ameaças do bolsonarismo estão se concretizando, se enraizando e avançando todos os dias para cercear fundamentalmente os direitos dos que habitam as periferias negras nesse país.
Assim, a resposta ao massacre do Jacarezinho, a maior chacina policial da história do Brasil, pauta o poder Judiciário e, consequentemente a democracia, em duas frentes. A primeira, já muito conhecida, é a que questiona se, uma vez mais, a justiça vai atuar de forma conivente e anistiar os responsáveis pelas execuções. A segunda, é a que mede a força do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, diante do claro desacato do bolsonarismo frente às suas determinações.
Conforme já declarou Eduardo Bolsonaro, “bastam um soldado e um cabo para fechar o STF”. Ao que tudo indica, o tempo de se verificar a validade dessa afirmação chegou e a forma com que se vai lidar com o caso de Jacarezinho é um termômetro preciso da força ou do completo descrédito do Supremo e da democracia no Brasil.
Ana Flauzina é doutora em Direito e professora da Universidade Federal. Dirigiu o documentário ‘Além do Espelho’, que estabelece uma ponte entre os movimentos negros nos EUA e no Brasil.
Fonte:
El País
Vladimir Safatle: Uma revolução molecular assombra a América Latina
O termo veio pelas mãos de Álvaro Uribe, ex-presidente da Colômbia e líder efetivo da direita linha dura que hoje Governa o país. Diante das inéditas manifestações que tomaram as ruas da Colômbia, fazendo o Governo abandonar um projeto de reforma tributária que mais uma vez passava para os mais pobres os custos da pandemia, não lhe ocorreu ideia melhor do que conclamar os seus à luta contra uma “revolução molecular dissipada” que estava a tomar conta do país. No que, há de se reconhecer, Uribe tinha razão. Normalmente, são os políticos de direita que entendem primeiro o que se passa.
A América Latina, ou ao menos uma parte substantiva do continente, está a passar por um conjunto de levante populares cuja força vem de articulações inéditas entre recusa radical da ordem econômica neoliberal, sublevações que tensionam, ao mesmo tempo, todos os níveis de violência que compõem nosso tecido social e modelos de organização insurrecional de larga extensão. As imagens de lutas contra a reforma tributária que tem à frente sujeitos trans em afirmação de sua dignidade social ou desempregados a fazer barricadas juntamente com feministas explicam bem o que “revolução molecular” significa nesse contexto. Ela significa que estamos diante de insurreições não centralizadas em um linha de comando e que criam situações que podem reverberar, em um só movimento, tanto a luta contra disciplinas naturalizadas na colonização dos corpos e na definição de seus pretensos lugares quanto contra macroestruturas de espoliação do trabalho. São sublevações que operam transversalmente, colocando em questão, de forma não hierárquica, todos os níveis das estruturas de reprodução da vida social.
De fato, o século XXI começou assim. Engana-se quem acredita que o século XXI começou em 11 de setembro de 2001, com o atentado contra o World Trade Center. Essa é a maneira como alguns gostariam de contá-lo. Pois seria a forma de colocar o século sob o signo do medo, da “ameaça terrorista” que nunca passa, que se torna uma forma normal de governo. Colocar nosso século sob o signo paranoico da fronteira ameaçada, da identidade invadida. Como se nossa demanda política fundamental fosse, em uma retração de horizontes, segurança e proteção policial.
Na verdade, o século XXI começou em uma pequena cidade da Tunísia chamada Sidi Bouzid, no dia 17 de dezembro de 2010. Ou seja, começou longe dos holofotes, longe dos centros do capitalismo global. Ele começou na periferia. Nesse dia, um vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi decidiu ir reclamar com o governador regional e exigir a devolução de seu carrinho de venda de frutas, que fora confiscado pela polícia. Vítima constante de extorsões policiais, Bouazizi foi à sede do Governo com uma cópia da lei em punho. No que ele foi recebido por uma policial que rasgou a cópia na sua frente e lhe deu um tapa na cara. Bouazizi então tacou fogo em seu próprio corpo. Depois disso, a Tunísia entrou em convulsão, o Governo de Ben Ali caiu, levando insurreições em quase todos os país árabes. Começava assim o século XXI: com um corpo imolado por não aceitar submeter-se ao poder. Começava assim a Primavera Árabe. Com um ato que dizia: melhor a morte do que a sujeição, com uma conjunção toda particular entre uma ação restrita (reclamar por ter seu carrinho de venda de frutas apreendido) e uma reação agonística (imolar-se) que reverbera por todos os poros do tecido social.
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Desde então o mundo verá uma sequência de insurreições durante 10 anos. Occupy, Plaza del Sol, Istambul, Brasil, Gillets Jaunes, Tel-Aviv, Santiago: são apenas alguns lugares por onde esse processo passou. E na Tunísia já se via o que o mundo conheceria nos próximos 10 anos: sublevações múltiplas, que ocorrem ao mesmo tempo, que recusam centralismo e que articulavam, na mesma série, mulheres egípcias que se afirmavam com seios a mostra nas redes sociais e greves gerais. A maioria dessas insurreições irá se debater com as dificuldades de movimentos que levantam contra si as reações mais brutais, que se deparam com a organização dos setores mais arcaicos da sociedade na tentativa de preservar o poder tal como sempre foi. Mas há um momento em que a repetição acaba por gerar uma mudança qualitativa. Dez anos depois, ela ocorreu e foi possível de ser vista no último domingo, no Chile.
No último domingo, o Chile elegeu uma nova Assembleia Constituinte. Depois de manifestações massivas em outubro de 2019 que fizeram as ruas chilenas queimarem até o Governo parar de matar sua própria população e aceitar convocar um processo constitucional, o Chile elegeu 155 deputados constituintes, dos quais 65 são independentes, ou seja, não vinculados a estrutura partidária alguma, mas unidos, como os 24 constituintes da Lista del Pueblo, por um “Estado ambiental, igualitário e participativo”; 79 constituintes são mulheres, sendo a única Assembleia Constituinte da história mundial a ter maioria de mulheres; 18 são povos originários, sendo que todos estão presentes (desde os Rapanui da Ilha da Páscoa até os Mapuches). A direita, que ansiava alcançar ao menos um terço para poder barrar as modificações constitucionais, terá apenas 37 deputados.
O caráter absolutamente único do processo chileno encontra-se no fato de ele se produzir como institucionalização insurrecional. Ele foi resultado de uma insurreição que exigiu imediatamente uma nova institucionalidade. Os islandeses tentaram isso, quando a crise econômica produziu profundas mobilizações populares que terminaram por produzir uma nova constituição. No entanto, o Parlamento não reconheceu a nova carta, abortando o processo.
Tal excepcionalidade andina deve ser compreendida à luz do que foi a via chilena para o socialismo. O Governo de Salvador Allende (1970-1973) procurou realizar um programa marxista através de uma mutação progressiva da vida social que preservava largas partes da estrutura da democracia liberal. Muitos criticaram tal estratégia depois do golpe, mas há de se lembrar de suas razões. Era a maneira dos chilenos e chilenas impedirem a militarização da vida social, como normalmente ocorreu em todos os processos revolucionários até agora. Havia uma questão real que o Chile procurou resolver inovando.
De certa forma, esse processo interrompido retoma agora 47 anos depois. Desde as revoltas estudantis no Governo Bachelet, o Chile viu lideranças estudantis se tornarem deputados e deputadas para arrancar do Congresso uma reforma que tornava gratuito o sistema público de ensino. Agora, eles fizeram o movimento inédito de só saírem das ruas com uma constituinte nas mãos, o que os tunisianos só conseguiram anos depois da formação do primeiro Governo pós-ditadura. Ao acoplar os dois processos, o Chile permitiu que o entusiasmo insurrecional comandasse o processo constitucional, institucionalizando sua revolução molecular.
O espectador que vê tudo isso do Brasil pergunta-se o que ocorre conosco. No entanto, erram aqueles que pensam que tal dinâmica não chegará no Brasil. Ocorre que ela encontrará uma situação muito mais dramática. Pois o Brasil é o país no qual as forças da reação organizaram-se de forma insurrecional. São setores expressivos da população que foram e irão às ruas pedir golpe militar e defender o fascismo de quem nos governa. Dentro da lógica da contrarrevolução preventiva, o Brasil, à diferença de outros países latino-americanos, foi capaz de mobilizar as dinâmicas de um fascismo popular. Por isso, o cenário tendencial entre nós é o de uma insurreição contra outra insurreição. Uma revolução fascista contra uma revolução molecular dissipada. Melhor seria estarmos preparados para tanto.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
Fonte:
El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-19/uma-revolucao-molecular-dissipada.html
Juan Arias: General da ativa com medo de declarar na CPI humilha o Exército
Nada mais humilhante para um militar da ativa ―e ainda mais para um general três estrelas como Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde― do que revelar medo e covardia. E o pior é que essa imagem de medo pode acabar afetando a imagem positiva que a instituição militar vinha tendo até agora. Ver um general como Pazuello incapaz de enfrentar uma CPI de peito aberto tem que humilhar até os simples soldados, que devem se sentir desconcertados.
Já pouco importa o que o general ex-ministro diga ou silencie. Seu comportamento de medo que o levou a se refugiar em um habeas corpus preventivo no Supremo para permanecer mudo ante as perguntas dos senadores já é uma demonstração de confissão de culpa.
Se, como já havia confessado Pazuello, ele se limitou a cumprir ordens do presidente Bolsonaro, considerado naquele momento seu superior hierárquico, bastava, como fizeram os ministros anteriores, pedir demissão e voltar ao Exército. Atribuir a atitude do general à sua personalidade difícil parece estranho para quem deveria dar exemplo, não apenas de uma pessoa que não teme a verdade, mas que também tem orgulho de aceitar que errou.
Ainda não sabemos como acabará a novela do general que pediu que permanecesse calado no Senado. Nem mesmo se ela acabará sendo escrita em sua testa por sua atitude de medo, a maior desonra para um militar ―ainda mais da sua categoria.
O general, hoje preso em sua narrativa nebulosa de comportamento, teria apenas uma forma de resgatar sua dignidade humilhada. Seria, ao chegar ao Senado, aceitar todas as perguntas que pudessem ser feitas, respondendo com lealdade militar, embora para isto precisasse revelar verdades durante seu período à frente do Ministério da Saúde, correspondente ao maior número de mortos por covid-19, mesmo que elas pudessem comprometer gravemente a imagem do presidente. Uma imagem já mais do que desgastada de um chefe de Estado que acaba de ser visto, internacionalmente, como um dos que pior geriram a pandemia entre os 14 líderes políticos mais importantes do mundo.
Bolsonaro e sua procissão de seguidores fanáticos com instintos de morte passarão, e o Brasil recuperará sua normalidade democrática depois do hiato tenebroso ao qual foi arrastado por um capitão frustrado do Exército. Ele sairá de cena, como indicam as últimas pesquisas, enquanto a instituição das Forças Armadas continuará sendo vital na defesa dos valores democráticos e da Constituição, como foi nos últimos 20 anos com Governos de diferentes tendências políticas.PUBLICIDADE
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O Brasil só pode desejar que a hierarquia do Exército ajude seu general, hoje questionado, a demonstrar que o medo não existe no dicionário militar. A responsabilidade de um desastre ou de uma conduta ditada pelo medo do general na CPI poderia acabar prejudicando gravemente a credibilidade do Exército. O resultado da conduta do ex-ministro em sua convocação à CPI poderá ter consequências inesperadas para o futuro deste país, hoje visto como um fracasso mundial de governo. Não por acaso, faltando 18 meses para as eleições presidenciais, a imprensa mundial continua atenta e preocupada com seu possível resultado e temendo que o bolsonarismo destruidor possa continuar no poder, o que traria problemas não só no cenário já turbulento da América Latina, mas no mundo. De fato, o Brasil é visto como um elemento-chave não apenas na economia, como potência mundial que é, mas também no cenário de descrédito da democracia, com o crescimento dos movimentos negacionistas e nazifascistas nos cinco continentes.
