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El País: Conselhos sociais sobre indígenas, LGBTs e população de rua estão na mira de Bolsonaro

Decreto extingue colegiados sociais sob o argumento de redução de gastos. Decisão reduz participação popular no Governo e põe em risco políticas para minorias, avaliam pesquisadores

presidente Jair Bolsonaro anunciou a extinção de centenas de conselhos sociais com participação popular, responsáveis pelo debate e pelo acompanhamento de políticas federais em distintas áreas, no como parte das medidas anunciadas no evento em alusão aos seus 100 dias de Governo. Em 11 de abril, foi publicado no Diário Oficial da União o decreto 9.759 assinado pelo presidente — que determina a extinção de colegiados que não foram instituídos por lei e que não tenham sofrido nenhuma modificação por seus ministros — sob o argumento de desburocratizar e economizar na administração pública. Sem apresentar a lista dos conselhos afetados nem a estimativa de seus gastos, o Governo se limitou a contabilizar que existem mais de 700 coletivos atualmente. Os participantes, porém, não são remunerados pelo trabalho que exercem. Recebem apenas transporte e diária para as reuniões em Brasília. Dentre os conselhos afetados, estão os que tratam de pautas da população de rua, de indígenas e de LGBTs — grupos que já têm pouca voz tradicionalmente, e que viram ameaçadas neste Governo as poucas brechas abertas para interferir em discussões que lhes sejam de interesse. Para pesquisadores, a canetada do presidente afasta a gestão da sociedade civil organizada e põe em risco políticas públicas para minorias.

Conforme o decreto, os ministérios têm até o dia 28 de maio para apresentar à Casa Civil a proposta dos colegiados acomodados em suas estruturas que não desejam ser encerrados. O Governo vai analisar as petições e estabelecerá os que deverão permanecer. A ideia, explicou o ministro Onyx Lorenzoni, é reduzir o número de conselhos para até 50 colegiados. A advogada e doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, Carla Bezerra, fez um levantamento dos conselhos criados até 2014 e que têm participação da sociedade civil e concluiu que pelo menos 34 grupos podem ser extintos com o decreto presidencial, um número bem inferior aos 700 anunciados pelo Governo. "O decreto deve incluir colegiados que não têm participação da sociedade civil, que são formados apenas por integrantes do Governo com a função de monitorar políticas", afirma. Para ela, a forma que a gestão escolheu para extinguir os grupos, com uma canetada, é simbólica e representa um recado de distanciamento do atual Governo com a sociedade civil organizada.

"O efeito imediato é de insegurança, de como vai ser a condução das políticas públicas daqui para frente, principalmente em áreas relacionadas ao público LGBT, à população de rua. Mas o grande simbolismo é que o Governo não quer a participação da sociedade civil", afirma Bezerra. O Ministério Público Federal emitiu nota manifestando preocupação com a extinção desses grupos de trabalho e defendeu que o Governo mantenha especialmente os colegiados previstos na Constituição ou em tratados internacionais. Um dos grupos que podem ser extintos é o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT, que começou a funcionar de forma mais ampla na gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mas se restringiu especificamente aos assuntos LGBT no Governo Lula. O colegiado teve a atual nomenclatura oficializada por um decreto de 2010.

A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), que tem representação neste conselho, emitiu uma nota de repúdio ao decreto e acusou o Governo de promover "retrocessos" nas ações para o setor, citando como exemplo a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. "Os conselhos são instrumentos importantes, conquistados pela luta da sociedade civil organizada e garantida na Constituição Brasileira, extingui-los é a expressão da perseguição aos movimentos sociais e o impedimento da participação e fiscalização dos cidadãos", diz a nota.

Pelo menos dois colegiados ligados aos povos indígenas — cujas demarcações de terras e políticas não integracionistas são alvo de críticas de Bolsonaro desde as eleições — estão na mira do presidente: a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) e a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena. "Essas medidas representam um aprofundamento do caráter autoritário do Governo", afirma Cléber Buzzato, membro do CNPI. Segundo ele, o Governo já tinha mostrado que não tem disposição de ouvir os povos indígenas quando assinou, no primeiro dia de gestão, a Medida Provisória que retirou a Funai do Ministério da Justiça sem consultá-los.

A Comissão Nacional de Política Indigenista funciona como uma plataforma de interlocução entre as etnias e o Governo e se reúne a cada três meses. Instituída por um decreto de 2015, tem comissões para discutir temas que vão desde a educação e saúde indígena até as questões territoriais. Teve uma atuação fundamental para a criação da Secretaria de Saúde indígena (Sesai), assim como para evitar a sua extinção no atual Governo. "Tudo isso fica em suspenso. O Governo agora decreta que não quer ter qualquer tipo de interlocução. Isso é extremamente ruim porque acaba produzindo um hiato. Nossa avaliação é de que isso vai aprofundar os conflitos [territoriais]", declara Buzzato.

Além desses colegiados, o decreto pode extinguir grupos de trabalho sobre pessoas com deficiência, trabalho escravo, pessoas em situação de rua, direitos dos idosos, previdência, segurança pública, educação em direitos humanos e questões ambientais. O decreto ainda revoga expressamente a Política Nacional de Participação Social, que foi instituída no Governo Dilma, em 2014, abrindo novos mecanismos para a criação de grupos de trabalho que pudessem aprofundar a participação popular na gestão federal. Na época, o decreto da presidenta — que chegou a ser chamado de decreto bolivariano — gerou polêmica, pois parlamentares entendiam que o controle social já era realizado pelo Congresso.

O presidente Jair Bolsonaro chegou a enaltecer o seu decreto por meio das redes sociais e defendeu que ele significará uma "gigantesca economia" aos cofres públicos. Também argumentou que a extinção dos colegiados representará uma "redução do poder de entidades aparelhadas politicamente usando nomes bonitos para impor suas vontades". Para a pesquisadora Carla Bezerra, a redução de gastos à qual se refere o Governo não é real. "O Governo até agora não apresentou nenhuma lista desses órgãos, então como sabe o custo disso?", questiona. O EL PAÍS solicitou essas informações à Casa Civil, mas ainda não recebeu resposta. "Há uma questão simbólica aí, e várias políticas publicas podem ficar paralisadas [sem a atuação dos grupos populares]", avalia Bezerra.

Jair M. Bolsonaro

@jairbolsonaro

Gigantesca economia, desburocratização e redução do poder de entidades aparelhadas politicamente usando nomes bonitos para impor suas vontades, ignorando a lei e atrapalhando propositalmente o desenvolvimento do Brasil, não se importando com as reais necessidades da população.

