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El País: Suspeitos de matar Marielle, PM e ex-PM são presos no Rio de Janeiro

Ronie Lessa teria feito os disparos e Elcio Vieira de Queiroz, conduzido o veículo usado no crime

Dois suspeitos de matar a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, no dia 14 de março de 2018 foram presos na madrugada desta terça-feira. Ronnie Lessa, policial militar reformado, de 48 anos, é acusado de ter feito os 13 disparos contra o carro onde estava Marielle. Já Elcio Vieira de Queiroz, de 46 anos e expulso da Polícia Militar, é acusado de ter dirigido o Cobalt prata de onde saíram os tiros que mataram a vereadora do PSOL e o motorista. O crime completa um ano na próxima quinta-feira, 14 de março.

Em entrevista coletiva, Giniton Lages, chefe da DH, disse que as prisões são a conclusão da primeira fase de uma investigação que ainda está longe de acabar. Falta agora saber se alguém mandou matar Marielle Franco ou se a ideia partiu do próprio Lessa. Também é preciso saber as motivações do crime, embora já se fale em “crime de ódio”. “Esta é a primeira fase. Não tem nada encerrado. Estamos indicando quem atirou e quem conduziu o veículo. Há ainda respostas para alcançar”, destacou. Por isso, ressaltou, a polícia está cumprindo um total de 34 mandados de busca e apreensão nesta terça.

Já o governador Wilson Witzel disse que os acusados “poderão fazer uma delação premiada”. Ele disse ainda as prisões são “uma resposta importante que nós estamos dando para a sociedade: a elucidação de um crime bárbaro cometido contra uma parlamentar, uma mulher, no exercício de sua atividade democrática”.

As prisões ocorreram em uma operação conjunta do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, e da Delegacia de Homicídios (DH) da Polícia Civil da capital. A polícia e o Gaeco chegaram às 4h na casa dos investigados. Lessa mora no condomínio Vivendas da Barra, o mesmo do presidente Jair Bolsonaro (PSL). "Não detectamos uma relação direta com a família Bolsonaro", destacou Lages. “O fato dele morar no condomínio do Bolsonaro não nos diz nada, isso será confrontado no momento oportuno”, afirmou. A Operação Buraco do Lume, em referência ao local no centro do Rio onde políticos do PSOL prestam contas à população, também cumpriu outros 32 mandados de busca e apreensão para apreender documentos, telefones celulares, notebooks, computadores, armas, entre outros objetos que podem ajudar a esclarecer o crime.

De acordo com a denúncia das promotoras Simone Sibilio e Leticia Emile, o crime foi planejado nos três meses que antecederam os assassinatos. "É inconteste que Marielle Francisco da Silva foi sumariamente executada em razão da atuação política na defesa das causas que defendia. A barbárie praticada na noite de 14 de março de 2018 foi um golpe ao Estado Democrático de Direito", diz a denúncia. O MP também pediu a suspensão da remuneração e do porte de arma de fogo de Lessa, a indenização por danos morais aos familiares das vítimas e a fixação de pensão em favor do filho menor de Anderson até completar 24 anos de idade.

As provas contra Lessa e Queiroz

Segundo o Ministério Público, os dois foram denunciados depois de análises de diversas provas. Os investigadores conseguiram acessar os dados de Lessa armazenados na nuvem (servidor externo que permite acessar arquivos remotamente) e descobriram que o acusado monitorava a agenda de Marielle Franco.

Para chegar a esses dados a Polícia Civil percorreu um longo caminho durante meses. De acordo com as informações do jornal O Globo, a polícia rastreou todos os telefones que estavam ligados nos locais por onde Marielle passou naquele 14 de março. Assim, a polícia conseguiu uma extensa lista de números de telefone. O problema é que Lessa não usava um número em seu nome, mas sim um telefone "bucha", isto é, comprado com o CPF de uma outra pessoa, ainda segundo jornal. Já o número registrado em nome do sargento reformado estava com uma mulher na zona sul da cidade. O objetivo, segundo os investigadores, era confundir a polícia caso decidisse checar as antenas de telefonia.

Mas uma câmera de segurança captou a luz de um celular dentro do Cobalt prata onde estavam os assassinos da vereadora e do motorista. O carro estava parado na rua dos Inválidos, onde Marielle participava de um debate. Assim, com as informações de horário e local, a polícia fez uma outra triagem e conseguiu identificar um número que havia telefonado para uma pessoa relacionada a Lessa. Após identificá-lo, a polícia conseguiu através de uma ordem judicial acionar as empresas de aplicativos e, assim, ter acesso aos dados do sargento reformado. Verificou-se, então, que ele monitorava a agenda de Marielle Franco e havia buscado informações sobre o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL), mentor político da vereadora, além do interventor federal e general Walter Braga Netto.

Além disso, Lessa entrou no radar da polícia depois de ter sido vítima de um atentado no dia 27 de abril do ano passado, um mês depois do assassinato de Marielle e Anderson. Ele e um amigo estavam em um carro na Barra da Tijuca quando um homem em uma motocicleta se aproximou e atirou. Lessa reagiu e o rapaz fugiu. Baleado, deu entrada no Hospital Municipal Lourenço Jorge e saiu sem dar esclarecimentos. A polícia disse que havia possibilidade de ser um assalto, mas não descartou a hipótese de que o atentado foi uma tentativa de queima de arquivo.


El País: O Brasil de Bolsonaro, segundo cinco famílias

O presidente acaba de entrar no terceiro mês de Governo. O EL PAÍS entrevistou, em cinco cidades, vários de seus eleitores e uma família que não o apoia para saber o que pensam de seus primeiros passos no Governo e sua expectativa para o futuro sob o mandatário

Por Joana Oliveira, Naiara Galarraga Gortázar, Afonso Benites, Liege Albuquerque e Naira Hofmeister, do El País

Há muitas décadas o Brasil não tinha um presidente como ele. Ultradireitista, militar da reserva, nostálgico da ditadura, linguarudo, abertamente homofóbico, racista e misógino. Mas também fazia anos que um chefe de Estado não gerava tanto entusiasmo (e tantos temores) no país. Jair Messias Bolsonaro completou dois meses no cargo, incluindo os 17 dias em que esteve hospitalizado, com uma aprovação pessoal de 57% e uma avaliação positiva do Governo de 39%, números que empalidecem em comparação com os 83% do Governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua despedida, mas que representam um aumento de otimismo depois do desencanto e do ceticismo que marcaram o período anterior.

Para sondar o Brasil de Bolsonaro, o EL PAÍS viajou a cinco cidades(Salvador, São Paulo, Manaus, Porto Alegre e Brasília), onde entrevistou famílias que encarnam os quatro pilares de seu programa de Governo (segurança, valores, economia e combate à corrupção) e uma quinta que representa o eleitorado que não votou nele nas eleições —Bolsonaro foi eleito com 55% dos votos contra 45% do adversário, Fernando Haddad (PT).

Salvador

Governo Jair Bolsonaro
O casal Rita Paim e Sérgio Pretto, de Salvador. RENATO ALBAN

SEGURANÇA | FAMÍLIA PAIM-PRETTO

Rita Paim, 52 anos; Sérgio Pretto, 60 anos.
Residência
: Salvador.
Prioridades: "Primeiro tem que colocar ordem e depois buscar o progresso. Isso é o mais importante para o Brasil agora"

Quando a Rita de Cássia Paim, representante farmacêutica de 52 anos, escutou pela primeira vez Jair Bolsonaro falar sobre segurança pública durante a campanha eleitoral, lembrou-se imediatamente do assalto à mão armada que sofreu na porta de sua casa, em Salvador. “Levaram meu carro, levaram tudo. Foi uma experiência horrível. Por isso votei no presidente: pensando em segurança”, conta, em seu apartamento de um bairro de classe média-alta de Salvador, a poucos metros da orla da capital baiana.

Em 2017, o Brasil bateu um novo recorde de mortes violentas, com 63.880 homicídios (sete por hora), e houve um aumento também no número de estupros (60.000). A Bahia é um dos Estados mais perigosos: detém o recorde de mortes violentas de jovens entre 15 e 29 anos, segundo o último Atlas da Violência. Somente em Salvador, com 2,6 milhões de habitantes, houve 80 latrocínios (roubo com morte) —um aumento de 27%— e cerca de 2.000 assaltos a ônibus, segundo as autoridades.

Rita e o namorado, o designer gráfico Sérgio Pretto, de 60 anos, fazem parte da minoria soteropolitana que votou em Bolsonaro no ano passado. Em Salvador, o então candidato do PSL perdeu em todos os colégios eleitorais e obteve apenas 31% dos votos válidos, contra 68% do candidato petista, Fernando Haddad. O agora presidente obteve seus melhores resultados nos bairros mais nobres da cidade, entre eles, a Pituba (onde vive o casal), e onde a crescente violência preocupa os moradores. “Somos nós que vivemos presos. Os comerciantes estão atrás de grades, nós trancados dentro de casa, temos medo de sair. Meu filho tem um comércio e vive assustado, deixa de abrir a loja no carnaval por medo do aumento de assaltos”, lamenta Sérgio, em uma sala com um grande oratório barroco, onde tem destaque a figura de um Cristo crucificado.

Ambos votaram no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante anos, até ele ser eleito, acreditando que “ele iria salvar o mundo”. Hoje, dizem-se decepcionados com o “desastre que foram os Governos Lula” e evitam até mesmo mencionar o nome do ex-presidente e do Partido dos Trabalhadores. Bolsonaro ganhou a confiança e admiração deles com suas propostas como a redução da maioridade penal (de 18 para 16 anos) e promessas de endurecimento das penas para criminosos. O casal, entretanto, ridiculariza o uso do termomito.“O cara tinha umas tiradas meio de doido, quando dizia que ‘tem que matar mesmo’, mas hoje ele expressa melhor essas ideias”, avalia Sérgio.

Ele e sua companheira celebraram a assinatura do decreto que facilita o posse de armas —a Bahia é o Estado com o maior número de mortes por arma de fogo (5.450, em 2016), de acordo com o Atlas da Violência—. “Bolsonaro está certo, porque o pessoal já tem arma, agora só vai legalizar isso. Você estará munido para defender-se”, diz Rita, que não se considera “capacitada” para ter uma arma de fogo. “As pessoas que são contra até falam que a violência contra a mulher aumentaria, mas as mulheres que são espancadas, que são vítimas de feminicídio, infelizmente continuarão morrendo com ou sem uma lei de posse de armas. É uma questão cultural, de educação da sociedade”, acrescenta o designer.

O casal também avalia positivamente o projeto de lei anticrime apresentado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro (o primeiro juiz a condenar Lula por corrupção), que altera 14 legislações e endurece o combate à corrupção, ao crime organizado e a crimes praticados com violência.

E discordam dos opositores que, em defesa dos direitos humanos, discordam do presidente. “Esse negócio de ser bonzinho não dá certo. Direitos humanos para marginal? Bolsonaro está extremamente correto quando diz que vai ter tolerância zero e que os policiais poderão agir”, diz Rita. “Os direitos humanos são uma coisa que não sei para quê existe, sinceramente”, acrescenta Sérgio.

São Paulo

O pastor evangélico Marcelo Galdino com seu filho Levy em São Paulo.
O pastor evangélico Marcelo Galdino com seu filho Levy em São Paulo. LELA BELTRÃO

VALORES | FAMÍLIA GALDINO

Marcelo Galdino, 34 anos; Liliana Galdino.
Residência: São Paulo.
Prioridades: Que o Governo "desideologize as escolas"

O pastor evangélico Marcelo Galdino Júnior logo soube que Bolsonaro era seu candidato. Gostou dos valores que ele defendia, de seu discurso e suas promessas.

Galdino, de 34 anos, e sua mulher, Liliana, tinham vinte e poucos anos quando começaram a formar uma família que hoje inclui três filhos. Para eles, é prioridade que o novo Executivo se concentre na educação. E que, como dizem os bolsonaristas, "desideologize as escolas", explica ele no templo da Igreja Assembleia de Deus, em um bairro no sul de São Paulo, onde lidera 100 mil paroquianos. E isso significa que a escola dê a Giovanna (12 anos), Marcelo Levy (4 anos) e o bebê Pedro (18 meses) educação básica, mas não os eduque em valores. Esse capítulo da formação tem de permanecer em casa. E se forem falar sobre sexualidade na escola, que falem sobre biologia, não de ideologia, ele diz. "Nós educamos nossos filhos em valores cristãos. Se outras famílias querem educar os seus em outros, tudo bem, mas que façam isso em casa", enfatiza.

Este pastor explica assim qual é a primeira coisa que se espera do Governo de Bolsonaro em matéria de valores: "acabar com a ideologia implementadas pelo Governo anterior, que pretendia ocultar da mente de nossos filhos o que está na Constituição, que diz que a família é a união de um homem, uma mulher e seus filhos". Assim consta no artigo 226.3 da Lei Fundamental, mas há seis anos o Poder Judiciário legalizou as uniões gays. É precisamente por causa de decisões como essa que incomoda a Galdino que "o Supremo Tribunal legisle" sem que o Congresso se pronuncie. Ele argumenta que, se o Estado quer falar sobre "a questão de gênero" ou famílias com duas mães ou dois pais, deve fazer isso na universidade, "onde os alunos já têm discernimento", não com crianças como seu pequeno Marcelo Levy.

Galdino e seus fiéis encarnam o voto evangélico no Brasil, a pujança de uma comunidade que não para de alcançar novos patamares de poder social e político. Eles apoiaram Bolsonaro em massa até colocar os valores, a moral, no topo da agenda política. Se em 1991 representavam 9% dos brasileiros, duas décadas depois já eram 20%, segundo o último censo.

O templo de Galdino impressiona mesmo vazio. Pode abrigar até 2.700 pessoas. O pastor explica que este distrito de Santo Amaro é de comerciantes, "o que chamamos de classe B, mas pessoas de classes C e D vêm até aqui", porque a igreja está estrategicamente localizada ao lado da estrada, em um ponto de fácil acesso para muitos lugares da metrópole.

Este líder evangélico (e muitos outros como ele) encontrou na Internet um púlpito para falar sobre política a quem quiser ouvir (incluindo seus fiéis), sem infringir a lei. Galdino dedicou nada menos que 17 transmissões ao vivo de sua página no Facebook (que tem mais de 10 mil seguidores) a Bolsonaro e suas propostas eleitorais. Foram 17 porque esse era o número da candidatura do ex-capitão, que cresceu como candidato na rede social.

"Eu realmente gostei que no início deste Governo o ministro da Educação tenha anunciado que voltarão a dar português, matemática ...". Mas, agora, esses assuntos não são ensinados? "Sim, são, mas as escolas reforçaram o ensino da ideologia", insiste.

O pastor não tem urgência em mudar as leis que amparam o casamento homossexual ou o aborto (permitido em três casos). É tradicional, mas não fundamentalista. "Sou contra o aborto. Acredito que a lei atual já serve muito bem à sociedade", explica. Acha que seria bom que a norma fosse abolida, mas, para ele, é mais urgente no momento estimular a economia e combater o crime.

Galdino enfatiza que ele e sua mulher ensinam os filhos "que devemos respeitar todo mundo, seja qual for sua opção sexual, se são ricos ou pobres, se são negros ... somos todos iguais". O respeito pelos outros e à lei vigente são inegociáveis para ele. Também não se incomoda que Bolsonaro seja católico. Está animado que ele tenha transformado famílias como a sua em uma bandeira da mudança.

Porto Alegre

A família Prado Neves em sua casa, em Porto Alegre.
A família Prado Neves em sua casa, em Porto Alegre. TANIA MEINERZ

ECONOMIA | FAMÍLIA PRADO NEVES

Ereni (57), Gessian (29) e Anriel (24 anos)
Residência: Porto Alegre
Prioridades: Crescimento econômico e estabilidade de emprego para a família. Só a matriarca tem um emprego com carteira assinada na família

A família Prado Neves vive na periferia de Porto Alegre. “É a última travessa da Rua 9 de Junho antes de ela virar chão batido”, explica Anriel, 24 anos, referindo-se a uma das poucas vias que cortam a comunidade de cima a baixo. Partilham do mesmo otimismo com o que a maioria dos brasileiros encaram o início do Governo que acaba de começar, segundo as pesquisas. O que os Prado Neves realmente querem é que a economia brasileira cresça nos próximos anos. Esse é o grande desafio do novo presidente e os últimos dados foram piores que o esperado.  A economia brasileira cresceu 1,1% em 2018 em relação ao ano anterior, e a pífia expansão do Produto Interno Bruto (PIB) no último trimestre do ano anterior não refletem o otimismo do mercado e do setor privado com o presidente.

