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El País: Prisão de Temer revigora Lava Jato e tumultua agenda do Governo no Congresso

Detenção de ex-presidente dá vitória a procuradores e escancara embate entre "novos" e "velhos políticos". Lavajatista Bolsonaro, porém, precisa das duas alas para aprovar Previdência

Operação Lava Jato voltou a se impor na agenda política do Brasil nesta quinta-feira ao prender preventivamente Michel Temer. O segundo ex-presidente a dormir na cadeia na história do país é acusado de comandar uma "organização criminosa" que atuaria há 40 anos para desviar recursos públicos. A decisão contra o emedebista partiu do juiz carioca Marcelo Bretas, um ex-colega e aliado do atual ministro da Justiça, Sergio Moro. A detenção, alvo de um pedido de habeas corpus da defesa do ex-mandatário, é apenas o começo de mais um capítulo de embates entre procuradores e juízes da operação, a classe política tradicional no Congresso e o próprio Supremo Tribunal Federal.

Se não bastasse as divisões, há outra disputa em curso. Os novatos exaltam o ministro da Justiça, Sergio Moro. Ex-juiz responsável pela Lava Jato, Moro está em clara rota de colisão com Rodrigo Maia. Eles bateram boca publicamente na quarta-feira. O deputado criticou o pacote de leis anticrime enviado por Moro dizendo que ele não era prioridade e que a proposta era um “copia e cola” de outra proposição. Já o ministro disse que parte da classe política não entende a urgência do projeto. “Talvez alguns entendam que o combate ao crime pode ser adiado indefinidamente, mas o povo brasileiro não aguenta mais”, alfinetou Moro.

Em viagem oficial ao Chile, o presidente, possivelmente aliviado de ver o foco de atenção se descolar da pesquisa que mostrou sua queda de popularidade para o caso Temer, a princípio foi sóbrio: “A justiça nasceu para todos e cada um responde pelos seus atos”. Em seguida, conforme o portal UOL, fez uma avaliação mirando seus eleitores antissistema e alinhados à Lava Jato. Afirmou que o seu antecessor foi detido por causa de “acordos políticos em nome da governabilidade”. “A governabilidade você não faz com esse tipo de acordo, você faz indicando pessoas sérias e competentes para integrar o seu governo. É assim que eu fiz no meu Governo, sem acordo político", emendou, reforçando a retórica de campanha e provavelmente irritando ainda mais a outra ala de parlamentares que precisa conquistar.

Enquanto isso, no Palácio do Planalto, o presidente em exercício, Hamilton Mourão (PRTB), já rebatia as análises em circulação no mercado de que o contra-ataque da Lava Jato afetaria as votações no Congresso. Mourão descartou a hipótese, apesar de o MDB de Temer fazer parte do Governo com um ministério e dezenas de cargos de segundo e terceiro escalões. “Eu acho que não [atrapalha]. Tem ruído, vai ficar esse ruído, mas vamos aguardar, pode ser que daqui a pouco ele seja solto, vamos esperar o que pode acontecer", disse a jornalistas, segundo a Agência Brasil. Para Mourão, Temer pode ganhar, em breve, “um habeas corpus de um ministro qualquer”.

Crise crônica
Nesta quinta-feira, no Congresso Nacional, as reações à prisão de Temer e do ex-ministro Moreira Franco deixaram nítido o desvio do foco. Um dia após o Governo Bolsonaro apresentar a parte da reforma da Previdência que restava, a dos militares, poucos falavam dela.

Quem fazia oposição a Temer e hoje faz a Bolsonaro —mas não só—, reclamava da prisão do ex-presidente, por considerarem que houve uma precipitação, já que ele deveria ser preso apenas após o julgamento de seu caso, e não preventivamente, sem nem mesmo colher o seu depoimento no processo. “As coisas vão se precipitando pela notícia. Você imagina lá fora, o que vão pensar os investidores. Um impeachment em 2016. Que país é esse? Se tirou uma presidente, sem provas objetivas, se prendeu outro, sem provas objetivas, e agora, um ex-presidente preso dessa maneira”, avaliou o senador Jacques Wagner (PT-BA), ex-ministro de Dilma Rousseff e aliado do ex-presidente Lula, condenado e preso há quase um ano pela Lava Jato.

O PT, aliás, emitiu uma nota para condenar a prisão de Temer e na qual comentam que a própria Lava Jato e Sergio Moro "travam hoje uma encarniçada luta pelo poder contra o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e a cúpula da PGR.” O texto faz referência aos reveses que a operação sofreu nas últimas semanas, quando, por exemplo, o STF determinou o envio de investigações sobre caixa 2, uma das espinhas dorsais da Lava Jato, para Justiça Eleitoral. Não à toa a ordem de prisão contra Temer emitida por Bretas faz questão de frisar que nada liga o caso à doações de campanha ilegais para tentar fugir da regra.

“Eu não sou advogado, mas não vejo nenhuma razão objetiva pra prisão do presidente Temer”, disse o senador tucano Tasso Jereissati, mostrando insatisfação também entre os parlamentares que podem ser alinhar ao Governo. “Isso é um processo de abuso de autoridade, o que vem acontecendo com alguma frequência”, criticou.

O tom era completamente distinto entre os neófitos bolsonaristas. “A notícia é maravilhosa. Demonstra que o Brasil está combatendo a corrupção. Com certeza os índices da bolsa de valores vão explodir”, dizia o líder do PSL, Delegado Waldir, ainda que tenha errado na previsão do mercado. Mesmo assim, Waldir não escondia sua preocupação com a agenda econômica e cobrava maior empenho do Governo no convencimento dos parlamentares, principalmente quanto às mudanças nas regras para os militares. “O Governo nos trouxe um abacaxi, mas a gente não tem como descascar no dente. Tem de nos dar a faca para descascar”.

O representante do PSL no Senado, Major Olímpio, também comemorou a prisão de Temer. Disse no Twitter: “O Brasil está mudando, a justiça será para todos! Grande expectativa para o povo brasileiro, estamos no caminho certo! O Brasil será passado a limpo, cadeia para todos aqueles que dilapidaram o patrimônio público brasileiro e envergonharam a política e o nosso povo”.

Os próximos dias serão de nova acomodação para avaliar o real impacto de prisão de Temer e de observação dos próximos passos ligados ao ex-presidente: será solto nas próximas horas? Se for, qual será a reação de uma parte da opinião pública irritada com o Judiciário que poda a Lava Jato? Trata-se de um ciclo crônico a que Brasília tenta se acostumar desde o início da operação, em 2014, e que já havia afetado o próprio Temer. Quando presidente, Temerencaminhava bem a votação de sua reforma da Previdência e tinha chances de aprová-la, explodiu a delação do empresário Joesley Batista, da JBS, que o implicava diretamente. O ano era 2017. Dois anos depois, e já fora do poder, ele pode protagonizar a virada decisiva para o destino da nova tentativa de mudar as aposentadorias.


Pública: Dois assessores de Bolsonaro doaram mais de R$ 100 mil a campanhas da família

Levantamento da Pública mostra que outros cinco assessores prestaram serviços de campanha enquanto estavam contratados pelo atual presidente ou seus três filhos

Por Adriano Belisário (Agência Pública)

A “rachadinha” – apropriação de salários de assessores nomeados por parlamentares – voltou à baila no final de 2018, quando o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) identificou movimentações financeiras suspeitas na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), envolvendo inclusive o atual senador Flávio Bolsonaro. Porém, quando se trata de doações eleitorais, os assessores responsáveis pelos maiores repasses à família do presidente foram aqueles ligados diretamente a Jair Bolsonaro. É o que revela um levantamento da Pública, que identificou transferências de recursos totalizando mais de 109 mil reais em repasses financeiros e outros 5 mil reais em serviços, em valores atualizados.

Ao todo, foram 13 doações de sete assessores da família entre 2004 e 2018. Mas as únicas transferências de recursos financeiros vieram de apenas duas pessoas, homens de confiança de Jair Bolsonaro, por meio de cheques, depósitos e transferências eletrônicas. O capitão do exército Jorge Francisco e Telmo Broetto, ex-agente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), fizeram juntos repasses de mais de 109 mil reais ao longo de 14 anos. Outros cinco assessores fizeram doações menores, através de prestação de serviços às candidaturas da família Bolsonaro – esse tipo de trabalho também possui um valor que a Justiça Eleitoral considera como “doação estimada”.

“Não existe nada na lei eleitoral com restrições de doações de pessoas físicas, nem assessores. Ou seja, não há impeditivo legal, mas isso revela um vício do sistema político”, comenta Bruno Carazza, autor do livro ‘Dinheiro, eleições e poder: as engrenagens do sistema político brasileiro’. Segundo ele, esta prática é chamada de patronagem. “Cria-se um incentivo para contratar alguém que é próximo, correligionário ou não, e aquela pessoa tem o compromisso de compartilhar o que ganhou, retornando para o partido ou para o político que o nomeou”, explica Carazza.

A Pública tentou contato com Jair Bolsonaro, por meio da Secretaria Geral da Presidência da República. Também buscamos os mandatos de Eduardo, Flávio e Carlos Bolsonaro para esclarecimentos sobre as doações. Por email, o Palácio do Planalto afirmou que não se pronunciaria.

O maior doador foi Jorge Francisco, que trabalhou quase duas décadas como assessor parlamentar de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados e faleceu com 69 anos por conta de um infarto em 2018. Na ocasião, Bolsonaro o descreveucomo um “leal amigo de 20 anos”.

Ele foi um dos principais financiadores das candidaturas da família. Sozinho, em quatro eleições entre 2004 e 2016, o ex-assessor Jorge Francisco repassou ao todo 81 mil reais para Jair e sua prole, os filhos-candidatos Eduardo, Flávio e Carlos Bolsonaro, segundo registros do Tribunal Superior Eleitoral. Para totalizar as doações, os valores de cada ano foram atualizados de acordo com a inflação no período.

Jorge Francisco trabalhou quase duas décadas como assessor parlamentar de Jair Bolsonaro
Jorge Francisco trabalhou quase duas décadas como assessor parlamentar de Jair Bolsonaro
FACEBOOK EDUARDO BOLSONARO

Em valores nominais, a maior doação identificada foi feita por Jorge Francisco, em agosto de 2012. Enquanto seguia atuando como secretário parlamentar de Jair Bolsonaro, ele fez uma transferência eletrônica de 15 mil reais beneficiando o filho do chefe, Carlos, que se reelegeu vereador. Naquele mês, a folha de pagamento de Jorge na Câmara registra 6,7 mil reais de remuneração líquida. Ou seja, sua doação equivale a mais de dois meses de salário.

O segundo principal assessor-doador foi Telmo Broetto, que trabalhou como secretário parlamentar de Jair Bolsonaro entre 2005 e 2018 e atualmente exerce o mesmo cargo no gabinete de Eduardo Bolsonaro, na Câmara dos Deputados. Em 2006, por meio de cheque e depósito em espécie, Telmo apoiou a candidatura do filho do patrão, Flávio Bolsonaro, na corrida para a Assembleia Legislativa do Rio, pelo PP. O valor foi de 9 mil reais – o equivalente a mais de 17 mil reais em valores atualizados.

Em 2014, Telmo Broetto e Jorge Francisco também apoiaram a candidatura de Eduardo Bolsonaro à Câmara dos Deputados pelo PSC. O primeiro repassou 11 mil reais, enquanto Telmo aportou 7 mil reais, em valores nominais. Ambos trabalhavam como assessores de Bolsonaro.

À época, Telmo recebia 10 mil rais de salário na Câmara dos Deputados, já descontados os abatimentos obrigatórios. Jorge Francisco ganhava pouco mais de 5 mil reais.

Irmã de milicianos presos

Na terceira posição, entre os assessores que mais fizeram doações de campanha para a família Bolsonaro, está Valdenice de Oliveira Meliga, irmã de dois milicianos presos em 2018. De maio de 2018 até fevereiro deste ano, ela exercia um cargo de confiança no gabinente da liderança do PSL na ALERJ, sob comando de Flávio Bolsonaro. A IstoÉ mostrou que, durante a campanha, Valdenice chegou a assinar cheques em nome de Flávio.

De acordo com as declarações de Flávio Bolsonaro ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Valdenice prestou serviços de administração financeira para sua candidatura ao Senado em 2018. O valor foi estimado em 5 mil reais.

A doação de Valdenice foi registrada no dia 15 de setembro de 2018. Um dia depois constam doações de outros três assessores de Flávio Bolsonaro para sua campanha, por meio de prestações de serviços envolvendo carreatas, todas com valor estimado de 200 reais.