Republica de Curitiba@republica_ctba

Bolsonaro assina decreto que deve acabar com os “sovietes” do PT https://republicadecuritiba.net/2019/04/13/bolsonaro-assina-decreto-que-deve-acabar-com-os-sovietes-do-pt/ 

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Controle social comprometido

A ONG Transparência Brasil defendeu, em nota, que o decreto pode comprometer o controle social. “O Governo mostra que não está interessado em ouvir o que a sociedade tem para dizer”, afirma a entidade. Já a consultora em Educação Mariza Abreu, formada em História e Direito, pondera que colegiados fundamentais, como por exemplo os conselhos nacionais de Saúde e Educação, foram instituídos por lei e, portanto, não correm risco de extinção. No setor educacional, pelo menos quatro grupos estão ameaçados: Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos, Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros, Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos e Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena.

Para Mariza Abreu, a extinção desses colegiados não deve trazer grandes impactos para a política educacional. Ela defende a necessidade de grupos populares para uma gestão participativa, mas acredita que houve um "exagero" na quantidade de grupos incluídos na estrutura dos ministérios. "Também é complicado o jeito que o Governo determinou a extinção [com o decreto de Bolsonaro], sem explicitar quais conselhos seriam extintos. Isso gera uma tensão", afirma. A publicação do decreto pegou esses conselhos consultivos de surpresa. Na semana passada, dezenas de órgãos buscavam seus departamentos jurídicos para entender se estavam dentro das regras de extinção. O Comitê Gestor da Internet, por exemplo, foi instituído por decreto. De lá, saíram as primeiras linhas para o marco civil da internet. O colegiado, porém, não corre risco de extinção porque já houve ato do Governo sobre o comitê nesta gestão, uma das regras contidas no decreto presidencial.

O temor do ex-presidente do Conselho Nacional de Educação, César Callegari, é de que o atual decreto de Bolsonaro seja uma espécie de laboratório e que posteriormente o Governo ameace os conselhos criados por lei. "Muitos desses colegiados foram criados para assegurar a participação da sociedade civil na formulação e acompanhamento das políticas públicas e para protegê-las das descontinuidades e arroubos autoritários de governantes de plantão. Colegiados criados por Lei, como o CNE, podem ser os próximos alvos desse desmonte e aparelhamento", avalia.

DECRETO PÕE FIM AO GRUPO DE TRABALHO QUE BUSCAVA DESAPARECIDOS POLÍTICOS
O Decreto 9.759 do presidente Jair Bolsonaro também põe fim ao Grupo de Trabalho Perus, responsável pela identificação dos restos mortais de desaparecidos políticos entre as 1.047 caixas com ossadas da vala comum do cemitério de Perus, em São Paulo, segundo revelou reportagem desta segunda-feira do jornal O Estado de S.Paulo.

O grupo buscava identificar as vítimas da ditadura militar que permaneciam desaparecidas e atuava desde 2014, embora a vala clandestina de Perus tenha sido descoberta em setembro de 1990. Os trabalhos, entretanto, foram interrompidos e só foram retomados 24 anos depois.

O Governo Bolsonaro não informou ao jornal se dará continuidade aos trabalhos de identificação das ossadas da maior vala clandestina encontrada até então no país. 


El País: Uruguai avança em reforma do Exército que não cicatriza a ferida dos direitos humanos

Nova lei militar revogará a legislação atual, adotada em plena ditadura, com mudanças no sistema de promoções e uma redução no número de oficiais

Governo e oposição avançam em sua tentativa de mudança da doutrina militar no Uruguai com um projeto de lei que ganhou força e prioridade depois da crise que provocou a destituição do ministro da Defesa, de dois comandantes em chefe e de 6 dos 15 generais do país. As revelações das atas de vários julgamentos militares realizados no ano passado mostraram que, na democracia, os altos escalões encobrem e justificam os excessos cometidos durante a ditadura (1973-1985). O novo texto legal, porém, não fecha a ferida dos direitos humanos causada por más práticas de militares, que têm abalado o país nos últimos tempos.

A nova lei militar revogará a legislação atual, adotada em plena ditadura, com mudanças no sistema de promoções e uma redução no número de oficiais. Também está previsto o aumento das exigências para entrar na carreira militar e uma redefinição das tarefas e da doutrina das Forças Armadas. Os Tribunais de Honra (a Justiça militar) poderiam desaparecer ou ser reformados, com ênfase em que qualquer ato criminoso seja submetido à Justiça comum.

Esses tribunais militares e suas atas, vazadas para o jornalista Leonardo Haberkorn, provocaram um antes e um depois no tortuoso caminho do esclarecimento das violações dos direitos humanos durante a ditadura. O resumo de audiências realizadas no ano passado conteve, pela primeira vez, confissões de dois conhecidos ex-repressores, que narraram como jogaram um militante tupamaro em um rio e deram alguns detalhes sobre o desaparecimento de María Claudia García de Gelman, nora do poeta argentino Juan Gelman. A repercussão dessas informações foi enorme: até então, os militares tinham mantido silêncio absoluto sobre os cerca de 200 casos de desaparecidos durante o regime. Um pacto tão fechado que, em algumas ocasiões, levou inocentes à prisão, sem que ninguém falasse nada.

Apesar das confissões dos militares, o tribunal considerou que os investigados não tinham atentado contra a honra da instituição, exceto por ter permitido que seu silêncio causasse a condenação de outro militar, que passou três anos preso. Dois comandantes em chefe e o júri justificaram o que ocorreu e puseram em evidência como oficiais que durante a ditadura eram apenas crianças reproduziam o discurso de seus predecessores.

A tempestade das últimas semanas, no entanto, deixou um panorama sem mudanças para os parentes dos desaparecidos. Assim como Macarena Gelman − que nasceu enquanto sua mãe estava encarcerada no Uruguai −, a argentina María Claudia García foi entregue para em adoção assim que nasceu e só ficou sabendo sua verdadeira identidade no ano 2000. No Brasil, também há caso de crianças entregues para a adoção pelos militares. Os restos mortais do pai de María, Marcelo Ariel Gelman (filho do poeta), foram encontrados no país vizinho. Mas Macarena continua sem saber o destino de sua mãe biológica: “Estamos no mesmo ponto de 20 anos atrás”, diz a mulher, apontando, entretanto, como um fato sem precedentes a destituição de toda a cúpula militar.