A matriarca, Ereni, é a única com contrato de trabalho registrado. Cuidadosa de idosos, lembra que já atendeu pacientes com bolsa de colostomia, como a que o presidente utilizava o final de janeiro, e se comove pensando que o presidente manteve a rotina de trabalho mesmo com essa limitação. “Não é fácil”, assegura. Seu filho, Anriel, dirige Uber. E sua filha, Gessian, 29 anos, foi mãe pela terceira vez e ainda não voltou a trabalhar. Somando os salários dos três, incluindo a ajuda social que Gessian recebe pelo Bolsa Família, este lar de seis pessoas se mantém com uma média de 3.000 ao mês.

Gessian espera sua filha Lara, de 10 meses, completar um ano, a idade mínima exigida pelas creches municipais de Morro da Cruz, para buscar emprego.“Se eu for pagar uma creche privada são 800 reais, vale mais a pena ficar em casa com ela”, diz. Ainda assim, está animada. Acha que a era Bolsonaro será positiva para encontrar uma colocação. Gessian tem experiência como vendedora no comércio local e em uma loja de departamentos, mas não faz questão de voltar para essa área. Pensa em fazer um curso que lhe abra portas em outro segmento com demanda, talvez técnica em enfermagem ou outra profissão na área da saúde, seguindo os passos de dona Ereni. E também espera que seu filho mais velho, Gabriel (14 anos), consiga começar a trabalhar pelo programa Jovem Aprendiz.

O que a matriarca da família Prado Neves quer para este ano é que a reforma da previdência —prioritária para o Governo controlar os gastos públicos— não atrapalhe seus planos de aposentadoria. Somando o tempo de juventude em que trabalhou na lavoura, plantando milho, soja e aipim, conseguiria se aposentar dentro de dois anos. “Vi que agora querem que as mulheres trabalhem até os 62, eu pretendo me aposentar com 57, mas acho que não vai dar problema para mim. Vai mudar mesmo para quem está começando”.

Anriel, o caçula de dona Ereni, foi um dos mais ativos defensores da candidatura de Bolsonaro em seu bairro na capital gaúcha. Contrariando as orientações da Uber de não mencionar suas preferências políticas aos passageiros, colocou um adesivo com a cara do agora presidente na traseira do seu automóvel —o que lhe rendeu algumas avaliações ruins por parte dos passageiros. Influenciada pela vitória do capitão reformado, o preço do dólar baixou desde as eleições. E isso é importante para Ariel, porque agora ele pode sonhar em comprar um kit multimídia para o carro e porque, supõe Anriel, isso pode ajudar a diminuir o custo de vida da família. “Com o diesel mais barato, a pessoa consegue fazer uma comida decente, porque tudo no Brasil é a base de caminhão".

Já não usa mais o adesivo no carro. O episódio da facada, que feriu o agora presidente gravemente, e a animosidade eleitoral o motivou Anriel a silenciar os gruposde WhatsApp pró-Bolsonaro.“A gente vê que não está em um país normal”, lamenta. Apesar das polêmicas e as suspeitas de corrupção envolvendo pessoas ligadas ao Governo, Anriel se mantém confiante. “Ele mesmo avisou que o começo seria ruim, duro, que poderia até piorar a situação, porque a dificuldade era muito grande”, justifica.

Brasília

Adalcyr Luiz da Silva em Brasília.
Adalcyr Luiz da Silva em Brasília. CADU GOMES

CORRUPÇÃO | ADALCYR LUIZ DA SILVA

Adalcyr Luiz da Silva (54), dentista e professor
Residência: Brasília
Prioridades: reformular o sistema político corrompido pela corrupção

Há quase quatro anos o ortodontista e professor universitário Adalcyr Luiz da Silva Júnior, de 54 anos, morador de Brasília, só liga a TV para assistir Netflix ou alguns poucos jogos de futebol. Antes, via pelo menos três telejornais diários. Agora, sua principal fonte de informação é a internet, além, é claro, as mensagens que chegam diariamente pelo WhatsApp – muitas das quais ele desconfia. Eleitor convicto do presidente, Adalcyr Júnior escolheu votar no capitão reformado principalmente por acreditar que estava no momento de alterar o sistema político que julgava estar corroído pela corrupção. “A maneira que eu encontrei de mudar esse mecanismo foi escolhendo um novo candidato. E, necessariamente, o candidato que estava mais distante do PT, que era o Governo então vigente, era o Bolsonaro”.

E o que ele espera do homem que, há pouco mais de dois meses despacha com sua caneta BIC no Palácio do Planalto? “O que eu quero de um presidente é que ele não tenha rabo preso. Eu não tenho presidente de estimação. Não tenho político de estimação”. Para os próximos anos, Adalcyr diz esperar uma melhora no combate à corrupção devido às propostas do presidente para a área. Mas ainda é um tanto cético. Afinal, na sua avaliação, a corrupção não acaba do dia para a noite, já que está arraigada na sociedade brasileira, sacudida pela Operação Lava Jato, que afetou vários partidos e empresas. Segundo a Transparência Internacional, a sociedade brasileira tem uma das piores percepções em relação à corrupção no país: ocupa a posição 105 entre 180 países, o pior resultado em anos.

“A corrupção no Brasil é um processo que está em todas as instituições. Não é só no Governo. No meu meio, mesmo, alguns colegas recebem um incentivo para poder estar indicando um determinado produto ou determinado medicamento. Isso não deixa de ser uma corrupção, porque você está tentando enganar as pessoas para que isso seja algo vantajoso”, disse. E resumiu: “Eu não acho que vá mudar, em quatro anos, toda uma cultura que já existe. Eu avalio que é um processo lento”.

Seu apoio a Bolsonaro, contudo, não é irrestrito, tampouco cego. Por exemplo, quando indagado qual nota (de 1 a 5) daria para as propostas de Bolsonaro no combate à corrupção ele foi relutante: “nota 3”. E explica a razão, dizendo que essa é uma média aritmética: “Se pegar sob o aspecto que corresponde o combate à corrupção e proposta, eu daria nota 5. Agora, quando eu vejo, situações relacionadas às atitudes de nosso presidente, principalmente no caso do [ex-ministro Gustavo] Bebianno eu daria nota 1”. Bebbiano, que foi chefe de sua campanha, foi demitido por Bolsonaro sob a suspeita de ter patrocinado um esquema de candidaturas laranjas do PSL no ano passado. A lógica de Adalcyr Júnior é que a mesma medida valeria para os filhos do presidente, caso se comprove alguma irregularidade cometida por eles.

Para a reportagem chegar ao ortodontista Adalcyr foi preciso percorrer uma espécie de périplo. Duas entrevistas antes da dele foram desmarcadas por razões semelhantes. Um dos eleitores que falaria com o EL PAÍS era um segurança de uma empresa particular que presta serviço para órgãos públicos. O outro, um gestor público da área de saúde. Ambos alegaram que seus chefes pediram para não tratarem de “assuntos espinhosos”.

O clima quase bélico das eleições do ano passado, em que o país se dividiu entre eleitores do PT e anti-petistas – ou bolsonaristas e anti-Bolsonaro – causaram um certo desconforto na família de Adalcyr. Ele, sua atual mulher, sua ex-mulher (com quem dois filhos) e seus cunhados votaram convictamente em Bolsonaro. Seus filhos, não. “Até hoje tenho uma relação um pouco estremecida com um dos meus filhos, que não concordava com a minha escolha”.

Manaus

Ana Claudia e Allan com suas filhas e a cachorrinha, em Manaus.
Ana Claudia e Allan com suas filhas e a cachorrinha, em Manaus. ALBERTO ARAÚJO

OS QUE NÃO VOTARAM | FAMÍLIA FILHO-CHAVES

Allan Kardec Filho (37 anos) e Ana Cláudia Chaves (38)
Residência: Manaus
Prioridades: Para o casal, quem conhece o passado de Jair Bolsonaro não teria votado nele. Casal não vê com otimismo o Governo

São empresários e votaram na contramão do Brasil e de Manaus, capital do Amazonas que detém 50% do eleitorado do Estado, onde vivem. Allan Kardec Filho, de 37 anos e Ana Claudia Chaves, de 38 anos, casados desde 2010, ex-vizinhos e namorados há mais de 20 anos, o casal tem origens diferentes, ele filho de empresários, ela filha de professor universitário, que convergiram num pensamento uno de esquerda. Ambos votaram em Fernando Haddad.

“Costumo dizer que Ana Claudia não é só a mulher que eu amo, é a que me salvou de um pensamento umbiguista”, diz Allan Kardec. Eles têm duas filhas: Ana Luiza, Raquel, uma cadela boxer (Greta) e seu filho Lula (em homenagem ao ex-presidente), e três gatinhos. O casal diz que não votou em Bolsonaro por considerar que qualquer pessoa que tenha estudado sua vida vida não votaria nele.

Para Ana Claudia, o discurso de Bolsonaro revela preconceitos contra as mulheres negras, algo que ela sentiu e combateu em sua vida. Toda suas expectativas em relação ao Governo são ruins. Só divergem entre eles em relação a quanto tempo irá durar. “Não vejo como esse Governo com decisões em WhatsApp e que usa Damares para distrair da reforma da Previdência possa durar mais que até o fim deste ano”, considera Ana Claudia. Já Allan Kardec acha que ele vai até o fim dos quatro anos. “A classe que o elegeu é teimosa e vai continuar apoiando seus atos, inclusive seu despreparo travestido em simplicidade tosca”.

Ex-chefe de gabinete em Brasília do então presidente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Jecinaldo Cabral, em 2012, Ana Cláudia estava no plenário quando Jecinaldo cuspiu no então deputado Bolsonaro, quando este lhe disse que deveria "comer pasto fora [do Congresso] para manter suas origens". "O que ninguém imaginaria àquela época é que ele pudesse ser o presidente da República um dia", disse a empresária.


Eliane Brum: Bolsonaro (des)governa o Brasil pelo Twitter

Ao tomar decisões pelo volume dos gritos nas redes sociais, o presidente corrompe a democracia

Em apenas dois meses de Governo, o Brasil se tornou o laboratório do novo autoritarismo. Jair Bolsonaro mostrou que pretende governar não por planejamento nem por projetos, não por estudos e cálculos bem fundamentados nem por amplos debates com a sociedade, mas sim pelos urros de quem pode urrar nas redes sociais. O presidente já fritou pelo menos um ministro e tomou decisões a partir da reação de seus seguidores. Se Donald Trump inaugurou a comunicação direta com os eleitores pela internet, na tentativa de eliminar a mediação feita por uma imprensa que faz perguntas incômodas, seu autodeclarado fã brasileiro deu um passo além. Vende como democracia o que é corrupção da democracia. Governa não para todos, mas apenas para a sua turma.

A bolsomonarquia com frequência é mais real – e efetiva – que o governo oficial

Os três filhos, também políticos profissionais, que ele chama de 01, 02 e 03, fazem o serviço de expressar a vontade do “Pai”, que eles tratam assim, com letra maiúscula. Se no Governo oficial há um ministério oficial, no cotidiano informal da internet o Governo é familiar. A bolsomonarquia digital se mostra seguidamente mais real – e também mais efetiva.

O presidente confirma e legitima o anúncio de seus “garotos”, como ele chama sua prole masculina, com um retuíte. Especialmente os de 02, Carlos Bolsonaro, vereador do Rio, também conhecido como o “pitbull” do pai. A prole feminina, como Bolsonaro já nos informou, com a elegância habitual, é resultado de uma “fraquejada”.

Foi assim quando Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria Geral da Presidência e parceiro de primeira hora da candidatura de Bolsonaro, estava enroscado com o laranjal do PSL. Bebianno deu uma entrevista ao jornal O Globo afirmando que não havia “crise nenhuma” no Governo por conta das denúncias envolvendo o partido que presidiu interinamente durante a campanha eleitoral. Para provar, afirmava que havia falado com Bolsonaro três vezes naquele dia.

O filho 02 tuitou que era “mentira absoluta” do então ministro. O pai do garoto, que por coincidência é presidente da República, retuitou. Bebianno vazou os áudios das conversas, desmentindo Bolsonaro. Ele de fato tinha falado com o presidente três vezes naquele dia. Quem mentia era Bolsonaro. Mesmo contra a vontade da ala militar do ministério, cada vez mais numerosa, Bolsonaro atendeu ao clamor e demitiu Bebianno oficialmente, depois de tê-lo fritado no Twitter. Esta é a seriedade com que a bolsomonarquia trata a administração pública.

Moro descobriu-se menos super: não tem minipoder nem para nomear uma suplente

O “superministro” Sergio Moro descobriu-se menos super na semana passada. Tratado como herói por sua atuação na Operação Lava Jato, Moro foi pressionado pelo presidente a “desconvidar” Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé, como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Szabó é uma reconhecida especialista na área da segurança, mas os seguidores de Bolsonaro a consideram “esquerdista”. Aparentemente, eles entendem que um conselho deve ter pessoas que pensam igual, porque daí não é preciso se dar ao trabalho de debater e apresentar dados consistentes para fundamentar as escolhas. Os conselheiros apenas confraternizam, dividem um pão com leite condensado, tomam um café no copinho plástico ecológico.

A capacidade cognitiva dos seguidores de Bolsonaro, porém, o país e o mundo já conhecem. O impressionante foi Moro ter cedido. E mostrado à população que não tem nem mesmo o mini poder de nomear uma suplente sem ter a aprovação da prole de Bolsonaro e sua turma. Assim que o ministro da Justiça anunciou o vexatório recuo, o 03 tuitou: “Grande dia”. Aparentemente, os garotos adoram a hashtag #GrandeDia”.

É a estética da bolsomonarquia – e não a ética – que começa a horrorizar os apoiadores e parte do ministério

Bolsonaro sabe que não é inteligente nem preparado, sabe que sua relação com o Congresso é precária e sabe também que uma parcela de seus ministros e das forças de direita que o apoiaram já está horrorizada com a vulgaridade de sua família no poder. Não significa que estes apoiadores desaprovem a violência. Apenas que prezam as boas aparências. É a estética da bolsomonarquia que os horroriza. E não a ética.

Como quando o presidente diz ao ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que está preocupado em ter que pagar os honorários do ex-amigo Bebianno, que era seu advogado em ações na Justiça. “Se ele me cobrar individualmente o mínimo, eu to f… Tem que vender uma casa minha no Rio para pagar”. O republicano diálogo do presidente da República com o ministro-chefe da Casa Civil sobre o recém demitido ministro da Secretaria Geral da República foi vazado numa “ligação acidental” de Onyx a um jornalista de O Globo.

Bolsonaro sabe também que está no meio de diferentes forças que o apoiaram para botar seus projetos de poder no topo da lista de prioridades. E sabe que nem sempre os interesses coincidem, como no caso da transferência da capital de Israel para Jerusalém, que agradaria aos evangélicos, mas desagradaria ao agronegócio. Essas forças precisavam dele para chegar ao poder central —ou para se manter no poder com ainda mais poder do que no passado. Mas não têm apreço pela sua presença no Planalto se sua figura trapalhona e truculenta, com suas crias barulhentas e mal-educadas, começarem a prejudicar os negócios.

Bolsonaro também já sentiu o bafo na nuca do vice-presidente, general da reserva Hamilton Mourão. Todo o capital que dispõe para se manter ativo no jogo, e não apenas uma marionete, é a popularidade nas redes sociais, as mesmas que garantiram a sua eleição. Bolsonaro já mostrou que fará tudo, inclusive ampliar a crise do país, se necessário, para manter esse capital ativo —o que significa manter seus seguidores sentindo-se “representados”.

As escolhas desta época são determinadas pela fé, não pela razão: mesmo ateus se comportam como crentes

Poderia ser uma contradição. Afinal, se a situação do Brasil não melhorar, não há popularidade que se mantenha. É preciso perceber, porém, que Bolsonaro faz parte de um fenômeno contemporâneo: as escolhas são determinadas pela fé, não pela razão. É o mesmo mecanismo que faz com que, em 2019, as pessoas decidam acreditar que a Terra é plana ou que achem sentido em afirmar que o Brasil e o mundo estão ameaçados pelo “comunismo” ou que faz o bolsochanceler, Ernesto Araújo, garantir que o aquecimento global é um complô de esquerda.