O Brasil ―mais especificamente, a CPI da Pandemia― poderia levar à saída de Bolsonaro do Governo, que revolucionaria as eleições do próximo ano. O país vive momentos difíceis, que poderiam ter repercussões negativas para várias gerações. Sabemos como as guerras tradicionais começam, mas não como terminam. O mesmo acontece com as crises políticas. E não é nenhum segredo que no Brasil, governado hoje por um presidente considerado o pior e mais imprevisível de sua história, a responsabilidade do Exército seja crucial, pois do seu apoio ou não ao capitão com vocação de ditador poderá depender o futuro deste país.
Nem vale a desculpa para os militares do medo do comunismo, já que hoje qualquer cidadão minimamente informado sabe que nem o PT nem Lula representaram, nem representam hoje, o comunismo. Basta lembrar as boas relações de Lula em seus Governos com o mundo empresarial e os bancos, que nunca ganharam tanto quanto com ele. Sem contar suas relações estreitas com os partidos conservadores e de direita, que chegaram a preocupar o grupo mais progressista e sindicalista do partido.
O temor da volta de Lula, hoje mais conservador que ontem, não deveria justificar a defesa e o apoio ao capitão agora rechaçado pela maioria da população, que apoia um impeachment do presidente. O Exército pode hoje apoiar candidatos conservadores de direita, que podem governar tranquilos, sem o perigo de uma involução do Brasil para uma aventura como a venezuelana pela ânsia patológica de Bolsonaro, que já deu provas irrefutáveis de incapacidade profissional e psíquica para governar o quinto maior país do mundo.
O Exército brasileiro está em uma encruzilhada histórica, da qual depende sua credibilidade. Seu comportamento diante da tão esperada conduta do general Pazuello na CPI da Pandemia poderá arrastar as Forças Armadas para uma grave crise no já obscuro panorama político e econômico deste país.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Fonte:
El País
Renata Giannini e Maria Eduarda Pessoa: Para construção de uma democracia sólida, uma limpa em entulhos autoritários
Uma espécie de entulho autoritário resistiu por anos esquecido em um canto, até voltar aos holofotes, em mais uma demonstração de que nossa democracia, em constante processo de construção, anda com as estruturas abaladas. Criada em 1983, a Lei de Segurança Nacional é problemática desde a sua concepção, pautada na lógica do inimigo interno. Apesar de sua raiz autoritária, ela continuou vigente no regime democrático, após a promulgação da Constituição de 1988.
Seus contornos de inconstitucionalidade, porém, só voltaram a chamar atenção com denúncias recentes de uso indiscriminado e as consequentes reações e debates protagonizados pela sociedade civil, Congresso e Supremo Tribunal Federal. As respostas das instituições e reações da sociedade civil já começaram a ser dadas, mas muitos pontos demandam a nossa atenção.
De acordo com levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, o número de procedimentos abertos pela Polícia Federal para apurar supostos delitos tipificados na Lei de Segurança Nacional aumentou 285% nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro. A segunda edição do monitoramento periódico GPS do Espaço Cívico, lançada esta semana pelo Instituto Igarapé, também indica uma intensificação nas notícias sobre a utilização abusiva da norma.
A legislação anacrônica passou a ser utilizada para fundamentar investigações contra vozes dissidentes e críticos ao governo, o que pode figurar, no mínimo, como intimidação e assédio. Neste cenário, a revisão da LSN tornou-se imperativa para a garantia do espaço cívico e da democracia brasileira.
O uso abusivo da LSN mobilizou o chamado sistema de freios e contrapesos. Antigos projetos de lei sobre o tema, que já tramitavam no Congresso, ganharam fôlego. Além disso, o Supremo Tribunal Federal foi acionado numa tentativa de revogar dispositivos específicos, ou derrubar a norma em sua integralidade. No dia 4 de maio, a Câmara, em regime de urgência, aprovou o Projeto de Lei 6.764 de 2002, que revoga a LSN e tipifica crimes contra o Estado Democrático de Direito.
O processo legislativo foi acelerado e prejudicou a realização de um amplo debate com a sociedade. Apesar disso, organizações da sociedade civil, juristas e acadêmicos conseguiram encontrar espaços para debater de forma intensa e transparente e, assim, contribuir com o texto-base. Foram realizadas duas audiências públicas e, parte relevante das recomendações e preocupações foram acatadas pela relatora, a deputada Margarete Coelho, com avanços relevantes alcançados.
Um exemplo foi a maior precisão em relação aos tipos penais, na tentativa de impedir que movimentos sociais sejam criminalizados e liberdades fundamentais dos cidadãos, cerceadas. Também passou-se a exigir a chamada “lesividade concreta das condutas”. Esse princípio da lesividade estabelece que só são passíveis de punição por parte do Estado as condutas que lesionem ou coloquem em perigo um bem jurídico penalmente tutelado, ou seja, um valor ou interesse protegido por lei em razão de sua relevância para a sociedade.
Outro componente importante incluído foi a previsão de elementos subjetivos, nos quais é analisada a intenção do agente praticar aquele delito determinado. Esses aspectos jurídicos são importantes para delimitar com clareza quem deve ou não ser alvo da lei. O crime de “sabotagem”, por exemplo, determina que as condutas previstas devem ser praticadas “com o fim de abolir o Estado Democrático de Direito”, reduzindo as chances de a norma ser usada para criminalizar manifestações e protestos legítimos.
Por outro lado, ainda há pontos que preocupam. Um deles é o grau de subjetividade do que a lei chama de disseminação de “fatos que sabe inverídicos”, que pode dar margem a eventuais censuras. E, ainda, a referência à incitação à “animosidade” – expressão excessivamente ampla, que, a depender da interpretação, pode incluir restrições a eventuais críticas contra as Forças Armadas. Seria importante indicar expressamente que só é criminalizada a incitação das Forças Armadas contra a sociedade, e não o contrário.
O texto-base aprovado, portanto, não é um projeto ideal. Porém, há de se reconhecer que está consideravelmente à frente da atual legislação, que coloca em risco o debate crítico e a liberdade de expressão. O movimento na Câmara sinaliza um progresso, especialmente no momento histórico de ameaças à democracia que enfrentamos. O texto agora segue para o Senado, que deve zelar pelos avanços até agora conquistados, e aprimorar trechos que ainda despertam preocupação. Como demonstra esse processo, a sociedade civil brasileira continuará trabalhando arduamente, tijolo por tijolo, na construção de uma democracia sólida, segura e plural.
RENATA GIANNINI é pesquisadora sênior do Instituto Igarapé.
MARIA EDUARDA PESSOA de Assis é assessora jurídica do Instituto Igarapé.
Fonte:
El País
El País: Bolsonaro tem alta na popularidade e só Lula o venceria no 2º turno em 2022, mostra pesquisa Atlas
Flávia Marreiros, El País
O presidente Jair Bolsonaro obteve uma melhora em seu nível de popularidade neste mês de maio em relação a março, revela pesquisa Atlas divulgada nesta segunda-feira. De acordo com os números, 40% da população aprova o desempenho do ultradireitista, contra 35% em março. A desaprovação também teve leve queda e foi de 60%, há dois meses, para 57% agora. A margem de erro da pesquisa é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.
Para Andrei Roman, CEO do Atlas, a melhora de Bolsonaro tem relação direta com a volta do pagamento do auxílio emergencial, a partir de abril, apesar de ter valores mais baixos do que os do benefício pago em 2020. Na visão de Roman, há ainda “um alívio relativo em relação a situação da pandemia no país”, destaca. “A pesquisa anterior, de março, foi feita no ponto de maior estresse”, pondera ele. Março e abril foram os meses mais letais da pandemia até agora no Brasil. A média de mortes caiu nas últimas semanas, mas especialistas apontam que ainda é cedo para qualquer comemoração e alertam para risco de uma nova onda de contágios com os encontros do Dia das Mães neste fim de semana. Como esperado, os índices de avaliação do Governo Bolsonaro também exibiram melhora: 31% (contra 25% em março) consideram a gestão ótima e boa, contra 53% que a consideram ruim ou péssima (eram 57% em março).
Lula também tem melhora e 2022
A pesquisa Atlas também mostra que a melhora da popularidade de Bolsonaro se refletiu em uma melhor performance nas simulações eleitorais para a corrida pela sucessão presidencial em 2022. O presidente lidera numericamente a corrida no primeiro turno, quer com a presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou não. Com Lula, aparece em empate técnico. Tanto o mandatário como o petista tiveram melhor desempenho em maio em relação a março. Bolsonaro foi de 32,7% de intenção de votos há dois meses para 37%. O petista, que conseguiu reaver seus direitos políticos após decisões do Supremo Tribunal Federal que eliminaram o veto da Lei da Ficha Limpa, também surfou na nova conjuntura. No período, o ex-presidente foi de 27,4% em março para 33,2% em maio na simulação de intenções de voto no primeiro turno.
Lula, inclusive, é o único que continua vencendo o atual ocupante do Planalto em 2022 em um eventual segundo turno, fora da margem de erro da pesquisa. O ex-presidente aparece com 45,7% contra 41% de Jair Bolsonaro, uma diferença de quase cinco pontos percentuais, quando a margem de erro da pesquisa é de dois pontos. Ciro Gomes (PDT) e o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM) aparecem numericamente à frente de Bolsonaro, mas em ambos os casos estão tecnicamente empatados.
Para Andrei Roman, Bolsonaro se beneficia da fraqueza cada vez maior de seus antigos rivais diretos no espectro de direita e centro-direita, com a redução da figura o ex-juiz Sergio Moro (aparece com 4,9% quando tinha 9,7% em março). “Há ainda a canibalização deste espaço com a entrada do Danilo Gentili”, aponta. O humorista e apresentador de TV vem sendo ventilado como um candidato da direita ―pelo mundo, vários comediantes já tentaram a sorte nas urnas como nomes antissistema, alguns com sucesso. Na pesquisa, Gentili aparece com 2%. Veja os demais nomes na simulação de primeiro turno.O levantamento também mediu a imagem positiva e negativa dos líderes. Nesse quesito, Lula e Bolsonaro aparecem quase numericamente empatados em termos de rejeição.PUBLICIDADE
A pesquisa Atlas foi realizada com 3.828 entrevistas entre os dias 6 e 9 de maio, todas feitas por meio de questionários aleatórios via internet. As respostas são calibradas por um algoritmo de acordo com as características da população brasileira.
Fonte:
El País
Juan Arias: Fracasso da CPI da Pandemia seria o triunfo de Bolsonaro para a reeleição
O presidente Jair Bolsonaro parece hoje mais nervoso e agressivo do que nunca. Voltou a ameaçar com um golpe e até pôs a ABIN em ação para investigar governadores e prefeitos. Alguns senadores, certamente afeiçoados a ele, já começaram a vazar que a CPI da Pandemia não vai dar em nada, como tantas vezes aconteceu. Se isso for verdade, será um triunfo para Bolsonaro e uma vergonha para o Brasil e o mundo. Seria seu passaporte para a reeleição no próximo ano.