Nas atas vazadas, o ex-militar Jorge Silveira narra a busca dos “ossinhos” realizada por María Claudia García em uma operação confusa num complexo militar, o Batalhão 14, onde na democracia foram feitas escavações infrutíferas. “A informação que surge agora sobre o paradeiro de minha mãe não pode ser confirmada nem descartada, os dados não são totalmente novos, talvez tenham sido acrescentados detalhes, mas só aumentam a crueldade, sem esclarecer onde estão seus restos. Talvez a novidade seja que veio à luz, com maior clareza, o fato de que seus assassinos têm essa informação, sempre a tiveram. No entanto, não vou esperar que eles falem, continuarei exigindo uma investigação efetiva, profissionalizada e completa”, afirma Macarena Gelman. Como mostra o caso Gelman, no Uruguai ainda há uma dívida em todas as etapas da solução para a questão dos direitos humanos: verdade, justiça, indenização, memória e história.

Depois de ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado uruguaio reconheceu sua responsabilidade no desaparecimento do casal Gelman e o roubo da identidade de sua filha. Um relatório de cinco volumes estabeleceu a memória do que aconteceu durante a repressão, documentos que algum dia serão parte da História.

Pouco a pouco, a Justiça tem julgado alguns crimes, apesar do caminho errático que tem deixado sem efeito a lei de prescrição aprovada nos primeiros anos da democracia. A verdade continua sendo a grande ausente do processo uruguaio, sem que se saiba se os últimos acontecimentos começaram efetivamente a quebrar o pacto de silêncio dos militares.


El País: Chacina no Rio que pôs o Exército sob suspeita teve investigações arquivadas

Operação conjunta da Polícia Civil e do Exército no Complexo do Salgueiro terminou com oito mortos em novembro de 2017. Investigação militar não ouviu sequer sobreviventes e familiares de vítimas

No dia 16 de outubro de 2017, o então presidente Michel Temer (MDB) sancionava um projeto que transferia para a Justiça Militar a investigação e o julgamento de homicídios cometidos por militares durante operações de segurança pública em território nacional, sob o argumento de que a medida trazia "segurança jurídica". Menos de um mês depois, no dia 11 de novembro de 2017, atiradores abriam fogo contra ao menos 11 pessoas no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Oito pessoas morreram e uma ficou gravemente ferida naquele diade operação conjunta entre a Polícia Civil e o Exército, que já atuava sob um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) desde julho. Quase que imediatamente vieram à tona relatos de testemunhas e sobreviventes que indicavam um possível envolvimento de forças especiais do Exército nas mortes. Todos coincidiram em dizer que os tiros haviam partido da mata, onde homens com capacetes pretos e armas com mira a laser se escondiam. Dois inquéritos foram então abertos, um pelo Ministério Público do Estado do Rio e outro pelo Militar, para apurar o ocorrido. E os dois acabaram arquivados.

Os dois inquéritos correram em paralelo, mas com enormes diferenças. A Delegacia de Homicídios de Niterói/São Gonçalo e o Grupo Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP), coordenado pela promotora Andréa Amin, do MP do Rio, ouviram as testemunhas, sobreviventes e familiares das vítimas, além de policiais e três militares que participaram da operação. Perícia balística, nas armas dos agentes e no local foram feitas. Contudo, pouco se sabe sobre os procedimentos adotados pelo Ministério Público Militar (MPM). "Jamais tivemos acesso à investigação do MPM. Nenhum civil foi ouvido, nem sequer as vítimas sobreviventes e familiares", explica o defensor público Daniel Lozoya, que defende o sobrevivente que remanesceu e outras três famílias de vítimas. Além disso, a investigação no Ministério Público Militar — composto por civis — se restringiu a um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) e nem sequer foi submetido à Auditoria Militar — órgão federal de primeira instância da Justiça Militar formado por um civil e quatro oficiais. Não houve audiências e a defesa nunca foi acionada. "Tudo ocorreu no âmbito do MPM, inclusive o arquivamento, ao qual também não tivemos acesso. Só pela imprensa", acrescenta Lozoya.

O EL PAÍS entrou em contato por e-mail com o MPM para solicitar as conclusões do inquérito e uma conversa com a procuradora Maria de Lourdes Sousa Gouveia Sanson, responsável por instaurá-lo. Insistiu por telefone, mas não obteve resposta. Enviou outra mensagem solicitando o documento de arquivamento, mas até o fechamento desta reportagem nada recebeu. Assim, não se sabe os motivos pelos quais o órgão arquivou a investigação, noticiada pelo jornal Extra, nem suas conclusões. Apenas que a decisão foi submetida à apreciação da Câmara de Coordenação e Revisão do MPM, que a homologou de forma unânime no dia 13 de março deste ano, segundo o mesmo jornal.

Já o inquérito aberto pelo MP do Rio foi arquivado no dia 30 de outubro do ano passado, quase um ano depois da chacina. E concluiu que "não há indícios mínimos" de que policiais civis tenham sido os autores dos homicídios, nem de que "o Complexo do Salgueiro tenha sofrido uma tentativa de invasão por parte de alguma facção criminosa justamente no horário em que as forças de segurança ali ingressavam", segundo o documento de arquivamento do inquérito. A procuradoria destaca que a hipótese de guerra entre facções "é irreal e passível de ser aventada apenas por quem desconhece por completo o terreno". Ela é reforçada a partir das informações dadas pelo 7º Batalhão da Polícia Militar, responsável pela área, pela Polícia Civil e pelos moradores e testemunhas. Rodrigo Teixeira de Oliveira, chefe da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE), tropa especial da Polícia Civil que participou da operação, disse que é "difícil imaginar uma tentativa de invasão de outra facção sem que houvesse uma mobilização grande de marginais e grandes confrontos", apontou o MP. Quando os homicídios aconteceram, não havia confronto naquele horário e trecho da Estrada das Palmeiras, onde nem sequer há boca de fumo, disseram moradores ao órgão.

O MP também destaca "os importantíssimos relatos" de vítimas e testemunhas e afirma que a perícia local realizada pela Polícia Civil corrobora com o que dizem. O perito disse que são "verossímeis os relatos de moradores que davam conta de disparos vindos da mata localizada em plano superior e à esquerda da via". Porém, o órgão enfatiza mais de uma vez que cabe ao MPM investigar os militares e apontar os possíveis suspeitos dentro da corporação.