As eleições e o cotidiano têm sido determinados por uma interpretação religiosa da realidade. A adesão pela fé é um fenômeno mais amplo e não necessariamente ligado a um credo, já que há muitos ateus que se comportam como crentes. E não só na política, mas em todas as áreas da vida. Esta é a marca deste momento histórico.

É o que também explica que, mesmo com dois meses de um Governo em que Bolsonaro disse e desdisse o que disse, seu filho 02 chamou um ministro de mentiroso e a divulgação dos áudios mostrou que quem mentia era o presidente, mesmo com investigações que apontam envolvimento do filho 01 com a corrupção e com a milícia suspeita de ter assassinado Marielle Franco, que mesmo com as denúncias do laranjal do PSL, que mesmo com ministros enrolados com malfeitos, que mesmo com os 24.000 reais de Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, sua popularidade pessoal ainda é alta. Quase 58% acreditam que Bolsonaro mudará a vida dos brasileiros para melhor, segundo a mais recente pesquisa da Confederação Nacional do Transporte. É comprovadamente o mais desastroso início de Governo das últimas décadas, mas ainda assim Bolsonaro segue popular.

Quando a verdade se torna uma escolha pessoal, como fazer a democracia valer?

Bolsonaro tenta convencer que se mover pelos gritos dos bolsocrentes nas redes sociais é democracia. Não é. O que Bolsonaro faz prescinde de qualquer instrumento que garanta a vontade da maioria dos brasileiros a partir de processos previstos em lei, com acesso assegurado e aferição confiável. O que Bolsonaro garante é apenas o desejo de um grupo capaz de fazer seus gritos ecoarem na internet, muitas vezes pelo uso de robôs. É justamente o voto que tem sido desrespeitado dia após dia no Brasil de Bolsonaro. Mas, na época em que a verdade se tornou uma escolha pessoal, como respeitar os fatos? Quando a verdade é autoverdade, como fazer a democracia valer?

Se Bolsonaro seguir nesse rumo, e tudo indica que seguirá, o destino da maior economia da América Latina será decidido pela quantidade e volume dos urros dos bolsocrentes nas redes sociais. Nos próximos meses, a experiência brasileira mostrará como o novo autoritarismo vai evoluir no confronto com a realidade. É improvável que os diferentes grupos no poder, com ênfase na turma da farda, vão seguir o caminho vexatório de Sergio Moro.

Mourão, o vice calculadamente aparecido, segue se manifestando sobre tudo para pontuar que existe plano B – ou F de farda. Como ao declarar, sobre o desconvite de Ilona Szabó: “Eu acho que perde o Brasil. Perde o Brasil todas as vezes que você não pode sentar numa mesa com gente que diverge de você. O Brasil perde. Não é a figura A, B ou C. Perde o conjunto do nosso país e nós temos que mudar isso aí". É desconcertante quando o maior democrata do Governo é um general que já mencionou a possibilidade de “autogolpe”.

Ao atacar o Carnaval, Bolsonaro tentou deletar do país partido o que ainda resta de uma identidade comum

Estimulado pelo garoto 02, o pai presidente segue firme no seu desgoverno tuiteiro. Na terça-feira de Carnaval, sentiu-se poderoso o suficiente para abrir fogo no Twitter contra a maior festa popular do Brasil, a mesma que enche o país de turistas. Tentou deletar de um Brasil partido em vários pedaços o que ainda resta de uma identidade comum, esta que mostrou mais uma vez neste Carnaval o quanto pode ser transgressora, contraditória e insurreta. E fazer disso uma potência criadora e uma afirmação da vida, mesmo em meio às ruínas de um país.

O presidente, claro, não gostou do Carnaval mais insurgente dos últimos anos, na qual ele e sua turma viraram sátiras nas ruas. Não há maior potência do que rir do opressor. Com a desonestidade habitual, Bolsonaro escolheu uma cena isolada de um bloco isolado, na qual um homem toca seu ânus e outro urina na sua cabeça. Com a irresponsabilidade habitual, tascou o vídeo no Twitter: “Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conclusões”.

Como sabe que os bolsocrentes acreditam em qualquer coisa, Bolsonaro tentou convencer os brasileiros que o Carnaval inteiro é assim. Não é. Quem foi para as ruas sabe. Que o presidente do Brasil diga o que disse sobre a maior festa popular do país que foi eleito para governar é mais uma vergonha. Que poste o vídeo que postou no Twitter é mais uma violência entre as tantas praticadas pela bolsomonarquia e sua corte. Menos pela cena, mais pela manipulação de tentar afirmar que ela representa o Carnaval inteiro. Mentira.

O que Bolsonaro não gostou é que a obscenidade do seu Governo foi revelada nas ruas do Brasil. Então precisou encontrar uma outra para encobrir a sua.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


El País: “A esquerda não volta ao poder se não fizer uma renovação total. É um processo de 8 a 12 anos”, diz James Green

Historiador e brasilianista norte-americano conversa com o EL PAÍS sobre ditadura brasileira e a renovação que o campo progressista terá que enfrentar

Por Felipe Betim, do El País

James Green já foi chamado de "namorado" da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), com quem foi visto passeando nos Estados Unidos em 2017. Ambos se aproximaram quando ela ainda estava na presidência e ele escrevia um livro sobre o militante de esquerda Herbert Daniel, que participou da luta armada durante a ditadura, foi amigo de Rousseff e teve que, numa época em que a homossexualidade era vista como um desvio burguês pela esquerda, reprimir sua sexualidade. Revolucionário e gay: A extraordinária vida de Herbert Daniel foi lançado no Brasil em agosto de 2018 pela editora Civilização Brasileira. Historiador e brasilianista norte-americano, Green estudou ciências sociais na Universidade de São Paulo (USP) no final dos anos 70 e ajudou a fundar o PT em plena transição para a democracia. Hoje, conta, vem ao Brasil ao menos quatro vezes por ano.

Aos 68 anos, o também ativista LGBT e professor de história latino-americana e brasileira da Brown University coordena um movimento internacional nos Estados Unidos para informar sobre a atual conjuntura política do Brasil. "Já temos uma rede com 40 grupos filiados e vamos organizar 100 atividades no aniversario do assassinato de Marielle Franco, no dia 14 de março", explica. "E vamos lançar um observatório em inglês sobre a democracia no Brasil, para o público norte-americano que quer acompanhar a situação. Vamos fazer um trabalho no Congresso americano sobre o Brasil e organizar um lobby popular", conta. "Estive em Washington para falar com assessores de congressistas que estão muito interessados no Brasil, e muito preocupados com o que está acontecendo", acrescenta ele, que costuma dizer que o presidente Jair Bolsonaro "é 10 vezes pior" que seu homólogo Donald Trump. "E isso assusta as pessoas".

O historiador recebeu o EL PAÍS para uma conversa na quinta-feira, 21 de fevereiro, véspera do lançamento, para o qual foi convidado, de um site do Ministério Público Federal sobre Justiça de Transição no Brasil, um conjunto de medidas para reparar as violações de Direitos Humanos cometidas pelo Estado durante a época da última ditadura militar (1964-1985). Estudioso sobre esse período, Green acredita que as forças conservadoras que fizeram o impeachment de Rousseff e depois impulsionaram a candidatura do hoje presidente Jair Bolsonaro são as mesmas que patrocinaram o golpe de 1964. "É horrível ver tudo de novo", afirma. Para superar essa conjuntura, prega uma renovação total da esquerda, algo que ele prevê que demorará de 8 a 12 anos.

Pergunta. Na resistência ao Governo Donald Trump, uma nova esquerda surgiu nos Estados Unidos no ano passado. O que a esquerda brasileira pode aprender com ela?
Resposta. A primeira resistência a Trump foi quando ele não conseguiu músicos para a posse dele. E, depois, as mulheres organizaram milhões de pessoas, e organizaram pela base, em todos os distritos eleitorais. Houve campanhas de base em todo o país. Essa resistência refletiu nas eleições de 2018, quando mais pessoas progressistas foram eleitas com capacidade de colocar uma nova pauta de ideais sociais-democratas —não são mais que isso, mesmo o Bernie Sanders não é um revolucionário.

P. Como essa resistência deve ser organizada no Brasil?
R. Fiquei surpreso que [Fernando] Haddad tenha conseguido 45% dos votos. Mas fiquei ao mesmo tempo feliz e decepcionado, porque as pessoas acordaram muito tarde. Já estava evidente que Haddad iria para o segundo turno contra Bolsonaro, mas só depois é que as pessoas decidiram sair na rua para oferecer café e bolo para tentar virar voto. Ao invés de entender que era necessário fazer campanha eleitoral para esquerda, de qualquer partido. De todas as formas, 45% é muito se considerada a conjuntura. E uma unidade vai ser forjada concretamente ao longo dos próximos quatro anos nas práticas e frentes contra as medidas do Governo. Entendo que os partidos queiram manter seu perfil, sem querer uma frente única forte, mas se as pessoas não se unirem não vão derrotar esse Governo.

P. O que a esquerda deve trazer de novo, de propositivo?
R. Precisa pensar em como organizar as pessoas terceirizadas, as que não têm garantias de emprego, que estão marginalizadas pela maneira que o capitalismo quer desconstruir os sindicatos e uma relação de emprego estável para explorar mais as pessoas. Não existem soluções fáceis, é um processo que temos que entender, enfrentar e responder. Mas esses setores têm que ser protegidos pela sociedade. Nos EUA, uma saúde pública universal é fundamental. Porque se você é terceirizado, é um freelance, você não ganha um seguro de saúde como antigamente. Então, o Estado tem que oferecer essas proteções para as pessoas vulneráveis. Tem que garantir uma aposentadoria digna. Não vai ser fácil. O sistema antigo de financiamento da Previdência tem que ser repensado. E, neste país, os ricos não pagam impostos, quem paga é pobre e classe média. Tem que inverter isso.

P. A esquerda, não apenas a brasileira, está hoje muito engajada nas chamadas pautas identitárias. Fala-se muito sobre racismo, LGBTfobia, feminismo, questões indígenas... Mas muitos acusam esses setores progressistas de serem elitistas e sectários, por supostamente focar em pautas que não têm apelo popular, esquecendo de projetos para áreas como saúde e educação, e afastando parte do eleitorado. Concorda com essas críticas?
R. É falso, porque as campanhas de Guilherme Boulos (PSOL) e Fernando Haddad (PT) tiveram todas essas questões. Acho que a esquerda, neste momento em que está na oposição, pode cometer um grande erro de pensar que, como a direita está mobilizando sua base por valores conservadores religiosas, nós precisamos esquecer e abandonar as questões sobre a defesa dos direitos humanos e democráticos da sociedade. Você acha que não há homossexuais da classe trabalhadora? Claro que sim, e muitos. Tem em todos os setores sociais. Será que a mulher trabalhadora não é vitima de assédio e violência? Claro que é vitima, e muito. São questões totalmente integradas à luta por uma sociedade justa, que não é somente uma sociedade onde a pessoa ganha um salário mínimo de 2.000 reais. É um conjunto de necessidades para uma vida digna de qualquer pessoa. Todas as famílias brasileiras têm filhos e filhas lésbicas e gays. A maioria da população é afrodescendente e sofre discriminação todos os dias, mesmo com o discurso de democracia racial. Os povos indígenas, que são os donos dessas terras, estão ameaçados a tal ponto que suas lideranças estão tentando ter um diálogo com o novo Governo, para evitar um genocídio total. Então, dizer que são questões secundárias é não reconhecer a realidade brasileira.

P. Como esse debate se dava na época da transição para a democracia?
R. Havia setores da esquerda que diziam que havia uma única luta contra a ditadura e que todo mundo tinha que se unir, que as outras questões eram menores. Era um debate falso porque as pessoas não perceberam que a abertura implicava em democracia para todo mundo, implicava no direito das mulheres de começar a conversar sobre sua opressão, em que os negros tivessem espaço pela primeira vez criticar o racismo da sociedade brasileira, em que os LGBTs levantassem uma pauta política. Lutar pela democracia era lutar pelas liberdades democráticas para todo mundo, não só para os trabalhadores do ABC. Mas muitos utilizavam rótulos marxistas antigos do século XIX aplicado para o final do século XX, e agora estamos no XXI.

Hoje o PSOL consegue articular melhor essas questões, mas ainda é minoritário no campo da esquerda. O movimento Ele Não foi muito importante, acho que foi uma das maiores mobilizações da história do país. E é claro que isso provocou uma reação das forças conservadoras. O século XXI é o século de eliminar todas essas discriminações. E a onda Bolsonaro representa uma reação a 50 anos da esquerda lutando pelos seus direitos. Acredito que vamos acumular forças para uma contraofensiva, mas não será fácil e nem será amanhã. E, neste processo, as pessoas vão começar a perceber, como já está acontecendo com os filhos de Bolsonaro, que são populistas de direita autoritários que utilizam o discurso anticorrupção, mas são tão corruptos quantos os setores que estão criticando.

P. Mas basta se aproximar desses novos movimentos? Ou a esquerda precisa também renovar seus próprios quadros?
R. A esquerda não vai voltar ao poder se não fizer uma renovação total. É uma ilusão. Acho que é um processo de 8 a 12 anos. Se a esquerda não conseguir se recompor e incluir de maneira inteligente setores sociais, não vai ganhar a eleição. A derrota foi da esquerda como um todo. O PT vai ser fundamental nessa resistência, ele tem um apoio social que outros setores da esquerda ainda não possuem. E nós vamos recompor a esquerda na resistência contra o governo Bolsonaro e governos militares e neoliberais que vão vir depois. Bolsonaro pode se reeleger, mas Moro também pode ser presidente, Mourão pode ser presidente... Pode haver uma crise e os militares tomarem o poder. Bolsonaro é um cara muito fraco nesse movimento, ele não está preparado. Mas há um processo por trás dele.

P. Como vê a saída de Jean Wyllys do Brasil?
R. Convivo com ele, e me sinto triste porque uma pessoa tão engajada e comprometida que se sente obrigada a sair do país pode sentir como se isso fosse uma derrota. E falei para ele algo muito importante. Quando as pessoas que resistiram durante a ditadura deixaram o país, eles fizeram do exílio uma resistência. Então ele vai poder, fora do país, conversar sobre a realidade brasileira. Ele viveu isso, foi congressista três vezes, foi ameaçado, foi alvo de fake news... Ele tem capacidade de explicar essa realidade, porque ele viveu em carne e osso. Ele vai ser ainda maior no exílio que dentro do país. Mas, claro, tem que se readaptar, conhecer seus rumos... Ele não é o único exilado, e outras pessoas vão sair. Não é um exílio dourado, é muito isolamento e angústia.

P. Qual a importância de o Ministério Público lançar um site sobre Justiça da Transição no contexto político atual?
R. Estamos preocupados com a possibilidade de o novo Governo tirar os sites que já existem, como os arquivos de memórias reveladas, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), os arquivos do DOPS dos Estados... Então, a iniciativa de lançar um site novo, que vai recuperar, registrar e oferecer para o público informação sobre esse processo da Justiça de Transição, é muito importe. No Brasil a história é bem diferente das de outros países da América Latina, porque foram quase 15 anos de transição democrática e os militares conseguiram controlar esse processo. A Anistia perdoou agentes do governo que cometeram graves violações de Direitos Humanos, algo totalmente diferente da realidade argentina, por exemplo. Lá, o processo foi muito rápido, porque o Governo era brutal, torturava e matava muito mais gente. Foi um Governo de seis anos derrotado pela guerra das Malvinas, e imediatamente houve investigação sobre os crimes da ditadura. No Chile, houve o plebiscito de 1990 que Pinochet perdeu, e logo depois fizeram a comissão para investigar os crimes da ditadura. No Brasil, os anos 80 e 90 foram um momento de organização de novos partidos políticos, de canalização de toda uma energia anterior que lutava pela democratização para os novos movimentos sociais. Na Argentina e Chile, partidos que foram proibidos se reorganizaram rapidamente. Já estavam preparados, com projetos de Governo.