Os três assessores foram Miguel Ângelo Braga Grillo, coronel da Aeronáutica e advogado, nomeado por Flávio na ALERJ em 2007, que hoje é seu chefe de gabinete no Senado Federal; Fernando Nascimento Pessoa, que foi inicialmente contratado por Jair na Câmara em 2009 e migrou para o gabinete de Flávio na ALERJ em 2014, assessorando-o hoje no Senado, com remuneração bruta de 22,9 mil reais; e Alessandra Cristina Ferreira de Oliveira, que foi funcionária de Flávio na ALERJ entre agosto de 2018 e fevereiro de 2019, exercendo ainda funções de tesoureira do PSL no Rio de Janeiro e prestadora de serviço a outras campanhas do partido.

De acordo com o Estadão, Miguel, Fernando e outros assessores de Flávio Bolsonaro na ALERJ também prestavam serviços advocatícios para o chefe em processos particulares.

Flávio Bolsonaro e Jair Bolsonaro com Valdenice de Oliveira e os irmãos gêmeos milicianos, presos na Operação Quarto Elemento.
Flávio Bolsonaro e Jair Bolsonaro com Valdenice de Oliveira e os irmãos gêmeos milicianos, presos na Operação Quarto Elemento.
INSTAGRAM/FLÁVIO BOLSONARO

Há proximidade de datas nos registros dos repasses de assessores também em 2016, quando foram feitas prestações de serviços de assessores, registradas em setembro. Nos dias 7 e 8, existem registros de serviços prestados por Alessandra Ramos Cunha (assessora de Jair Bolsonaro na Câmara entre 2014 e 2018) e o falecido homem de confiança do presidente, Jorge Francisco, em prol da candidatura do vereador Carlos Bolsonaro pelo PSC, totalizando 4 mil reais, em valores nominais.

Troca-troca de assessores

O levantamento feito pela Pública com dezenas de nomes de assessores revela que é comum assessores passarem de um mandato para outro da família Bolsonaro. Pelo menos, 15 pessoas passaram pelo gabinete de mais de um membro da família. Outros acompanharam os Bolsonaro entre diferentes casas legislativas.

O levantamento se baseou na prestação de contas eleitorais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) desde 2002, dados obtidos via Lei de Acesso à Informação e em pesquisas no Diário Oficial. Foram considerados 53 assessores dos mandatos de Jair Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro na Câmara dos Deputados em Brasília, além de 34 empregados de Flávio Bolsonaro na ALERJ.

A listagem de assessores na Câmara dos Deputados em Brasília foi obtida pela Pública via Lei de Acesso à Informação (LAI). A ALERJ negou a solicitação feita via LAI a respeito dos assessores de Flávio Bolsonaro. Neste caso, os assessores foram identificados através de buscas no Diário Oficial. Já a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro ignorou o pedido via LAI sobre assessores de Carlos Bolsonaro – o que viola a lei – passado mais de um mês do prazo estipulado para respostas.

Outras doações

No caso dos assessores Helen Cristina Gomes Vieira e Jorge Antônio de Oliveira Francisco foram encontradas doações, mas elas foram registradas em anos sem evidências de vínculo empregatício com a família Bolsonaro. Portanto, os repasses não foram levados em conta no levantamento geral.

Os assessores responsáveis pelos maiores repasses de doações eleitorais à família do presidente foram aqueles ligados diretamente a Jair Bolsonaro
Os assessores responsáveis pelos maiores repasses de doações eleitorais à família do presidente foram aqueles ligados diretamente a Jair Bolsonaro
ALAN SANTOS/PR

No dia 16 de setembro de 2016, há um apoio de Helen Cristina por meio de “distribuição de panfletos” para Carlos, com valor estimado à época em 600 reais. Helen foi assessora de seu pai, Jair Bolsonaro, na Câmara entre 2013 e 2014, assumindo novamente um posto no ano seguinte à doação, entre 2017 e 2018. Hoje, ela trabalha como oficial de gabinete do vereador Carlos Bolsonaro no Rio de Janeiro.

Em 2004, há um cheque para Carlos Bolsonaro de 1 mil reais, em nome de Jorge Antonio de Oliveira Francisco, que era assessor parlamentar da Polícia Militar do Distrito Federal e depois passou pelos gabinetes de Jair Bolsonaro (2013-2015) e seu filho Eduardo (2015-2018). Em 2006, ele fez outra transferência, com valor nominal de 4 mil reais, desta vez para Flávio. Agora, comanda a subchefia jurídica da Casa Civil da Presidência da República.

O mesmo caso se deu com uma doação de 2002 feita por Jorge Francisco para Flávio Bolsonaro de quase 6 mil reais. O valor atualizado seria 16.903 reais. Jorge foi nomeado em março de 2003 como assessor de Jair. Até a publicação da reportagem, a Câmara não informou se o assessor já trabalhava lá antes disso.

Assessor de Flávio Bolsonaro sob investigação

Suspeitas sobre a apropriação do salário de assessores por parte de parlamentares ganharam destaque com a Operação Furna da Onça, deflagrada pela Polícia Federal em novembro de 2018 para investigar casos de corrupção na Assembleia Estadual do Rio de Janeiro (ALERJ). A Operação atingiu a família do presidente quando um relatório financeiro identificou movimentações bancárias atípicas de assessores de Flávio Bolsonaro, em especial Fabrício Queiroz.

Ao Ministério Público, Queiroz afirmou que gerenciava salários dos assessores para expandir a atuação parlamentar de Flávio Bolsonaro, por meio da subcontratação de outros funcionários com o soldo de seus colegas, sem o conhecimento do patrão. A prática não é autorizada pela ALERJ.

“Nos gabinetes, o deputado é o gestor de sua equipe, sendo responsável por determinar horários de trabalho, fiscalizar a frequência e atestar as folhas de ponto. Não é permitido aos servidores ou aos gestores fazer qualquer tipo de negociação sobre sua carga horária envolvendo pagamentos em dinheiro. Também não é permitida a contratação de qualquer funcionário sem sua nomeação, que é publicada no Diário Oficial do Legislativo, e a apresentação de documentos para formalização do vínculo”, informou a Assembleia, em nota.

Segundo COAF, Queiroz movimentou aproximadamente 7 milhões de reais ao longo de três anos. Ao contrário daqueles identificados no levantamento da Pública, estes repasses investigados pelas autoridades não foram registrados oficialmente como doações em campanhas eleitorais. Os repasses ainda estão sendo investigados.

Apesar de serem comuns nos parlamentos, a “rachadinha” raramente é punida por juízes e sua tipificação não é consenso entre especialistas. Em janeiro, a revista Época identificou que, entre 12 recentes casos que ganharam repercussão, só 2 parlamentares foram condenados, podendo ainda recorrer em instâncias superiores. Já o site Consultor Jurídico consultou 10 pesquisadores sobre o tema. Enquanto alguns afirmam que a prática configura crime de peculato e desvio, outros a consideram corrupção passiva ou improbidade administrativa e há quem diga que o ato sequer é passível de punições.

Poucos doadores até 2018

Durante muito tempo, a família Bolsonaro teve poucos doadores registrados no TSE. Em 2018, foi a primeira vez que uma candidatura do grupo conseguiu superar a marca de 10 apoiadores. Até então, o dinheiro vinha principalmente do partido, autofinanciamento e de recursos injetados por assessores.

Jair Bolsonaro também foi apoiado por caciques da velha política fluminense, como o ex-vice-governador Francisco Dornelles (PP) e o Jorge Picciani (MDB), que encontra-se em prisão domiciliar por crimes de corrupção investigados em um desdobramento da Lava-Jato no Rio de Janeiro. Em valores nominais, Dornelles apoiou o atual presidente com uma “doação estimada” de mais de 6 mil reais, em 2002, enquanto Picciani possui doações assim para Flávio Bolsonaro em 2010, quando o apoiou por meio da prestação de serviços de materiais de campanha e impressão de santinhos.


El País: Bolsonaro alia reforma da Previdência de militares a benefícios e abre flanco na Câmara

Se de um lado promete economizar 97,3 bilhões de reais, do outro se compromete a gastar 86,85 bilhões. Reação até de aliados mostra desconforto na Câmara

Em Washington, o ministro da Economia, Paulo Guedes, fez questão de usar uma expressão excessivamente coloquial para defender o ímpeto para reformas liberais de Jair Bolsonaro. Mas, dois dias depois de Guedes dizer que o presidente tem “colhões para controlar os gastos públicos”, o Governo desagradou até alguns aliados ao encaminhar para a Câmara dos Deputados uma reforma do sistema de aposentadoria dos militares que traz menos economia do que esperado. A proposta vai na contramão do que tem sido sugerido ao funcionalismo em geral. Ao mesmo tempo em que corta nas pensões, o texto alia benefícios à categoria ao criar um plano de carreira para os membros do Exército, Marinha e Aeronáutica. É o que o Ministério da Defesa batizou de Projeto de Lei de Reestruturação das Forças Armadas.

Na hora de “cortar na própria carne”, o presidente, que é capitão reformado do Exército e deu a integrantes da caserna o comando de oito pastas no Governo e cargos no segundo escalão, foi menos duro do que em comparação com os demais trabalhadores. Na prática, o projeto encaminhado para o Legislativo economiza 97,3 bilhões de reais em dez anos com a mudança no sistema de proteção social dos militares (o equivalente a Previdência deles). Porém, compromete-se a gastar 86,85 bilhões de reais na reestrutura da carreira dos militares. Isso inclui dobrar a ajuda de custo para quando o militar se aposenta, cria gratificações e adicionais que variam de 5% a 32% do soldo (o salário). O déficit do sistema de aposentadoria dos militares é de cerca de 40 bilhões de reais por ano.

Em discurso aos deputados, quando entregou o projeto, o presidente Bolsonaro disse que ela restabelece perdas estabelecidas pela medida provisória de 2001 e que ela é mais dura do que a reforma dos civis. “Se os senhores buscarem a medida provisória e somarem com o que chegou agora, podem ter certeza que é uma reforma previdenciária muito mais profunda que essa do regime geral. Esse é o apelo que faço aos senhores. Ao analisarem essa proposta, levem em conta a que está lá atrás também”.

O tamanho da influência dos militares, que tem o maior protagonismo no Governo desde o fim da ditadura, também se fez sentir nas declarações de Rodrigo Maia, presidente da Câmara e o principal articulador da aprovação das reformas no Congresso. Na terça, Maia disse que os militares estavam "querendo entrar nessa festa no finalzinho, quando já está amanhecendo", em referência aos gastos do Estado. Nesta quarta, se desculpou pela "ironia" mal aplicada e defendeu a proposta que alia o corte nas aposentadorias ao plano de carreira. “Durante esses anos todos, as carreiras civis dos três Poderes foram sendo beneficiadas pela aproximação do piso e do teto, pela criação de estruturas extrasalariais para civis e hoje temos uma estrutura em que um general quatro estrelas recebe o mesmo que um consultor legislativo em começo de carreira”, afirmou, segundo o site da Câmara.

Questionamentos
Diante dos questionamentos sobre o momento desfavorável para apresentar esse gasto extra, o assessor especial da Defesa, o general Eduardo Garrido, afirmou que desde 2001 os militares vêm sofrendo seguidas perdas e, por se tratar de uma carreira especial – sem direito a greve, hora extra, adicional noturno, FGTS, entre outros –, precisavam de algumas reparações. “Não é reajuste salarial. É reestruturação da carreira. É a valorização da meritocracia”, disse. E completou: “Existe uma espécie de contrato dos militares em que nós nos colocamos à disposição do Estado 24 horas por dia, fazemos um juramento de sacrifício de nossa própria vida”. Conforme o general, a proposta vem sendo discutida há três anos.

As principais mudanças na “previdência dos militares” são o aumento do tempo de serviço limite de 30 para 35 anos e o aumento da contribuição de 10,5% para 14% do salário. O projeto deve começar a tramitar na próxima semana na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, em conjunto com a proposta de emenda constitucional 6/2019, a PEC da Previdência Social. Esta é considerada dura com o funcionalismo o público, com os trabalhadores rurais e com os que recebem o benefício de prestação continuada, que hoje paga um salário mínimo a idosos e deficientes em situação de miséria.