E ele e suas tropas de choque entenderam que desta vez não se trata de uma CPI qualquer que investiga algum caso de corrupção política. É muito mais. Desta vez se trata de investigar e julgar um presidente que transformou o país em um cemitério com sua política de negar a epidemia, zombar da vacina e fazer pouco caso das recomendações da ciência e da medicina que teriam evitado milhares de mortes.
Nunca, de fato, uma catástrofe natural deixou pelo caminho tantos órfãos e tantas famílias desfeitas para sempre. Não. Desta vez não se trata de mais uma CPI daquelas que costumam acabar em pizza, mas de indagar com seriedade sobre os milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas sem a política negacionista do presidente.
E não se trata de vítimas de uma guerra. É muito pior. É uma matança produzida não só por um vírus invisível, mas pela cegueira de um presidente que insistiu em negar a gravidade da epidemia em favor de seus interesses pessoais. Não sei se os brasileiros estão cientes de que a epidemia não é fruto de uma fatalidade do destino, mas também da frieza e do gosto pela morte perpetrados pelo chefe do Estado e que acabaram manchando a imagem do Brasil no exterior.
Por tudo isso, se desta vez os políticos que têm nas mãos milhares de provas do desprezo do chefe de Estado pelas vítimas da pandemia não deixam de lado seus habituais compromissos partidários e a sua minúscula política que costuma dominá-los, passarão à posteridade como cúmplices de um massacre.
Tudo tem um limite, até mesmo na política, quando se trata de salvar a vida das pessoas. Zombar da morte nesta ocasião é tornar-se cúmplice de um genocídio e rir da dor de uma nação inteira.
Salvar o presidente investigado como responsável por um massacre representaria o maior descrédito político da história moderna do país, pois, por mais desacreditada que a política esteja, que tenda a olhar mais para o seu umbigo do que para o bem-estar das pessoas e a defesa da vida, há momentos históricos que exigem receitas amargas e coragem para castigar a iniquidade.
A CPI já começou mal depois da vergonhosa ausência das senadoras na comissão, já que as mulheres vêm sendo não só as maiores vítimas, mas as que sobreviverem arcarão com o maior fardo da tragédia.
Se os políticos do Senado, a quem não faltarão provas da conduta assassina daqueles que deveriam zelar pela vida das pessoas, terminarem dando vitória ao responsável por tantas mortes e permitirem que seja reeleito, eles vão acabar com seus nomes gravados em pedra para vergonha das gerações futuras.
Será que os senadores não veem que o presidente não sentiu em um só momento, não teve um impulso do coração de ir visitar um hospital onde morrem pessoas asfixiadas por falta de oxigênio, nem sequer é capaz de aceitar a responsabilidade de se mostrar solidário com a população que lhe deu o voto para que zelasse por seu destino e não para que a transformasse em um rebanho que o segue cegamente em seus instintos de morte?
Se os senadores da CPI não tomarem consciência de sua responsabilidade pelo presidente que já é aceita pela maioria da nação, terão humilhado e traído um país inteiro.
As sombras desses milhares de mortos e daqueles que ainda se poderia evitar, afastando do poder quem desafia os que continuam apostando na vida, vão acabar perturbando para sempre os sonhos dos senadores da CPI.
O Brasil não precisa de um presidente que dê armas às pessoas e destrua seu rico patrimônio ambiental, mas, sim, que tenha como prioridade a defesa da vida. Precisa de um presidente sensível à dor dos mais expostos ao perigo e que seja capaz de vencer a guerra do ódio e da mentira, hoje tão perigosos quanto um novo vírus letal.
O Brasil necessita urgentemente de um presidente que saiba abrir novos horizontes de esperança para um povo que já carrega sobre os ombros tanta morte e tanta pobreza e injustiça por causa da degradação dos políticos que trabalham mais em proveito próprio e de suas famílias do que para criar possibilidades de uma vida melhor. E isso para um povo ao qual sobram riquezas para que todos pudessem desfrutar uma vida digna. Necessita de um líder que impeça que ainda existam milhões de famílias que passam fome enquanto são testemunhas do desperdício dos políticos que tantas vezes parecem cegos e mudos diante do martírio a que um país está sendo submetido.
Os políticos, deixando o presidente livre, se encontrariam mais do que nunca em um terrível dilema que poderia levar a uma tragédia ainda maior do que a que o país já está vivendo. A CPI do Senado, que acaba de começar a investigar os possíveis crimes perpetrados durante a guerra contra a pandemia, nem sequer precisaria de meses de trabalho, pois desta vez há um consenso nacional de que o presidente é realmente o responsável pela tragédia e deu motivos mais do que suficientes para que seja exonerado de seu cargo. As provas estão à luz do sol e todos as conhecem.
Se a CPI acabar, como alguns senadores já prognosticam, salvando um presidente que aos olhos do mundo se tornou indigno e perigoso para dirigir o país, estaríamos diante de uma das pantomimas mais trágicas, e o mundo da política e da justiça acabará ainda mais humilhado e desacreditado do que já está.
O Brasil que hoje sofre, por ora, em silêncio, uma tragédia que em boa parte teria sido possível evitar, amanhã poderá se rebelar contra políticos incapazes de estar à altura de seu destino.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Fonte:
Beatriz Della Costa: A sociedade civil tem que pautar a política
Umas semanas atrás fui entrevistada por uma jornalista que me perguntou assim: “Como mudar a situação do Brasil?”. Minha primeira reação foi partir para o óbvio: lockdown, vacina e auxílio emergencial. “Mas o que podemos fazer hoje para transformar esse cenário amanhã?”, ela insistiu. Fiquei aflita, pois não tenho a resposta. O que pude dizer foi que não há solução imediata, que a ideia do impeachment se esvai a cada dia e que já está bem claro que somos triplamente reféns: do vírus, do Governo negacionista e de políticos fisiologistas.
A conversa me deixou reflexiva. Primeiro pela essência da pergunta em si, que enfatiza o quanto estamos todos ansiosos para sair do buraco. Depois, pela constatação da inexistência de uma saída rápida. O bolsonarismo está por aí desde antes de 2018 e, de uma forma ou de outra, vai persistir para além de 2022 ou 2026. Ele representa um pensamento com o qual 30% da população de certa maneira se identifica. Então, querer mudar o futuro é, primeiro, ser capaz de olhar para este presente e entendê-lo a partir das heranças do passado, boas ou ruins. Precisamos lembrar que o bolsonarismo apenas vocaliza o comportamento de um país que se desenvolveu a partir do autoritarismo, da escravidão, da violência, do extrativismo.
E o que a gente sente é que ninguém, seja no governo ou na oposição, está preocupado em fazer isso, em delinear um projeto de país. Os partidos e os políticos, os tais fisiologistas de que falei, estão ali travando uma disputa de cabo de guerra que nada tem a ver com você ou comigo. De onde, então, pode vir a esperança? A que podemos nos apegar?
Sou cética no que diz respeito a uma oposição que, sem propostas, busca a união pela via do “anti”, mas confesso que aquele primeiro discurso de Lula depois de seu retorno ao jogo político, em março, me fisgou. Vi ali uma chance de enfim fugirmos destes tempos com sabor de 1964. A questão que fica é: para que futuro Luiz Inácio nos levaria? Chegaríamos finalmente à terceira década do século XXI? Ou iríamos para o futuro de 2010, numa continuidade direta de seu segundo mandato? Seja como for, a escolha entre 1964 e 2010 não é nada difícil.
Não tenho dúvidas, entretanto, de que a única maneira de entrarmos de vez no século XXI é nos livrando por completo da ideia de salvadores da pátria. Não existe mágica, não existem personificações puras do bem e da mudança. Qualquer pessoa que se proponha a botar o país nos eixos, a nos reinserir numa linha do tempo próxima à realidade, deve governar pelo diálogo com os mais diferentes grupos da população. Lula talvez esteja dando umas dicas de que está disposto a fazer isso (anda falando de imprensa livre, segurança, relações internacionais, pandemia e de vez em quando até de meio ambiente), mas já conhecemos suas limitações: além de representar um grupo político com visões enraizadas no fim do século XX, também é, de certa forma, parte do problema que vivemos.
No meio disso tudo, a sociedade civil tem a grande missão de começar a pautar a política de maneira menos centralizada e dependente. Precisamos disseminar o diálogo construtivo entre o poder público e, também, entre a população. Desde já, as organizações precisam ouvir brasileiros de todos os tipos, brasileiros que pensam de muitas maneiras, brasileiros que votam em pessoas diferentes. Isso vai decifrar insatisfações e, o mais importante, desvendar os pontos de convergência que podem fomentar um projeto de país e repavimentar a estrada para um Brasil justo e humano. Poucos países têm uma sociedade civil tão sólida, é hora de usarmos isso a nosso favor.
Sei que estamos resolvendo emergência atrás de emergência. Quando o encanamento se rompe e tudo fica debaixo d’água, vamos pensar em chamar um bombeiro hidráulico ou na reforma da casa? É possível lidar com a urgência e ao mesmo tempo se dedicar à construção de um futuro? Só há uma resposta: tem que ser. Estamos diante do grande desafio desta geração, a reconstrução do nosso tecido social. E chegou o momento de enfrentarmos nossos medos e as sombras do nosso passado, estabelecermos conversas, praticarmos a tolerância e sairmos Brasil adentro para construir nossos sonhos para o século XXI.
Beatriz Della Costa é cientista social, cofundadora e diretora do Instituto Update, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que lançou em 2020 o projeto Eleitas: Mulheres na Política (www.eleitas.org.br), que mapeou mais de 600 mulheres e entrevistou mais de 100 para mostrar como elas vêm transformando a política, a sociedade e a democracia na América Latina.
Fonte:
El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-05/a-sociedade-civil-tem-que-pautar-a-politica.html
El País: Cancelamento do Censo 2021 é descaso do Governo e também do Congresso
DEBORA GERSHON | JOÃO FERES JÚNIOR | LEONARDO MARTINS BARBOSA
Os conflitos entre o Executivo e o Legislativo em torno do orçamento de 2021 foram por ora encerrados, mas com diversos resultados preocupantes. O orçamento foi sancionado com vetos que resultaram em cortes expressivos de recursos para políticas e programas, afetando alguns ministérios mais do que outros, a exemplo da Saúde e da Educação. Dentre as despesas cortadas no orçamento estavam aquelas destinadas à realização do Censo Demográfico em 2021.
Durante a tramitação do orçamento, o Congresso já havia reduzido o montante destinado ao Censo, inviabilizando praticamente a sua realização, não sem aviso prévio por parte da instituição responsável —o IBGE. Os vetos do Governo colocam ponto final em uma crise que se arrasta desde o final do último ano, quando o IBGE começou a manifestar preocupação com o cancelamento da pesquisa, explicitando os riscos a ele associados, como por exemplo a falta de dados atualizados para o planejamento de políticas públicas em todos os níveis da federação. Na última semana, o Ministério da Economia anunciou o adiamento da pesquisa. Contudo, no dia 28 de abril, pedido de liminar protocolado pelo governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), foi acolhido no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo ministro Marco Aurélio de Mello, revertendo a decisão da pasta e determinando que o Governo adote medidas que garantam a execução do Censo.
A decisão do ministro teve como justificativa o descumprimento, por parte do poder executivo, do dever específico, previsto na Constituição, de organizar e manter os serviços oficiais de estatística e geografia de alcance nacional (art. 21, inciso XV da CF). Tais serviços permitem à administração pública, por meio da identificação do perfil socioeconômico e demográfico da população em todo o país, formular e avaliar políticas públicas. Ademais, a interrupção da série histórica de pesquisas do Censo redunda em enorme prejuízo para a pesquisa científica em várias áreas do conhecimento, e particularmente naquelas que servem de base para o planejamento de políticas públicas, tais como demografia, geografia, sociologia, ciência política, educação, saúde pública, epidemiologia etc. No atual contexto da pandemia da covid-19, quando a gestão pública se faz ainda mais necessária, o cancelamento do Censo será desastroso.