P. Essa demora em começar a falar do passado tem a ver também com a crise econômica e inflacionária que assolava o Brasil no momento da transição?
R. Sim, era uma crise econômica muito forte e um setor das esquerdas optou, por uma questão pragmática, e já derrotado pela Lei da Anistia, por enfatizar possibilidades novas e construir uma democracia com novos partidos e novos movimentos sindicais e sociais. Mas deixaram de lado a revisão do passado. E outros setores do PCB, que entraram no MDB, já não estavam interessados em revisitar o passado, com exceção de alguns casos pessoais. Então os familiares das vítimas e as pessoas mais comprometidas não tiveram um apoio social para levar o processo adiante. Anos depois houve uma acumulação de forças para fazer as várias comissões.

P. Muitos comparam o número de mortos da ditadura brasileira com as cifras das ditaduras argentina e chilena, para dizer que aqui não houve ditadura. Por que aqui essa narrativa persiste? Acredita que os mecanismos de censura e propaganda do dos Governos militares no Brasil eram mais sofisticados?
R. O fato de a ditadura brasileira ter durado 21 anos e ter mudado as regras do jogo para se manter no poder, manipulado muito a situação, facilitou a falta de clareza das classes médias sobre a natureza da ditadura. Também tem o fato de que menos pessoas foram atingidas diretamente. O Brasil é muito maior que a Argentina, onde a repressão foi concentrada em Buenos Aires. Lá existe uma tradição muito forte de luta e resistência, enquanto que no Brasil uma parcela muito menor resistiu e durante um processo muito longo. E também houve a capacidade, tanto da ditadura como da mídia, de manipular a informação.

P. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) contabilizou 434 mortes causadas pelo Estado brasileiro. Mas foi na ditadura que, por exemplo, os esquadrões da morte mais aterrorizaram favelas e periferias. E também populações indígenas inteiras foram dizimadas. Acha que a história da ditadura ainda não está completa?
R. A história foi contada num primeiro momento por exilados, pessoas que estiveram envolvidas na luta armada. Então óbvio que eles vão enfatizar a história deles. Mas, nesses 21 anos de ditadura, a polícia e os coronéis do interior tiveram toda a liberdade para fazer o que queriam. Entre os camponeses, houve massacre atrás de massacre de pessoas que lutavam pela sua sobrevivência. A política do Governo Médici de abrir a Transamazônica levou a massacres de povos indígenas. Estamos vendo isso agora, mas não havia registros sobre essa situação. A mesma coisa sobre a questão LGBT. Não é que não existia repressão contra os LGBT antes do golpe, mas com o Governo censurando as noticias, com a licença para a polícia fazer qualquer coisa, havia uma violência muito grande contra esse setor que seria mais difícil de ocorrer durante o Governo democrático. O conceito da CNV, que foi o correto, foi o de apurar, tentar saber quais foram as pessoas que participaram da tortura, tentar encontrar mais informação sobre os desaparecidos, denunciar o número de colaboradores do regime... Mas eles tiveram uma missão mais restrita. Eu e outras pessoas que participamos como assessores conseguimos ampliar leque e mostrar que a repressão não foi só contra o Partido Comunista, mas contra a sociedade como um todo. Havia censura e impunidade da polícia quando quiseram matar negros e gays nas ruas e favelas.

P. Qual é a relação que enxerga entre violações que já ocorriam antes e durante a ditadura com as violações que continuam ocorrendo durante o período democrático, inclusive durante os Governos petistas? A construção de Belo Monte significou remoções forçadas de povos inteiros, como na ditadura. O fato de a história não ter sido bem contada influencia?
R. Não é que não foi bem contada.O processo de transição, de conciliação de forças políticas para manter-se no poder, evitou um questionamento mais profundo. Como houve a anistia para torturadores, a polícia aprendeu que nada acontece se você torturar um negro e até matar. Se mata, vou dizer que ele tentou me matar primeiro. Há impunidade por causa da falta de um balanço sério sobre as implicações das violações de Direitos Humanos durante a ditadura. Houve essa continuidade, e uma continuidade de uma elite que se manteve sempre no poder e manipulou a transição e o processo democrático. E uma certa continuidade de práticas de clientelismo, de acordos de corrupção que se tornaram mais importantes que os programas para o país. O PT também se adaptou a essa realidade ao longo do tempo no poder, fazendo uma série de coisas que foram debilitando sua legitimidade na sociedade. O mensalão significou ganhar uma maioria, que não conseguiram nas urnas, com pessoas que não tinham compromissos ideológicos.

P. Quem foi Herbert Daniel? Foi um militante gay numa época em que nem a esquerda abraçava essa pauta?
R. É mais complicado. Num primeiro momento ele era um jovem estudante querendo fazer faculdade de Medicina. No último ano de colégio ele descobre que é gay e descobre um mundo clandestino de pessoas que se encontram na rua para ter relaciones sexuais... Mas, ao mesmo tempo, ao entrar na faculdade, ele descobre o mundo da esquerda contra a ditadura. E ele percebe que não tem espaço dentro dos grupos para ser gay, que há uma marginalização. Então ele opta por reprimir sua sexualidade e se compromete com a luta armada. Em determinado momento ele se apaixona por um companheiro e foi Dilma Rousseff quem o incentivou a se declarar para essa pessoa. O cara não gostou, disse que podiam continuar amigos, mas que não era gay. E isso foi um golpe muito forte. Ele percebe que, se queria fazer a revolução, então não dava para manter uma vida homossexual.

Através de pessoas que o ajudam a se esconder em Niterói, ele conhece um casal. E o homem desse casal, Claudio Mesquita, era bissexual. Ficaram grandes amigos e, quando fogem para a Europa, começam uma relação. Foram companheiros durante 20 anos. Então foi no exílio, quando já não era militante, que ele começa a repensar tudo e perceber que não pode mais reprimir sua sexualidade. Em Paris ele passa a trabalhar como porteiro e assistente de uma sauna gay e a viver dentro desse mundo. Começa a pensar e a escrever suas memórias. Ao voltar, em 1981, ele publica suas experiências na luta armada, sendo bastante crítico com relação às estratégias da esquerda e colocando suas ideias com relação à homossexualidade.

Ele contava sobre sua vida sexual, algo bastante chocante para esquerda, que considerava a homossexualidade um desvio burguês, uma preocupação pequena burguesa sobre a sexualidade. Achava ia acabar a homossexualidade depois da revolução... A sociedade brasileira ainda era muito conservadora nos anos 60. Havia essa juventude que estava rompendo com valores tradicionais conservadores, mas ela mesmo vinha de famílias muito conservadoras. Quando Herbert Daniel volta para o Brasil, ele vai participar da campanha eleitoral de um ex-guerrilheiro para deputado estadual no Rio e vai introduzir não somente a questão homossexual como também a ambiental, que a esquerda ainda achava que era uma preocupação dos países imperialistas. Mesmo hoje muitos argumentam que questões de desenvolvimento são mais importantes que o meio ambiente. Belo Monte é um exemplo desse conflito.


El País: O segundo assassinato de Leon Trotski. Historiadores contra a série da Netflix

Historiadores e intelectuais criticam em peso a nova série biográfica do bolchevique, na Netflix, por considerá-la “propagandística”

Sigmund Freud pousa o braço sobre o ombro de León Trotski. O revolucionário russo acaba de atacá-lo durante uma de suas famosas conferências na Viena dos princípios do século XX. Agora, já distante da vista do público, é o pai da psicanálise quem o critica. “Durante nosso enfrentamento, notei que suas pupilas se dilatavam. Só vi essa reação em dois tipos de homens: os assassinos em série e os fanáticos religiosos”, cutuca.

Essa conversa nunca ocorreu, mas milhões de pessoas a viram. É uma das cenas de Trotsky, a série distribuída pela Netflix, mas produzida pelo principal canal estatal russo, controlado pelo Kremlin. E é assim que ela retrata seu protagonista: como um sádico, um completo traidor, um fantoche. Trotski, revolucionário proscrito, chefe do Exército Vermelho, demonizado depois como “inimigo do povo” e assassinado por um agente soviético em 1940 no México, é o vilão da sua própria história. Aparece sob um prisma tão negativo que uniu historiadores, estudiosos e a família do revolucionário em acusar os autores da superprodução não só de falsear a história, mas também de utilizar a figura do bolchevique para mandar um recado: que a dissidência e as revoluções são ruins.

“É um exemplo de como não tratar a história, em particular a do movimento revolucionário russo”, diz Alexander Reznik, professor da Escola Nacional de Economia da Rússia, que pesquisou a fundo a vida de Trotski. “[A série] é falsa, tergiversa constantemente os fatos conhecidos para construir um ‘tipo ideal de revolucionário’ [palavras de um dos produtores]: uma imagem clichê e simplista de um fanático faminto por poder, cego aos sofrimentos de sua família”.

A produção, de oito capítulos, estreou em 2017 na Rússia, coincidindo com o centenário da Revolução. Depois deu o salto mundial com a Netflix, através da qual pode ser vista por mais de 139 milhões de assinantes. Um deles foi Esteban Volkov Bronstein, neto de Trotski e guardião de sua memória. “O personagem que eles fabricaram é uma falsificação histórica. Está a anos-luz do revolucionário marxista que conheci. Um homem de uma inteligência extrema, muito cordial, trabalhador incansável, inclinado a educar os jovens e que gerava um ambiente caloroso ao seu redor”, conta ao EL PAÍS no jardim da casa da Cidade do México onde seu avô foi assassinado (e que agora é um museu).

Os responsáveis, do diretor para baixo, se defendem alegando que não se trata de uma série histórica, e sim meramente baseada em fatos reais. “Não podemos saber tudo o que aconteceu naquele momento, mas passamos muitas horas com consultores. E sobre a base deste conhecimento e inspirados em várias histórias e fatos os autores teceram uma história sólida que prende o espectador”, defende Alexandra Remizova, uma das responsáveis pela produtora Sreda.

Os herdeiros de Trotski organizaram uma campanha de repúdio, apoiada por dezenas de intelectuais e figuras públicas como Slavoj Zizek, Frederic Jameson e a filósofa Isabelle Garo. Antes, a família do bolchevique – exilado errante antes de ir parar no México – havia proibido, depois de ler o roteiro, que a casa-museu fosse usada como locação para a série, como desejava a produtora. Entre as muitas falsidades que encontraram naquele roteiro: que Ramón Mercader, seu assassino, era amante de Frida Kahlo, que se fez passar por seu biógrafo, e que o assassinato ocorreu em defesa própria (isso deixou Volkov Bronstein especialmente irritado).

“É, além do mais, um crime contra o México, que investigou e ditou sentença sobre o crime”, aponta Volkov. “Mercader foi pouco a pouco ganhando a confiança de pessoas próximas à família. Só visitou duas vezes o escritório do meu avô, e o matou à traição. A versão da série se parece muito com a que foi difundida durante anos pelo stalinismo, segundo a qual tinha sido uma briga com um partidário decepcionado.” Mas, diferentemente de outras mensagens propagandísticas stalinistas, esta série – repleta de sexo, violência e efeitos especiais – custou uns quatro milhões de dólares (15 milhões de reais), levou quatro meses para ser gravada e contou com um grande elenco de celebridades russas, como Konstantin Khabenski. Foi exibida em horário nobre no principal canal estatal. E colheu importantes prêmios nacionais.

Também há duras recriminações de quem vê a série como mais uma iniciativa de propaganda do Governo russo. Outra forma de assassinar Trotski, desta vez não com uma picareta de montanhismo, como fez Mercader, e sim com a revisão da sua memória. “A mensagem do Kremlin é que todas as revoluções são ruins, e especialmente as financiadas do exterior”, diz a organização de direitos humanos Memorial. Porque outra tese que emana do polêmico roteiro é o suposto apoio financeiro da inteligência alemã aos bolcheviques. “Trotski continua sendo uma das figuras mais demonizadas da história russa, por isso é mais seguro fazer um filme sobre ele do que sobre Lênin ou Stálin”, comenta o especialista Reznik.

Trotski desempenhou um papel determinante na revolução bolchevique de 1917. Mas o nome e a história desse brilhante orador e teórico marxista, que teve que se exilar em 1929 por causa dos seus atritos com Stalin, foi tabu durante toda a época soviética, enquanto se convertia em ídolo da esquerda radical ocidental. Foi reabilitado só depois da queda da URSS. O Leon Trotski da série é um homem obcecado pelo poder, de uma astúcia maquiavélica, disposto a matar um militar leal por ciúmes, a acabar com a vida de camponeses e milicianos que se opunham a suas diretrizes. Capaz inclusive de usar seu próprio filho como escudo humano. “As vidas são tijolos no edifício da revolução, no curso imparável da história”, diz o personagem em outra cena da série, que também foi tachada de antissemita (Trotski era judeu).

O revolucionário proscrito, o chefe do Exército Vermelho, teve além disso uma vida excepcional. E os criadores da série exploram motivos “exóticos”, como seu romance com a pintora Frida Kahlo, como observa Reznik. Konstantin Ernst, diretor do Canal 1, um dos mais vistos no país, e um homem muito próximo ao Kremlin, comentou na época da estreia da série que Trotski “é um verdadeiro rock star. Durante toda sua vida, não só durante a Revolução de Outubro. Quando você olha os óculos, as jaquetas de couro especialmente desenhadas e o trem blindado que foi usado na produção… É quase uma história ciberpunk. Achamos que é um personagem que pode ser compreensível para o público mais jovem”. E esse foi o gancho usado.

Os herdeiros de Trotski não têm planos de mover uma ação judicial contra a produtora ou os roteiristas da série. Na verdade, encaram esta nova polêmica como uma oportunidade para que sua verdadeira história seja reconhecida. No último mês, o número de visitantes à casa museu aumentou.


El País: Um ano após derrota histórica, esquerda italiana elege líder para tentar voltar à essência

Atual governador do Lazio, Nicola Zingaretti arrasa nas primárias do PD e tentará criar um novo esquema de alianças para mudar o rumo da esquerda no país

O Partido Democrático (PD) da Itália enterrou o renzismo e iniciou um novo capítulo político em que pretende recuperar o espaço ideológico perdido nos últimos anos. Nicola Zingaretti, atual governador da região do Lázio, será o novo secretário-geral da formação socialdemocrata italiana. Cerca de 1,7 milhão de pessoas o elegeram em primárias abertas que superaram em muito as previsões de participação, que eram pessimistas. Antes da contagem final, Zingaretti tinha o apoio de mais de 65% dos votantes, número que permite evitar uma assembleia fratricida e impor um programa estratégico e ideológico que virará definitivamente a página de uma etapa catastrófica nas urnas. “Hoje é o começo de um caminho difícil. Vamos abrir um processo constituinte para um novo PD”, afirmou o novo secretário-geral, anunciando uma mudança de rumo total no partido.

Faz exatamente um ano que a formação de centro-esquerda enfrentou uma enorme crise política com o pior resultado eleitoral desde sua fundação, em 2007 (perdeu sete pontos em relação a 2013). As eleições de 4 março do ano passado mostraram uma desconexão com o eleitorado de esquerda e a profunda aversão de grande parte da base social do partido contra o então secretário-geral, Matteo Renzi. Houve decepção com a virada ideológica, a falta de respostas aos problemas reais dos cidadãos. Muitos de seus eleitores ficaram em casa naquele dia. Outros optaram por uma resposta mais simples e direta, como aquela proposta pelo Movimento 5 Estrelas (M5S).

O ultimato que lançaram neste domingo, 3, esses mesmos eleitores, considerando o perfil de seu novo secretário-geral, é claro: voltar à essência de esquerda, abandonar a vertente mais populista e tentar cicatrizar as feridas com todas as facções às quais Renzi declarou guerra. Ontem, no entanto, o toscano, cujo candidato ficou em terceiro lugar, foi o primeiro a dizer que é hora de acabar com o “fogo amigo”.

Zingaretti (de 53 anos), muito mais próximo das correntes do antigo Partido Democrático Socialista (PDS) e aberto à exploração de novas estratégias, tem um caráter aberto e de diálogo. A ideia do irmão do comissário Montalbano –o ator principal da série de maior audiência, Luca Zingaretti– é construir uma nova grande aliança que percorra todo o espectro de esquerda e chegue até o +Europa, o partido de Emma Bonino. Ele mesmo se encarregou de lembrar disso em suas primeiras palavras enquanto a contagem continuava: “Um partido fundado em duas palavras: unidade e mudança”.