Mal chegou no Congresso, onde era esperada as críticas já começaram. Até mesmo de aliados-chave. O líder do PSL na Câmara, Delegado Waldir, diz que a compensação de 10 bilhões de reais é relevante, mas não era o momento adequado para se apresentar mudança na carreira militar. “Era um diálogo que não era o momento de se discutir. O momento agora é de sacrifícios”. O líder do DEM, Elmar Nascimento, seguiu na mesma linha. “A proposta não pode ser seletiva. Tem de dar o mesmo tratamento para os civis como para os militares, senão pode contaminar o ambiente”. Já a oposição promete montar uma frente contra o a reforma da Previdência, que já tem cerca de 170 dos 513 deputados e 27 dos 81 senadores. Para aprovar uma PEC são necessários 308 votos na Câmara e 49 no Senado. No caso do projeto dos militares, é necessário maioria simples.

Algo que é consenso entre os deputados é de que ainda não há votos para a aprovação de qualquer alteração previdenciária na Câmara. Os alertas têm sido emitidos frequentemente a Bolsonaro. Entre os que já o fizeram, está Rodrigo Maia (DEM-RJ), um entusiasta da reforma. “O presidente é a peça chave. A base é do Governo, não é do presidente da Câmara”, disse Maia. A ainda cobrou Bolsonaro. “Se o presidente da República não organizar sua base no parlamento, a gente fica com dificuldade”.

O problema é que as críticas ao Governo não são apenas no Congresso. Pesquisa do instituto Ibope divulgada nesta quarta-feira mostra que a popularidade de Bolsonaro caiu 15 pontos percentuais desde janeiro. Hoje, 34% da população considera sua gestão ótima ou boa é o mesmo índice que considera a administração regular. Em janeiro a aprovação era 49%, em fevereiro, 39%.


El País: Aprovação de Bolsonaro cai 15 pontos e é a pior da série histórica do Ibope

Pesquisa aponta 34% de avaliação positiva, menos que FHC, Lula e Dilma em primeiro mandato

Os três primeiros meses do Governo Jair Bolsonaro não parecem muito animadores, a julgar pelos números da pesquisa Ibope divulgada nesta quarta-feira. O levantamento realizado de 16 a 19 deste mês mostra uma queda de 15 pontos percentuais na avaliação de "ótimo ou bom", que foi dos 49% aferidos em janeiro para 34%. A aprovação é a pior para um presidente da República em primeiro mandato desde Fernando Henrique Cardoso, de acordo com os números do próprio Ibope.

A comparação com os antecessores no Palácio do Planalto não é alvissareira para o presidente. A esta altura de seu primeiro Governo, Fernando Henrique Cardoso contava com 41% de avaliação "ótima ou boa", enquanto Luiz Inácio Lula da Silva tinha 51% e Dilma Rousseff, 56%. Os 34% de Bolsonaro só são melhores do que os índices dos segundos mandatos de FHC, 22%, e de Dilma, 12%, quando ambos já tinham passado por quatro anos de desgaste em seus seus primeiros mandatos.

Quando a pergunta é a sobre "a forma como Bolsonaro está governando o país", o levantamento indica que 51% dos brasileiros a aprovam, enquanto 38% desaprovam e 10% não sabem ou preferem não opinar. Apesar de maior do que a aprovação pessoal do presidente, esse índice também registrou queda desde janeiro, quando 67% aprovavam a forma do presidente de governar. Outro índice que caiu desde o início do Governo é o de confiança em Bolsonaro: foi de 62% de confiança para 49%.

A maior queda de prestígio do presidente foi registrada na região Nordeste, onde a queda da avaliação "ótimo ou bom" do Governo caiu 19 pontos, de 42% para 23% — é nessa região também que se concentra a maior desaprovação sobre a forma de Bolsonaro governar, de 49%. A segunda queda mais expressiva foi entre os brasileiros com renda familiar entre dois e cinco salários mínimos, que apresentou recuo de 18 pontos, de 53% em janeiro para 35% agora.

Durante os três primeiros meses de Governo, Bolsonaro estipulou a reforma da Previdência como prioridade na agenda do Congresso Nacional, mas frequentou o noticiário mais por conta de suas postagens no Twitter do que propriamente por conta de medidas de Governo. Ele também dividiu as atenções com ministros como Paulo Guedes, da Economia, e Sérgio Moro, da Segurança Pública, e teve a imagem desgastada pela investigação do caso Fabrício Queiroz e pela demissão tumultuada de Gustavo Bebianno da Secretaria-Geral da Presidência, entre outras batidas de cabeça, como a que levou a trocas no Ministério da Educação.

O segmento que mais confia em Bolsonaro, segundo o Ibope, é o dos evangélicos: 56%. São eles também que mais aprovam a maneira de Bolsonaro governar (61%). "A avaliação positiva também é mais alta entre os que se autodeclaram como brancos (42%) — mesmo percentual que tem entre os que vivem nas regiões Norte/Centro-Oeste — único segmento em que Bolsonaro se recupera em relação a fevereiro", registra o instituto.


El País: O ‘Trump dos trópicos’ passeia pela cidade do ‘Bolsonaro norte-americano’

Um jantar com Steve Bannon e polêmica visita à CIA marcam a primeira parte da viagem do brasileiro a Washington. "O povo da Venezuela precisa ser libertado", diz mandatário

Jair Bolsonaro chegou aos Estados Unidos exultante. “Pela primeira vez em muito tempo, um presidente brasileiro que não é antiamericano chega a Washington. É o começo de uma aliança pela liberdade e prosperidade”, escreveu em sua conta do Twitter no domingo, assim que aterrissou no que parece seu novo paraíso na terra. Um jantar com Steve Bannon, guru da ultradireita e estrategista de Donald Trump, e uma polêmica visita ao quartel-general da Agência Central de Inteligência (CIA) foram os principais assuntos de suas primeira horas de visita oficial, que terá seu ponto alto na terça-feira na Casa Branca com seu admirado presidente norte-americano.

Bolsonaro, quando ganhou, começou a ser chamado na imprensa estrangeira de “Trump dos trópicos”. Na sexta-feira, em uma entrevista na Globonews, John Bolton, chefe de Segurança Nacional, pareceu gostar da comparação com seu chefe e respondeu: “Acho que aqui chamaremos Trump de o Bolsonaro da América do Norte”. A vitória do presidente brasileiro, baseada em uma mensagem eleitoral nacional-populista, significou a abertura de uma nova era na relação entre os dois países após anos de esfriamento. E o passeio de Bolsonaro por Langley (Virgínia), famosa sede da CIA, significou nessa segunda-feira uma prova muito poderosa.

Chamada pelo deputado Eduardo Bolsonaro, filho do mandatário, de “uma das agências de inteligência mais respeitadas do mundo”, o encontro pretendia abordar “assuntos da região”. O compromisso não constava da agenda oficial de Bolsonaro. Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores com Lula, disse à agência Associated Press que nenhum presidente brasileiro jamais “havia visitado a CIA”, o que considerou uma “posição de submissão explícita sem comparação”. Os vazamentos de Edward Snowden revelaram em 2013 que os serviços de inteligência norte-americanos gravaram conversas da presidenta à época, Dilma Rousseff.

No domingo Bolsonaro jantou com um grupo que incluía Bannon e o escritor Olavo de Carvalho, radicado nos EUA. No vídeo divulgado por seu filho sobre o encontro, Bolsonaro disse aos convidados: “Eu sempre sonhei libertar o Brasil da nefasta ideologia de esquerda”. Na tarde de segunda-feira, em uma conferência na Câmara de Comércio dos EUA, repetiria o discurso e citaria as aproximações que via entre o Brasil e os EUA de Trump. “A grande transformação do Brasil vem pelas mãos de Deus", disse ele, atribuindo a um milagre o fato de estar vivo após o atentado a faca que sofreu em setembro. "E depois, o outro milagre, por ocasião das eleições, em que povo brasileiro, muito parecido com o povo americano, povo conservador, temente a Deus e portanto cristão, que não aceitava mais lá o crescimento da esquerda.”

O encontro com empresários e a comitiva ministerial brasileira foi uma ocasião para fazer campanha pelas reformas econômicas do país e encorajar investimentos. Para além da fanfarronice, a agenda econômica é um dos objetivos mais desejados da visita e coube ao ministro da Economia, Paulo Guedes, fazer a exposição mais longa, acenando com sua agenda liberal e uma ainda incerta aprovação no Congresso da reforma da Previdência. "Bolsonaro tem colhões para segurar o gasto público (no Brasil)", prometeu Guedes, que também cobrou que os EUA se abram à economia brasileira e apoiem a candidatura do Brasil à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

Apoio "bélico" para libertar a Venezuela

Após discurso, Bolsonaro faz transmissão ao vivo ao lado do filho e volta a prometer reforma da Previdência para os militares.

Mas se alguma coisa demonstrou o breve romance que o presidente dos EUA manteve com seu homólogo francês, Emmanuel Macron, em visita oficial a Washington no ano passado, é que a química pessoal que o ocupante da Casa Branca demonstra em relação a um líder não se traduz necessariamente em acordos. Naquela ocasião, os dois dirigentes estavam diametralmente opostos ideologicamente sobre globalização, cooperação internacional e Meio Ambiente. Nesse caso, Trump e Bolsonaro concordam totalmente em diversas questões, do discurso nacionalista ao negacionismo da mudança climática, além do estilo incendiário através das redes sociais. Mas os acordos não são fáceis.

Os dois presidentes coincidem —junto com mais de meia centena de países— no repúdio ao regime de Nicolás Maduro na Venezuela e no reconhecimento de Juan Guaidó como presidente interino, mas os norte-americanos colocam sobre a mesa a possibilidade de uma intervenção militar e os brasileiros preferem deixá-lo fora do palco. O porta-voz da presidência brasileira repetiu, mais uma vez em Washington, que a opção armada estava descartada. Foi logo após o aceno público de Bolsonaro, que elogiou a capacidade "bélica" dos EUA e disse que o povo venezuelano "tem que ser libertado". "Acreditamos e contamos, obviamente, com o apoio norte-americano para que esse objetivo seja alcançado", disse na Câmara de comércio.

Como sinalizado por Guedes, o Brasil também gostaria de assinar um pacto comercial vantajoso com Washington, o que não é fácil na era das guerras comerciais de Trump. Parece mais próximo um entendimento em matéria de investimento militar. Um acordo concreto foi assinado nesta segunda: o do uso da base militar de Alcântara, no Maranhão, por parte dos EUA, algo que ainda precisa ser aprovado pelo Congresso brasileiro para começar a valer. Seja como for, e mesmo sem saber o que vai levar para casa nesta terça, o Planalto não deixou dúvidas dos sinais de boa vontade à Casa Branca. Antes do encontro presidencial, o Governo brasileiro decidiu, unilateralmente, dispensar de visto os cidadãos americanos que desejam vir ao país como turistas (os brasileiros seguem precisando de visto). A medida, publicada nesta segunda no Diário Oficial, também beneficia canadenses, australianos e japoneses.


El País: 50 anos depois, agente laranja continua contaminando o solo do Vietnã

Herbicida usado pelos EUA na guerra ainda chega aos humanos a partir de sedimentos de rios e lagos

No Vietnã, o Exército dos EUA travou duas guerras: uma contra o Viet Cong e outra contra a natureza. Nesta, os militares americanos usaram milhões de litros de herbicidas contra a selva onde se escondiam os comunistas e as plantações de arroz que os alimentavam. O herbicida mais usado foi o agente laranja. Uma revisão de diversos estudos mostra que, 50 anos depois que as forças dos EUA pararam de pulverizá-lo, ainda há restos altamente tóxicos desse desfolhante no solo e em sedimentos, de onde entram na cadeia alimentar.

Foi o presidente John Kennedy que, como parte de uma nova estratégia para impedir que o Vietnã do Sul entrasse em colapso sob a pressão dos nacionalistas e comunistas do norte, abriu as portas para a maior guerra química da história. Os primeiros herbicidas chegaram ao Sudeste Asiático em janeiro de 1962, em uma operação que acabaria sendo chamada de projeto Ranch Hand. Usaram diversos compostos químicos, muitos deles desenvolvidos durante a Segunda Guerra Mundial para destruir as colheitas de alemães e japoneses.

Vários relatórios das Academias Nacionais de Ciência dos EUA (NAS) e agências governamentais como a Usaid calculam que na Guerra do Vietnã foram usados mais de 80 bilhões de litros de herbicidas. O mais usado foi o agente laranja, um desfolhante. Os militares não quebraram muito a cabeça para dar um nome a esse composto: ele ia em barris com uma faixa dessa cor para diferenciá-lo do agente branco, do agente púrpura, do agente rosa, do agente verde (contra vegetação de folhas grandes) e do agente azul (usado contra os arrozais).