Para além da importância dos dados censitários para a gestão pública e para a pesquisa científica, temos que levar em consideração sua importância para a gestão do federalismo. O número de habitantes de Estados, cidades e regiões é indicador utilizado para a transferência de recursos da União. Ele é também fundamental na determinação da quantidade de cadeiras das câmaras legislativas nos âmbitos nacional, estadual e municipal.
Para que se tenha ideia dos efeitos do Censo sobre a distribuição de poder em sistemas democráticos, basta observar o que ocorreu recentemente nos EUA, que têm regra semelhante à nossa para repartição de assentos legislativos por unidades federativas. Nos últimos dias, foram divulgados os dados do último censo populacional do país. Como resultado da pesquisa, seis estados ganharão novas vagas no Congresso e no colégio eleitoral, no próximo ano, dentre eles Texas, Flórida e Carolina do Norte, enquanto outros sete perderão, entre eles Nova York e Califórnia.
No Brasil, se derrubada a liminar do ministro, será a segunda vez que o Governo Bolsonaro tomará a decisão de adiar o Censo. Em 2020, a pandemia foi dada como razão. O cenário era incerto e o IBGE não tinha se preparado para adotar medidas de segurança para recenseadores e entrevistados, bem como para combinar pesquisas domiciliares com coleta de dados não presencial. Os recursos foram realocados para o combate à covid-19. Em 2021, não é esse o caso. A despeito dos avanços em termos de capacidade institucional do IBGE para execução da pesquisa em condições adversas, como as enfrentadas atualmente, o Congresso e o Governo a retiraram do orçamento.
Apesar do mérito da liminar, ao longo dos últimos dois anos ações desse tipo têm submetido o STF a críticas contundentes na Câmara e no Senado. Desta vez, todavia, não houve repercussão contrária a uma suposta interferência do Judiciário em assuntos que, supostamente, deveriam ser decididos por atores políticos com mandato popular. Dentro do Governo, a estratégia é de transferência da responsabilidade para o Legislativo, embora o Executivo tenha papel absolutamente proeminente na discussão orçamentária. No Legislativo, pesa o fato de que as negociações em torno dos cortes no orçamento não trataram o Censo, em momento algum, como um bem a ser preservado. O silêncio na tribuna é absoluto, mesmo após a deflagração do conflito entre o Executivo e o Judiciário em torno do assunto.
A fim de melhor avaliarmos o papel que o Legislativo federal teve no debate sobre o tema, fizemos uma busca em todos os discursos feitos na Câmara dos Deputados, de 1º a 30 de abril, que contivessem a palavra-chave “Censo”. A palavra foi mencionada em apenas dois discursos —dos deputados Daniel Almeida (PCdoB-BA), aliado de Dino, e Professor Israel Batista (PV-DF), presidente da Frente Parlamentar Mista de Educação— dos 1.400 discursos proferidos ao longo de todo o período e coletados por nossa equipe. Ambos os discursos ocorreram no dia 28 de abril, logo após a decisão liminar de Marco Aurélio de Mello. O único parlamentar que se antecipou à decisão do ministro foi o senador gaúcho Paulo Paim (PT-RS). Ainda no dia 14 de abril, Paim criticou o Governo federal por realizar cortes no orçamento do Censo e em outras atividades governamentais durante a pandemia. O dado é alarmante, pois a maior parte dos parlamentares mais próximos das pautas da educação superior, ciência e tecnologia, e que, portanto, seriam potencialmente mais sensíveis ao tema, não se dignou a proferir palavra sobre o assunto. Em outras palavras, poder executivo e Câmara dos Deputados estão irmanados no descaso em relação ao Censo.
Mesmo do ponto de vista mais estrito da política eleitoral, a falta de empenho das forças de oposição nesta matéria é bastante surpreendente. Se o Censo ocorrer ainda em 2021, os dados vão começar a sair em 2022. Esses dados vão provavelmente revelar a população brasileira em situação de grave penúria socioeconômica e certamente serão um prato cheio para a oposição a Bolsonaro na campanha. Ao silenciar sobre o cancelamento do Censo, a oposição abre mão de um instrumento importante para qualificar o debate eleitoral no ano que vem.
A matéria ainda não está resolvida definitivamente. O Governo tem até 30 dias para responder à decisão de Marco Aurélio. Enquanto isso, o início da apreciação da decisão monocrática (individual) do ministro já foi marcada para 7 de maio pelo pleno virtual do STF. Há um clima de incerteza acerca da tendência do tribunal nesse julgamento, inclusive com comentaristas especializados apostando na reversão da decisão. Por fim, é possível que já não haja tempo suficiente para planejar esse grande levantamento estatístico de todo país para este ano. O desserviço à população e à administração pública já são imensos, mas pode piorar ainda mais se o Censo for de fato cancelado.
*Debora Gershon é cientista política. Doutora (IESP/UERJ) e mestre em Ciência Política (IUPERJ), com pós doutorado pela University of California, San Diego (UCSD) e pesquisadora do Observatório Legislativo Brasileiro (OLB).
*João Feres Júnior é cientista político. Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), doutor em Ciência Política pela City University of New York, Graduate Center, coordenador do Observatório Legislativo Brasileiro (OLB) e do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA).
*Leonardo Martins Barbosa é cientista político. Doutor em Ciência Política pelo IESP/UERJ. É pesquisador do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) e do Núcleo de Estudos sobre o Congresso (NECON) tendo ampla experiência em análise de cenários políticos, com foco em comportamento partidário e arena legislativa.
Fonte:
El País
Rodolfo Borges: ‘Tchau, querida’ – O impeachment de Dilma na versão do diretor
É como se Iago tivesse escrito sua própria versão de Otelo. Shakespeare, no caso, seria a Rede Globo, roteirista das desgraças de todo político brasileiro —na avaliação de todo político brasileiro que cai em desgraça, como no caso do autor em questão. Não se trata de buscar em Tchau, querida – o diário do impeachment (Matrix, 2021) verdades ou mentiras. Como se filosofou no Twitter outro dia, há hoje um engarrafamento de comentaristas políticos, quando aquilo de que mais precisamos é um bom crítico de teatro. Julguemos a beleza do diário de Eduardo Cunha, portanto, como o faria Bárbara Heliodora.
O deputado cassado justifica as 800 páginas de seu longo relato, que assina com a filha Danielle, pela preocupação em se ater aos detalhes dos fatos. Já nas primeiras páginas, contudo, distribui bordoadas a desafetos como a família Garotinho, o também ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia e o ex-presidente Michel Temer —o maior alvo de seu relato, já que, ao contrário do que diz o famigerado “vice decorativo” de Dilma Rousseff, Cunha o acusa de trabalhar pelo impeachment “desde o início”. Mas é preciso reconhecer que a versão do diretor do impeachment de Dilma é bem menos romanceada que o açucarado Democracia em vertigem, para citar a crônica cinematográfica mais famosa do processo. Ao expor os meandros ordinários da política partidária do Congresso Nacional, Cunha oferece ao leitor os bastidores que sustentam o espetáculo do combate à corrupção, do enfrentamento da miséria, do crescimento econômico ou de qualquer outra bandeira virtuosa com as quais o público se entretém a cada ciclo eleitoral.
Sob a perspectiva do algoz de Dilma, a democracia brasileira sempre esteve em vertigem, mas especialmente durante o impeachment de Fernando Collor, quando o presidente foi processado politicamente por um crime comum —tanto que acabou julgado (e absolvido) pelo Supremo Tribunal Federal após renunciar para tentar escapar, sem sucesso, do julgamento político do Senado. Para deixar bem claro seu ponto, o ex-presidente da Câmara retorna no livro à proclamação da República, que classifica como um golpe de Estado, e pesca na história brasileira elementos que, somados, desembocarão no impeachment de Dilma. Esses elementos vão desde o Pacote de Abril de Geisel, que estendeu o mandato presidencial para cinco anos, o que acabaria descolando a eleição de Collor, em 1989, das eleições parlamentares e estaduais de 1992, até a vocação parlamentarista da Constituinte de 1987, conflitante com o presidencialismo adotado em sua sequência.
O presidencialismo de coalizão brasileiro é a base da instabilidade institucional para Cunha, e a opção por esse sistema só não foi mais nefasta para a República do que a adoção da possibilidade de reeleição, “o maior erro do período pós-ditadura”, que “jogou fora toda a estabilidade obtida por Fernando Henrique em seu primeiro mandato”. O livro está recheado de análises sobre estratégias feitas por um político dos mais competentes a passar pelo Parlamento brasileiro —ainda ressoa pelo plenário da Câmara a resposta de Cunha a Paulo Teixeira, em fevereiro de 2015, quando o deputado petista se valeu do “artigo 95” do regimento para tentar emplacar uma questão de ordem: “Não existe artigo 95”, respondeu de pronto o então presidente da Câmara, sem a necessidade de consultar o rebanho de assessores que ronda a mesa da presidência, deixando o adversário de momento completamente desconcertado.
Cunha aponta o clássico erro de cálculo de FHC ao deixar Lula sangrar durante a CPMI dos Correios em vez de optar pelo impeachment, optando pelo que parecia uma vitória fácil em 2006. A escolha do tucano permitiu ao petista se recuperar a ponto de conseguir se reeleger, mas se baseava em estratégia oposta —e igualmente frustrada— do próprio PT contra Collor em 1992; ao optar pelo impeachment do “caçador de marajás”, os petistas abriram espaço para a alternativa Itamar Franco e a criação do candidato FHC. Curiosamente, agora Lula estaria optando pela estratégia de deixar Jair Bolsonaro sangrar. A julgar pelo passado recente, não há garantia nenhuma de que o plano vingue. É curioso também o trecho em que Cunha explica como se baseou na ordem da votação da abertura do processo de impedimento contra Collor, do qual ele estava ao lado em 1992, para garantir de que as manobras do Governo Dilma para evitar o impeachment de 2016 não surtissem o efeito desejado.
Outra lição é dada durante a recuperação do episódio que, segundo Cunha, iniciou suas desavenças com a petista —e que a teria levado a trabalhar para isolá-lo no Congresso Nacional assim que tomou posse, em 2014. Refere-se a hidrelétrica de Furnas, onde havia diretores indicados por Cunha, trocados depois pela ex-presidenta, por suspeitas de irregularidades na gestão. “Dilma, como se vê, não havia perdoado que em 2007 eu tivesse ousado apoiar um ex-prefeito da cidade do Rio de Janeiro [Luis Paulo Conde], de extrema competência técnica, para ocupar um cargo em um setor [energia] do qual ela, naquele momento, se achava dona. Agora, eleita presidente, ela era realmente a dona de tudo”, escreve o deputado cassado. Conde presidiu Furnas, entre 2007 e 2008. “Essa é a origem de toda a raiva de Dilma contra mim”, sacramenta.
São inúmeras as vezes em que Cunha destaca os sentimentos de Dilma em relação a ele, sem mencionar o seus próprios ―e talvez não fosse necessário, pois o título e a capa de seu livro, claras provocações à petista, já o deixe bem claro. O autor segue: “Ela, pela falta de traquejo político, me transformou em seu maior inimigo, e, no curso dos anos seguintes, isso ficaria bem claro”. Em seguida, Cunha aplica a lição: “Certamente o fato de ela me transformar em inimigo acabou por me valorizar e me fazer crescer —pois em política é mais importante você escolher os adversários do que os aliados, já que os aliados se apoiam enfrentando os mesmos adversários”. E arremata: “Também em política, não se briga para baixo. Dilma, presidente da República, estava fazendo isso e não teria nada a ganhar, só a perder. Ela já era a presidente da República, e eu, um simples deputado”.