Uma série de movimentos de cidadãos que se opõem ao Governo e ao autoritarismo crescente que atravessa a Itália tomaram as ruas há semanas. A revolução prometida pelo M5S há um ano não veio e o país caminha para uma recessão. No sábado, além disso, cerca de 200.000 pessoas se manifestaram em Milão contra Salvini. A esquerda agora se vê capaz de cavalgar esse mal-estar com um perfil como o de Zingaretti, que não tem inconvenientes em voltar aos velhos esquemas ideológicos, abraçar o ecologismo, admitir que o PD decepcionou profundamente seus eleitores e agir para criar uma nova comunidade. “Foram primárias para a Itália. E isso reativa uma esperança para o futuro. Centenas de milhares de pessoas confiaram em nós hoje e seremos dignos dessa confiança. Eu penso nos desiludidos. Naqueles que não foram votar um ano atrás e hoje estavam nas urnas. Naqueles que nos criticaram; naqueles que, não confiando em nós, votaram em outras forças políticas que expuseram melhor suas ideias. Penso neles porque vejo neste resultado um primeiro sinal. Construiremos um novo PD e uma nova aliança”, disse.

Um dos grandes debates que enfrentará o novo secretário-geral, que recebeu o apoio explícito do ex-primeiro-ministro Paolo Gentiloni, é a possibilidade de chegar a um pacto com o M5S. Uma parte importante do partido considera que essa opção deveria ser explorada quando os atritos no Executivo, que os grilinos formam com a Liga, provocarem uma possível crise de Governo. Outros acreditam que, precisamente, é o momento de recuperar todos os votos roubados em sua própria casa por Luigi Di Maio. Por enquanto, Zingaretti já começou a enviar uma mensagem dirigida aos mais desfavorecidos e aos milhões de pobres que o M5S conquistou nas últimas eleições. “Dedicamos eles a vitória nessas primárias.”


El País: Guaidó reaviva a pressão contra Maduro com seu regresso à Venezuela

Presidente da Assembleia Nacional enfrenta a ameaça de prisão e retorna ao país pelo aeroporto de Caracas, uma concessão de Maduro que aumenta a disputa entre os dois

A disputa política na Venezuela entra em uma nova fase. Juan Guaidó se livrou na segunda-feira da primeira ameaça de detenção e retornou ao país de modo triunfal. O presidente da Assembleia Nacional, reconhecido como presidente interino por mais de 50 Governos, voltou após desafiar Nicolás Maduro com sua saída há mais de uma semana após ser proibido pela Justiça. O fez em um voo comercial, entrando pelo aeroporto internacional de Maiquetía (Caracas), como havia anunciado, um sinal da determinação do político venezuelano e uma concessão de Maduro, já que não faz sentido pensar que poderia aterrissar e passar pelos controles de imigração sem sua aprovação.

A entrada de Guaidó por Maiquetía pode ser interpretada como um sinal de fraqueza do chavismo, submerso como nunca em uma pressão internacional após a violenta resposta dada em 23 de fevereiro na fronteira e que até essa segunda-feira continuava dividido, de acordo com vários líderes oposicionistas conhecedores dos passos de Guaidó, entre a ala mais radical, liderada por Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, e o círculo mais próximo a Maduro, entre eles os irmãos Rodríguez, Jorge e Delcy [ministro da Comunicação e vice-presidenta], partidários de se evitar uma prisão. Pelo menos, não por enquanto. Também não esclarece a incógnita de se o alto comando militar optou por não se submeter a outra tentativa de pressão que permita rachá-lo, após a deserção de mais de 700 militares nas últimas semanas.

Depois de mais de uma semana fora do país e após o fracasso na tentativa de entrada de ajuda humanitária pelos diversos pontos da fronteira, as expectativas que a liderança de Guaidó geraram enfraqueceram. De modo que também há uma boa dose de cálculo político em uma parte do comando chavista, que procura diminuir a relevância e Guaidó, à espera de seus próximos movimentos, sabendo que controlam todos os estamentos do país com exceção da Assembleia Nacional, cujas decisões, de fato, quase não têm importância. “Não iremos cair em provocações”, disse um dirigente de alto escalão. Nos primeiros momentos, o hermetismo diante do retorno de Guaidó era absoluto. Se geralmente o chavismo tende a contra-atacar os atos da oposição, nesse caso, os únicos movimentos públicos percebidos eram nas contas das redes sociais, em que se pedia à população que continuasse comemorando carnaval.

A presença de Guaidó na Venezuela submete também a oposição a sua própria encruzilhada. O fantasma de uma intervenção militar, que os setores mais radicais agitaram com força nos últimos dias, ficou, pelo menos por enquanto, diluído, enquanto o chavismo diminui a tensão ao não deter Guaidó. Entre os dirigentes mais jovens, a chamada Geração 2007, que se fortaleceu em torno da figura do presidente da Assembleia Nacional, a sensação é que o principal é evitar um cenário que permita a Maduro ganhar tempo e resistir, porque, sentem, é onde melhor se sai. Para consegui-lo, muitos deles têm certeza que não se deve voltar à situação de duas semanas atrás em que Guaidó ia de um lado para outro apresentando seus planos, como também são necessárias medidas e propostas concretas ao chavismo para se chegar a uma saída pacífica. Quais devem ser adotadas e como fazê-lo são motivos de intensos debates na oposição, um amálgama de forças e espectros ideológicos, em que os veteranos políticos começam também a tentar se aproveitar de uma situação que não esperavam no começo do ano. Um compêndio de líderes em que tem papel determinante o que permanece, por decisão do chavismo, preso: Leopoldo López, detido em 2014 e ainda em prisão domiciliar.

Para evitar qualquer problema na entrada do aeroporto de Maiquetía, Guaidó era esperado por uma dezena de embaixadores europeus, entre eles o espanhol, Jesús Silva, informa Maolis Castro. Não foi preciso. Pelo contrário, funcionários de algumas companhias aéreas se aproximaram para apoiá-lo e comemoraram seu retorno. Existiam muitas dúvidas. As imagens de Guaidó falando com a tripulação e os passageiros do voo comercial em que viajou do Panamá; sorrindo para um agente de imigração no aeroporto ao entregar seu passaporte; na sequência entrando em uma caminhonete levando a bandeira venezuelana e, depois, mostrando seu passaporte a milhares de seguidores em Caracas, estão carregadas de um simbolismo que a liderança de Guaidó precisava. Confirma, também, que o jovem político se desenvolve muito melhor dentro do país, como dizem muitos dos deputados de sua geração que o acompanham, e nem tanto fora, onde fica apagado entre tantos mandatários internacionais, como aconteceu na fronteira da Colômbia.

“O mundo irá nos respaldar, mas quem precisa avançar somos nós com a união de todos os setores, somos cidadãos poderosos”, afirmou Guaidó em sua primeira manifestação após seu retorno à Venezuela, informa Florantonia Singer. Em seu discurso, o presidente da Assembleia Nacional voltou a enviar mensagens às Forças Armadas, a quem pediu que “não fiquem de braços cruzados”. Para a oposição ao chavismo, a ruptura da cúpula militar é fundamental para conquistar seu objetivo. Guaidó faz questão que o Exército detenha os coletivos, grupos armados ligados ao chavismo, para que não ajam contra a população, como aconteceu nas localidades de fronteira em 23 de fevereiro. “Usaram sua última linha de defesa para massacrar o povo”, criticou Guaidó em referência à tentativa de levar ajuda humanitária que, admitiu, não pode “ser chamada de bem-sucedida”.


El País: Volta do líder opositor Juan Guaidó coloca a Venezuela em expectativa

Decisões do chavismo e da oposição marcam o futuro da crise após semana de "impasse" que deu oxigênio a Maduro. Pela internet, Guaidó disse que se o opositor o prender será seu último erro

Há uma semana a sensação na Venezuela é que, novamente, tudo dá voltas sobre si mesmo. Um impasse que, tudo parece indicar, irá pelos ares com o regresso de Juan Guaidó ao país nas próximas horas. O presidente da Assembleia Nacional anunciou no final do sábado sua intenção de voltar a seu país, sem esclarecer quando, mas convocou mobilizações para segunda e terça-feira, feriado pelo carnaval. A oposição acredita que a volta de Guaidó reativará o entusiasmo de seus seguidores, mas as consequências de seu retorno ainda são uma incógnita. Em uma mensagem transmitida via redes sociais, no domingo à noite, de um lugar não especificado, Guaidó disse, ao lado da mulher, que se Maduro decidir prendê-lo, seria "o último erro que cometeria".

Guaidó se encontra fora da Venezuela há mais de uma semana. Seus movimentos, decididos durante a viagem e comunicados a conta-gotas, o levaram à Colômbia para liderar a tentativa frustrada de introduzir material médico e suplementos nutricionais através da fronteira. De lá foi para o Brasil, Paraguai, Argentina e Equador, reunindo-se com os presidentes desses países da região que são os que mais o apoiaram e procurando um contrapeso ao protagonismo da Administração de Donald Trump na crise, como se deduz das conversas com uma dezena de fontes, entre deputados próximos a Guaidó, assessores, líderes políticos da oposição e o entorno do chavismo, consultadas para essa reportagem. Uma estratégia que não está isenta de riscos, já que Guaidó saiu da Venezuela apesar de ser expressamente proibido pelo Supremo Tribunal de Justiça (TSJ), controlado pelo Governo.

Nicolás Maduro e os principais dirigentes chavistas sugeriram nos últimos dias que o líder oposicionista deve ser levado à Justiça. Ninguém pediu abertamente sua prisão e fontes do alto comando chavista afirmaram nessa semana que a intenção é “evitar cair em provocações”. Com toda a probabilidade, o sucessor de Hugo Chávez tomará a decisão final no último momento após se consultar com um pequeno grupo de colaboradores.

Entre as opções na mesa existe a possibilidade de que as autoridades de imigração impeçam sua entrada na Venezuela e, em uma tentativa de menosprezá-lo, o Governo lhe condene a uma espécie de desterro à espera de que o processo que colocou em andamento esfrie. A máquina chavista pode, também, detê-lo, uma vez que tecnicamente é um fugitivo. Essa hipótese lembra o caso de Leopoldo López, principal apoiador de Guaidó e líder de seu partido, o Vontade Popular, preso em 2014. E teria repercussões internas e externas imprevisíveis, que vão da explosão de um novo ciclo de protestos ao endurecimento do cerco diplomático e uma reação mais contundente de Washington, que nunca deixou de agitar o fantasma de uma intervenção militar.

Se por fim conseguir entrar será obrigado a retomar iniciativas, a mover peças. Ou seja, após um regresso ao qual sua equipe tentará dar contornos épicos não pode se permitir outra falha. Tampouco retornar ao setor anterior a 23 de fevereiro, quando se reunia com diversas instituições e apresentava seus planos. De alguma forma, o desafio de Guaidó passa por conseguir feitos concretos que possam chegar a uma saída da crise e manter viva a esperança dos amplos setores da sociedade que apoiam sua causa.

O desafio do presidente da Assembleia Nacional para derrubar Nicolás Maduro teve um impulso inicial que fez pensar em uma mudança iminente. Quase um mês e meio após o jovem político venezuelano se declarar presidente, entretanto, a intensidade do confronto diminuiu e as fileiras da oposição temem que esse processo acabe no enésimo falso alarme. “Impasse” é uma das palavras que mais acompanham a conversa sobre a situação da Venezuela, junto com “bloqueio”, “parada” e até “retrocesso”. Depende do otimismo dos interlocutores.

O erro de cálculo mais evidente ocorreu em 23 de fevereiro. A tentativa de levar ajuda aos venezuelanos mais vulneráveis se transformou em um instrumento político para enfraquecer o chavismo. Apesar de ter a partida quase nas mãos (alguns carregamentos já se encontravam no território venezuelano) foram geradas expectativas muito altas e o chavismo foi subestimado. A maior parte da oposição estava convencida de que o custo de um cenário violento pesaria sobre eles. Ainda mais quando Diosdado Cabello, na véspera, sugeriu que estavam dispostos a deixar entrar a ajuda. “Quem quiser comer comida desidratada é problema seu”, disse.

O chavismo, entretanto, mobilizou sua artilharia, não somente as forças de segurança, para reprimir os protestos. Coletivos armados foram à fronteira e intervieram depois, após uma fase inicial liderada pela Guarda Nacional e, posteriormente, a Polícia Nacional Bolivariana. Para garantir que as ordens de Maduro seriam respeitadas e prevenir qualquer problema, o chavismo enviou em cada ponto fronteiriço uma espécie de comissário político, como foram os casos da ministra de Prisões Iris Valera e o ex-ministro e coordenador dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP) Freddy Bernal.

A violência desativou a operação, apesar da oposição aventar a possibilidade de introduzir ajudas através de passagens fronteiriças informais, ao longo das trilhas, como acontece diariamente. Ocorreram também as desordens produzidas por militantes violentos, os chamados guarimberos, cuja presença foi reconhecida pelos próprios opositores. E alguns episódios que afetaram a imagem de Guaidó, como a detenção do ex-preso político Lorent Saleh.

Após um dia marcado pelos confrontos na fronteira, Guaidó, no Twitter, afirmou que pediria à comunidade internacional que deixasse abertas “todas as opções para conseguir a libertação da Venezuela”, o que foi interpretado como um pedido de intervenção militar e ceder aos setores mais radicais da oposição e à ala dura dos Estados Unidos, os chamados falcões de Trump, liderados pelo chefe de Segurança Nacional, John Bolton. A confusão causada por suas palavras obrigou Guaidó a abrandar sua mensagem. Em seu entorno defendem que ele não queria atiçar o fogo e que fez até referência à possibilidade de se sentar para negociar com o chavismo. Mas já era tarde. Pouco depois, um dos líderes da oposição no exílio, Julio Borges, representante de Guaidó no Grupo de Lima, afirmou que durante o encontro previsto para um dia depois exigiriam do órgão “um aumento na pressão diplomática e no uso da força contra a ditadura de Nicolás Maduro”. Nem mesmo o Governo da Colômbia, que junto com Washington é o principal apoiador da oposição no tabuleiro internacional, aceitou o desafio. O Grupo de Lima descartou essa possibilidade e somente a Administração de Donald Trump deixou todas as portas abertas.

A ideia de uma intervenção militar está em cada conversa sobre o futuro da Venezuela. No chavismo estão convencidos de que é algo mais do que uma ameaça retórica. Sentem que não pode ser descartada com Trump na Casa Branca e o que consideram uma traição golpista de uma parte da oposição. Conscientes de que não poderiam enfrentar um ataque durante muito tempo, não hesitam no momento de afirmar que tentarão resistir a um assédio até o último momento, com todas as consequências.

Diante desse contexto, a oposição caminha sobre uma linha muito fina. A maior parte dos próximos a Guaidó, deputados com capacidade de tomar decisões e assessores, refuta o uso da força para conseguir uma saída à crise. Sabem, entretanto, que deixar o chavismo sem essa ameaça diminuiria a pressão psicológica e poderia significar um retrocesso nesse processo. Mais um. De modo que a fórmula de que todas as opções estão sobre a mesa seja a mais recorrente. O risco, admitem as fontes consultadas, é que a estratégia estremeça com o sentimento de grande parte da população, do qual o setor externo pretende amealhar frutos. O cansaço e o desespero com o chavismo são tais que ela não se importaria com a forma com que pudesse ser tirado do caminho. Os setores mais radicais, com María Corina Machado na liderança e apoiados por muitos venezuelanos no exílio de Miami e Washington, deram força a essa opção.

“A intervenção já chegou”, comenta este colaborador. A intervenção, entretanto, não é, por enquanto, de caráter humanitário e militar. Como é feito, então, o cerco dos Estados Unidos? Com sanções diretas e individuais à cúpula do chavismo e alto comando militar e a oferta de incentivos (vistos, desbloqueios das contas) em troca do abandono a Maduro. Por enquanto, esse caminho se mostrou ineficaz ou, pelo menos, ineficiente. Por volta de 700 oficiais e soldados desertaram desde 23 de fevereiro. Um número que pode parecer significativo e que, entretanto, é risível diante dos números das forças armadas venezuelanas, que possuem aproximadamente 250.000 membros.