Cerca de 20% das selvas do país e 10 milhões de hectares de arrozais foram pulverizados pelo menos uma vez com doses 20 vezes maiores que as recomendadas

A lógica militar era a seguinte: já que os comunistas usavam a selva como uma arma a mais contra os EUA, era preciso neutralizá-la. O trabalho publicado recentemente em uma revista especializada em solos mostra que 20% das selvas do Vietnã foram pulverizadas pelo menos uma vez. Mas o arroz e outros produtos agrícolas também foram alvo. Até 40% dos herbicidas foram usados contra as plantações. Embora os militares tentassem diferenciar entre arrozais de amigos e inimigos, 10 milhões de hectares foram pulverizados com agente azul, que acabava com a colheita em horas. O terceiro principal uso dos herbicidas foi acabar com todo o verde que houvesse nos arredores das bases militares americanas, criando assim um perímetro de segurança.

Os efeitos de todos os herbicidas eram temporários e era preciso voltar a aplicá-los depois de algum tempo. Para isso, eram usadas desde mochilas às costas até lanchas para pulverizar as margens. Mas foi uma pequena frota de aviões C-123 Provider e helicópteros adaptados para levantar tanques de 3.800 litros que protagonizou o projeto Ranch Hand, com mais de 19.000 voos entre 1962 e 1971.

O agente laranja era, na verdade, um composto em partes iguais de dois herbicidas, o ácido 2,4-Diclorofenoxiacético (2,4-D) e o ácido 2,4,5- Triclorofenoxiacético (2,4,5-T). São reguladores hormonais do crescimento e em poucos dias, semanas no máximo, param de agir. Mas o que não se sabia na época era que o agente laranja continha uma dioxina altamente tóxica, a TCDD. Para acelerar a produção, a temperatura foi elevada em cerca de cinco graus, e a altas temperaturas o cloro presente no composto gerava entre 6.000 e 10.000 partes por milhão (ppm) de TCDD a mais do que em condições normais. Essa substância cancerígena é hidrofóbica, ou seja, não se dissolve na água. Também não é absorvida, e sim adsorvida. Ficava colada às folhas e estas, ao cair, levavam a dioxina até o solo, e a natureza se encarregava de espalhá-la.

“A dioxina contaminante adere ao carbono orgânico e a partículas argilosas do solo, e processos de erosão movem os sedimentos contaminados até os cursos d’água, rios, lagoas e lagos, onde as condições anaeróbicas protegem a dioxina da degradação microbiana, estendendo sua vida média”, comenta em um e-mail o especialista em solos e coautor do estudo Ken Olson, professor da Universidade de Illinois (EUA).

Exposta à ação do Sol, a TCDD se degrada em menos de três anos. Mas, em solos protegidos pela vegetação, demora até 50 anos para se decompor — e, se estiver em sedimentos fluviais ou marinhos, mais de 100 anos. “Os peixes e camarões que se alimentam no fundo pegam os sedimentos contaminados, e a dioxina se acumula em seus tecidos. Peixes maiores comem esses peixes e depois são comidos pelos vietnamitas”, assinala Olson.

Em um dos relatórios mais recentes analisados por Olson e sua colega, a socióloga rural Lois Wright Morton, da Universidade do Estado de Iowa, os pesquisadores oficiais estudaram o solo da base aérea de Bien Hoa e seus arredores. Era uma das principais bases de onde partiam as missões de lançamento de herbicidas. Nela se acumularam as latas que sobraram quando foi suspenso o projeto Ranch Hand. “Os pesquisadores coletaram 1.300 amostras de solo de 76 pontos diferentes da base, terras próximas e lagos. Dessas, 550 tinham níveis de dioxina acima do regulamento do Ministério de Defesa Nacional do Vietnã para uso da terra", comenta o professor americano.

Trinta anos depois que foram usados no Vietnã, vários aviões ainda tinham a dioxina aderida a eles

O solo de outras 16 bases áreas americanas tanto no Vietnã como na Tailândia está contaminado, e muitos dos vietnamitas e americanos expostos na época desenvolveram doenças. Mas pouco se sabe sobre o impacto do agente laranja fora das bases. Ao lado da de Bien Hoa fica a cidade homônima onde vivem 900.000 pessoas. Até hoje é proibida a pesca em rios e lagos da área.

A persistência da TCDD é tanta que vários dos aviões usados para pulverizar o agente laranja tiveram de ser retirados de um leilão e incinerados porque, 30 anos depois de voltar do Vietnã, ainda tinham a dioxina aderida a eles. O último relatório da NAS sobre os efeitos do agente laranja nos veteranos de guerra, publicado em novembro, acrescentou novas patologias relacionadas com a exposição ao herbicida. Esses relatórios são publicados a cada dois anos por determinação do Congresso dos EUA.

Embora se calcule que ainda existam três milhões de vietnamitas que sofrem os efeitos dos desfolhantes, não há um acompanhamento semelhante ao dos veteranos americanos. Dos poucos estudos internacionais sobre a persistência da TCDD no ambiente, destaca-se um publicado há 10 anos por pesquisadores japoneses e vietnamitas. Nele, o nível de contaminação do solo de uma aldeia pulverizada com agente laranja é comparado com o de aldeias que foram poupadas. No primeiro caso, a presença da dioxina era cinco vezes maior que no segundo caso, embora sua concentração fosse mais baixa do que a registrada na base aérea de Bien Hoa. O estudo também detectou níveis mais altos de dioxina no leite materno, mas não se pode descartar a possibilidade de que isso se deva à exposição mais recente a pesticidas agrícolas.

Olson acredita que seria exagerado e sem base científica considerar que todos os solos pulverizados há 50 anos continuem contaminados hoje. De qualquer forma, só em Bien Hoa há pelo menos 414.000 metros cúbicos de solo que deveriam ser tratados. Para Olson, o método definitivo para acabar com a dioxina seria incinerá-los, queimar a terra.


El País: MP investiga papel de grupos radicais da Internet no ataque em Suzano

O procurador-geral de Justiça do Estado não descarta "ampliar" investigações para tentar desmobilizar estes fóruns

O Ministério Público de São Paulo investiga se os autores do massacre de Suzano contaram com o auxílio de grupos radicais que operam em fóruns na deep web (os sites da Internet que não são facilmente rastreados em plataformas de busca como Google) para planejar o atentado cometido na Escola Estadual Raul Brasil na quarta-feira. Estes grupos de troca de mensagens conhecidos como chans garantem o anonimato aos usuários, e são famosos pelas discussões de caráter racista, homofóbico, misógino e com conteúdo de pedofilia. O procurador-geral de Justiça, Gianpaolo Smanio, afirmou que o “cyber Gaeco” - equipe especializada do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do MP - apura se Guilherme Taucci Monteiro e Luiz Henrique de Castro frequentavam estes fóruns.

O massacre de Suzano foi comemorado em vários chans, onde os matadores foram tratados como “heróis”. Computadores e telefones celulares utilizados pelos jovens assassinos foram apreendidos para serem periciados. De acordo com reportagem do portal R7, Guilherme e Luiz teriam trocado mensagens com o administrador do fórum radical Dogolachan, um homem conhecido apenas pela sigla DPR. O fundador do grupo, Marcelo Valle Silveira Mello, conhecido com Psy, foi preso em maio de 2018 na Operação Bravata da Polícia Federal, e condenado a mais de 41 anos de prisão pelos crimes de divulgar imagens de pedofilia, coação e outros. O Dogolachan se auto-intitula "o maior fórum alt-right do Brasil", em referência ao termo usado nos Estados Unidos para se referir à extrema direita no país.

Esta linha da investigação, que conecta o crime de Suzano ao submundo da Internet, esbarra na falta de rastreabilidade de alguns chans da deep web e em uma discussão sobre liberdade de expressão, censura e limites das autoridades nas hora de controlar conteúdos. No primeiro caso, a dificuldade se dá porque é necessária a utilização de um navegador específico para acessá-los, o Tor, que faz uso de tecnologia que camufla o endereço do usuário na rede (chamado de IP). “É praticamente impossível detectar, por exemplo, onde está o servidor que hospeda estes grupos de discussão de ódio para que se possa tirá-los do ar”, afirma Arthur Igreja, professor da Fundação Getúlio Vargas especialista em tecnologia e inovação. Ele explica que a deep web não é necessariamente ilegal ou “ruim”: “Militantes de direitos humanos na China, por exemplo, a utilizam para conseguir se comunicar com o mundo exterior. Os grupos que organizaram a Primavera Árabe também dependiam dela”. No entanto, Igreja afirma que existe uma “camada” da deep web conhecida como dark net (ou rede escura), onde ocorre a venda de armas, drogas, pedofilia e o planejamento de crimes.

A tarefa das autoridades para apurar se os assassinos de Suzano contaram com ajuda ou apoio de fóruns de ódio hospedados na deep web não será fácil. “O maior desafio é a falta de rastreabilidade. É muito difícil [chegar aos autores das postagens]. Existem técnicas de investigação, tanto periciais quanto de infiltração de agentes que procuramos utilizar para fazer uma investigação adequada. Mas é um ambiente hostil [à investigação]”, afirmou o procurador-geral Smanio.

O desafio não é exclusivo das autoridades brasileiras. Um dos atiradores responsáveis pelo atentado que deixou ao menos 49 mortos em mesquitas na Nova Zelândia também participava de um desses grupos, o 8chan, um fórum também popular para intercâmbio racistas e misóginos. Ele usou a plataforma para postar, momentos antes do ataque, o link para um manifesto supremacista branco. No texto existe uma citação ao Brasil: "O Brasil, com toda a sua diversidade racial, está completamente fraturado como nação, onde as pessoas não se dão umas com as outras e se separam e se segregam sempre que possível", comenta.

Como a operação foi extremamente bem-sucedida –o vídeo do atentado transmido ao vivo viralizou-, o ataque na Nova Zelândia também reacendeu o debate sobre as políticas de controle de conteúdos violentos e discursos de ódio na Internet que, para além da deep web e da dark net. Em plataformas como Facebook, YouTube e fóruns menos numerosos com o o Gab esse tipo de mensagem recebe o incentivo dos algorítimos, que ditam qual alcance o material vai ter. “Vídeos chocantes - especialmente com imagens gráficas gravadas pela primeira pessoa - é onde o reality show se encontra com a cultura violenta dos jogos e com os algoritmos de amplificação da atenção”, disse Jonathan Albright, diretor de pesquisa do Centro de Jornalismo Digital da Universidade Columbia ao jornal Washington Post. “A Internet moderna foi projetada para o engajamento em primeiro lugar, e isso funciona na contramão de impedir rapidamente a disseminação de material e ideias prejudiciais”.


El País: STF impõe derrota a Lava Jato sobre caixa 2 e encampa guerra contra procuradores

Por 6 votos a 5, Supremo decide que Justiça Eleitoral deve investigar casos de corrupção com caixa 2. Toffoli abre inquérito que deve atingir membros da força-tarefa que criticaram a Corte

A Operação Lava Jato já não apresenta o mesmo vigor. Após encarcerar os empreiteiros mais ricos do país e colocar poderosos políticos atrás das grades, a operação recebeu nesta quinta-feira um golpe que, a julgar pela reação de seus partidários, pode ter decretado seu fim. Por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a Justiça Eleitoral tem competência para investigar casos de corrupção quando eles envolverem simultaneamente os crimes de caixa 2 de campanha e outros crimes comuns, como lavagem de dinheiro.

O receio dos membros da força-tarefa da Lava Jato é que o entendimento possa resultar em penas mais brandas para os investigados pela operação, já que a Justiça Eleitoral não é conhecida por sua rigidez. A decisão do STF retira da Justiça Federal processos contra políticos que envolvam simultaneamente crimes comuns e caixa 2 de campanha. "Hoje, começou a se fechar a janela de combate à corrupção política que se abriu há 5 anos, no início da Lava Jato", decretou em seu perfil no Twitter o chefe da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol.

O hoje ministro da Justiça Sérgio Moro, que atuou como juiz à frente da operação durante sua maior parte, já havia criticado na quarta-feira o entendimento que acabou prevalecendo no STF. Para ele, a Justiça Eleitoral não tem estrutura para julgar crimes comuns. "Se formos verificar estatísticas de condenações criminais pela Justiça Eleitoral, provavelmente não vamos encontrar números muito felizes. Não porque não existam crimes eleitorais, mas porque realmente o sistema é focado na organização das eleições e, igualmente, na solução de controvérsias eleitorais", disse durante palestra em uma faculdade de Brasília.