A narrativa de Cunha perde verossimilhança, contudo, quando ele tenta convencer o espectador de que a decisão de aceitar o impeachment de Dilma não teve nada a ver com o processo de cassação que ele enfrentava no Conselho de Ética e que, ao dar início à queda daquele Governo, o então presidente da Câmara pensava apenas no bem do país. Se todos os grandes eventos políticos que antecederam a derrocada de Dilma tinham uma série de variáveis político-partidárias por trás — como o próprio Cunha expõe de forma eloquente — por que apenas esse episódio, narrado pelo próprio diretor, seria diferente?
A franqueza exibida ao longo de todo o livro ganha brumas toda vez que o protagonista do enredo é Cunha —com raras exceções, como quando admite ter apresentado a proposta para limitar o número de ministérios a 20 para pressionar o Governo, e não exatamente para responder aos protestos de 2013, como alegado à época. Após descrever em tom heroico como, mudando de posição, garantiu a aprovação da MP dos Portos —que ele apelida de MP da Odebrecht, por supostamente beneficiar a empreiteira—, o autor menciona vagamente que “no meio do caminho” a Odebrecht o procurou pedindo ajuda para a votação, detalhando apenas que a empreiteira argumentou que a MP resolvia um problema de uma empresa sócia indireta do Governo, via FGTS. Argumento bom o bastante, ao que parece, para ele mudar de ideia.
Para além de indiretas, reflexões políticas, bastidores eletrizantes ―como tentativas de grampo ou mirabolantes manobras regimentais― e mesmo ousadias literárias, como a escolha por enumerar voto a voto o processo de impeachment ―“Chamei a Paraíba: Aguinaldo Ribeiro (PP); sim; Benjamin Maranhão (SD); sim; Damião Feliciano (PDT); sim (…) Faltavam apenas cinco votos”―, o livro apresenta a defesa de Cunha contra as acusações que o levaram à cassação e à prisão, fruto da Operação Lava Jato ―que, segundo ele, “atuou nos moldes de uma organização criminosa”. O leitor há de convir que seria demais exigir confissões de um político vivo ―e cada vez mais vivo, depois que um de seus pedidos de prisão foi revogado no final de abril. Afinal, como ensina Iago, quem expõe o coração à luz se arrisca a vê-lo dilacerado por gralhas.
Fonte:
El País
Agência Pública: A opção Mourão debatida por generais
Vasconcelos Quadros, Agência Pública
Em 27 meses no cargo, o general Hamilton Mourão construiu uma trajetória bem diferente da dos vices nos últimos 60 anos. Ele tem atribuições de Governo e comanda efetivamente nichos importantes da política ambiental e de relações exteriores. É, por exemplo, mediador de conflitos com a China, processo iniciado com um encontro com o presidente do país, Xi Jinping, em 2019, restabelecendo a diplomacia depois de duros ataques feitos por Jair Bolsonaro ainda na campanha.
Mourão esforça-se para não parecer que conspira, mas é visto por militares e especialistas ouvidos pela Agência Pública como um oficial de prontidão diante de uma CPI que pode levar às cordas o presidente Jair Bolsonaro pelos erros na condução da pandemia.
“Como Bolsonaro virou um estorvo, os generais agora querem colocar o Mourão no Governo”, diz o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza, um dos poucos oficiais das Forças Armadas a criticar abertamente o grupo de generais governistas que, na sua visão, “dá as ordens” e sustenta o Governo de Bolsonaro.
Ex-assessor especial do general Carlos Alberto Santos Cruz na missão de pacificação no Haiti, Jorge de Souza está entre os militares que enxergam o movimento dos generais como uma aposta num eventual impeachment e ascensão de Mourão ―que, por sua vez, tem fechado os ouvidos para o canto das sereias.
“Mourão jamais vai ajudar a derrubar Bolsonaro para ocupar a vaga. O que ele pode é não estender a mão para levantá-lo se um fato grave surgir. Honra e fidelidade são coisas muito sérias para Mourão”, diz um general da reserva que conviveu com o vice-presidente, mas pediu para não ter o nome citado.
General Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do GSI no Governo Michel Temer. Foto: José Cruz/Agência Brasil
A opção Mourão é tratada com discrição entre os generais que ocupam cargos no Governo. Três deles, Braga Netto (Defesa), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional, o GSI) e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), formam o núcleo duro fechado com o presidente. Os demais, caso a crise política se agrave, são uma incógnita. Mas são vistos como mais acessíveis à influência dos generais da reserva que romperam com Bolsonaro e articulam a formação de uma terceira via pela centro-direita.
“O que fazer se a opção em 2022 for Lula ou Bolsonaro? É sentar na calçada e chorar”, afirma à Pública o general Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do GSI no Governo Michel Temer (MDB).
Embora se recuse a fazer críticas ao presidente, Etchegoyen acha que os sucessivos conflitos entre Executivo e Judiciário criaram no país um quadro grave de “instabilidade e incertezas”, que exigirá o surgimento de lideranças mais adequadas à democracia.
“O Brasil não precisa de um leão de chácara. Precisa de alguém que conheça a política e saiba pacificar o país”, diz o general.
O ex-ministro sustenta que 36 anos depois do fim do regime militar, com a democracia madura, a reafirmação do compromisso das Forças Armadas contra qualquer aventura autoritária a cada surto da política tornou-se desnecessária e repetitiva. E cutuca a imprensa: “Alguém ensinou um modelo de análise à imprensa em que a possibilidade de golpe está sempre colocada”, diz, referindo-se à crise provocada por Bolsonaro na demissão de Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, e dos comandantes militares. Para ele, a substituição é parte da rotina de Governo e das crises decorrentes da política. “Ministros são como fusíveis que podem queimar na alta tensão da política. Quem não tiver vocação para fusível que não vá para o Governo”, afirma.
Generais articulam terceira via para eleição
As articulações por uma terceira via são comandadas por generais da reserva, que já ocuparam cargos em governos e, até o agravamento da pandemia do coronavírus, se encontravam com frequência em cavalgadas no 1º Regimento de Cavalaria de Guardas (RCG), sede dos Dragões da Independência, grupamento do Exército sediado no Setor Militar Norte de Brasília, encarregado de guarnecer o Palácio do Planalto.
Os ex-ministros Etchegoyen e Santos Cruz e o general Paulo Chagas, ex-candidato ao Governo do Distrito Federal, embora em diferentes linhas, fazem parte do grupo. Têm em comum o gosto pela equitação e bom trânsito com o vice, que também gosta do esporte e frequentava o 1º RCG ao lado de outros generais, o ex-comandante do Exército Edson Pujol e civis como Aldo Rebelo, ex-ministro da Defesa, ex-PCdoB, hoje pré-candidato à presidência em 2022 pelo Solidariedade.
Mourão defende Exército e “vai ficar na cara do gol”
Nas ocasiões em que foi sondado para substituir Bolsonaro diante da probabilidade de impeachment ou para se colocar como terceira via, Mourão rejeitou as duas hipóteses. Segundo fontes ouvidas pela Pública, ele “não se furtaria” a assumir, mas só o faria dentro de limites constitucionais, ou seja, em caso de vacância no cargo.
“O Mourão se impôs um limite ético para lidar com a política. Não disputará contra Bolsonaro e nem imporá desgaste a ele. É um homem de visão de mundo diferenciada, entende muito do que fala, compreende o país e tem trânsito confortável na política externa. Seu perfil não é do interesse do presidente e nem oposição”, avalia a fonte próxima ao vice.
Em entrevista à TV Aberta, de São Paulo, na quinta-feira, 22 de abril, Mourão disse que, por lealdade, não disputará com Bolsonaro em 2022 e apontou como seu horizonte a candidatura ao Senado ou simplesmente a aposentadoria. Em janeiro, quando veio à tona notícia sobre um assessor parlamentar da vice-presidência que falava com chefes de gabinete de vários deputados sobre a necessidade de se preparar para um eventual impeachment, Mourão o demitiu, marcando sua postura pública sobre a questão.
Crítico corrosivo de Bolsonaro e um dos mais empenhados na construção da terceira via, o general Paulo Chagas vê Mourão como um reserva preparado tanto para um eventual impeachment quanto como nome viável pela terceira via. “Benza Deus que ele aceite! Mourão tem toda capacidade para colocar ordem na casa democraticamente, mas isso agora não interessa ao presidente nem à oposição, que quer ver Bolsonaro sangrar até o fim do Governo”, diz.
O coronel Jorge de Souza pensa diferente. “Mourão não vai em bola dividida. Ficará na cara do gol”, afirma, referindo-se ao provável desgaste que Bolsonaro enfrentará com o avanço da CPI da Covid, o que, na sua opinião, poderá desengavetar um dos mais de cem pedidos de impeachment parados na Câmara.
Nesta segunda, 26 de abril, em entrevista ao jornal Valor Econômico, o vice defendeu a caserna e antagonizou mais uma vez com Bolsonaro. Afirmou que o Exército não pode ser responsabilizado pela atuação do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. E disse que chegou a aconselhar o ex-ministro a deixar o serviço da ativa quando ele assumiu o combate à pandemia. À tarde, logo depois de ter recebido a segunda dose da vacina Coronavac, se recusou a falar sobre a CPI. “Isso aí não tem nada a ver comigo. Sem comentários”, desvia-se.
A CPI deve pegar Bolsonaro em pontos frágeis: o insistente apelo à população pelo uso de medicação sem eficácia, o boicote ao distanciamento social, a falta de remédios para intubação e de oxigênio para UTIs, a recusa em comprar vacina a tempo de evitar o espantoso aumento de mortes e a demora em prover a saúde de insumos necessários ao combate à pandemia.
Reforça as acusações ―23 delas listadas pelo próprio Governo em um documento encaminhado a todos os ministérios― um pedido de impeachment da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no qual um parecer do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Britto sustenta existirem indícios fortes de crime de responsabilidade cometido pelo presidente. O parecer afirma que Bolsonaro sabotou as medidas que poderiam aliviar a tragédia, o que acabou transformando o vírus numa espécie de arma biológica contra a população. A OAB entretanto ainda não protocolou o pedido, e pode fazê-lo em pleno vigor da CPI.
Bolsonaro não conseguiu barrar a CPI e ainda terá de enfrentá-la em desvantagem, já que o controle da investigação, pelo acordo fechado, será exercido pela oposição.
“A CPI vai render manchetes diárias, mostrará nomes, extratos, vai revolver a política”, alerta o general Etchegoyen, com a experiência de quem teve sob seu controle a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e enfrentou as muitas crises do Governo Temer.
Na visão de Paulo Chagas, Bolsonaro fracassou na condução do Governo e agora está com a “cabeça na guilhotina” da CPI. Segundo o coronel Jorge de Souza, os generais têm até um plano para a hipótese de uma reviravolta que ponha Mourão no Palácio do Planalto: um pacto para enfrentamento da pandemia e dos efeitos desta na economia, seguido da demissão de ministros tidos como exóticos ou alinhados ao extremismo alimentado pelo presidente. Ele acha, no entanto, que o perfil real do vice é diferente do que é vendido pelo marketing. “Num hipotético cenário de delegacia, em que o preso é torturado para falar, Mourão faz o papel do bom policial. As pessoas gostam dele porque é informal, brinca no ‘gauchal’ e tenta passar para a imprensa a imagem de maleável. Mas que ninguém se engane. Se forçar uma pergunta que não goste, ele explode. Mourão é autoritário”, diz.