Um dos objetivos da viagem de Guaidó dessa semana era pedir aos mandatários com os quais se encontrou que adotem sanções concretas contra Maduro e seu entorno para apertar o cerco. No começo também foi avaliada a possibilidade de que Guaidó viajasse à Europa, para realizar uma minireunião na qual estivessem presentes, pelo menos, a Alemanha, França e Espanha.

A União Europeia é vista pelos dois lados como um caminho para se chegar a uma saída pacífica e diplomática à crise. A oposição quer que o Grupo de Contato criado pela chefa da diplomacia europeia, Federica Mogherini, dê passos mais rápidos e concretos diante de uma eventual negociação com o chavismo. Isso permitiria ao chavismo não ceder aos Estados Unidos, mesmo que deem como certo que qualquer acordo com a oposição deve ter o sinal verde da Casa Branca.

Vários diplomatas destacam que, nesse ano, Maduro, que não costumava se reunir com os embaixadores europeus, se encontrou com eles duas vezes e os canais continuaram abertos com as embaixadas mais importantes apesar da maioria dos países da UE ter reconhecido Guaidó como presidente interino da Venezuela. A sensação dentro da diplomacia europeia é que o chavismo continua sendo uma caixa preta difícil de decifrar, em que não se sabe se há divisões e até debates internos que possam produzir uma ruptura. Vários participantes desses encontros lembram uma das falas de Maduro: “Eu não sou Gadafi e Saddam, mas se me matarem surgirá outro e será mais radical”.


Eliane Brum: As crianças tomam conta do mundo

Num planeta governado por adultos infantilizados como Trump e Bolsonaro, meninas de diferentes países lideram uma rebelião pelo clima e marcam uma greve global de estudantes para 15 de março

A luta contra o aquecimento global é hoje liderada por garotas de vários países do mundo. Estudantes secundaristas, a maioria. Mulheres muito jovens, carregando um novo espírito do tempo no mundo sem tempo, em que só há 12 anos para tentar impedir que o planeta aqueça mais do que 1,5 graus Celsius e o futuro logo ali seja uma vida muito ruim para todos, impossível para os mais pobres e os mais frágeis. Jovens mulheres com muito pânico porque os pais e avós ferraram o planeta em que vão viver e se comportam como gente mimada e egoísta que faz apenas o que quer sem se preocupar com as consequências nem mesmo para seus próprios filhos e netos. Uma parcela da espécie humana chegou a um nível de individualismo que nem mesmo protege a prole naquilo que é fundamental – e o presente se torna absoluto. De repente os mais jovens perceberam que a sobrevivência está comprovadamente ameaçada e os governantes estão brincando no Twitter.

Esse movimento de crianças e adolescentes é movido pela compreensão dos muito jovens de que os adultos não são adultos. É o que eles têm dito. “Como nossos líderes comportam-se como crianças, nós teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo atrás”, afirmou a sueca Greta Thunberg em dezembro, durante a Cúpula do Clima, realizada na Polônia.

Ela tinha apenas 15 anos, em agosto de 2018, quando decidiu fazer um boicote às aulas todas as sextas-feiras e se postar diante do parlamento, em Estocolmo, para dar o seguinte recado: “Estou fazendo isso porque vocês, adultos, estão cagando para o meu futuro”. Desde então, Greta, uma menina de rosto redondo em que as tranças escoltam as bochechas, tornou-se uma referência internacional na luta contra o aquecimento global e tem inspirado movimentos de estudantes em vários países. Em 15 de março, planejam realizar uma greve global pelo clima.

A novíssima geração de humanos teve a extrema má sorte de nascer num momento histórico em que os pais não conseguem lidar com a questão do tempo. Os adultos atuais cresceram bombardeados pelo imperativo do consumo que prometia prazer imediato, reiniciado a cada ato de compra, num looping infinito. O tempo passou a ser um presente estendido. Tudo o que existe é o agora do qual é preciso arrancar o máximo. É este o mundo em que cidadãos foram convertidos em consumidores. É este o funcionamento dos adultos atuais num momento histórico em que o aquecimento global, comprovadamente causado por ação humana, se não for barrado, mudará a face do planeta.

Os adultos se revelam incapazes de enfrentar uma ideia de futuro que não seja determinada por renovações do ato de consumo

Quando os mais respeitados cientistas do clima alertam que há pouco mais de uma década para evitar que a Terra se torne um planeta hostil para a nossa espécie, que é preciso mudar os padrões de consumo já e, principalmente, pressionar os líderes para tomar as medidas mais do que urgentes, a reação parece ser a de seguir mantendo o presente ativo, incapazes de enfrentar uma ideia de futuro que não seja determinada por renovações do ato de consumo no pacto capitalista do presente contínuo.

Os muito jovens perceberam que a época em que as crianças fazem só o que querem por conta de pais com problemas para educar e dar limites começa a dar lugar a época em que as crianças percebem que os pais fazem só o que eles querem porque são incapazes de aceitar que seja necessário ter limites. Mesmo limites bem pequenos, como, por exemplo, reduzir o consumo de carne a apenas uma vez por semana, já que a pecuária é uma das principais causas do aquecimento global. Ou deixar o carro em casa e usar transporte público ou bicicletas. Ou reciclar as roupas. Há quem tenha preguiça até mesmo de se responsabilizar pelo lixo que produz.

“Todos acreditam que podemos resolver a crise (climática) sem esforço nem sacrifício”, diz Greta Thunberg

“Todos acreditam que podemos resolver a crise (climática) sem esforço nem sacrifício”, escreveu Greta Thunberg em um de seus artigos. Hoje com 16 anos, ela demonstra a lucidez que falta na maior parte dos líderes mundiais. Este é um ponto importante do movimento dos estudantes pelo clima. Apesar de apontar a dificuldade dos adultos para mudar a vida cotidiana, assim como suas escolhas e a relação fundamental com o tempo, as crianças e adolescentes sabem que esta transformação não pode ser reduzida apenas a decisão de cada indivíduo. Os estudantes têm concentrado sua pressão sobre as autoridades públicas de cada país. São essas as lideranças que têm poder para barrar as grandes corporações, taxar os poluidores, determinar políticas capazes de interromper a escalada de destruição.

Não faltam estudos mostrando o que é preciso ser feito para evitar que o aquecimento global ultrapasse o 1,5 graus Celsius, condenando centenas de milhões de pessoas à fome e à miséria e varrendo do planeta maravilhas vivas como os corais. O que falta é fazer o que precisa ser feito, assim como cumprir os acordos já existentes. Se os avanços em escala global já eram difíceis antes, a recente ascensão de líderes de extrema direita em países estratégicos, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, tornaram a situação desesperadora.

Esta também é uma característica da novíssima geração que está indo às ruas pelo clima. São crianças e adolescentes – e não são ingênuos. Em janeiro, no Fórum de Davos, na Suíça, Greta também não mediu palavras ao falar à plateia composta pela elite econômica global: “Algumas pessoas, algumas empresas, alguns tomadores de decisão em particular, sabem exatamente que valores inestimáveis têm sacrificado para continuar a ganhar quantias inimagináveis de dinheiro. E eu acho que muitos de vocês aqui hoje pertencem a esse grupo de pessoas”.

O que as crianças e adolescentes deste movimento crescente dizem é que, se quiserem ter onde viver, vão precisam tomar conta do mundo. Para contar. Já que os adultos que destroem o planeta não as contam.

Nunca houve nada parecido na história. Em nenhuma história. Os filhotes tentam salvar o mundo que os espécimes adultos destroem sistematicamente. Para além dos efeitos concretos sobre o futuro da humanidade, serão necessários muitos anos de estudos para compreender os efeitos desta inversão sobre a forma de compreender o mundo e seu lugar no mundo daqueles que serão adultos amanhã. Mas, para isso, é preciso antes ter amanhã.

Nunca houve nada parecido na história: os filhotes tentam salvar o mundo que os espécimes adultos destroem

O Brasil é o país mais biodiverso do planeta. Tem no seu território a maior porção da maior floresta tropical do mundo. Deveria estar na vanguarda do combate ao aquecimento global e à perda avassaladora de biodiversidade. Deveria ocupar seu lugar estratégico e se colocar na vanguarda de todos os movimentos pelo clima. Deveria. Mas não está.

E não está porque, depois de governos inconsequentes e estúpidos diante da crise climática, à esquerda e a à direita, o país tem hoje um governo de extrema-direita que, além de ser inconsequente e estúpido, também contém uma parcela de alucinados. O governo militarizado de Jair Bolsonaro pode conduzir o Brasil para o abismo. E, dada a importância da floresta amazônica, arrastar o planeta com ele.

É preciso ser muito claro neste momento e afirmar com todas as vogais e consoantes disponíveis que uma parcela do governo Bolsonaro é composta por gente que usa o poder de forma perigosa. Gente que brinca de guerra. Gente que brinca de arma. Gente com delírios de grandeza e desejo de destruição. Gente que tem tanto medo dos próprios demônios que enxerga o diabo em toda parte, de preferência no outro. Gente que enaltece torturadores, chama ditadores de estadistas e dá medalhas a milicianos.

Essa realidade fez com que o governo cada vez mais militarizado de Bolsonaro – já são oito os militares no primeiro escalão, sem contar o vice e o porta-voz, e dezenas contando os demais escalões, e crescendo... – criasse uma nova anomalia no Brasil. Depois de passar por uma ditadura de 21 anos, em que os generais permitiram e/ou ordenaram a tortura, o sequestro e o assassinato de civis, muitos ainda hoje desaparecidos, a cada vez que é anunciado um novo general no governo, mais gente sente alívio. A situação no Brasil chegou a um ponto – e com apenas dois meses de governo Bolsonaro – que qualquer pessoa com aparência de adulto e aura de autoridade gera alívio mesmo que apenas alguns meses atrás gerasse pânico naqueles que sempre defenderam a democracia.

Dias atrás uma amiga de esquerda, com histórico familiar de repressão na ditadura, me contava, assustada consigo mesma, que se acalmava a cada vez que o general Hamilton Mourão abria a boca. Não é a tal Síndrome de Estocolmo, mas o fato de que a certeza de estar na mão de perversos, de adultos infantilizados, de um pai que deixa os filhos brincarem de governarem o país porque também brinca de governar o país tornou a realidade muito apavorante. Como os generais em geral falam frases com sentido, além de sujeito, verbo e predicado, e mesmo que seja um sentido do qual se discorde, até pessoas críticas têm se agarrado a esses fiapos de sanidade para conseguirem dormir à noite.

É tarde demais para dissociar a imagem das Forças Armadas da aventura arriscadíssima que é um Governo Bolsonaro

Não se pode esquecer, porém, uma possibilidade e um fato. É possível que os generais também não estejam dormindo à noite, pensando em como manter a imagem das Forças Armadas a salvo num governo em que Bolsonaro parece ser menos controlável do que acreditavam, e agora que já se tornou tarde demais para dissociar a imagem das Forças Armadas da aventura arriscadíssima que é um governo Bolsonaro.

E é um fato que a política desastrosa para a Amazônia ganhou um corpo e um rosto justamente no projeto e na propaganda da ditadura militar, nos anos 70, quando a floresta teve grandes porções destruídas e povos indígenas dizimados para abrir estradas, construir hidrelétricas e implantar grandes plantas de mineração. Esse mesmo imaginário do “deserto verde” ou “da terra sem homens para homens sem terra”, dois dos slogans da ditadura que permanecem até hoje, nos quais os povos da floresta são considerados não humanos, é ainda o que norteia os discursos do governo Bolsonaro, intimamente conectado com o agronegócio predatório que pretende avançar ainda mais sobre a Amazônia.

O modo de operação pouco familiarizado com a democracia dos militares se revelou, mais uma vez, na preocupação com o encontro que o Papa Francisco vai realizar no Vaticano, em outubro, para debater a Amazônia com 250 bispos. Como revelou a jornalista Tânia Monteiro, no jornal O Estado de S. Paulo, os militares do governo militarizado de Bolsonaro temem que o “clero progressista” da Igreja Católica possa se tornar uma referência de oposição, ocupando o vácuo deixado pela incapacidade de articulação da esquerda pós-PT.

Os militares decidiram agir para impedir que críticas ao governo Bolsonaro ganhem fórum internacional no sínodo que vai debater durante 23 dias a crise climática causada por desmatamento e as ameaças aos povos da floresta. Uma das ações será tentar convencer o governo italiano a interceder junto à Santa Sé para evitar ataques diretos à política ambiental e social do governo brasileiro durante o Sínodo sobre Amazônia.

Entre os temas do encontro global, um assunto causa particular preocupação num governo que pretende tornar comercializáveis as terras públicas de usufruto exclusivo dos indígenas: “ O grito dos índios é semelhante ao grito do povo de Deus no Egito”. Segundo o Estadão, o general Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional e supostamente o adulto com mais influência sobre o garoto Bolsonaro, saiu-se com essa: “Estamos preocupados e queremos neutralizar isso aí”. E ainda essa: “Achamos que isso é interferência em assunto interno do Brasil”.

Como é fácil perceber, ainda que os generais no governo militarizado de Bolsonaro demonstrem capacidade cognitiva, o que é um alívio no quadro de indigência intelectual do ministério, claramente estão desconectados dos desafios da crise climática. Também eles demonstram acreditar viver num mundo que já não existe. Parecem tão preocupados em apagar sua intervenção criminosa no passado recente que se tornaram incapazes de enxergar o futuro logo adiante.

Amazônia é assunto do planeta porque, sempre que o Brasil destrói a floresta, reduz as possibilidade de controlar o aquecimento global. Tanto é assunto do mundo que o Brasil recebe bilhões de reais da Noruega e da Alemanha para manter a floresta em pé. Não fosse esse dinheiro, nem mesmo atividades básicas de fiscalização do Ibama teriam sido executadas no ano passado.

Em nota, o Gabinete de Segurança Institucional, comandado pelo general Augusto Heleno, fez uma afirmação digna do famoso slogan da ditadura para a Amazônia – “Integrar para não Entregar”: “Parte dos temas do referido evento (Sínodo da Amazônia) tratam de aspectos que afetam, de certa forma, a soberania nacional. Por isso, reiteramos o entendimento do GSI de que cabe ao Brasil cuidar da Amazônia Brasileira”. O planeta realmente espera que o Brasil cuide da Amazônia, e espera há bastante tempo. Os povos da floresta, que são quem melhor a cuidam, em geral contra os interesses dos diferentes governos no poder e apesar dos sucessivos massacres, também esperam que o Brasil decida cuidar da Amazônia.

Se o Governo Bolsonaro quiser acionar a manipuladora ideia da “ameaça à soberania nacional”, pode começar suspendendo os grandes projetos de mineradoras estrangeiras na Amazônia

Se o governo militarizado de Bolsonaro quiser acionar a manipuladora “ameaça à soberania nacional”, os tais “gringos que estão invadindo a Amazônia”, que peçam antes ao presidente para suspender a presença das corporações transnacionais na Amazônia, assim como os projetos destruidores. Pode começar com a gigantesca exploração de ouro da mineradora canadense Belo Sun na Volta Grande do Xingu, uma catástrofe anunciada que teve como consultor o general Franklimberg Ribeiro de Freitas, hoje mais uma vez à frente da Fundação Nacional do Índio (Funai), num evidente conflito de interesses que, como de hábito, foi ignorado. Os povos da floresta agradecerão. Os brasileiros urbanos conscientes também.

Enquanto no Brasil é preciso debater os destinos da Amazônia neste nível primário, como se ainda vivêssemos no século 20, os estudantes se organizam para lutar pelo planeta, dando lições de cidadania a governantes muito mais velhos. Em novembro, 15 mil estudantes australianos boicotaram as aulas para dizer às autoridades públicas que era obrigatório combater o aquecimento global. O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, reagiu mal: “O que queremos nas escolas é mais aprendizagem e menos ativismo”. Algo que podemos imaginar Bolsonaro dizendo com ainda piores palavras, talvez ameaçando mandar os estudantes para a “ponta da praia”, como ele costuma mencionar, referindo-se ao lugar clandestino onde eram torturados e assassinados os opositores mortos pelo regime de exceção que ele tanto exalta.

“Nós seremos menos ativistas se vocês fizerem menos merda”

Os jovens australianos responderam ao seu ministro com um cartaz nas ruas: “Nós seremos menos ativistas se vocês fizerem menos merda”. As manifestações de estudantes exigindo ações dos adultos diante da crise climática multiplicaram-se, especialmente na Europa, chegando a ter dezenas de milhares de manifestantes em países como Bélgica, Holanda, Alemanha, Suíça e França.