Os depoimentos colhidos coincidem em vários aspectos. Os militares e policiais civis que oficialmente participaram da operação estavam todos em veículos blindados naquele 11 de novembro. Todos asseguraram que não houve troca de tiros, mas que ouviram disparos ao entrar na comunidade. Quando chegaram na Estrada das Palmeiras, se depararam com os cadáveres no chão e uma pessoa sendo socorrida.

Os relatos de testemunhas, vítimas e familiares também coincidem. Um padeiro que sobreviveu aos disparos contou que estava conduzindo uma motocicleta com seu amigo na garupa quando foi surpreendido por vários disparos de arma de fogo vindos da mata que há no local. Em seguida, os atiradores se aproximaram e ele pôde ver que estavam vestidos com uma roupa preta e com um capacete que tinha uma lanterna acoplada. Também vestiam balaclava —uma touca que cobre o rosto— e portavam fuzis com luz infravermelha. Ele também contou que os homens levaram seu celular e voltaram para a mata. Outro sobrevivente, que faleceu posteriormente no hospital, relatou as mesmas características ao MP estadual. As descrições se assemelham ao equipamento e uniforme utilizado pelas forças especiais do Exército.

Outros fatos contribuem para aclarar o caso. Dias antes dos homicídios, no dia 7 de novembro, outra operação empregou 3.500 membros das Forças Armadas, assim como policiais federais, civis e militares no Complexo do Salgueiro. Naquela ocasião, o Exército usou helicópteros para transportar seus homens para uma área de mata dentro da comunidade, segundo admitiu depois o Comando Militar do Leste. O plano era que as forças que entraram no Complexo do Salgueiro forçassem os suspeitos a fugirem pela Estrada das Palmeiras e pela área de mata, onde os militares do Exército, escondidos, os interceptariam. Mas a operação foi considerada um fracasso porque as facções criminosas foram supostamente avisadas do plano.

Assim, foi decidido que uma nova operação ocorreria no dia 11 de novembro entre a Polícia Civil e o Exército, mas com um efetivo menor. Foi esse efetivo que, ao chegar na Estrada das Palmeiras, viu os corpos já no chão. O Comando Militar do Leste apresentou explicações contraditórias na ocasião. Primeiro, soltaram uma nota dizendo que aqueles que participaram da operação enfrentaram "resistência armada por parte de criminosos". Mais tarde, o Comando mudou a versão e limitou-se a dizer que seus soldados apenas "ouviram tiroteios", versão sustentada nos depoimentos de policiais e militares. O Comando não admitiu em momento algum ter colocado seus membros na mata. Porém, na noite do dia 10, testemunhas afirmam ter visto homens descendo de rapel dos helicópteros, no escuro, para dentro da mata — tal e como havia ocorrido dias antes.

Em entrevista ao EL PAÍS no ano passado, o coronel Roberto Itamar, porta-voz do General Walter Braga Netto, nomeado interventor federal por Temer, negou que os militares utilizem equipamento semelhante ao descrito pelas testemunhas e reafirmou a versão do Comando — ainda que fotos no site da corporação mostrem o contrário. "Pretensas testemunhas dizem ter visto helicóptero apagado, gente saindo da mata com luzinha no capacete... São coisas que não correspondem ao modus operandi ou aos equipamentos utilizados pelas Forças Armadas", afirmou a este jornal. "Não tem sentido um helicóptero estar apagado, já ouviu o barulho que faz? São coisas relatadas que são fruto da imaginação de certas pessoas, que podem ter visto situações do tipo em filmes ou até mesmo anteriormente naquele local". Ele opinou que os responsáveis pela chacina foram facções criminosas que guerreiam entre si.

As investigações foram acompanhadas de perto pela organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW), que entrevistou testemunhas, apresentou evidências da participação do Exército na chacina e denunciou que o Comando Militar do Leste impediu que soldados fossem ouvidos como testemunhas pelo Ministério Público do Rio. Sabe-se que, depois da denúncia, o Ministério Público Militar enviou uma cópia dos depoimentos de soldados, enquanto que o MP do Rio fez o mesmo com o relato de policiais e civis. Mas não está claro se chegou a ouvir diretamente os oficiais do Exército. Em nota, a ONG lamentou o engavetamento promovido pelo MPM e sublinhou que "nem os investigadores das Forças Armadas, nem os procuradores do MPM promoveram medidas cruciais para a investigação, como a perícia do lugar de onde, segundo várias testemunhas, os assassinos atiraram". Além disso, "não entrevistaram testemunhas civis chave no caso".

A organização ressalta que também não teve acesso ao documento de arquivamento do caso. E afirma que, "de acordo com o direito internacional, graves violações de direitos humanos cujos suspeitos perpetradores sejam membros de Forças Armadas devem ser investigadas por autoridades civis e julgadas em tribunais civis". Pediu, por fim, que o Congresso Nacional revogue a lei 3.491 de 2017, que colocou nas mãos da corporação "as investigações de casos como as mortes no Salgueiro".

O defensor público Lozoya diz que espera ter acesso ao arquivamento do inquérito do MPM. A Defensoria Pública do Estado do Rio, à qual ele representa, e a Defensoria Pública da União vão entrar em conjunto com uma ação na Justiça Federal pedindo reparação para as famílias. Os organismos também pretendem levar o arquivamento para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), organismo da OEA, onde já há uma ação em curso. A Comissão poderá fazer um relatório sugerindo medidas de reparação e punição. Caso não sejam acatadas, o Brasil pode vir a ser processado internacionalmente e condenado a reabrir o processo, reparar as vítimas, entre outras possíveis medidas.

Cerca de três meses depois da chacina no Salgueiro, o então presidente Michel Temer decretava uma intervenção federal no Rio. Ao general quatro estrelas Walter Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste, foi dado o poder de governador na área da segurança pública. Autorizado também pelo decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), ele pôde então manejar como bem entendia suas tropas. A "segurança jurídica" estava garantida.


El País: Bolsonaro - 100 dias de guerra contra os povos indígenas

O presidente inicia seu Governo atentando contra os direitos e as terras das comunidades

Quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência do Brasil, em 1.o de janeiro, os povos indígenas do país e seus aliados no mundo todo se prepararam para o pior. Bolsonaro prometeu que, sob a sua liderança, não haveria nem mais um centímetro de terra indígena demarcada. Anunciou sua intenção de integrar os povos indígenas à força “como o Exército, que fez um grande trabalho”, mas achou uma pena a cavalaria brasileira ter sido incompetente. “Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios”, afirmou Bolsonaro, em pronunciamento na Câmara dos Deputados em 1998.