Votaram para manter as investigações na esfera federal os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia. Eles foram vencidos pelos votos dos ministros Marco Aurélio Mello, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Antonio Dias Toffoli, presidente da Corte. Para o segundo grupo de ministros, o Supremo não fez mais que reafirmar entendimento que prevalece há décadas em sua jurisprudência.

Inquérito
De acordo com os procuradores da força-tarefa, cerca de 160 condenações poderão ser anuladas a partir de agora, e os casos que correm em São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná serão afetados. Eles consideram que o entendimento poderá "acabar com as investigações”. O ministro Marco Aurélio Mello vai ainda mais longe em sua análise. Para ele, as sentenças que foram proferidas antes da decisão da Corte sobre a competência da Justiça Eleitoral podem ser anuladas.

As críticas abertas dos procuradores ao Supremo não ficaram sem resposta. Toffoli abriu um inquérito para apurar ofensas à Corte, e nele se dá como certa a inclusão de procuradores como Dallagnol e Diogo Castor, que publicou um artigo para dizer que o tribunal preparava um “golpe” contra a Lava Jato. Já o ministro Gilmar Mendes preferiu usar as palavras para rebater as críticas. "Quem encoraja esse tipo de coisa? Quem é capaz de encorajar esse tipo de gente, gentalha, despreparada, não tem condições de integrar um órgão como o Ministério Público", disse, ao criticar os procuradores.

A decisão desta quinta-feira foi consequência de um questionamento baseado no inquérito que investiga o ex-prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes e o deputado federal Pedro Paulo Carvalho (DEM-RJ) pelo recebimento de 18 milhões de reais da empreiteira Odebrecht para campanhas eleitorais.


Eliane Brum: Quem mandou matar Marielle? E por quê?

Bolsonaro, que governa o Brasil pela administração do ódio, deveria ser o maior interessado em desvendar o crime

Quando soube que Marielle Franco havia sido assassinada, eu tinha acabado de chegar de Anapu, a cidade que recebeu o sangue de Dorothy Stang. Quatro tiros tinham arrebentado a cabeça bonita de Marielle e também aquele sorriso que fazia com que mesmo eu, que nunca a conheci, tivesse vontade de rir com ela. Ainda hoje tenho quando vejo a sua fotografia. E rio com Marielle. E então lembro o horror da destruição literal do seu sorriso. E então eu não choro. Eu escrevo.

Quando a notícia chegou eu ainda estava na Amazônia, mas me preparava para pegar um avião para São Paulo. Eu carregava no meu corpo o horror de ter constatado que a violência contra os pequenos agricultores no Pará era, naquele momento, pior do que em 2005, ano do assassinato de Dorothy. Havia então, em Anapu, uma trilha vermelho-sangue de 16 execuções de trabalhadores rurais ocorridos desde 2015, pessoas que não tinham cidadania americana para chamar a atenção da imprensa.

Dois dias antes, na estrada de Anapu, eu havia sido alcançada pela notícia do assassinato de Paulo Sérgio Almeida Nascimento, diretor da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama). Paulo recebia ameaças por sua atuação e fez repetidos pedidos de proteção policial. Ele cobrava providências dos governos federal e do Pará, além da prefeitura de Barcarena, sobre a atuação da mineradora norueguesa Hydro Alunorte, que comprovadamente contaminou a água dos rios da região, ameaçando a vida da população e o meio ambiente. Paulo foi assassinado dois dias antes de Marielle.

Em Anapu, eu tinha escutado padre Amaro Lopes afirmar que sabia que estavam armando para ele, que inventariam algo para interromper sua luta. Ele era considerado o sucessor de Dorothy Stang na proteção dos direitos dos trabalhadores rurais e da floresta amazônica na região. Para mim era claro que as reais sucessoras de Dorothy eram as freiras que dividiam a casa com ela e que seguiam seu trabalho sem escorregar em vaidades pessoais. O trabalho de Amaro Lopes, porém, era importante o suficiente para ser interrompido pela violência. Duas semanas mais tarde, como o padre havia previsto, ele foi preso numa operação cinematográfica pela polícia do Pará, e acusado de quase tudo. O objetivo era assassinar a sua reputação e neutralizá-lo. Foi alcançado.

Quando soube da morte de Marielle, era este o mapa de mortes ao redor de mim, apenas no pequeno círculo que era eu. Essas mortes, ainda que não diretamente, estavam conectadas. Elas expressavam um novo momento do país, um em que a vida valia ainda menos, e a justiça era ainda mais ausente, quando não conivente.

Desde 2015, a tensão no campo e nas periferias urbanas crescia no Brasil. Era o resultado direto da fragilização da democracia pelo processo de impeachment, que sempre se faz sentir primeiro nos espaços mais distantes dos centros de poder. Mesmo antes de ser afastada, Dilma Rousseff (PT) já estava concedendo o que não se pode conceder, no desespero de barrar o processo que a arrancaria do cargo para o qual fora eleita. Na Amazônia, esses recados são interpretados como literalidade. E autorização.

Os assassinatos mostraram como o Brasil arcaico tentava esmagar o Brasil insurgente que tinha avançado nos últimos anos

Essas mortes expressavam também como o Brasil arcaico, aquele que ganhou uma imagem eloquente no retrato oficial do primeiro ministério de Michel Temer (PMDB) – branco, masculino e reprodutor das oligarquias políticas – esmagava o Brasil insurgente que tinha avançado nos últimos anos, aquele que deslocava os lugares dos centros e das periferias, confrontava o apartheid racial não oficial, rompia com os binarismos de gênero, enfrentava o patriarcado com cartazes e peitos nus.

Eu descia a escada da casa que alugava. Ao chegar ao último degrau, tive a sensação de que o Brasil tinha sido rasgado. Comecei a descer a escada em um país, e terminei em outro. No meio, a notícia do assassinato de Marielle Franco. O corpo flagelado de Marielle era o rasgo.

Quando viajava para São Paulo, num percurso longo de três voos, em que podia checar as informações apenas nas escalas, percebi que esse sentimento não era só meu. Uma parte do Brasil se levantava, ocupava as ruas, se retorcia e gritava.

Matar uma vereadora eleita a tiros era um passo além na violência extrema de um país que convive com o genocídio dos jovens negros, que convive com o genocídio dos indígenas, como se fosse possível conviver com genocídios sem corromper além do possível o que chamamos de alma. O assassinato de Marielle era um passo além, um passo já sobre o vão do abismo, até mesmo para o Brasil.

Desde 2014 eu comecei a escrever uma palavra em vários dos meus textos. Esgarçado, esgarçamento... Demorei a reconhecer o padrão. Às vezes uma palavra se impõe pelos caminhos do inconsciente que percebe o mundo a partir de outros percursos. Esgarçada, a carne do país agora se rasgava, como se os corpos furados à bala, os corpos negros, os corpos indígenas, ao se tornarem numerosos demais, tivessem tornado impossível sustentar qualquer remendo. Mesmo uma costureira amadora sabe que não é possível cerzir um pano rasgado demais, onde a pele juntada com agulha e linha de imediato se abre. Já não havia integridade possível no tecido social do Brasil porque se matou demais. Marielle Franco era o além do demais.

Em 14 de março de 2018, o Brasil entrou numa nova fase de suas ruínas continentais

Entendi então que também era um Brasil que morria com Marielle. E que daquele dia em diante entraríamos numa outra fase de nossas ruínas continentais. Acredito que estava certa. Mas acredito também que estava errada. Estava certa porque Marielle Franco acolhia em seu corpo todas as minorias esmagadas durante 500 anos de Brasil. Seu corpo era um mostruário, uma instalação viva, da emergência dos Brasis historicamente silenciados.

Marielle carregava múltiplas identidades: negra, como é a maioria dos que morre; da favela (da Maré), de onde vêm os que têm menos tudo; mulher preta, a porção mais frágil e sujeita à violência da população brasileira; lésbica, o que a lança em outro grupo flagelado pela homofobia. Carregando tudo o que era – e será sempre –, Marielle elegeu-se vereadora do Rio pelo PSOL. E fez de suas identidades criminalizadas uma explosão de potência. Ela era a encarnação de um movimento que vinha tanto dos interiores quanto dos estertores do Brasil. Marielle encarnava um levante que não morreu com ela, mas que vem sendo massacrado nos últimos anos. Um levante criador e criativo que sonhava com outro Brasil, que almejava atravessar as oligarquias alegremente com seus pés descalços como o fez neste Carnaval – rumo a um outro jeito de ser Brasis, no plural.

Marielle tinha todo esse desaforo no seu corpo e ainda ousava rir, e ria muito, como fazem as mulheres que sabem que rir é um ato de transgressão, já que chorar é o que se espera de nós.

O Brasil que existiu de 1985 a 2016 morreu com o voto criminoso de Bolsonaro em favor do impeachment da primeira mulher presidente

Ao mesmo tempo, eu estava errada. O Brasil pós-redemocratização, o país onde eu tinha vivido a minha vida adulta, não tinha morrido em 14 de março de 2018. Mas sim quase dois anos antes, em 17 de abril de 2016.

Uma parte dos brasileiros soube que algo terrivelmente definitivo tinha acontecido naquele domingo em que os deputados votaram pela abertura do impeachment de Dilma Rousseff. Mesmo os que eram favoráveis ao impeachment chocaram-se com as tripas à mostra dos parlamentares, a votar em nome de Deus e da família contra uma presidenta que não havia cometido crime de responsabilidade. A vergonha atingiu quase todos nós. Ou pelo menos muitos. Muitos pela ética, a maioria talvez apenas pela estética.

O Brasil que existira durante 31 anos, do fim da ditadura militar à votação do impeachment de Dilma Rousseff, de 1985 a 2016, morreu com o voto de Jair Bolsonaro. Nestas mais de três décadas o Brasil avançou e retrocedeu, convulsionou-se, desvelou-se, povoou-se de esperanças, conviveu com o impossível de seus genocídios e protegeu agentes de Estado que cometeram crimes contra a humanidade durante o regime de exceção.

É da gestação dessa democracia deformada que nasce o Brasil que vivemos hoje, como já escrevi neste espaço, mais de uma vez. Mas até 2016 tivemos um país em ebulição, onde o presente era ferozmente disputado por diferentes grupos. Naquele país, o levante do qual Marielle Franco é um dos símbolos avançava pelas brechas, e avançava rápido, porque tinha séculos de atraso às suas costas.

Não é coincidência que Jean Wyllys, o deputado que cuspiu em Bolsonaro, é também o primeiro exilado de seu governo

O voto de Jair Bolsonaro interrompeu esse processo – e encerrou uma das fases mais ricas de possibilidades do Brasil. Não apenas o impeachment, que parte da esquerda chama de “golpe”, mas a perversão do impeachment tornada explícita pelo voto de Bolsonaro. Se o voto do ex-capitão era uma expressão da anatomia do impeachment, e era, o voto era isso e também algo além disso. Um além que talvez só Jean Wyllys (PSOL), no seu ato de cuspir, tenha percebido. Não é apenas coincidência que seja ele o primeiro político exilado do Brasil do bolsonarismo.

Naquele momento, Bolsonaro cometeu o crime de apologia à tortura e ao torturador. “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim". O então deputado federal violou o artigo 287 do Código Penal: “Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime. Pena: detenção de três a seis meses, ou multa”.

Ustra foi o único torturador reconhecido como torturador pela justiça brasileira. Sob o comando de Ustra, pelo menos 50 pessoas foram assassinadas e outras centenas torturadas. Havia ainda o sadismo explícito do aposto colocado por Bolsonaro: “pelo pavor de Dilma Rousseff”. A presidente foi torturada por agentes do Estado na ditadura.

Bolsonaro consumava ali a ligação entre os dois momentos do país, saltando sobre o período democrático. Ao invocar o torturador e apontar o pavor da torturada, Bolsonaro tornou o impeachment sem base legal um novo ato de tortura contra Dilma Rousseff.

Aquele, na minha opinião, foi o momento mais grave do país desde a redemocratização. O dia seguinte decidiria o futuro do Brasil. Se a lei fosse cumprida e Bolsonaro denunciado, julgado e preso, as instituições teriam mostrado que eram capazes não só de fazer a lei valer, mas também capazes de proteger a democracia e os princípios democráticos.

A serviço de forças muito além de sua família, Bolsonaro era aquele soldado raso despachado para a frente de batalha para descobrir se explode ou se a tropa mais gabaritada pode avançar em relativa segurança. Como ele ameaçou uma presidente e homenageou um torturador e continuou tocando a vida porque a lei era palavra morta, o Brasil afundou ali. Menos de um mês depois, em 12 de maio de 2016, dia do afastamento de Dilma Rousseff da presidência do país, Bolsonaro mergulhou nas águas do Rio Jordão, em Israel, para ser batizado pelo Pastor Everaldo, líder do PSC.