No centro dos numerosos protestos da Bélgica está uma adolescente de 17 anos chamada Anuna De Wever. Inspirada num vídeo gravado por Greta, no qual a sueca estimulava os estudantes a fazer uma greve climática diante da inércia dos adultos, ela e sua melhor amiga gravaram seu próprio vídeo. Como contou ao BuzzFedd News, esperavam apenas 20 pessoas num protesto marcado para o início de janeiro. Apareceram 3.000. E os protestos cresceram até dezenas de milhares semana após semana.

A ministra do meio ambiente da Bélgica mentiu aos estudantes e ao país, afirmando que os serviços de inteligência haviam informado que os protestos eram um complô para derrubá-la. Foi obrigada a reconhecer a mentira e a renunciar. Às autoridades desconcertadas, que tentaram justificar sua incompetência diante do maior desafio global cobrando dos manifestantes estudo e disciplina, os estudantes responderam com um cartaz bem objetivo: “Eu farei a minha lição de casa quando você fizer a sua”.

“Nossas crianças podem lidar com a verdade. Você pode?”

Quando se afirma que o governo Bolsonaro é uma vanguarda do atraso, é importante ter a dimensão de que a qualidade das lutas também determinam – e muito – a qualidade do país. Há vários anos o debate tem sido não só interditado como desqualificado no Brasil, o que é outra forma de interdição. Na semana passada, alunos e professores de escolas de vários países fizeram um protesto pela falta de conteúdos ligados à crise climática, o tema que deveria atravessar todos os outros também na sala de aula. “Ensine a verdade”, diziam os cartazes. Ou: “Nossas crianças podem lidar com a verdade. Você pode?”. Um professor comentou, durante a manifestação em Londres: “Às vezes me pergunto: qual é o sentido de ensinar quando ninguém está ensinando a verdade sobre o futuro?”.

No Brasil, os estudantes das escolas públicas precisam se rebelar para ter ensino com qualidade mínima e respeito aos seus direitos mais básicos, como aconteceu em 2015 e 2016. Os alunos brasileiros têm um dos piores desempenhos do mundo em disciplinas como português e matemática. E a maioria dos professores não ganha o suficiente sequer para viver com dignidade, quanto mais para se atualizar e estudar.

Nos dias atuais, porém, nem mesmo essa luta básica, óbvia, é possível travar, porque há que se preocupar com os falsos problemas. Um grupo de delirantes e/ou oportunistas decidiu inventar que os problemas das escolas são ideologia de gênero e outras bobagens criadas por ideólogos de extrema direita. Criaram, entre outras aberrações, o Escola Sem Partido, um projeto autoritário que toma o partido do que há de pior num momento em que todos deveriam estar concentrados nos problemas reais que arrancam as possibilidades de milhões de crianças e adolescentes brasileiros. Para conseguir o que querem, eles mentem, criam notícias falsas, como as mamadeiras com bico em formato de pênis e os professores ensinando crianças a fazer surubas. A falta de caráter dessas pessoas não encontra limites. E o governo não é o limite, porque hoje eles são governo.

Assim, em vez de lutar pela educação para enfrentar a crise climática, como estão fazendo os estudantes de países de outras partes do mundo, exigindo ciência e pensamento de qualidade nas escolas, no Brasil é preciso lutar para que a teoria científica da evolução de Charles Darwin, base para a compreensão das espécies e de muito do que foi possível compreender sobre a vida desde então, continue a ser ensinada como aquilo que é, uma teoria científica – e não uma teoria alternativa ao mito religioso do criacionismo. Os cada vez mais numerosos fundamentalistas evangélicos deveriam abrir mão dos medicamentos que salvam suas vidas e dos celulares onde espalham seu ódio antes de equiparar a ciência à religião, desrespeitando a ambas.

Em vez de concentrar todos os esforços do país em melhorar a qualidade da educação, Bolsonaro está preocupado em censurar as questões do ENEM. O ministro da Educação manda um email para as escolas dizendo que os alunos precisam cantar o hino nacional no início do ano letivo, os professores devem ler uma carta que termina com o slogan da campanha de Bolsonaro e a direção deve gravar o momento despachando um trecho do vídeo para Brasília. A ministra da Mulher diz que meninas vestem rosa, meninos azul. O ministro das Relações Exteriores afirma que o aquecimento global é um complô da esquerda. O ministro do Meio Ambiente diz que a discussão sobre “se há ou não aquecimento global é secundária”. O “secundária” já seria terrível, mas ele ainda coloca dúvida sobre aquilo que é um consenso científico mundial e que cada um já consegue perceber no seu cotidiano.

No Brasil nem pelo básico se consegue lutar, mas sim para impedir que a burrice vire um tipo de verdade

Os debates importantes, os que realmente podem representar avanço para o país, têm sido adiados porque é preciso se defender dessa gente que lança frases sem lastro na realidade, mas que hoje têm poder para afirmar mentiras como verdades. As melhores mentes do país são obrigadas a concentrar esforços em descobrir uma maneira de impedir que delírios virem lei. E enquanto isso o Brasil perde e perde e perde. Já não é mais nem pelo básico que se luta, mas para impedir que a realidade seja convertida num delírio. Luta-se também para que as palavras recuperem seu significado.

Os estudantes brasileiros, pela importância do Brasil na redução das emissões de gases que provocam o aquecimento global, deveriam ter protagonismo na greve climática marcada para 15 de março. Mas até este momento não têm. Porque vivem num país em que os adultos no poder são tão precários, mas tão precários, que é preciso explicar para o ministro do Meio Ambiente que não há nada mais importante neste momento histórico do que saber quem é Chico Mendes. É preciso ficar repetindo e repetindo o óbvio para que a estupidez não vire inteligência.

Os estudantes suíços, por exemplo, estão exigindo que nenhuma escola use aviões em suas excursões de estudos, já que voar tem grande impacto sobre o meio ambiente. A própria Greta, que parou há anos de comer carne e de comprar qualquer coisa que não seja absolutamente essencial, deixou de voar em 2015. Desde que a filha começou a se preocupar com a crise climática, sua mãe, uma famosa cantora de ópera, desistiu da carreira internacional por conta da pegada de carbono da aviação. A pergunta é óbvia: como debater questões como estas, num país como o Brasil, em que estudantes têm dificuldade para chegar à escola por falta de transporte?

Talvez começando por entender que é obrigatório debater. Acreditar que a crise climática é um tema para estudantes ricos de países ricos é um erro. E um erro perigoso. Enfrentar a crise climática não é luxo, é necessidade urgente de todos. Nada aumentará mais a desigualdade e atingirá os mais pobres do que a crise climática. O aquecimento global atravessa todos os temas e todas as áreas, inclusive a racial e a de gênero. No Brasil, possivelmente as mais afetadas serão as mulheres negras, o contingente mais frágil e oprimido da população. É isso que as crianças e adolescentes estão dizendo. Mas, também por deficiência de educação, e não só nas escolas públicas, a maioria dos estudantes brasileiros tem dificuldade para fazer as conexões e compreender que, ao lutar pela floresta amazônica, estará lutando pela redução da desigualdade e por mais acesso aos recursos e às políticas públicas.

As mulheres, e principalmente as negras, serão as mais afetadas pela crise climática

Nos Estados Unidos, a greve pelo clima de 15 de março está sendo organizada em sua maioria por meninas, muitas delas negras. A Organização Mundial da Saúde já mostrou que as mulheres serão as mais atingidas pelos desastres naturais causados pelo aquecimento global e também serão as mais atingidas porque em muitas sociedades ainda cabe a elas a responsabilidade de conseguir água, energia e alimento. São também as mulheres as primeiras a perderem oportunidades quando os recursos naturais se tornam escassos. “Se você é vítima de um sistema de opressão, você é mais afetado pela crise climática. E isso vale para as mulheres", disse Jamie Margolin, uma ativista climática americana de 17 anos, ao BuzzFeed News. “Temos que nos levantar e levantar nossas vozes.”

Há uma particularidade que torna o enfrentamento da crise climática ainda mais difícil no Brasil. O crescimento acelerado dos evangélicos neopentecostais nas últimas décadas fortaleceu a crença no apocalipse bíblico. Para uma parcela deles, que apoiou massivamente a eleição de Bolsonaro, as catástrofes provocadas pelo aquecimento global não foram causadas por ação humana, mas sim estão previstas na Bíblia como os acontecimentos que prenunciam o Armagedom. Ou, mesmo que tenham sido causadas por ação humana, já estava escrito. É bastante possível que seus líderes não acreditem nisso, apenas usem uma interpretação literal da Bíblia para melhor controlar os corpos e barganhar poder. Mas há uma massa de fiéis que acredita. E que cresce.

Uma linha dos evangélicos acredita que as catástrofes provocadas pelo aquecimento global são profecias bíblicas que prenunciam o apocalipse

Tudo o que pode ser visto como catástrofe climática causada pelo uso de combustíveis fósseis, para essa linha do evangelismo é apenas cumprimento da profecia bíblica. São eles que pressionam para mudar a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, porque esta cidade seria o palco do Armagedom. Mais uma vez é preciso sublinhar que os articuladores desta ideia têm interesses bem mais imediatos e mundanos, que revestem com uma retórica bíblica para santificar o que é totalmente terreno.

Não é permitido esquecer que Bolsonaro foi batizado no Rio Jordão, em Israel, em 2016, e que pastores como Silas Malafaia promovem excursões para Israel. Para esta camada de evangélicos que só cresce no Brasil, a catástrofe é bem vinda, já que eles têm certeza que serão salvos porque são os únicos puros. Salvar-se, portanto, seria apenas uma questão de ter a fé certa. A deles, claro. Como então demandar razão neste país? Talvez seja preciso avisá-los que o rio Jordão está se tornando mais e mais estreito devido à seca causada pela crise climática. Se o processo continuar, logo será preciso encontrar outro rio para batismos espetaculares.

Se as novas gerações (e também as velhas) dos povos da floresta fossem escutadas, elas poderiam dar aula para os estudantes que se rebelam pelo clima na Europa. Também na Amazônia o protagonismo das mulheres nas lutas de indígenas, quilombolas e beiradeiros é cada vez maior – e as lideranças são cada vez mais jovens. O profundo conhecimento dos povos da floresta, imprescindível para enfrentar a crise climática, e a rebelião que sua luta representa, porém, têm sido sistematicamente caladas. O projeto de Bolsonaro, como ele afirmou várias vezes, é que indígenas e quilombolas se tornem “ser humano como nós”. Se o “nós” é ele, pode se imaginar o ganho de conhecimento que as gerações da floresta terão.

Sem a maior floresta tropical do mundo, a vida humana no planeta não tem nenhuma chance. No Brasil, como nos outros países amazônicos da América Latina, os povos da floresta estão lutando quase sozinhos para mantê-la em pé. E morrendo. Os filhos destes lutadores têm precisado assumir a luta dos pais assassinados. As jovens garotas que lideram a rebelião dos estudantes pelo clima na Europa têm o desafio de fazer a ponte com as jovens garotas da floresta amazônica, o centro geográfico onde o futuro próximo está sendo disputado. E vice-versa.

Jovens lideranças femininas da greve climática global levam para a luta a potência política de suas diferenças

Greta Thunberg e Anuna De Weve, duas das principais lideranças estudantis na Europa, trazem muitas novidades ao ativismo climático. Greta, a garota que inspirou dezenas de milhares de estudantes a se unir pelo clima, tem diagnóstico de transtorno do espectro do autismo. Embora não tenha sido esse o objetivo, seu ativismo pelo clima mostra a potência política de uma diferença. Em entrevista à revista NewYorker, ela disse: "Eu vejo o mundo um pouco diferente, a partir de outra perspectiva. Tenho um interesse especial. É muito comum que as pessoas, no espectro do autismo, tenham um interesse especial. Posso fazer a mesma coisa por horas”. Ou por anos, como já ficou provado.

Anuna é menina na certidão de nascimento, tornou-se menino durante a escola fundamental e hoje se define como “gênero fluido” e prefere os pronomes femininos. Ela relaciona a luta pelo clima diretamente com a identidade de gênero. Aquilo que para muitos é imutável, para ela é possível mudar, percepção que parte da sua própria experiência de ser. "Ter gênero fluido sendo jovem faz com que eu veja o mundo um pouco diferente", disse. "Eu não olho para o mainstream e o que eles pensam. Começo a ter meus próprios valores, princípios próprios, e penso no que não está dando certo neste mundo e o que posso fazer e melhorar em vez de apenas fechar os olhos.”

Velhos ativistas do clima estão perplexos – e animados. “O movimento que Greta lançou é uma das coisas mais esperançosas em meus 30 anos de trabalho na questão climática. Ela lança o desafio geracional do aquecimento global e desafia adultos a provar que são, na verdade, adultos”, disse Bill McKibben, fundador da 350.org, ao The Guardian.

As crianças reivindicam aos adultos que se “adultizem”

Num mundo em que as decisões ainda são majoritariamente tomadas por homens, as garotas levantaram a voz. Os milhares de meninos de sua geração que vão para a rua com elas não parecem ter problemas com o protagonismo feminino dos protestos. Meninas como Greta, Anuna e outras tantas, porque elas são muitas, não querem ocupar o lugar dos adultos. Não é disso que se trata. O que elas querem talvez seja ainda mais difícil. Ao denunciar a infantilização dos governantes, ela reivindicam que os adultos se “adultizem”.

O afiado cronista brasileiro Nelson Rodrigues, que era também um exímio frasista, ao ser perguntado que conselho daria aos jovens, disse: “Envelheçam!”. As crianças que estão sendo obrigadas a tomar conta do mundo dizem hoje aos adultos: “Cresçam!”.

Chegamos a este ponto: as crianças precisam pedir aos adultos que sejam adultos. Que tenham limites e se responsabilizem. Ou, em suas palavras: “Parem de cagar no planeta em que vamos viver”.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


El País: Bolsonaro dá a Guaidó apoio político com uma recepção informal em Brasília

Bolsonaro: “Não regularemos esforços dentro da legalidade para reinstaurar a democracia na Venezuela”

O venezuelano Juan Guaidó chegou ao Brasil em um avião das Forças Aéreas colombianas, mas dormiu em um hotel. Esta “visita pessoal” a Jair Bolsonaro — assim foi oficialmente definida — só foi incluída em cima da hora na agenda do presidente, mas depois ambos falaram à imprensa lado a lado no Palácio do Planalto. O Brasil procura o equilíbrio entre dar apoio político a quem reconhece como presidente interino e legítimo da Venezuela, mas sem lhe conceder honras de chefe de Estado. “Não regularemos esforços dentro da legalidade e de nossa tradição para reinstaurar a democracia na Venezuela”, declarou Bolsonaro junto ao venezuelano.

Guaidó insistiu em exigir “eleições livres e o fim da usurpação do poder” por Nicolás Maduro e a cúpula chavista. “Para resgatar a indústria, é preciso resgatar a democracia, os direitos humanos e o estado de direito”, insistiu, antes de criticar “o falso dilema entre guerra e paz. Todos queremos a paz”. Embora os Estados Unidos, o principal respaldo a Guaidó ao lado da Colômbia e do Brasil, insistam em que “todas as opções estão sobre a mesa” para lidar com a crise venezuelana — como reiterou Washington durante anos a respeito do Irã e seu programa nuclear —, o Grupo de Lima descartou expressamente o uso da força em sua última reunião.

O venezuelano reiterou que retornará à Venezuela “nos próximos dias”, sem dar detalhes. Na sexta-feira viaja ao Paraguai com a esperança de manter o fôlego da sua aposta em derrubar Maduro.

Guaidó também se reuniu em Brasília com os embaixadores de 25 dos países da União Europeia antes de visitar Bolsonaro e seu chanceler, Ernesto Araújo. Insistiu aos diplomatas da UE sobre a necessidade de uma saída pacífica, uma solução pactuada e, em curto prazo, a formação de um novo conselho eleitoral que organize eleições, conforme informaram fontes diplomáticas europeias. Bolsonaro por sua vez disse esperar “não só eleições, mas eleições livres e confiáveis”.