Podemos tirar duas lições importantes dos primeiros 100 dias de presidência de Bolsonaro. A primeira é que todos os temores eram bem fundamentados, e esta administração racista está lançando abertamente um ataque sem precedentes contra os povos indígenas do Brasil, com o objetivo explicito de destruí-los como povos, assimilando-os pela força e saqueando suas terras.

A segunda é que ainda há uma esperança de que esse ataque genocida possa ser detido. As instituições, os tribunais e o Congresso do Brasil podem proporcionar amparo legal e prático se tiverem vontade. E os próprios povos indígenas estão se organizando e mobilizando contra esse ataque em escala local e nacional, tendo obtido notáveis vitórias.

No início do ano, a Survival International apoiou a maior manifestação mundial já feita pelos direitos dos povos indígenas. Levantaram-se vozes e cartazes em todo planeta em solidariedade às comunidades do Brasil, que por sua vez realizaram dezenas de manifestações.

Sonia Guajajara, líder indígena e candidata à vice-presidência nas eleições de 2018, afirmou: “Vamos resistir. Se formos os primeiros a ser atacados, seremos os primeiros a reagir.” E Rosinele Guajajara disse: “Resistimos durante 519 anos. Não cederemos agora. Uniremos todas as nossas forças e venceremos.”

Não se pode subestimar a importância, tanto simbólica como prática, de lutar junto aos povos indígenas e tribais. Além de prestar um apoio significativo às pessoas envolvidas nos protestos, os legisladores brasileiros, juízes, prefeitos, congressistas e outros que não são acólitos de Bolsonaro não podem ignorar as vozes levantadas no mundo inteiro ante as injustiças ocorridas diante de seus olhos.

Em seu primeiro dia no cargo, Bolsonaro transferiu a responsabilidade pela demarcação e regulação dos territórios indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura. Essa manobra teve a clara intenção de impedir qualquer proteção adicional de terras indígenas, e foi o que aconteceu. A nova ministra da Agricultura do Governo é Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, ex-líder da bancada ruralista, que aceitou uma doação de campanha de um fazendeiro que havia sido acusado de ordenar o assassinato de um líder indígena. O funcionário encarregado das questões fundiárias é Nabhan Garcia, ex-presidente da União Democrática Ruralista e que lutou contra as demarcações do território indígena durante décadas.

No entanto, essas decisões políticas ainda não estão definidas em lei. A reestruturação ordenada pelo presidente tem vigência de 120 dias e deve ser analisada depois pelo Congresso. Além do Legislativo, o Poder Judiciário pode desempenhar um papel decisivo na moderação dos piores excessos de Bolsonaro. No final de janeiro, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) entrou com um processo no Supremo Tribunal Federal, refutando a decisão do presidente de transferir ao Ministério da Agricultura a competência para demarcar as reservas. O tribunal ainda deve se pronunciar sobre esse caso em particular, mas os juízes do Brasil mostraram que estão dispostos a enfrentar o presidente.

O Governo invocou a “segurança nacional” para atropelar os direitos constitucionais dos povos indígenas. A comunidade Waimiri Atroari se opõe à instalação, sem seu consentimento, de uma linha de energia ao longo de mais de 100 quilômetros de seu território. Apesar de transportar eletricidade a municípios como Manaus, a obra não proporcionará energia às aldeias indígenas dentro da reserva. O Governo anunciou que o projeto começará em 30 de junho. Naturalmente, os membros da comunidade lutam contra a decisão.

Bolsonaro afirma que “o Brasil não deve nada ao mundo no tocante à preservação do meio ambiente” e mudou o procedimento de licenciamento ambiental para facilitar a construção em terras indígenas. Anunciaram-se vários megaprojetos de infraestrutura, incluindo uma barragem no rio Trombetas, uma ponte sobre o rio Amazonas e uma extensão da estrada de 500 quilômetros que atravessará a floresta tropical do rio Amazonas até a fronteira com o Suriname.

O Governo também ameaçou retirar o Brasil do crucial tratado internacional sobre os direitos dos povos indígenas e tribais, conhecido como Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Isso enfraqueceria ainda mais os direitos dos indígenas e eliminaria uma importante fiscalização internacional independente. A Convenção 169, ratificada pelo Brasil em 2002, foi usada desde então em sentenças de juízes e promotores, que têm a obrigação constitucional de processar o Estado quando este viola os direitos indígenas.

No entanto, os invasores ilegais de terras não esperam pela aprovação da lei ou pela decisão dos juízes. Pelo menos 14 territórios indígenas estão atualmente sob ataque. Nessa guerra de fronteiras, os madeireiros, garimpeiros, petroleiros e pecuaristas agora consideram, com razão, que o presidente está do lado deles. Durante a campanha presidencial, o desmatamento aumentou quase 50%. E as invasões de terras cresceram 150% desde que Bolsonaro foi eleito, em outubro do ano passado.

O Brasil é o país mais letal do mundo para os defensores do meio ambiente, mas a violência exercida contra os indígenas não pode ser explicada simplesmente como uma batalha por recursos: em muitos casos, é sem dúvida um crime de ódio. Na noite do triunfo eleitoral de Bolsonaro, por exemplo, um centro de saúde e uma escola foram atacados com bombas incendiárias na terra indígena Pankararu, no nordeste do país.

Na Survival International, continuamos recebendo dezenas de relatórios de todo o Brasil sobre o que parece ser uma guerra aberta contra as comunidades indígenas. Numa tentativa de aplacar as ONGs que se opõem aos seus interesses, Bolsonaro emitiu um decreto pelo qual as autoridades governamentais podem “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades dos organismos internacionais e das organizações não-governamentais no território nacional.”

Houve ameaças de expulsão dos grupos ecologistas, e Ricardo Salles, o novo ministro do meio ambiente, tentou suspender durante três meses todas as parcerias do Governo com as ONGs no país. Ele considera que as áreas protegidas da Amazônia freiam o “desenvolvimento” e defende a prática da agricultura comercial e da mineração nas reservas indígenas, incluindo aquelas onde vivem povos indígenas isolados, o que quase certamente os levariam à aniquilação.

O Governo atacou até mesmo a saúde indígena: propôs acabar com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), um modelo de atenção descentralizada com 34 distritos sanitários indígenas especiais, que funciona em colaboração com as comunidades locais de acordo com suas necessidades específicas. Em vez disso, os pacientes indígenas teriam que comparecer aos mesmos serviços municipais (já insuficientes e sobrecarregados) que atendem todos os demais habitantes do distrito. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse: “Para mais de 600.000 indígenas, os recursos que o país coloca... acho que poucos países colocam tanto.”