“Mourão é autoritário”, diz coronel Jorge de Souza.RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL
O coronel conta que assistiu, no QG do Exército, em 2016, o hoje vice-presidente, num inflamado discurso à tropa, chamar o coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos nomes ligados à tortura nos anos de chumbo, de herói e combatente anticomunista. “Mourão é mais preparado e mais perigoso que Bolsonaro. Ele comanda o Bolsonaro, e não o contrário”, afirma o oficial.
Para Souza, os generais terão a paciência necessária para aguardar que o agravamento da crise “consolide a ideia de Mourão é o cara”.
Em programa semanal, Mourão defende vacina e cita Gilberto Gil
Presidente do Conselho Nacional da Amazônia, Mourão tem se ocupado dos temas que considera relevantes para o país. É de sua lavra o levantamento que levou Bolsonaro a prometer neutralidade na emissão de gases de efeito estufa até 2050 e o fim do desmatamento ilegal na Amazônia até 2030, no discurso de quinta-feira (22/4) à Cúpula do Clima, visto como bom sinal pelos líderes mundiais, mas irreal diante do desmonte dos órgãos de fiscalização e da falta de previsão de recursos.
Dias antes, quando o número de vítimas do coronavírus batia a trágica marca dos 4.000 mortos diários, ele reagiu com aparente perda de paciência com a gestão da saúde: “Pô, já ultrapassou o limite do bom senso”, disse, ressaltando que era necessário um plano para salvar vidas.
Se Bolsonaro tem as já famosas lives das quintas-feiras para falar contra as medidas de combate à pandemia, Mourão tem o Por dentro da Amazônia, um programa semanal gravado às segundas-feiras destinado aos 23 milhões de habitantes da Amazônia Legal. O programa é transmitido pela Rede Nacional de Rádio pelo mesmo sinal da Voz do Brasil, gerido pela Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e chega a regiões sem acesso à internet ou à energia elétrica. Pode ser acessado também pelo YouTube.Mourão antagoniza com Bolsonaro e expõe as contradições do Governo.VALTER CAMPANATO/AGÊNCIA BRASIL
Ali ele lista focos de desmatamento, pede ajuda dos moradores e se diz preocupado com a pandemia, fazendo recomendações que deveriam partir do Palácio do Planalto. “A covid-19 está na esquina, à espreita. Não deixe de se vacinar, mantenha distância e não se aglomere”, repete sempre. Num desses programas, descontraído, se despediu com uma citação que irrita os ouvidos do presidente: “Como diria o grande Gilberto Gil, alô povo da Amazônia, aquele abraço!”. Gil, como se sabe, foi ministro da Cultura de Lula.
Na mesma transmissão, em 29 de março, ele anunciou o fim do programa Brasil Verde II, destinado a combater as atividades ilegais na Amazônia e uma espécie de menina dos olhos do vice, que havia montado uma superestrutura militar para auxiliá-lo.
No dia em que apresentava um balanço que considera positivo ―a queda de 23% no desmatamento entre 1º de junho de 2020 e 31 de março deste ano, a apreensão de 500 mil metros cúbicos de madeira, 335 tratores e mais de mil máquinas de serrarias e mineração ilegal e 3,3 bilhões de reais em multas―, Mourão foi surpreendido com boatos segundo os quais Bolsonaro pretendia criar um ministério para a Amazônia como prêmio de consolação ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que havia perdido o combate contra o vírus.
O vice desconfiou, no entanto, que o movimento não era só para socorrer Pazuello. Um assessor do Conselho da Amazônia disse à Pública que Mourão reagiu com perplexidade por não ter sido sequer consultado sobre uma opção que, de cara, esvaziaria o órgão que estruturou a duras penas, enfrentando inclusive desconfianças do entorno do próprio presidente. Mas reagiu em público com bom humor, declarando que, se um novo ministério não tivesse como meta dar corpo ao que chama de “bioeconomia”, termo que usa para se referir ao desenvolvimento sustentável, o presidente estaria procurando “deserto para mais um camelo”.
O programa Brasil Verde, uma vitrine ainda embaçada que Mourão tentou vender ao mundo, chega ao fim melancólico neste final de abril, como mais um paliativo governamental de resultado pífio no combate ao desmatamento e às queimadas.
Na contramão do ministro Ricardo Salles ―que chegou a se reunir em seu gabinete com madeireiros de Santa Catarina fornecedores da empresa que foi o principal alvo da apreensão recorde de madeira ilegal na Amazônia, realizada durante a Operação Handroanthus GLO, como revelou a Pública― o general Mourão tem apoiado as ações de repressão e, ao ser obrigado a encerrar o Brasil Verde por falta de recursos, criou o Plano Amazônia 21/22, para tentar estancar a alta incidência de crimes ambientais.
O plano prevê a sinergia de pelo menos dez órgãos de controle, mas até agora é só uma intenção. Mourão diz que a ideia é organizar concursos públicos para fiscais que se disponham a formar equipes permanentes por seis anos ininterruptos na Amazônia e que atuariam auxiliados por centrais de inteligência baseadas em Porto Velho, Belém e Manaus, em operações deflagradas de acordo com o surgimento de focos de incêndio monitorados por satélite. O vice estima que, com um gasto anual de 100 milhões de dólares, é possível chegar em 2030 com desmatamento zero.
Enquanto não deslancha, o programa Por dentro da Amazônia continua, dando voz semanalmente ao vice-presidente, todas as 2ª feiras às 9h e às 20h30. O último episódio teve pouco mais de 200 visualizações no Youtube.
Analistas veem Mourão desde como “incógnita” até “contradição emulada”
A deputada Tabata Amaral (PDT-SP) enxerga o vice como uma incógnita. “Ainda é cedo para saber de que lado está o general Mourão. Ele tem uma característica que o difere dos demais [militares do Governo], que é ser indemissível. Pode questionar, pode se posicionar, que continuará sendo o vice-presidente da República. De certa forma, ele representa uma parcela dos militares. Mas por mais que tenha um discurso mais moderado, ainda é uma pessoa que defende que não houve golpe militar. Espero que a gente não dependa dele para a sobrevivência da democracia”, diz a deputada à Pública.
Tabata fez um levantamento em parceria com o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) mostrando que, além de nove dos 21 ministros serem militares ―todos eles levaram coronéis da reserva e da ativa como assessores―, em outros escalões os cargos de confiança ligados ao Palácio do Planalto mais que triplicaram desde o Governo Dilma (eram 102 e agora são 343), com amplo destaque para o Ministério da Saúde, no qual a presença militar saltou de um para 30 na gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello.
O antropólogo Piero Leiner, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), avalia que as diferenças públicas entre presidente e vice fazem parte de uma estratégia. “Desde a eleição, Mourão faz o papel de um ‘contraditório’: Bolsonaro diz, ele desdiz. Mas é preciso ter em mente que essa é uma contradição emulada. Este é um Governo pensado e executado por militares, e Mourão está lá também para fazer esse papel de subordinação militar, que é a ideia do ‘ele manda, nós obedecemos’. A ideia é que nas várias instâncias fique clara a aparência de que Bolsonaro seria uma coisa, os militares outra. Assim, eles podem aparecer como uma instância de moderação, o que é uma premissa falsa, uma vez que Bolsonaro é obra deles”, afirma.
Um dos maiores estudiosos das Forças Armadas no Brasil, o cientista político João Roberto Martins Filho diz que a conta pelo apoio a Bolsonaro já está chegando aos militares. “As Forças Armadas, em especial o Exército, estão muito comprometidas com esse Governo e pagam o preço com grande desgaste. Tem pesquisa mostrando que já estão em terceiro lugar (18%) entre as instituições que apresentam perda de confiança da população e em último (1%) entre as que apresentaram aumento da confiança”, diz à Pública. Martins Filho se refere à pesquisa Exame/Ideias sobre o efeito da gestão da pandemia nas instituições, com 1.259 entrevistados, feita entre 5 e 7 de março e publicada no último dia 10, portanto antes das mudanças feitas por Bolsonaro no Ministério da Saúde e nos comandos da Defesa e das Forças Armadas.
O pesquisador acha que já há sintomas de insatisfação entre os militares da ativa pelo fato de Bolsonaro ter tentado interferir nos comandos em busca de uma lealdade no conflito com o STF e certa fissura no generalato que ocupa cargos no Governo. Ele, no entanto, não acredita em rompimento. “Vão procurar remendar o que foi feito e estão pensando nas eleições do ano que vem. Se perceberem que Bolsonaro pode cair, vão de Mourão, que faz aquecimento no canto do campo e é palatável”, afirma.
O coronel Jorge de Souza acha que esse desgaste será ainda maior quando a população perceber com mais clareza que os militares “são o Governo”, já que o prestígio da tropa junto à população era motivado justamente pelo distanciamento da política, rompido, segundo ele, pelo envolvimento do Alto-Comando do Exército nos movimentos que antecederam o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Dos 17 oficiais que integravam a cúpula da força à época, 16 estão ou estiveram em funções políticas nos Governos de Michel Temer e de Bolsonaro, que simplesmente militarizou a Esplanada.
“A geração dos anos 70 é o problema. Eles estão gostando do poder”, diz Jorge de Souza, para quem “é necessário fazer regredir a marcha da politização nos quartéis” e desgrudar a imagem das Forças Armadas de Bolsonaro. “Os generais não têm jogo de cintura para exercer funções políticas que são civis.”
Esta reportagem foi publicada originalmente no site da Agência Pública.
Fonte:
El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-01/a-espera-de-mourao.html
Agência Pública: A opção Mourão debatida por generais
Vasconcelos Quadros, Agência Pública
Em 27 meses no cargo, o general Hamilton Mourão construiu uma trajetória bem diferente da dos vices nos últimos 60 anos. Ele tem atribuições de Governo e comanda efetivamente nichos importantes da política ambiental e de relações exteriores. É, por exemplo, mediador de conflitos com a China, processo iniciado com um encontro com o presidente do país, Xi Jinping, em 2019, restabelecendo a diplomacia depois de duros ataques feitos por Jair Bolsonaro ainda na campanha.
Mourão esforça-se para não parecer que conspira, mas é visto por militares e especialistas ouvidos pela Agência Pública como um oficial de prontidão diante de uma CPI que pode levar às cordas o presidente Jair Bolsonaro pelos erros na condução da pandemia.
“Como Bolsonaro virou um estorvo, os generais agora querem colocar o Mourão no Governo”, diz o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza, um dos poucos oficiais das Forças Armadas a criticar abertamente o grupo de generais governistas que, na sua visão, “dá as ordens” e sustenta o Governo de Bolsonaro.
Ex-assessor especial do general Carlos Alberto Santos Cruz na missão de pacificação no Haiti, Jorge de Souza está entre os militares que enxergam o movimento dos generais como uma aposta num eventual impeachment e ascensão de Mourão ―que, por sua vez, tem fechado os ouvidos para o canto das sereias.
“Mourão jamais vai ajudar a derrubar Bolsonaro para ocupar a vaga. O que ele pode é não estender a mão para levantá-lo se um fato grave surgir. Honra e fidelidade são coisas muito sérias para Mourão”, diz um general da reserva que conviveu com o vice-presidente, mas pediu para não ter o nome citado.
General Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do GSI no Governo Michel Temer. Foto: José Cruz/Agência Brasil
A opção Mourão é tratada com discrição entre os generais que ocupam cargos no Governo. Três deles, Braga Netto (Defesa), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional, o GSI) e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), formam o núcleo duro fechado com o presidente. Os demais, caso a crise política se agrave, são uma incógnita. Mas são vistos como mais acessíveis à influência dos generais da reserva que romperam com Bolsonaro e articulam a formação de uma terceira via pela centro-direita.
“O que fazer se a opção em 2022 for Lula ou Bolsonaro? É sentar na calçada e chorar”, afirma à Pública o general Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do GSI no Governo Michel Temer (MDB).
Embora se recuse a fazer críticas ao presidente, Etchegoyen acha que os sucessivos conflitos entre Executivo e Judiciário criaram no país um quadro grave de “instabilidade e incertezas”, que exigirá o surgimento de lideranças mais adequadas à democracia.
“O Brasil não precisa de um leão de chácara. Precisa de alguém que conheça a política e saiba pacificar o país”, diz o general.
O ex-ministro sustenta que 36 anos depois do fim do regime militar, com a democracia madura, a reafirmação do compromisso das Forças Armadas contra qualquer aventura autoritária a cada surto da política tornou-se desnecessária e repetitiva. E cutuca a imprensa: “Alguém ensinou um modelo de análise à imprensa em que a possibilidade de golpe está sempre colocada”, diz, referindo-se à crise provocada por Bolsonaro na demissão de Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, e dos comandantes militares. Para ele, a substituição é parte da rotina de Governo e das crises decorrentes da política. “Ministros são como fusíveis que podem queimar na alta tensão da política. Quem não tiver vocação para fusível que não vá para o Governo”, afirma.
Generais articulam terceira via para eleição
As articulações por uma terceira via são comandadas por generais da reserva, que já ocuparam cargos em governos e, até o agravamento da pandemia do coronavírus, se encontravam com frequência em cavalgadas no 1º Regimento de Cavalaria de Guardas (RCG), sede dos Dragões da Independência, grupamento do Exército sediado no Setor Militar Norte de Brasília, encarregado de guarnecer o Palácio do Planalto.
Os ex-ministros Etchegoyen e Santos Cruz e o general Paulo Chagas, ex-candidato ao Governo do Distrito Federal, embora em diferentes linhas, fazem parte do grupo. Têm em comum o gosto pela equitação e bom trânsito com o vice, que também gosta do esporte e frequentava o 1º RCG ao lado de outros generais, o ex-comandante do Exército Edson Pujol e civis como Aldo Rebelo, ex-ministro da Defesa, ex-PCdoB, hoje pré-candidato à presidência em 2022 pelo Solidariedade.
Mourão defende Exército e “vai ficar na cara do gol”
Nas ocasiões em que foi sondado para substituir Bolsonaro diante da probabilidade de impeachment ou para se colocar como terceira via, Mourão rejeitou as duas hipóteses. Segundo fontes ouvidas pela Pública, ele “não se furtaria” a assumir, mas só o faria dentro de limites constitucionais, ou seja, em caso de vacância no cargo.
“O Mourão se impôs um limite ético para lidar com a política. Não disputará contra Bolsonaro e nem imporá desgaste a ele. É um homem de visão de mundo diferenciada, entende muito do que fala, compreende o país e tem trânsito confortável na política externa. Seu perfil não é do interesse do presidente e nem oposição”, avalia a fonte próxima ao vice.
Em entrevista à TV Aberta, de São Paulo, na quinta-feira, 22 de abril, Mourão disse que, por lealdade, não disputará com Bolsonaro em 2022 e apontou como seu horizonte a candidatura ao Senado ou simplesmente a aposentadoria. Em janeiro, quando veio à tona notícia sobre um assessor parlamentar da vice-presidência que falava com chefes de gabinete de vários deputados sobre a necessidade de se preparar para um eventual impeachment, Mourão o demitiu, marcando sua postura pública sobre a questão.
Crítico corrosivo de Bolsonaro e um dos mais empenhados na construção da terceira via, o general Paulo Chagas vê Mourão como um reserva preparado tanto para um eventual impeachment quanto como nome viável pela terceira via. “Benza Deus que ele aceite! Mourão tem toda capacidade para colocar ordem na casa democraticamente, mas isso agora não interessa ao presidente nem à oposição, que quer ver Bolsonaro sangrar até o fim do Governo”, diz.
O coronel Jorge de Souza pensa diferente. “Mourão não vai em bola dividida. Ficará na cara do gol”, afirma, referindo-se ao provável desgaste que Bolsonaro enfrentará com o avanço da CPI da Covid, o que, na sua opinião, poderá desengavetar um dos mais de cem pedidos de impeachment parados na Câmara.
Nesta segunda, 26 de abril, em entrevista ao jornal Valor Econômico, o vice defendeu a caserna e antagonizou mais uma vez com Bolsonaro. Afirmou que o Exército não pode ser responsabilizado pela atuação do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. E disse que chegou a aconselhar o ex-ministro a deixar o serviço da ativa quando ele assumiu o combate à pandemia. À tarde, logo depois de ter recebido a segunda dose da vacina Coronavac, se recusou a falar sobre a CPI. “Isso aí não tem nada a ver comigo. Sem comentários”, desvia-se.
A CPI deve pegar Bolsonaro em pontos frágeis: o insistente apelo à população pelo uso de medicação sem eficácia, o boicote ao distanciamento social, a falta de remédios para intubação e de oxigênio para UTIs, a recusa em comprar vacina a tempo de evitar o espantoso aumento de mortes e a demora em prover a saúde de insumos necessários ao combate à pandemia.
Reforça as acusações ―23 delas listadas pelo próprio Governo em um documento encaminhado a todos os ministérios― um pedido de impeachment da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no qual um parecer do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Britto sustenta existirem indícios fortes de crime de responsabilidade cometido pelo presidente. O parecer afirma que Bolsonaro sabotou as medidas que poderiam aliviar a tragédia, o que acabou transformando o vírus numa espécie de arma biológica contra a população. A OAB entretanto ainda não protocolou o pedido, e pode fazê-lo em pleno vigor da CPI.
Bolsonaro não conseguiu barrar a CPI e ainda terá de enfrentá-la em desvantagem, já que o controle da investigação, pelo acordo fechado, será exercido pela oposição.
“A CPI vai render manchetes diárias, mostrará nomes, extratos, vai revolver a política”, alerta o general Etchegoyen, com a experiência de quem teve sob seu controle a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e enfrentou as muitas crises do Governo Temer.
Na visão de Paulo Chagas, Bolsonaro fracassou na condução do Governo e agora está com a “cabeça na guilhotina” da CPI. Segundo o coronel Jorge de Souza, os generais têm até um plano para a hipótese de uma reviravolta que ponha Mourão no Palácio do Planalto: um pacto para enfrentamento da pandemia e dos efeitos desta na economia, seguido da demissão de ministros tidos como exóticos ou alinhados ao extremismo alimentado pelo presidente. Ele acha, no entanto, que o perfil real do vice é diferente do que é vendido pelo marketing. “Num hipotético cenário de delegacia, em que o preso é torturado para falar, Mourão faz o papel do bom policial. As pessoas gostam dele porque é informal, brinca no ‘gauchal’ e tenta passar para a imprensa a imagem de maleável. Mas que ninguém se engane. Se forçar uma pergunta que não goste, ele explode. Mourão é autoritário”, diz.
“Mourão é autoritário”, diz coronel Jorge de Souza.RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL
O coronel conta que assistiu, no QG do Exército, em 2016, o hoje vice-presidente, num inflamado discurso à tropa, chamar o coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos nomes ligados à tortura nos anos de chumbo, de herói e combatente anticomunista. “Mourão é mais preparado e mais perigoso que Bolsonaro. Ele comanda o Bolsonaro, e não o contrário”, afirma o oficial.
Para Souza, os generais terão a paciência necessária para aguardar que o agravamento da crise “consolide a ideia de Mourão é o cara”.
Em programa semanal, Mourão defende vacina e cita Gilberto Gil
Presidente do Conselho Nacional da Amazônia, Mourão tem se ocupado dos temas que considera relevantes para o país. É de sua lavra o levantamento que levou Bolsonaro a prometer neutralidade na emissão de gases de efeito estufa até 2050 e o fim do desmatamento ilegal na Amazônia até 2030, no discurso de quinta-feira (22/4) à Cúpula do Clima, visto como bom sinal pelos líderes mundiais, mas irreal diante do desmonte dos órgãos de fiscalização e da falta de previsão de recursos.
Dias antes, quando o número de vítimas do coronavírus batia a trágica marca dos 4.000 mortos diários, ele reagiu com aparente perda de paciência com a gestão da saúde: “Pô, já ultrapassou o limite do bom senso”, disse, ressaltando que era necessário um plano para salvar vidas.
Se Bolsonaro tem as já famosas lives das quintas-feiras para falar contra as medidas de combate à pandemia, Mourão tem o Por dentro da Amazônia, um programa semanal gravado às segundas-feiras destinado aos 23 milhões de habitantes da Amazônia Legal. O programa é transmitido pela Rede Nacional de Rádio pelo mesmo sinal da Voz do Brasil, gerido pela Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e chega a regiões sem acesso à internet ou à energia elétrica. Pode ser acessado também pelo YouTube.
Mourão antagoniza com Bolsonaro e expõe as contradições do Governo.VALTER CAMPANATO/AGÊNCIA BRASIL
Ali ele lista focos de desmatamento, pede ajuda dos moradores e se diz preocupado com a pandemia, fazendo recomendações que deveriam partir do Palácio do Planalto. “A covid-19 está na esquina, à espreita. Não deixe de se vacinar, mantenha distância e não se aglomere”, repete sempre. Num desses programas, descontraído, se despediu com uma citação que irrita os ouvidos do presidente: “Como diria o grande Gilberto Gil, alô povo da Amazônia, aquele abraço!”. Gil, como se sabe, foi ministro da Cultura de Lula.
Na mesma transmissão, em 29 de março, ele anunciou o fim do programa Brasil Verde II, destinado a combater as atividades ilegais na Amazônia e uma espécie de menina dos olhos do vice, que havia montado uma superestrutura militar para auxiliá-lo.
No dia em que apresentava um balanço que considera positivo ―a queda de 23% no desmatamento entre 1º de junho de 2020 e 31 de março deste ano, a apreensão de 500 mil metros cúbicos de madeira, 335 tratores e mais de mil máquinas de serrarias e mineração ilegal e 3,3 bilhões de reais em multas―, Mourão foi surpreendido com boatos segundo os quais Bolsonaro pretendia criar um ministério para a Amazônia como prêmio de consolação ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que havia perdido o combate contra o vírus.
O vice desconfiou, no entanto, que o movimento não era só para socorrer Pazuello. Um assessor do Conselho da Amazônia disse à Pública que Mourão reagiu com perplexidade por não ter sido sequer consultado sobre uma opção que, de cara, esvaziaria o órgão que estruturou a duras penas, enfrentando inclusive desconfianças do entorno do próprio presidente. Mas reagiu em público com bom humor, declarando que, se um novo ministério não tivesse como meta dar corpo ao que chama de “bioeconomia”, termo que usa para se referir ao desenvolvimento sustentável, o presidente estaria procurando “deserto para mais um camelo”.
O programa Brasil Verde, uma vitrine ainda embaçada que Mourão tentou vender ao mundo, chega ao fim melancólico neste final de abril, como mais um paliativo governamental de resultado pífio no combate ao desmatamento e às queimadas.