As constantes mudanças na agenda da breve visita de Guaidó — a coletiva originalmente seria no Itamaraty, um cenário menos graduado — refletem as tensões dentro do próprio Governo brasileiro sobre como lidar com sua figura e, em geral, com a crise do país vizinho. O vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro Araújo encarnam esses dois lados. Mourão, um general da reserva que foi adido militar em Caracas, lidera uma abordagem mais temperada. Certamente sem recorrer à força. “Para nós, a opção militar nunca foi uma opção. O Brasil sempre apoiou as soluções pacíficas de qualquer problema que ocorra nos países vizinhos", declarou ele na segunda-feira em Bogotá depois da reunião do Grupo de Lima. O vice-presidente sempre defendeu que o líder chavista Nicolás Maduro deveria ir para o exílio. Já Araújo é um trumpista mais partidário do alinhamento com os Estados Unidos para restaurar a democracia na Venezuela, com a qual o Brasil compartilha 2.100 quilômetros de uma fronteira que está fechada há seis dias.

A posse de Bolsonaro representou uma mudança muito profunda na relação com a Venezuela chavista, e ele não desperdiçou a chance de recordar isso com críticas a seus antecessores. “Faço aqui um mea culpa de que dois ex-presidentes do Brasil foram em parte responsáveis pelo que está acontecendo na Venezuela hoje em dia”, disse em referência a Luiz Inácio Lula da Silva, preso por corrupção, e Dilma Rousseff, ambos do Partido dos Trabalhadores. “Essa esquerda gosta tanto dos pobres que acabou multiplicando-os e os nivelou por abaixo”, disse, adotando a linguagem que mais agrada aos seus seguidores.

Visita a Israel depois de Chile e EUA

Com esta visita ao líder ultradireitista brasileiro, um duríssimo crítico do chavismo e de tudo o que cheire a esquerda, Guaidó pretende manter o impulso que recebeu de seus compatriotas e da comunidade internacional ao tentar introduzir alimentos e material sanitário pelas fronteiras. Mas a iniciativa foi um fracasso. Os Estados Unidos sobretudo, mas também a Colômbia e o Brasil, doaram alimentos e os levaram até as fronteiras, mas os partidários de Guaidó não foram capazes de superar o bloqueio imposto por Maduro e trazer o material para o território venezuelano. Quatro pessoas morreram alvejadas pelas forças de segurança, e em meio à tensão fronteiriça Maduro rompeu relações com a Colômbia. As 800 toneladas de ajuda continuam nos armazéns.

O presidente do Brasil terá um março muito viajante. Bolsonaro irá a Israel em uma visita oficial de 31 de março a 4 de abril, conforme relatado pelo Ministério das Relações Exteriores de Israel nesta quarta-feira. O ultradireitista vai retribuir ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu na véspera das eleições gerais israelenses a sua visita ao Brasil por ocasião da posse do Governo brasileiro. Bolsonaro, que tem um apoio muito forte dos grupos evangélicos mais pró-Israel no Brasil, foi batizado no rio Jordão em 2016. Antes, o presidente planeja ir ao Chile em sua primeira viagem oficial — para desagrado da Argentina, o destino tradicional — e aos Estados Unidos, para ser recebido por Donald Trump na Casa Branca.


El País: Comissão Arns, um observatório para acompanhar casos de violações de direitos humanos

Grupo de juristas, intelectuais, jornalistas e ativistas, incluindo seis ex-ministros, criou um observatório de violações homenageando Dom Paulo Evaristo Arns

Preocupado com o crescimento do discurso de ódio e os crescentes ataques aos direitos humanos, especialmente após a eleição de Jair Bolsonaro, um grupo de juristas, intelectuais, jornalistas e ativistas criou a Comissão Arns, lançada oficialmente na última quarta-feira, 20, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), em São Paulo.

Divulgado antecipadamente para um pequeno grupo de jornalistas na terça-feira, 19, em reunião na PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), o manifesto da Comissão assinala que a importância daqueles que militam e defendem os direitos humanos já pode ser observada em outros momentos históricos do país. “O desrespeito aos direitos humanos, cuja incidência pode crescer graças às características do processo político recente, atinge de maneira cruel os setores mais discriminados da população, com suas características de vulnerabilidade econômica, social, de raça, religiosa, de orientação sexual e de gênero”, diz o texto, já disponível no site da comissão, presidida pelo ex-ministro Paulo Sérgio Pinheiro.

Nessa reunião estiveram presentes três membros da comissão, que, por decisão, tem 20 integrantes, além de redes de apoiadores: a jornalista Laura Greenhalgh, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira e a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida.

Os integrantes da comissão
Os integrantes da comissão

O ex-ministro da Fazenda de José Sarney, ex-secretário de governo de Franco Montoro e ex-ministro da administração Federal e Reforma do Estado de FHC, Luiz Carlos Bresser-Pereira, explica que a ideia da comissão surgiu logo após a eleição e Bolsonaro, em outubro do ano passado. “Os direitos humanos voltaram a ser profundamente ameaçados com essa eleição. Curiosamente, o que a gente tem que se valer é das instituições brasileiras que nem sempre serão aquilo que a gente gostaria. O MP nesse momento, por exemplo, é uma coisa importante. Nós montamos a comissão e convidamos a Margarida Genevois como presidenta de honra [Socióloga, foi presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo por três mandatos, atuando diretamente com Dom Paulo Evaristo Arns]”, explicou.

Bresser destaca que a comissão não teria condições materiais de acompanhar todas as violações – que são muitas – que vem acontecendo. Por isso, vão eleger casos emblemáticos para realizar acompanhamento. Isso inclui posicionamentos públicos da comissão e até encaminhamentos práticos. “Nós não vamos resolver problemas e queixas específicas de cidadãos. Eu resumiria dizendo que nossa comissão será de oferta e não de demanda, usando uma linguagem de economia”, afirmou o ex-ministro.

A jornalista Laura Greenhalgh fez questão de salientar o teor suprapartidário da comissão. “É importante dizer que não somos um grupo anti-bolsonaro. Até porque a questão dos direitos humanos no Brasil ela transcende, ela vai além dessa conjuntura de poder que se instalou no país. Quer dizer, o Brasil vem em um processo interessante de consolidação de acordos, de pactos, de convenções importantes, o Brasil tem sido signatário de todos esses documentos, mas sabemos ao mesmo tempo que na vida real temos ainda que caminhar muito para consolidação desses direitos. Hoje estamos vendo diariamente violações sendo cometidas contra grupos discriminados. Não são nem vulneráveis, são discriminados mesmo. Falo dos indígenas, dos negros, das mulheres, dos jovens negros que estão sendo abatidos de maneira inaceitável nas periferias das cidades”, argumentou Laura.

“A agenda é muito grande. Então esperamos que com a participação de figuras como o Bresser e outros ministros que a gente possa somar forças e mobilizar essa situação no país. As coisas tendem a piorar pelos dados e acontecimentos de todos os dias. Não são bons os sinais e essa comissão chega nessa hora”, apontou. Laura citou também a importância de veículos contra hegemônicos que podem ter capilaridade e possibilidade de trazer uma outra narrativa sobre essas violações.

Bresser-Pereira destacou a preocupação com a diversidade no quadro da comissão e a rejeição total à participação de políticos com mandato. “Quando a gente fala nessa comissão, ela está fundamentalmente preocupada com os direitos civis. Há direitos sociais e direitos políticos, que nada mais é que a democracia. Os direitos civis são os direitos mais básicos e mais antigos, que foram desenvolvidos lá no século 18. É o direito a liberdade, ao respeito, e são esses direitos que tem sido atacados se analisarmos estruturalmente”, afirma o ex-ministro.

Para ele, o embrião do discurso de ódio começou após as jornadas de junho de 2013 – protestos de rua contra aumento da passagem do transporte público que tomou proporções enormes em todo o país -, cresceu nos “panelaços” ocorridos após a eleição de Dilma Roussef e atingiu seu ápice com o impeachment. “Eu percebi que havia se formado no Brasil uma hegemonia ideológica neoliberal muito grande”, explicou Bresser-Pereira. “Não acredito em centro. Ou você é de centro-esquerda ou de centro-direita. E acho urgente que esses dois campos encontrem alguma forma de diálogo. A ideia de não radicalizar nesses momentos é muito importante. Radicalização agora não permitirá restabelecer a sanidade”, apontou.

A cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida explica que haverá interesse especial em acompanhar casos em que haja o fator morte. “Nosso foco são as graves violações e segundo até a definição de direitos humanos que envolvem responsabilidade do Estado, certo? Pode, claro, acontecer por um agente privado. Mas como diz Paulo Vanucchi, a definição de direitos humanos passa pela responsabilidade de Estado. A violação acontece quando Estado pratica ou se omite”, afirmou. Um desses exemplos é a chacina do Morro do Fallet, no Rio de Janeiro, que terminou com 15 mortos. Os integrantes da comissão também demonstraram preocupação com direcionamentos institucionais e públicos de autoridades que chancelam, no discurso, essas violações. Os dois casos considerados gritantes foram o do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e do governador de São Paulo, João Dória, que têm feito declarações elogiosas a ações letais das respectivas polícias.

Confira manifesto completo:

A história brasileira é marcada por graves violações dos direitos humanos mais fundamentais. Apesar dessa violência nunca ter sido objeto da devida atenção por parte do país, houve inegáveis avanços sob a égide da Constituição de 1988. Não podemos permitir, agora, que ocorram retrocessos.

O desrespeito aos direitos humanos, cuja incidência pode crescer graças às características do processo político recente, atinge de maneira cruel os setores mais discriminados da população, com suas características de vulnerabilidade econômica, social, de raça, religiosa, de orientação sexual e de gênero.

Em outros momentos difíceis, o Brasil percebeu a importância dos organismos de defesa de direitos humanos compostos de forma plural por membros da sociedade civil. Tais entidades demonstraram, mesmo em conjunturas dramáticas, a vigilância necessária para dar visibilidade e processamento jurídico a crimes cometidos por agentes do Estado.

A instauração da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns quer ajudar na proteção da integridade física, da liberdade e da dignidade humana dos que possam estar ameaçados neste novo período duro da história brasileira.

Com a presença de participantes de entidades anteriores, pretendemos recolher a experiência do passado com vistas a preservar o futuro. Este o motivo, também, de homenagear o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns (1921 – 2016) que, acima de diferenças religiosas, políticas, sociais e ideológicas, foi capaz de juntar forças variadas em favor dos direitos humanos na hora mais difícil do regime ditatorial instaurado em 1964.

A partir da reunião de velhos e novos defensores da dignidade humana, o objetivo da Comissão Arns será o de contribuir para dar visibilidade e seguimento jurídico, em instâncias nacionais e internacionais, a casos de graves violações dos direitos humanos. A comissão vem para trabalhar de forma articulada com os inúmeros organismos de defesa e pesquisa em direitos humanos já existentes no Brasil.

A unidade plural de todos os que sustentam a inviolabilidade dos direitos humanos, no quadro dos tratados e convenções internacionais que o Estado brasileiro se obrigou a respeitar, é o nosso norte e fundamento comum.

Matéria originalmente publicada no site da Ponte Jornalismo


El País: Grupo de Lima reitera que a transição na Venezuela deve ser pacífica

Na reunião do bloco, Bogotá responsabiliza Maduro pela integridade física de Guaidó 

O Grupo de Lima reiterou nesta segunda-feira que a “transição à democracia” na Venezuela “deve ser conduzida pelos próprios venezuelanos pacificamente”, apoiada por meios políticos e diplomáticos sem o uso da força. O bloco diminuiu dessa forma o volume da possibilidade de uma intervenção militar, um fantasma frequentemente mencionado pelo chavismo, no mesmo dia em que a União Europeia pediu aos Estados Unidos que abandonem essa opção. Os Governos da Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Guatemala, Honduras, Panamá, Paraguai, Peru e, pela primeira vez, a Venezuela, representada por Juan Guaidó, reconhecido por mais de 50 países como mandatário interino, assinaram uma declaração em que também “exigem a saída imediata de Nicolás Maduro e o fim da usurpação, respeitando a autoridade constitucional da Assembleia Nacional e o presidente encarregado”.

A declaração do bloco, uma aliança de 13 Estados latino-americanos e o Canadá criada em 2017 para buscar uma saída à crise venezuelana, também condena o regime chavista por impedir a entrada das ajudas internacionais no sábado 23 de fevereiro, “mediante atos de repressão violenta que causaram vários feridos e mortos na fronteira com a Colômbia e o Brasil, que agravaram o risco em que se encontram a vida, dignidade e integridade dos venezuelanos”. Também pede à Corte Penal Internacional que leve em consideração a grave situação humanitária na Venezuela, pois considera que a repressão contra a população civil, e negar a entrada da ajuda, constituem um crime de lesa humanidade.

Após ler a declaração formal, o chanceler colombiano, Carlos Holmes Trujillo, denunciou a existência de informações sobre “sérias e críveis” ameaças contra o líder da Assembleia Nacional e sua família. Em Bogotá responsabilizam “o usurpador Maduro de qualquer ação violenta contra Guaidó”, o que obrigaria o Grupo de Lima a agir. “Juan Guaidó representa o anseio de liberdade e democracia dos venezuelanos. Juan Guaidó é o futuro, o usurpador Maduro é o passado”, enfatizou o chefe da diplomacia colombiana.

O encontro teve a presença do presidente da Colômbia, Iván Duque, e o vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, que afirmou que para a Administração de Donald Trump todas as opções estão sobre a mesa. Washington anunciou 56 milhões de dólares (210 milhões de reais) adicionais de ajuda a seus aliados na região que receberam imigrantes venezuelanos com o propósito de resolver o que considera uma crise regional, e pediu o congelamento dos ativos de funcionários chavistas. O país norte-americano foi o primeiro a reconhecer Guaidó como mandatário, e fez tudo para respaldá-lo, mesmo não pertencendo formalmente ao Grupo de Lima. Também participaram do encontro os presidentes do Panamá e da Guatemala, Juan Carlos Varela e Jimmy Morales, respectivamente, o vice-presidente do Brasil, Hamilton Mourão, e a vice-presidenta e chanceler do Panamá, Isabel Saint Malo. O México, Santa Lúcia e a Guiana — que não reconhecem Guaidó — não estiveram no encontro em Bogotá, assim como a Costa Rica, que o reconhece.

Em sua intervenção na reunião, o vice-presidente brasileiro chamou Maduro de "criminoso" e disse que não se deve ter medo de buscar sanções ao regime chavista, mas ponderou que deve-se seguir "a linha de não intervenção". "Para nós, a opção militar nunca foi uma opção. O Brasil sempre defende soluções pacíficas para qualquer problema que ocorra nos países vizinhos", disse em entrevista coletiva após a reunião. "Continuaremos com pressão diplomática, política e econômica para chegar a uma solução na Venezuela, e o regime de Maduro partirá".

Os “usurpadores” que detêm o poder na Venezuela “ameaçam a estabilidade do continente”, frisou em sua fala Guaidó, que chegou de surpresa a Cúcuta na sexta-feira, na véspera da frustrada tentativa de levar ajuda humanitária, e viajou no domingo a Bogotá, onde foi recebido com honras de chefe de Estado. O líder da Assembleia Nacional afirmou que no caso venezuelano não há um dilema entre guerra e paz e direita e esquerda, e sim entre democracia e ditadura. O regime, denunciou, não teve outra escolha a não ser recorrer a sua “última linha de defesa”, constituída por presos, coletivos armados e grupos paramilitares, já que não tem mais lealdades sólidas nas Forças Armadas. “Esse é um problema de liberdades e direitos fundamentais em um país”, disse. Depois de chamar de “sádica” a queima de alimentos e insumos médicos diante de pessoas necessitadas, lembrou que a Venezuela se transformou em um “santuário de terroristas”, em uma alusão direta à presença da guerrilha colombiana do Exército de Libertação Nacional (ELN).

O Grupo de Lima também aumentou seu apoio aos representantes de Guaidó nas instâncias internacionais e à autoridade da Assembleia Nacional. Mais concretamente, reafirmou seu apoio ao plano de resgate adotado pelo legislativo no mês passado e pediu ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que acompanhe os partidários de Guaidó, como autoridades legítimas, “na implementação das reformas institucionais e econômicas” necessárias para reativar a economia, severamente atingida pela hiperinflação e o desabastecimento de alimentos e remédios.