Foi também naquele voto que Bolsonaro virou presidente da República, ou alguém com muitas chances de se tornar presidente da República. De personagem bufão do baixo clero do Congresso, ele foi promovido a representante das forças mais arcaicas: tanto as que queriam garantir a ampliação do seu poder no Planalto, como os ruralistas, quanto as que queriam alcançar o poder central, caso dos evangélicos.

Os generais hoje no poder deveriam ter escutado o ditador Ernesto Geisel, que chamava Bolsonaro de “mau militar”

Naquele momento, também os setores das Forças Armadas incomodados com a Comissão da Verdade e a pressão pela revisão da Lei de Anistia viram uma oportunidade. Arriscada, mas ainda assim uma oportunidade. O ex-capitão, que era conhecido como oportunista e insubordinado, poderia ser útil para barrar a produção de memória sobre o regime de exceção e reescrever a história. Poderia ser útil também para garantir a volta dos generais ao Planalto sem o trauma de um golpe clássico, como ocorreu em 1964.

Acreditaram poder controlá-lo. Deveriam ter ouvido um general mais experiente antes de se meter na perigosa aventura bolsonarista. Em 1993, em entrevista aos pesquisadores Maria Celina D´Araújo e Celso Castro, o general Ernesto Geisel, quarto militar a presidir o Brasil durante a ditadura, afirmou: “Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar”.

Marielle Franco foi morta neste novo Brasil, por este novo Brasil escancarado pelo crime de Bolsonaro ao votar pelo impeachment. Este novo Brasil é velho, mas também é novo. Porque o novo não é sinônimo de bom. E o velho não é sinônimo de ruim. A serviço do que há de mais arcaico e viciado na história do Brasil, Bolsonaro é novo. A serviço do que há de mais cínico na história do Brasil, o fundoportunismo evangélico das lideranças neopentecostais é novo.

Já o novo que vem das raízes, representado por Marielle, o que vem da insurreição dos negros aquilombados, da resistência quase transcendental dos povos indígenas, das mulheres que amam suas bucetas, daqueles que não se encaixam na normatização dos corpos, é este que está sendo esmagado. Precisamos saber: Quem mandou matar Marielle? E por quê?

Marielle foi morta também por carregar no corpo o levante dos Brasis periféricos que reivindicam o lugar de centro

Seja qual for a resposta objetiva, concreta, que já tarda um ano, Marielle também foi morta por carregar no seu corpo o levante dos Brasis periféricos que nos últimos anos vêm reivindicando o lugar de centro. Ela era a expressão cheia de curvas de tudo aquilo que aqueles que só conseguem conviver com ângulos retos sentem compulsão por exterminar. Não apenas porque são incapazes de lidar com outras formas geométricas, mas porque quando os excluídos do Brasil ocupam as tribunas pelo voto, aqueles que acham que o poder é parte do seu destino hereditário temem por seus privilégios.

Desde que a primeira mulher presidenta foi arrancada do Planalto por um impeachment descabeçado, a violência nas periferias da floresta, do campo e das cidades recrudesceu. A percepção era de que algo represado, contido com muito esforço, se liberava. E de fato se liberava. Todo o desejo de destruição recalcado pelo que chamam de “politicamente correto”, mas que é outra coisa, emergiu. E da forma violenta como irrompe o que é controlado com esforço, o que é empurrado para o fundo, sem trabalho de elaboração tanto na esfera pública quanto na privada. Ainda assim, as Marielles seguiram.

Há no Brasil atual um desejo de destruição dos corpos que se recusam a ser normatizados, como os das mulheres e dos LGBTI

É de desejo de destruição que falamos. E minha interpretação é que majoritariamente é um desejo de destruição dos corpos das mulheres e dos LGBTI, dos corpos que se recusam a ser normatizados, como Jair Bolsonaro e seus seguidores deixaram claro na campanha de 2018. Acrescentaria ainda nesta lista os corpos dos que praticam as religiões de origem africana, barreira ao crescimento das evangélicas neopentecostais, que por isso precisam ser demonizadas.

Quando Bolsonaro invoca a tortura do corpo da presidenta ao votar pelo impeachment, é a vontade de destruição do corpo de Dilma que reafirma. Como antes já havia feito a apologia do estupro ao agredir a deputada federal Maria do Rosário (PT).

É importante lembrar de Luana Barbosa dos Reis Santos, negra, periférica e lésbica, que foi assassinada por policiais em 2017. Assim como lembrar que foi uma mulher, Amélia Teles, torturada por Ustra, aquela que foi agredida mais uma vez pelas redes sociais ao ser ameaçada de morte por apoiadores de Bolsonaro durante a campanha. Também Amelinha foi torturada duas vezes, a segunda por ousar contar a violência que sofreu pelas mãos e ordens do herói de Bolsonaro. Como vale a pena lembrar ainda, os agentes do Estado, além de usarem os equipamentos clássicos de tortura, como os choques elétricos, costumavam também torturar as mulheres introduzindo ratos e baratas em suas vaginas, ampliando o componente misógino do sadismo.

Os atuais donos do poder deflagraram uma guerra pelo controle dos corpos, aquilo que Jair Bolsonaro pregou como o fim das minorias, que devem “se curvar diante da maioria”. O “menino veste azul, menina veste rosa”, da ministra da Mulher, Damares Alves, não é uma distração ou um factoide – e sim a mais exata tradução de uma disputa de poder muito profunda.

O Carnaval de 2019 perturbou tanto Bolsonaro porque mostrou que o levante continua vivo

É necessário prestar atenção em quem foi obrigado – até agora – a deixar o país para salvar a sua vida: publicamente, um gay assumido e duas feministas conhecidas. Mas há mais gente. A violência não é sobre quaisquer corpos, mas sobre corpos específicos. O que se disputa, vale repetir, é o controle sobre os corpos que se insurgiram – o das mulheres, dos negros, dos indígenas e dos LGBTQI. Também não foi qualquer imagem que Bolsonaro escolheu para tentar desqualificar o Carnaval de 2019, mas uma relação sexual entre dois homens. Bolsonaro se descontrolou um pouco mais porque o Carnaval mostrou, apesar de toda a violência pregada pelo presidente, que o levante continua vivo. E muito vivo.

É urgente parar de fingir. Não vivemos numa democracia. Desde que assumiu, Bolsonaro passou a usar seu poder de presidente a serviço de sua máquina de produzir linchamentos e desqualificar opositores, que trata como inimigos. A estratégia de sua ação na redes sociais, assessorado pelo filho zero dois, é a de manter a população em suspenso. Bolsonaro e zero dois vão controlando os dias e os espasmos, disseminando mentiras e direcionando ataques.

Sejamos claros: Bolsonaro está controlando o cotidiano do país. Não pela administração pública, mas pela administração do ódio. O que vai acontecer neste país com um presidente que usa o poder e a máquina do Estado para destruir uma parcela cada vez maior da população?

Bolsonaro e sua administração do ódio podem provocar uma tragédia a qualquer momento

Parar de fingir que existe uma normalidade democrática é uma medida urgente para manter a sanidade mental da população. O Brasil pode explodir em ódios a qualquer momento. São grandes as chances de Bolsonaro provocar uma tragédia. Ele está fora de controle, se é que algum dia teve algum controle. E as instituições não se movem para proteger a população e a Constituição.

Vivemos no Brasil um cotidiano de exceção. Desde o voto de Bolsonaro. E rumamos para um Estado de Exceção, desde o voto em Bolsonaro.

A destruição do corpo de Marielle Franco, o corpo político que se recusava a ser subjugado, é até hoje o mais violento ataque. É por dignidade que se grita “Marielle Presente”. É por responsabilidade coletiva. Mas também é pela convicção de que manter viva a memória de Marielle e tornar cara a sua morte é o que possivelmente já tenha nos salvado de outros corpos arrebentados à bala pelas ruas do Brasil. Esse grito persistente é o que talvez tenha nos tenha salvado do descontrole total.

Este Brasil que matou Marielle já era o Brasil de Bolsonaro mesmo antes de ele ser eleito. Era o Brasil em que os filhos de Bolsonaro vestiam uma camiseta com a inscrição “Ustra Vive” para disputar votos. Em que o atual governador do Rio aparece junto com dois brucutus, que depois se tornariam deputados eleitos pelo PSL. Na imagem, eles se orgulham de arrebentar a placa de rua com o nome de Marielle Franco. E atravessam seu nome com os próprios corpos, como numa espécie de estupro simbólico.

A apuração do assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes está em curso. O fato de um ano após sua morte o Brasil ainda não saber quem ordenou o crime e por que razões ordenou o crime é uma vergonha para os responsáveis, em todas as instâncias – e uma vergonha para o Brasil. Mas não só uma vergonha. O que a demora em solucionar o crime expõe é a convulsão do país em que uma polícia precisa investigar por que razões a outra polícia não investiga. Um país em que os suspeitos que acabaram de ser presos eram policiais militares.

Bolsonaro deveria ser o brasileiro que mais deseja esclarecer a morte de Marielle e, assim, provar que coincidências são apenas coincidências

O presidente do Brasil e sua família deveriam ser os primeiros a querer que o assassinato de Marielle Franco fosse esclarecido. E imediatamente. Deveriam ser os mais interessados em provar que as coincidências e os vários cruzamentos da família com suspeitos de terem executado o crime são apenas isso: coincidências. Não é possível governar um país sem que essas coincidências sejam esclarecidas. A cada nova coincidência, cresce na população o sentimento de descontrole.

Só a dois dias de completar um ano das mortes é que finalmente a Polícia Civil do Rio e o Ministério Público do Rio prenderam os ex-PMs Ronie Lessa e Elcio Vieira de Queiroz. Lessa foi preso na casa de 280 metros quadrados onde vivia com a família, na mesma rua e no mesmo condomínio de Jair Bolsonaro. Da varanda da casa de Lessa é possível ver o quarto da filha de Bolsonaro. Segundo o delegado Ginilton Lages, a filha de Lessa namorou um dos filhos de Bolsonaro. Na casa de um amigo de Lessa, a Polícia Civil encontrou 117 fuzis incompletos, do tipo M-16: é a maior apreensão de fuzis da história do Rio de Janeiro.

Ninguém é responsável pelos atos de seus vizinhos nem pelos atos dos sogros dos filhos. Mas, enquanto os mandantes do crime não forem descobertos e as motivações esclarecidas, também não há como provar que coincidências são apenas coincidências. E isso é ruim para o Brasil. É por isso que o clã Bolsonaro deveria ser o maior interessado em desvendar o assassinato de Marielle. Para o bem do Brasil.

Porque há outras coincidências. O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), escreveu numa rede social que um dos cinco presos na operação “Os Intocáveis”, de janeiro deste ano, uma ação conjunta da Polícia Civil e do Ministério Público, era suspeito de envolvimento nas mortes de Marielle e de Anderson. O ex-capitão da PM Adriano Magalhães Nóbrega, hoje foragido, foi apontado pela operação como um dos líderes da milícia de Rio das Pedras, que opera um esquema de grilagem de terras, entre outros crimes e contravenções. Nóbrega também seria chefe do grupo de extermínio Escritório do Crime, suspeito de estar associado à execução de Marielle e de Anderson. Este mesmo Nóbrega foi celebrado pelo hoje senador Flávio Bolsonaro, o zero um, com moção de louvor por seu “brilhantismo e galhardia”, em 2003, e com a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em 2005.

As coincidências não param aí. Até novembro de 2018, a mãe e a mulher de Nóbrega trabalhavam no gabinete de Flávio Bolsonaro. O zero um atribuiu as contratações a seu ex-assessor, Fabrício Queiroz, amigo de longa data do presidente da República. Queiroz, que foi policial militar, é suspeito de comandar rachadinhas no gabinete de zero um. O esquema retém parte dos salários de funcionários nomeados de um gabinete. Queiroz também é o autor do depósito de um cheque de 24 mil reais na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

No final de 2018, a Polícia Federal entrou no caso Marielle para descobrir o que estava barrando a investigação do caso Marielle. “Uma investigação sobre a investigação”, como definiu o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann. Quando a Polícia Federal precisa ser acionada não para desvendar um caso, mas para descobrir por que o caso não é desvendado, é compreensível e mesmo esperado que a população comece a entrar em pânico.