A proposta provocou indignação e protestos entre os povos indígenas do país inteiro. Temendo por suas vidas, e especialmente pelas vidas dos seus filhos e idosos, eles se preocupavam com o desconhecimento das línguas indígenas e com a possibilidade de que suas necessidades não fossem atendidas por um sistema projetado por e para pessoas com estilos de vida muito diferentes dos seus, desconhecendo-se totalmente como vivem e quais são suas circunstâncias. Do Paraná a Rondônia, de Pernambuco ao Mato Grosso do Sul, grupos indígenas ocuparam edifícios públicos e estradas em apoio à Sesai. Mais ou menos uma semana após o lançamento da proposta, o ministro recuou e garantiu publicamente que o sistema de saúde indígena não será abolido.

Essa vitória é encorajadora e importante, mas os conflitos estão longe de terminar: afinal, são apenas os primeiros 100 dias. Já estão muito avançados os preparativos para o Abril Indígena anual: milhares de indígenas se reunirão em Brasília para protestar contra as políticas do Governo, expressar suas preocupações e mostrar a diversidade cultural e a riqueza do país para todos os brasileiros. Este ano, há mais motivos do que nunca.

Sydney Possuelo, ex-diretor da Funai e defensor dos direitos dos povos indígenas do Brasil, declarou à Reuters: “A situação dos povos indígenas do Brasil nunca foi boa. Mas, durante 42 anos de trabalho na Amazônia, este é o momento mais perigoso que já vi.” David Karai Popygua, porta-voz dos Guarani, declarou: “É como se nós, agora, fôssemos um alvo do Governo a ser eliminado.” A declarada devoção do presidente pela ditadura, a tortura, a repressão brutal, a violência amparada pelo Estado e o assassinato extrajudicial levanta a terrível perspectiva de que o que vimos até agora pode ser, em mais de um sentido, apenas o começo.

Fiona Watson é diretora de pesquisas da Survival International, protetora dos direitos indígenas.

Este artigo foi publicado originalmente no blog 35000 Milliones / Planeta Futuro


El País: Museu de História Natural de NY rejeita sediar homenagem a Bolsonaro

Instituição negociou cancelamento de evento da Câmara de Comércio Brasil-EUA que agraciaria presidente. Museu disse não concordar com "os objetivos declarados" do Governo

O Museu Americano de História Natural de Nova York informou nesta segunda-feira que não abrigará o evento da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos no qual o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, receberá o prêmio de "Pessoa do Ano". O tradicional museu da cidade já havia demonstrado nos últimos dias preocupação com a realização do jantar de gala no local por conta dos "objetivos declarados da atual administração brasileira" e optou por  informar a recusa a sediar o evento por meio de sua conta oficial no Twitter.

"Com respeito mútuo pelo trabalho e pelos objetivos de nossas organizações individuais, concordamos em conjunto que o museu não é o local ideal para o jantar de gala da Câmara de Comércio Brasil-EUA. Este tradicional evento terá lugar em outro local na data e hora originais", informou o museu, em português. Antes, a instituição também utilizou a língua portuguesa para "agradecer às pessoas que expressaram sua opinião sobre o evento", "deixar claro que o museu não convidou o Presidente" e se declarar "profundamente preocupados" com a homenagem a Bolsonaro. Houve movimentos online, incluindo uma petição, pedindo que o museu se recusasse a abrigar o evento.

American Museum of Natural History

@AMNH

With mutual respect for the work & goals of our individual organizations, we jointly agreed that the Museum is not the optimal location for the Brazilian-Am. Chamber of Commerce gala dinner. This traditional event will go forward at another location on the original date & time.

American Museum of Natural History

@AMNH

Com respeito mútuo pelo trabalho e pelos objetivos de nossas organizações individuais, concordamos em conjunto que o Museu não é o local ideal para o jantar de gala da Câmara de Comércio Brasil-EUA. Este evento tradicional terá lugar em outro local na data e hora originais.

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Em fevereiro, o presidente foi escolhido como "Pessoa do Ano" pela Câmara de Comércio, que premia há 49 anos líderes brasileiros e americanos reconhecidos por se esforçar para aproximar diplomaticamente Brasil e EUA. Na época, a câmara afirmou que o prêmio era um "reconhecimento de sua intenção fortemente declarada de fomentar laços comerciais e diplomáticos mais próximos entre Brasil e Estados Unidos, e seu firme comprometimento em construir uma parceria forte e duradoura entre as duas nações". Sergio Moro, então juiz responsável pela Operação Lava Jato, foi o homenageado em 2018. No ano anterior, João Doria, prefeito de São Paulo na época, foi o escolhido.

O Museu de Nova York, que é a maior instituição de história natural do mundo e completou 150 anos no último dia 6 de abril, abrigou o evento da Câmara quando este homenageou Doria e Moro. O perfil da organização no Twitter também informou que o jantar acontecerá em outro local, na mesma data: 14 de maio.


El País: Bolsonaro propõe salário mínimo sem aumento real e veta concurso público em 2020

Governo vai repor apenas inflação do ano no reajuste da remuneração básica, que chegará a 1.040 reais. Só militares terão possibilidade de alta

Em 2020 não haverá aumento real do salário mínimo no Brasil nem reajuste para servidores, com exceção de militares. Tampouco haverá concursos públicos. Foi o que decidiu o Governo Jair Bolsonaro ao formalizar o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) do ano que vem a ser enviado ao Congresso. A série de recados em nome da austeridade dividiram holofotes, no entanto, com o revés sofrido pelo Governo na tramitação da reforma da Previdência, considerada a pauta mais importante para deter o rombo nas contas públicas. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara não atendeu o Planalto e prevê deixar a primeira votação sobre as mudanças na aposentadoria para depois da Páscoa.

A cifra não é definitiva. Trata-se de uma previsão que pode ser mudada caso a inflação suba mais, por exemplo, ou por decisão de Bolsonaro por meio do decreto presidencial que fixa o mínimo, em geral no final do ano. Pode mudar também a depender do clima político. Ciente da delicadeza do tema, o próprio secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, deixou aberta a possibilidade de mudança ao afirmar que a proposta ainda não representa uma nova definição formal de política para o salário mínimo. “Estamos colocando esse valor como uma previsão, não é uma política do salário mínimo, o Governo tem até dezembro deste ano para apresentar qual será sua política de salário mínimo e assim o faremos”, disse em coletiva de imprensa, conforme registrou a agência Reuters.