Na contramão do ministro Ricardo Salles ―que chegou a se reunir em seu gabinete com madeireiros de Santa Catarina fornecedores da empresa que foi o principal alvo da apreensão recorde de madeira ilegal na Amazônia, realizada durante a Operação Handroanthus GLO, como revelou a Pública― o general Mourão tem apoiado as ações de repressão e, ao ser obrigado a encerrar o Brasil Verde por falta de recursos, criou o Plano Amazônia 21/22, para tentar estancar a alta incidência de crimes ambientais.
O plano prevê a sinergia de pelo menos dez órgãos de controle, mas até agora é só uma intenção. Mourão diz que a ideia é organizar concursos públicos para fiscais que se disponham a formar equipes permanentes por seis anos ininterruptos na Amazônia e que atuariam auxiliados por centrais de inteligência baseadas em Porto Velho, Belém e Manaus, em operações deflagradas de acordo com o surgimento de focos de incêndio monitorados por satélite. O vice estima que, com um gasto anual de 100 milhões de dólares, é possível chegar em 2030 com desmatamento zero.
Enquanto não deslancha, o programa Por dentro da Amazônia continua, dando voz semanalmente ao vice-presidente, todas as 2ª feiras às 9h e às 20h30. O último episódio teve pouco mais de 200 visualizações no Youtube.
Analistas veem Mourão desde como “incógnita” até “contradição emulada”
A deputada Tabata Amaral (PDT-SP) enxerga o vice como uma incógnita. “Ainda é cedo para saber de que lado está o general Mourão. Ele tem uma característica que o difere dos demais [militares do Governo], que é ser indemissível. Pode questionar, pode se posicionar, que continuará sendo o vice-presidente da República. De certa forma, ele representa uma parcela dos militares. Mas por mais que tenha um discurso mais moderado, ainda é uma pessoa que defende que não houve golpe militar. Espero que a gente não dependa dele para a sobrevivência da democracia”, diz a deputada à Pública.
Tabata fez um levantamento em parceria com o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) mostrando que, além de nove dos 21 ministros serem militares ―todos eles levaram coronéis da reserva e da ativa como assessores―, em outros escalões os cargos de confiança ligados ao Palácio do Planalto mais que triplicaram desde o Governo Dilma (eram 102 e agora são 343), com amplo destaque para o Ministério da Saúde, no qual a presença militar saltou de um para 30 na gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello.
O antropólogo Piero Leiner, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), avalia que as diferenças públicas entre presidente e vice fazem parte de uma estratégia. “Desde a eleição, Mourão faz o papel de um ‘contraditório’: Bolsonaro diz, ele desdiz. Mas é preciso ter em mente que essa é uma contradição emulada. Este é um Governo pensado e executado por militares, e Mourão está lá também para fazer esse papel de subordinação militar, que é a ideia do ‘ele manda, nós obedecemos’. A ideia é que nas várias instâncias fique clara a aparência de que Bolsonaro seria uma coisa, os militares outra. Assim, eles podem aparecer como uma instância de moderação, o que é uma premissa falsa, uma vez que Bolsonaro é obra deles”, afirma.
Um dos maiores estudiosos das Forças Armadas no Brasil, o cientista político João Roberto Martins Filho diz que a conta pelo apoio a Bolsonaro já está chegando aos militares. “As Forças Armadas, em especial o Exército, estão muito comprometidas com esse Governo e pagam o preço com grande desgaste. Tem pesquisa mostrando que já estão em terceiro lugar (18%) entre as instituições que apresentam perda de confiança da população e em último (1%) entre as que apresentaram aumento da confiança”, diz à Pública. Martins Filho se refere à pesquisa Exame/Ideias sobre o efeito da gestão da pandemia nas instituições, com 1.259 entrevistados, feita entre 5 e 7 de março e publicada no último dia 10, portanto antes das mudanças feitas por Bolsonaro no Ministério da Saúde e nos comandos da Defesa e das Forças Armadas.
O pesquisador acha que já há sintomas de insatisfação entre os militares da ativa pelo fato de Bolsonaro ter tentado interferir nos comandos em busca de uma lealdade no conflito com o STF e certa fissura no generalato que ocupa cargos no Governo. Ele, no entanto, não acredita em rompimento. “Vão procurar remendar o que foi feito e estão pensando nas eleições do ano que vem. Se perceberem que Bolsonaro pode cair, vão de Mourão, que faz aquecimento no canto do campo e é palatável”, afirma.
O coronel Jorge de Souza acha que esse desgaste será ainda maior quando a população perceber com mais clareza que os militares “são o Governo”, já que o prestígio da tropa junto à população era motivado justamente pelo distanciamento da política, rompido, segundo ele, pelo envolvimento do Alto-Comando do Exército nos movimentos que antecederam o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Dos 17 oficiais que integravam a cúpula da força à época, 16 estão ou estiveram em funções políticas nos Governos de Michel Temer e de Bolsonaro, que simplesmente militarizou a Esplanada.
“A geração dos anos 70 é o problema. Eles estão gostando do poder”, diz Jorge de Souza, para quem “é necessário fazer regredir a marcha da politização nos quartéis” e desgrudar a imagem das Forças Armadas de Bolsonaro. “Os generais não têm jogo de cintura para exercer funções políticas que são civis.”
Esta reportagem foi publicada originalmente no site da Agência Pública.
Fonte:
El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-01/a-espera-de-mourao.html
El País: Bem-vindos à galáxia paralela de Bolsonaro no Facebook
Naiara Galarraga Gortázar, El País
O Jair Messias Bolsonaro mais genuíno aparece toda quinta-feira em celulares e telas. Às 19 horas em ponto começa a live semanal do presidente do Brasil no Facebook. A cada sete dias, o elenco muda, mas o cenário, o roteiro e o tom variam pouco no resumo moldado à medida dos bolsonaristas da direita mais extremista. Dois indígenas, que ele apresentou como “irmãos índios”, o acompanharam esta semana como exemplo vivo do que motiva seu mais polêmico projeto legislativo para a Amazônia. Em calça e camisa, os dois convidados ofereciam a imagem do indígena de que Bolsonaro gosta, o assimilado à vida urbana. Nada a ver com os povos originários que vivem nas aldeias.
O presidente chegou a dizer que, para prosperar, os indígenas deveriam poder plantar em larga escala, cortar madeira, extrair ouro, diamantes ou construir hidrelétricas em suas terras, se assim quiserem (agora é ilegal). Falou-se em desenvolvimento social e econômico, mas nenhuma palavra sobre o valor ecológico dessas terras —que incluem a Amazônia—, a biodiversidade ou a crise climática.
O assunto que tomava as manchetes da imprensa naquele momento —o coronavírus já matou 400 mil brasileiros— foi mencionado de passagem durante a hora de transmissão, feita no Palácio do Planalto, em Brasília. Tudo sem máscaras nem distanciamento de segurança.
É uma espécie de Alô, presidente à la Bolsonaro. Versão 2.0 do formato inventado por outro populista, este de esquerda, o venezuelano Hugo Chávez. É a galáxia paralela que a extrema direita brasileira criou para se comunicar diretamente, agora desde o topo do poder político, com aqueles que permanecem ao seu lado, apesar da pandemia, da inflação, do desemprego e dos escândalos: um terço do eleitorado, segundo as pesquisas.
Com mais de 20 milhões de seguidores nas redes, reúne um grande público neste país de 210 milhões de habitantes. Quase um milhão de internautas assistiu ao último programa ao vivo, que ultrapassou os 93.000 comentários. O poder multiplicador do Facebook e do WhatsApp foi determinante para sua surpreendente vitória eleitoral em 2018 neste país sem televisão pública, onde a Rede Globo domina a televisão com imenso poder midiático.
O formato é sempre o mesmo. Bolsonaro está sentado atrás de uma mesa com um intérprete de sinais à sua esquerda (muitas vezes, a única mulher em cena, porque o Governo é quase todo masculino) e à direita, um ou dois ministros ou altos funcionários a quem ele faz perguntas como se lhes estivessem tomando a lição. Às vezes, anuncia medidas governamentais, como o bônus de Natal do Bolsa Família.
Nesta quinta-feira foi a vez do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier da Silva, delegado de polícia. Juntos, esmiuçaram a defesa do projeto de lei que visa autorizar a exploração de minérios em terras indígenas com o argumento de que não é possível que milhões de índios vivam na miséria em terras de fabulosas riquezas. Com eles, os indígenas Arnaldo, da etnia parecis, e Josélio, um surucucu. O primeiro falava em português fluente até que Bolsonaro o interrompeu: “Ei, fala alguma coisa na tua língua”.
Como todo populista, o Bolsonaro precisa de inimigos para manter as fileiras cerradas. Os desta quinta-feira eram a Europa, que apresentou como preocupada da boca pra fora com os indígenas, mas alheia às suas misérias, e as ONGs, e uma imprensa que acusa de desinformar … Também repisou as clássicas ameaças do seu manual: o socialismo, comunismo, a Venezuela, a esquerda, o partido social-democrata, “o candidato que acaba de recuperar seus direitos políticos”, referindo-se a Luiz Inácio Lula da Silva. E com os olhos postos nas eleições presidenciais de 2022, agitou o fantasma da fraude eleitoral. Gabou-se de medidas governamentais e pronunciou uma de suas frases favoritas: “Eu me chamo Messias, mas não faço milagres”.
Os dois assuntos mais quentes na imprensa tradicional apareceram apenas fugazmente. Às vítimas da covid-19, Bolsonaro dedicou poucas palavras: “Lamentamos as mortes, chegou um número enorme de mortes”, seguidas de um apelo: “A gente espera que não haja uma terceira onda, a gente pede a Deus”. E sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que vai analisar a partir da próxima terça-feira as ações e omissões do seu Governo nesta crise sanitária, disse: “A gente continua trabalhando a todo vapor, não tamos preocupados com essa CPI, nós não tamos preocupados”. Em seguida, ele anunciou a inauguração de uma dessas obras eternas.
Desde que descobriu o filão de se comunicar com o povo sem intermediários, Bolsonaro o adotou com fervor. Os FBs ao vivo são agora a zona de conforto deste presidente que não dá coletivas de imprensa, oferece poucas oportunidades de ser abordado diretamente pela imprensa e só concede entrevistas a jornalistas afins. É a sua bolha, onde ninguém o questiona ou critica. As entrevistas diretas incluem perguntas via um celular que um militar traz para ele, mas não vêm do povo, e sim de jornalistas de um programa radiofônico simpático a ele.
O Brasil acaba de cair para a 111ª posição entre 180 países na classificação anual da Repórteres Sem Fronteiras. A RSF sustenta que “o contexto tóxico em que trabalham os profissionais da imprensa brasileira” é culpa principalmente do presidente. “Os insultos, a estigmatização e as humilhações públicas orquestradas contra os jornalistas se tornaram a marca registrada do presidente Bolsonaro, de sua família e de seu círculo próximo”, acrescenta a RSF.
Durante as transmissões presidenciais ao vivo, os internautas comentam. Entre incentivos, elogios e bênçãos ardentes, petições antidemocráticas como a de Rubanubio Pereira Silva: “Presidente, esperamos uma intervenção militar com o senhor à frente”.
Neste país aficionado pelas redes sociais, muitos momentos viralizaram. Dois dos mais polêmicos: ele e seu então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, um trumpista, bebem um copo de leite em um gesto interpretado pelos internautas como um aceno aos supremacistas brancos. E no dia em que o Brasil ultrapassou 55.000 mortes por covid-19, o atual ministro do Turismo, Gilson Machado, tocou no acordeão a Ave Maria em homenagem às vítimas junto com o presidente da “gripezinha”, o ministro da Economia e a intérprete de sinais. Para os 400.000 que morreram, não houve homenagem.
Fonte:
El País