Jungmann disse mais: o processo de apuração do crime é “uma aliança satânica entre a corrupção e o crime organizado”. O então ministro já havia descrito o caso Marielle com as seguintes palavras: “Fica claro que existiria uma grande articulação envolvendo agentes públicos, milicianos, políticos, num esquema muito poderoso, que não teria interesse na elucidação do caso Marielle, até porque estariam envolvidos nesse processo, se não tanto na qualidade daqueles que executaram, na qualidade de mandantes”. Ele era o ministro da Segurança e tudo o que afirmava era sua impotência para elucidar o crime.

Para manter a popularidade em alta, Bolsonaro está gestando uma guerra civil não declarada no Brasil

Bolsonaro entra no terceiro mês de governo. Já mostrou que governa pela administração do ódio. E que essa administração é estratégica e calculada para cumprir pelo menos dois objetivos: desviar o foco das atenções sobre as suspeitas envolvendo o filho zero um, que podem atingir mais membros da família, inclusive o próprio presidente, assim como manter o país em guerra civil não declarada nas redes sociais, de forma que Bolsonaro possa escolher o inimigo a ser linchado antes que o ódio se volte contra ele.

O presidente dedica grande parte do seu tempo a manter suas milícias digitais ocupadas, destruindo as reputações de seus críticos, e sem tempo para prestar atenção em como são tratados os assuntos urgentes do Brasil. Como já se viu, a produção de linchamentos seguidamente tem como alvos jornalistas que investigam tanto as milícias do Rio quanto o caso Queiroz.

Jair Bolsonaro transformou o Brasil em um laboratório de administração do ódio e de seus efeitos sobre a população. É um “case”. E é muito perigoso. Quem percebe já começou a adoecer. Outros deixaram o país para não virarem mártires. O pior que podemos fazer neste momento é fingir que isso é normalidade. Ou que há normalidade possível com um presidente que controla os dias do Brasil pela administração do ódio nas redes sociais. A pressão está crescendo. As coincidências precisam ser esclarecidas o mais rapidamente possível. As instituições devem acordar.

Quando finalmente for descoberto quem mandou matar Marielle Franco – e por quê –, não será apenas um crime que vai ser elucidado. É a anatomia do Brasil atual que poderá ser desvelada em todo o seu espantoso horror. Mas os mandantes – e os motivos – só serão revelados se continuarmos a perguntar: “Quem mandou matar Marielle? E por quê?”

Marielle Presente!

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


El País: Prisão de suspeitos de matar Marielle eleva pressão para rastrear mandantes

Um ano após crime, autoridades respondem primeiras perguntas em meio a apuração paralela da PF. Investigação sobre papel de Escritório do Crime segue em sigilo

Por Felipe Betim, do El País

Foi necessário quase um ano desde a brutal execução da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes para que os investigadores da Delegacia de Homicídios (DH) e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro dessem as primeiras respostas a familiares e amigos das vítimas — e também para a sociedade brasileira — sobre quem poderia ter executado o crime, um divisor de águas na história recente da violência política no país. A primeira fase das investigações só veio a ter um desfecho nesta terça-feira, 12 de março, a apenas dois dias do primeiro aniversário do duplo assassinato. Ronnie Lessa, um sargento reformado da Polícia Militar, de 48 anos, foi formalmente acusado pelo MP de ter feito os 13 disparos contra o carro onde estavam Marielle e Anderson. Elcio Vieira de Queiroz, um policial militar expulso da corporação em 2011, de 46 anos, foi apontado como o motorista do Cobalt prata de onde saíram os tiros.

Ambos estão presos e tiveram suas residências reviradas por policiais, autorizados pela Justiça a realizar um total 34 mandados de busca e apreensão que devem servir para dar continuidade a uma investigação que, nas palavras de Geniton Lages, chefe da DH, ainda não terminou. Os investigadores anunciaram que faz parte de uma segunda fase, boa parte dela ainda em sigilo, a elucidação definitiva do crime. Assim, o visível alívio dos investigadores ao apresentar os primeiros resultados foi imediatamente tomado pela pressão, verbalizada por familiares e amigos das vítimas, para saber se Lessa, que já era conhecido por seus serviços como matador de aluguel embora jamais tenha sido formalmente acusado disso, planejou o crime sozinho ou se recebeu ordens — e dinheiro — para executá-lo. O dia terminou com uma fotografia de 117 fuzis M-16 apreendidos na casa de um amigo de Lessa. Uma quantidade que serve ao menos para demonstrar que o sargento reformado não trabalha sozinho.

A investigação do caso Marielle percorreu diversos caminhos e começou a expor as entranhas do mundo do crime organizado — mais organizado do que se pensava — no Rio de Janeiro. Foi através das investigações que as autoridades chegaram até o chamado Escritório do Crime, um poderoso grupo miliciano de Rio das Pedras que atua sob encomenda. A investigação acabou desmembrada do Caso Marielle e resultou na Operação Intocáveis em janeiro deste ano. O capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, vulgo Gordinho, tido pelo MP como uma das lideranças do Escritório do Crime, está foragido. O caso ganhou ainda mais voltagem política com a divulgação de que Raimunda Veras Magalhães e Danielle Mendonça da Costa da Nóbrega, mãe e mulher de Adriano, respectivamente, estavam lotadas no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio até o segundo semestre de 2018 .

Investigação sigilosa

Ainda não está clara qual é a relação de Adriano Nóbrega e Ronnie Lessa. Durante a entrevista coletiva desta terça, as promotoras do Ministério Público Simone Sibilio e Leticia Emile não descartaram nem apontaram uma relação entre os dois personagens. As investigações, ressaltaram, seguem sigilosas. Limitaram-se a dizer que até o momento foi identificada uma possível ligação de Lessa com grupos milicianos fora de Rio das Pedras, mas disseram que o sargento reformado já teve uma academia no bairro. Ou seja, segundo suas próprias palavras, já pode ter tido ao menos no passado alguma relação com uma das regiões mais emblemáticas de milícia e com vinculação ao Escritório do Crime. As duas investigações seguem paralelamente e também não está claro como voltarão a se encontrar lá na frente.

A denúncia feita pelas promotoras ressalta que o crime "foi praticado por motivo torpe, interligado à abjeta repulsa e reação à atuação política da mesma na defesa de suas causas". Entre essas causas estão as "voltadas para as minorias, para as mulheres negras e LGBTs", esclareceu Sibilio nesta terça. Os investigadores tiveram acesso às pesquisas feitas por Lessa, que teria demonstrado "um perfil absolutamente reativo a essas pessoas que se dedicam às causas das minorias", ainda segundo a promotora. Essa constatação enfraquece a tese de que o crime foi encomendado por outra pessoa? “Essa motivação ela é decorrente da atuação política dela, mas não inviabiliza um possível mando. Ela não inviabiliza que o crime tenha sido praticado por uma paga ou promessa de recompensa. Essas causas juridicamente e faticamente não se repelem", garantiu Sibilo.

Há outras questões correndo em paralelo. Ronnie Lessa, que deixou a PM em 2009 após perder a perna em um atentado, era conhecido no Rio por ser um exímio atirador e matador de aluguel, conhecido pela frieza com que cumpria suas tarefas criminosas. Para encontrá-lo e encomendar uma execução bastava ir a Quebra Mar, Barra da Tijuca, onde batia ponto cotidianamente. Apesar disso, Lessa era ficha limpa, isto é, não havia até o momento sido investigado ou processado. Por que a Polícia Civil ainda não havia chegado até ele?

O que existe, até o momento, é uma denúncia feito pelo miliciano Orlando de Curicica — preso e apontado como um dos mandantes do assassinato de Marielle por uma testemunha — de que a cúpula da Polícia Civil recebe propina para não investigar milicianos e contraventores. "Existe no Rio hoje um batalhão de assassinos agindo por dinheiro, a maioria oriunda da contravenção. A DH (Delegacia de Homicídios) e o chefe de Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, sabem quem são, mas recebem dinheiro de contraventores para não tocar ou direcionar as investigações, criando assim uma rede de proteção para que a contravenção mate quem quiser. Diga, nos últimos anos, qual caso de homicídio teve como alvo de investigação algum contraventor?", afirmou em uma entrevista ao jornal O Globo no ano passado. Apontado por uma testemunha de ter planejado a execução da parlamentar do PSOL junto com o também vereador Marcello Siciliano, ele é um dos investigados pela DH e nega as acusações. Mas, com as prisões desta terça, não está claro se Siciliano e Orlando de Curicica foram descartados.

Seja como for, a Procuradoria-Geral da República determinou que a Polícia Federal investigasse as denúncias de que a Polícia Civil agia para sabotar as investigações. Nesta terça, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, fez questão de fazer referência à investigação da PF, a quem comanda, e garantir que a corporação seguiria empenhada em esclarecer as obstruções. No ano passado,  o Governo Federal, presidido por Michel Temer (MDB), tentou sem sucesso federalizar as investigações mais de uma vez. Isso foi ressaltado pelo ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungmann nesta terça-feira em entrevista ao portal UOL. Ele se disse frustrado por não ter assistido à elucidação do caso Marielle, mas que não se sente responsável. Também disse que faltam provas para que haja uma condenação de Lessa e Queiroz.

"É na Polícia Federal que eu deposito as maiores esperanças. Confio que será possível saber se algum complô se formou no Rio para evitar que se chegue a executores e mandantes", disse ele. "Espero que se esclareça também de que maneira o crime organizado conseguiu capturar, em larga medida, órgãos de Estado, poderes estaduais, instituições do Rio. Precisamos chegar ao coração das trevas, desmontando essa aliança satânica", acrescentou.

Jungmann já havia dito no ano passado que "políticos poderosos" estavam envolvidos na morte da vereadora. Em agosto do ano passado, o então deputado estadual Marcelo Freixo cobrou uma investigação sobre um possível envolvimento de ex-deputados do MDB no crime, que estaria lihado à atuação firme do PSOL durante o processo que os afastou da Assembleia Legislativa do Rio (ALERJ) e resultou na prisão deles. Os parlamentares são Edson Albertassi, Paulo Melo e Jorge Picciani, este último um dos principais caciques do partido no Estado e ex-presidente da ALERJ. Até agora, nenhuma palavra das autoridades aventa um possível envolvimento da cúpula do MDB fluminense.

Também já se sabe que o sargento reformado Ronnie Lessa é morador do condomínio Vivendas da Barra, onde também morava o presidente Bolsonaro e seu filho Carlos. Os investigadores descartam, por ora, qualquer relação entre os Bolsonaro e Lessa. "Não detectamos uma relação direta com a família Bolsonaro", destacou Lages. Questionado, reconheceu que a filha de Ronnie Lessa namorou um dos filhos do presidente. "Isso tem [namoro entre os dois], mas isso, para nós, hoje, não importou na motivação delitiva. O fato dele morar no condomínio do Bolsonaro não nos diz nada, isso será confrontado no momento oportuno. Não é importante para esse momento", acrescentou.

Por ora, o governador Wilson Witzel, flagrado em um evento no qual foi rasgada uma placa comemorativa em memória a Marielle Franco durante a campanha no ano passado, tenta aumentar seu capital político com as prisões desta terça-feira, ao convocar a coletiva no palácio da Guanabara juntamente com os chefes da polícia e defender uma delação premiada dos acusados. As promotoras do MP, que não consideraram o local adequado, convocaram uma entrevista coletiva para horas depois. Esses desencontros políticos mostram que as questões que rondam o caso, que promete levar brasileiros às ruas na quinta no primeiro ano do crime, ainda são muitas. As respostas, insuficientes.


Tim Berners-Lee: As três ameaças que pairam sobre a web

No 30º aniversário da World Wide Web, seu criador reflete sobre como a Internet facilitou nossas vidas, mas também deu voz aos que propagam o ódio

Hoje, 30 anos depois da minha proposta original de um sistema de gerenciamento da informação, meio mundo usa a Internet. É um momento para comemorar o quão longe chegamos, mas também uma oportunidade para refletir sobre o quão longe ainda precisamos ir.

A web tornou-se uma praça pública, uma biblioteca, um consultório médico, uma loja, uma escola, um estúdio de design, um escritório, um cinema, um banco e muitas outras coisas. Naturalmente, a cada nova característica e a cada novo site, a divisão entre aqueles que usam a Internet e aqueles que não usam aumenta e torna ainda mais imprescindível que todos tenham acesso à Internet.

E embora a Internet tenha criado oportunidades, dado voz a grupos marginalizados e facilitado nossa vida diária, também engendrou oportunidades para fraudadores, deu voz àqueles que propagam o ódio e facilitou a prática de todos os tipos de crimes.