A regra do mínimo já era motivo de debate, que deve voltar com força agora. O aumento real da remuneração nos últimos anos é apontado por especialistas como um dos responsáveis pela queda da pobreza no país — enquanto outro grupo de economistas criticava a fórmula por representar um peso nas contas públicas (como os benefícios da Previdência seguem o mínimo, também havia aumento real no déficit). A cada 1 real de elevação no salário mínimo, as despesas sobem 298,2 milhões de reais, segundo a equipe econômica.

Tesouras do Governo, Previdência e Petrobras

Pelo projeto de orçamento, o Governo admite esperar um déficit primário de 124,1 bilhões de reais para o Governo central (o arrecadado menos o gasto por Tesouro Nacional, Banco Central e Previdência Social) em 2020. É um número pior do que o rombo de 110 bilhões de reais prevista pela gestão Michel Temer.

Fica formalizada também a intenção declarada equipe de Guedes de reduzir o Estado. A LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) não prevê concursos públicos nos órgãos da administração federal ou reajuste para servidores. A exceção possível são os militares, cuja reforma da Previdência embute uma plano de reestruturação de carreira com aumento de remuneração.

O agrado apenas à base do presidente Bolsonaro deve provocar ainda mais ruídos no Congresso, um ambiente em que o Planalto tem tido dificuldades para navegar. Nesta segunda, um acordo entre vários partidos na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara acabou jogando apenas para a semana que vem a primeira votação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da Previdência. Os governistas não tiveram como se impor e a CCJ decidiu aprovar, de maneira simbólica, o chamado orçamento impositivo (que obriga o Governo a garantir recursos para parte das em emendas de parlamentares).

O Planalto mal terá tempo para digerir o revés, porque a previsão é de agenda cheia. Há a expectativa de que o Governo se pronuncie sobre o impasse em relação à política de preços dos combustíveis da estatal Petrobras. Na semana passada, Bolsonaro provocou um terremoto na Bolsa de Valores ao impedir a empresa de aumentar o preço do diesel em alinhamento ao mercado internacional. Na sexta-feira, o Planalto preferiu acalmar outra base importante, a dos caminhoneiros, que ameaça parar se não houver compensações. Após a Petrobras dizer nesta segunda que não está disposta a ceder, espera-se nesta terça que fique mais claro qual tipo de aceno Bolsonaro está disposto a dar para tirar a categoria da rota das tesouras do Governo.


El País: Assassinato de mulheres por armas de fogo cresce na maioria dos Estados

Taxa de assassinatos femininos por disparos aumentou em 17 das 27 unidades da federação entre 2006 e 2016, revela o Observatório da Mulher contra a Violência do Senado

A taxa de mortes de mulheres por armas de fogo (homicídios e suicídios) no Brasil caiu em 2,4% entre 2006 e 2016. Embora pareça trazer uma boa notícia, a redução da violência letal contra mulheres com emprego de arma de fogo, esse número esconde uma situação preocupante: em 17 das 27 unidades federativas foi registrado aumento das taxas de homicídios de mulheres por armas de fogo no período analisado. Esse é o resultado do levantamento realizado pelo Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), do Senado Federal, a pedido da Agência Patrícia Galvão.

Além de revelar uma grave disparidade regional nos registros desses assassinatos de mulheres, o resultado chama a atenção para a importância da análise de dados para orientar decisões relacionadas aos processos de formulação, implementação, avaliação e aprimoramento de políticas públicas.

No caso analisado pelo OMV, quatro dos cinco Estados mais populosos do Brasil apresentaram uma considerável redução na taxa de mortes de mulheres por armas de fogo, seja em razão de homicídios ou de suicídios, entre 2006 e 2016. A queda dessas taxas em São Paulo (-59,2%), Rio de Janeiro (-41,3%), Minas Gerais (-26,5%) e Paraná (-32,2%) ajuda a explicar a redução na ordem de -2,4% do número de mortes por armas de fogo por 100 mil mulheres no Brasil no período considerado. Contudo, esse dado esconde que a maioria dos Estados apresentou um aumento alarmante desses índices. Em Estados como Acre (+524,1%), Maranhão (+182,2%), Ceará (+165,2%), Rio Grande do Norte (+155,5%) e Roraima (+110,6%) verificou-se que a taxa de mortes de mulheres por armas de fogo em 2016 mais do que dobrou na comparação com 2006.

Mais armas, mais feminicídios

A análise desses dados ganha relevância no debate em torno das possíveis consequências de políticas públicas voltadas à segurança das mulheres. O Governo do presidente Jair Bolsonaro tem, por exemplo, na política de flexibilização da posse de armas de fogo um dos pilares para dar maior segurança à população. Coletivos feministas têm alertado para o risco de um aumento do assassinato e suicídio de mulheres em um contexto de violência doméstica e familiar, conforme mostra a campanha #ArmadasDeInformação.

Isso porque, em geral, o autor do homicídio no contexto de violência doméstica é o companheiro da vítima. O coordenador do Observatório da Mulher contra a Violência do Senado, Henrique Ribeiro, manifesta preocupação de que “o acesso à arma de fogo poderia levar a um aumento no número de suicídios de mulheres em razão de sofrerem violência doméstica”. Ele lembra que um estudo publicado em 2016 pelo Ministério da Saúde já apontou que mulheres identificadas como em situação de violência pelos serviços de saúde apresentaram 29 vezes mais chances de serem vítimas de assassinato ou de cometerem suicídio em comparação com a população feminina em geral.

Dados de fontes seguras sistematizados em séries históricas têm ajudado a dimensionar o fenômeno da violência machista. Segundo Henrique Ribeiro, no caso das mortes de mulheres por armas de fogo, por exemplo, “a análise de informações em nível de município, ou mesmo de bairro, por exemplo, poderiam ajudar o poder público a evitar um maior número dessas mortes”.

Embora estejam sendo produzidas cada vez mais pesquisas que reúnem evidências importantes sobre a urgência e gravidade da violência de gênero, a subnotificação, ou seja, as vítimas que não denunciam casos de violência por medo ou vergonha, é apontada como um dos desafios a serem superados para abordar políticas públicas eficientes. A disseminação de uma cultura de dados abertos é visto como um fator fundamental que órgãos públicos podem facilitar nesse sentido.