Tim Berners-Lee, no CERN, onde criou a World Wide Web. Foto: CERN

Com o pano de fundo das notícias sobre o uso indevido da Internet, é compreensível que muitas pessoas sintam medo e não tenham certeza de que a Rede seja realmente boa. Mas, considerando o quanto mudou nos últimos 30 anos, seria derrotista e pouco imaginativo supor que a Internet, como a conhecemos, não possa ser modificada para melhor nos próximos 30. Se desistirmos de criar uma Rede melhor, a Rede não terá falhado conosco: nós é que teremos falhado com a Rede. Para abordar qualquer problema, devemos defini-lo de forma clara. Em geral, considero que há três causas para as disfunções que afetam a web atual:

1. As intenções deliberadas e mal-intencionadas, como hackers e ciberataques apoiados pelos Estados, a conduta criminosa e o assédio na Internet.

2. A elaboração de um sistema que cria incentivos perversos nos quais o usuário é sacrificado, como os modelos de receita baseados em publicidade que recompensam comercialmente o caça-cliques e a disseminação viral de desinformação.

3. As consequências negativas involuntárias do modelo benevolente, como o tom enfurecido e polarizado e a qualidade das conversas na Internet.

Embora seja impossível eliminar completamente a primeira categoria, podemos criar leis e códigos para minimizar esse comportamento, como sempre fizemos fora da Internet. A segunda categoria exige que reformulemos os sistemas de maneira que mudem os incentivos. E a última categoria requer pesquisa para entender os sistemas atuais e criar possíveis novos modelos ou modificar os que já temos.

Não se pode simplesmente culpar um Governo, uma rede social ou a mentalidade humana. Os discursos simplistas correm o risco de esgotar nossa energia ao tratarmos os sintomas desses problemas em vez de nos concentrarmos em suas causas. Para fazer isso bem, temos que nos unir como uma comunidade global da Internet.

"Os cidadãos devem exigir que empresas e Governos prestem contas pelos compromissos que adotam e que ambos respeitem a Internet como uma comunidade global cuja base são os cidadãos "

Em momentos cruciais, as gerações anteriores se uniram para trabalhar juntas por um futuro melhor. Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, diferentes grupos de pessoas puderam concordar com alguns princípios essenciais. Com o Direito Marítimo e o Tratado do Espaço Sideral, preservamos novas fronteiras para o bem comum. E agora também, à medida que a Internet modifica nosso mundo, temos a responsabilidade de garantir que seja reconhecida como um direito humano e construída para o benefício de todos. Essa é a razão pela qual a Fundação Web trabalha com Governos, empresas e cidadãos para criar um novo Contrato para a Rede.

Esse contrato foi apresentado no Web Summit em Lisboa, que reuniu um grupo de pessoas que concordam que é necessário estabelecer regras, leis e critérios claros para a Rede. Os que apoiam a ideia adotam seus princípios básicos, e juntos elaboramos os compromissos específicos em cada área. Nenhum grupo deveria fazer isso sozinho, e todas as contribuições são bem-vindas. Governos, empresas e cidadãos fazem sua contribuição, e nosso objetivo é alcançar resultados este ano.

Os Governos devem adaptar as leis e regulamentos à era digital. Devem garantir que os mercados permaneçam competitivos, inovadores e abertos. Já têm a responsabilidade de proteger os direitos e liberdades das pessoas na Internet. Precisamos de defensores da Rede aberta dentro dos Governos, funcionários públicos e autoridades eleitas que tomem medidas quando os interesses do setor privado ameacem o interesse geral e se posicionem a seu favor para proteger a Rede aberta.

As empresas precisam fazer mais para garantir que sua busca por benefícios a curto prazo não seja à custa dos direitos humanos, da democracia, dos dados científicos ou da segurança pública. Plataformas e produtos devem ser projetados considerando a privacidade, a diversidade e a segurança. Este ano, observamos como vários funcionários de empresas de tecnologia se rebelaram e exigiram melhores práticas empresariais. Temos que fomentar essa mentalidade.

E o mais importante é que cidadãos exijam que empresas e Governos prestem contas pelos compromissos que adotam e que ambos respeitem a Internet como uma comunidade global cuja base são os cidadãos. Se não elegermos políticos que defendam uma Rede livre e aberta, se não fizermos nossa parte para incentivar conversas saudáveis na Internet e se continuarmos dando nosso consentimento sem exigir que nossos direitos sobre os dados sejam respeitados, não estaremos cumprindo nossa responsabilidade de fazer com que nossos Governos priorizem estas questões.

A luta pela Rede é uma das causas mais importantes de nosso tempo. Hoje, meio mundo usa a Internet. É mais urgente do que nunca garantir que a outra metade não seja deixada para trás e que todos contribuam para a criação de uma Rede que promova a igualdade, as oportunidades e a criatividade.

O Contrato para a Rede não deve ser uma lista de soluções temporárias, e sim um processo que indique uma mudança na maneira como entendemos nossa relação com nossa comunidade digital. Deve ser suficientemente claro para ser um guia sobre nosso procedimento, mas também suficientemente flexível para se adaptar à rapidez da mudança tecnológica. É a nossa trajetória da adolescência digital rumo a um futuro mais maduro, responsável e inclusivo.

A Rede é para todos, e juntos temos o poder de mudá-la. Não será fácil. Mas se sonharmos um pouco e trabalharmos muito, podemos conseguir a Rede que queremos.

 


El País: Bolsonaro, fator de risco do Governo

DEM tenta organizar base governista para tramitação da reforma da Previdência. Enquanto isso, Bolsonaro mente para atacar jornalista e promove expurgo precoce no MEC

O Governo Jair Bolsonaro começa nesta semana a tramitação para valer da reforma da Previdência na Câmara, o principal projeto econômico da gestão, mas nem o presidente nem os ministros-estrela do Planalto despontam como protagonistas –se para o bem ou para o mal das chances de aprovação, só as próximas semanas dirão. Bolsonaro vem dedicando seu tempo público a atacar jornalistas e a insuflar debates escatológicos em suas potentes redes sociais, onde a proposta de mudança na aposentadorias mal aparece. Já o articulador do Governo, o ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni, está em viagem oficial à Antártida até quarta-feira. O líder do Governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO), por sua vez, não conseguiu sequer marcar uma reunião com todos os líderes partidários.

Neste panorama, coube até agora a experientes políticos “colocarem a bola no centro do campo” e tentar dar andamento ao projeto que incomoda vários lobbies poderosos e é, ao mesmo tempo, ansiado por investidores e empresários. No momento, é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e seu fortalecido DEM, que também comanda o Senado, que se apresenta como fiador da reforma. Foi Maia, em seu quinto mandato consecutivo e desprezado nas redes sociais como representante da "velha política" pelos bolsonaristas, que teve de intervir e negociar diretamente com o ministro da Economia, Paulo Guedes, para garantir a promessa do Planalto de que haverá uma proposta formal para incluir os militares na reforma até a semana que vem.

A palavra empenhada de Guedes sobre os militares destravou o que estava empacado há semanas. Desde que foi enviada pelo Governo Jair Bolsonaro (PSL) ao Congresso Nacional, há 20 dias, nada tinha sido feito com a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 6/2019. Vários políticos, incluindo Maia, repetiam que não empenhariam seu capital político em uma proposta impopular para ver o Governo poupar os militares. Os líderes partidários não queriam indicar os membros da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados, a primeira parada formal da projeto, enquanto a gestão federal não desse as garantias da inclusão das Forças Armadas.

Findo esse primeiro primeiro impasse, nesta quarta-feira a CCJ se instala e seu presidente, o deputado Felipe Francischini (PSL-PR), será empossado. Aí, começa uma nova disputa para definir quem será o relator do projeto, um posto importante na defesa pública das mudanças. Trata-se de um processo de tramitação lento e complexo numa Câmara bastante renovada e inexperiente. Só na CCJ, a expectativa é que a tramitação leve cerca de duas semanas. Depois, ainda ficará de dois a três meses sendo debatida em uma comissão especial, para, só então, ser levada ao plenário. A votação decisiva, e em dois turnos, só deve ocorrer em junho.

Bolsonaro, fator de risco
Neste balé legislativo, em que outros e mais experientes presidentes já naufragaram ou tiveram que conter as expectativas, é o presidente que segue sendo um fator de risco, na avaliação de seus próprios correligionários. A torcida da base bolsonarista é que o presidente não cometa novas gafes ou compre brigas desnecessárias. Desde a demissão de Gustavo Bebianno da Secretaria-Geral da Presidência, no dia 19 de fevereiro, já foram várias. Em Brasília é comum ouvir o comentário de que o maior inimigo de Jair Bolsonaro é ele mesmo.

“O presidente está atrapalhando a si mesmo. Agora, todas as energias deveriam ser concentradas na reforma. Quando você foca na questão dos costumes, você arruma ruídos com alguém”, disse o deputado Elmar Nascimento, líder do DEM, a legenda da base de apoio que se tornou crucial no processo. Nascimento defende que Bolsonaro tem de começar a medir suas palavras.

Os movimentos, às vezes erráticos, do presidente enviam sinais ruins para a classe política e levantam os primeiros alertas no mercado financeiro –ainda que a tônica geral seja, como nesta segunda, de cifras bastante positivas na Bolsa de São Paulo, sinal de que seguem dando um voto de confiança de que o Planalto e Guedes conseguirão entregar uma aprovação.

Mentira para atacar jornalista e expurgo no MEC
Num espaço de poucos dias, o presidente de extrema direita seguiu insuflando seus seguidores com pautas conservadoras nos costumes e pregando intimidação da imprensa. Primeiro, foi o inglório episódio do golden shower, quando expôs um vídeo protagonizado por dois homens no qual um deles urinava sobre o outro. Na sexta, Dia da Mulher, disse que elas vieram da costela de Adão e afirmou que a representatividade em seus ministérios era parelha (são 20 homens e 2 mulheres). No domingo, ele voltou à carga nos ataques à imprensa ao usar uma informação falsa para atacar e intimidar uma repórter do jornal O Estado de S. Paulo, usando um site de apoiadores dele, o Terça Livre. Mesmo que um áudio não chancelasse a afirmação, o presidente disse que a jornalista Constança Rezende havia afirmado ter a intenção de arruinar o primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), e o Governo federal. O distorção de uma informação em sua conta de Twitter não foi uma exceção. Até o último dia 10 de março, a agência Aos Fatos contabilizou que, de 149 declarações feitas por Bolsonaro passíveis de checagem, 67 apresentavam informações verdadeiras, 52 tinham algum grau de erro e outras 30 continham dados completamente falsos.

Além disso, Bolsonaro ainda emprega energia num embate interno entre as alas ideológica e militar no Ministério da Educação (onde os militares perderam o round). Foi demitido o coronel Ricardo Roquetti, que ocupava uma diretoria no MEC em meio a uma acalorada e pública disputa com o ideólogo do bolsonarismo, o escritor Olavo de Carvalho. Olavo disse que o Governo está “repleto de inimigos do presidente e inimigos do povo” e orientou as dezenas de alunos e apadrinhados seus que fazem parte da gestão a deixarem seus cargos. A idiossincrática influência do estudioso, que mora nos EUA, não é desprezível e incluem o assessor internacional da Presidência, Filipe Martins, o secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida e o chanceler Ernesto Araújo, além do próprio titular do MEC, Ricardo Vélez.

Uma conta que ainda não fecha
Enquanto a novela de desenrola, a base faz cálculos. Mas a conta, hoje, ainda não fecha: o Governo não tem nem 200 dos 308 votos necessários para aprovação da PEC. A base ainda está em processo de formação. “O presidente está preso em seu discurso de campanha, de ser contra a política. Com exceção dos deputados do PSL, a grande maioria dos outros não se elegeu por causa dele. E ele terá de aprender a dividir o sucesso em caso de aprovação da reforma, algo que parece que ele não entendeu ainda”, avaliou o deputado Nascimento.

Dois deputados do PSL disseram, sob a condição de anonimato, que hoje acreditam que apenas o próprio partido do presidente entregaria os seus votos. “Não se trata apenas de dividir os cargos, algo que também somos contra, mas de sentar para conversar e aceitar ceder aqui ou ali”, disse um desses parlamentares.

Enquanto Bolsonaro não decide qual papel terá nessas negociações, a combalida oposição ao presidente quer alinhar o discurso, algo que não conseguiu fazer desde que perdeu a eleição no ano passado. Os partidos opositores deverão se reunir na quarta-feira com representantes de centrais sindicais para debater quais serão as estratégias para tentar barrar a reforma no plenário da Câmara.