Conteúdo produzido pela agência de notícias do Instituto Patrícia Galvão, uma organização feminista que atua nos campos dos direitos das mulheres e da comunicação desde 2001.

INFORMAÇÃO CONTRA A VIOLÊNCIA

O levantamento realizado pelo Observatório da Mulher contra a Violência, a pedido da Agência Patrícia Galvão, é apenas um exemplo simples de como a análise de dados pode ser útil ao desenvolvimento de ações governamentais mais efetivas. Na verdade, quanto mais informações puderem ser consideradas na análise, maiores as chances de se desenharem melhores ações.

Em março de 2019, o OMV lançou o Painel de Violência contra as Mulheresuma ferramenta de consulta que sistematiza dados oficiais de homicídios, notificações de violência doméstica pelos serviços de saúde, ocorrências policiais e processos judiciais relacionados a casos de violência contra mulheres no Brasil e em cada estado nos últimos anos.

Nesse mesmo sentido, o Instituto Patrícia Galvão e o Instituto Avon lançaram em 2018 a plataforma digital Violência contra as Mulheres em Dados, que reúne pesquisas e dados recentes sobre a violência de gênero no Brasil, com foco na violência doméstica, sexual e online, no feminicídio e na intersecção com o racismo e a LGBTTfobia.


Marcelo Neri: “13º do Bolsa Família é ótimo, mas beneficiário deveria escolher quando receber”

Economista da FGV diz que medida deve reduzir extrema pobreza, mas é eleitoreira. Especialistas cobram mecanismo de reajuste claro que proteja poder aquisitivo de miseráveis

O presidente Jair Bolsonaro anunciou nesta quinta-feira, em Brasília, a criação do 13º salário para o Bolsa Família, hoje o principal programa social de transferência de renda no Brasil. A medida, que significará um aumento de 2,5 bilhões de reais no orçamento do programa de 2019, trata-se do cumprimento de uma das principais promessas de campanha do capitão reformado e foi oficializada em cerimônia que comemorou os 100 dias de Governo.  A renda extra para as 13,7 milhões de famílias beneficiadas terá impacto limitado no orçamento e, ainda que não resolva o problema de fundo de criar um mecanismo perene para proteger o poder de compra dos miseráveis, deve contribuir para a queda da extrema pobreza no país.

A nova parcela do benefício será pago em dezembro e representará um aumento de 8,3% no valor anual recebido pelas famílias que participam do programa. Segundo o Governo, os recursos sairão dos "pentes-finos" realizados para identificar eventuais fraudes. Com a inclusão do 13º pagamento, o Bolsa Família não terá reajuste em 2019. O Governo não detalhou, no entanto, se nos próximos anos o benefício terá algum tipo de aumento.

O economista Marcelo Neri, da FGV Social e um dos principais especialistas em pobreza, elogia medida: "A decisão é ótima, mas poderia ser melhor", avalia. Por seus cálculos, a criação da nova cota é vantajosa para os mais pobres neste ano porque equivale a um ganho real de 4,3%, se levarmos em conta a inflação dos últimos 12 meses, que foi de 3,89%. "É uma medida que faz muito sentido. Ajuda a diminuir a extrema pobreza sem quase nenhum impacto fiscal e também faz girar a roda da economia."

Para Neri, no entanto, jogar o benefício para o futuro faz menos sentido. "Defendemos que se dê a liberdade de escolha do beneficiário quando receber o 13º salário, criando uma reserva estratégica para emergências, como a necessidade de se comprar remédio ou material escolar", exemplifica.

Debate sobre o reajuste e Nordeste

Com a criação do 13º do Bolsa Família, Bolsonaro faz um aceno aos eleitores de baixa renda da região onde grande parte do eleitorado recebe o benefício (12%) e o rejeita: o Nordeste. Desde que prometeu durante a campanha esse pagamento extra, Bolsonaro já tentava se afastar de vez de suas críticas anteriores ao Bolsa Família e também das notícias espalhadas pela oposição de que ele acabaria com o programa. Quando era deputado federal – cargo que ocupou por 28 anos – o hoje presidente dizia que o projeto era compra de votos. O anúncio também coincide com um momento de queda de popularidade do presidente.

"Oficializamos hoje, junto ao Ministério da Cidadania a criação do 13º salário para os beneficiários do Bolsa Família, recursos oriundos em sua esmagadora maioria de desvios e recebimentos indevidos. Grande dia!", escreveu o presidente na sua conta no Twitter.

Pouco minutos depois, o ex-candidato à Presidência Fernando Haddad (PT) resgatou um tuíte de 2010 em que Bolsonaro chamava o programa de "bolsa-farelo" e fez uma série de questionamentos ao presidente. "Será que 1/12 do bolsa-farelo (13ª parcela) vai reverter sua situação no Nordeste? Lembrando que você não reajustou o benefício nem pela inflação e seu Governo ofende os nordestinos a todo instante?", escreveu Haddad.

O bate-boca no Twitter toca num ponto central sobre o Bolso Família: o fato de o programa não ter um mecanismo estabelecido de reajuste e flutuar conforme os ventos políticos. Ainda que os economistas em geral critiquem fórmulas que indexem benefícios sociais pagos pelo Estado, há a defesa de que só uma fórmula de reajuste que compense a inflação, aberta a aumentos reais e aliada a revisões periódicas nos critérios de acesso ao programa, poderia funcionar como escudo político para proteger o poder de compra dos miseráveis.

Desde que foi criado, em 2003, pelo Governo Lula, o benefício médio do Bolsa Família foi reajustado abaixo da inflação até por volta de 2011, segundo cálculos do site Nexo. Os maiores reajustes reais aconteceram no Governo Dilma Rousseff, mas foi justamente quando ocorreu o congelamento mais prejudicial. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) mostram que em 2015 e 2016 (sob Dilma), quando o benefício não mudou de valor em um cenário de inflação acima de 10% e crise econômica, a extrema pobreza subiu 23% e 17%, respectivamente, conta Marcelo Neri. "O que é um absurdo, porque é exatamente durante um período recessão que você precisa expandir os programas para os mais pobres e não economizar em cima desses programas. É uma economia burra. Essa medida de agora é um gasto inteligente", ressalta o economista.

O último reajuste do Bolsa Família tinha acontecido no ano passado, quando o Governo de Michel Temer anunciou um aumento de 5,67%, acima da inflação registrada em 2017, de 2,95%, o que gerou um aumento real de 2,72% no valor do benefício. Estudos mostram que em anos de eleição a renda real de programas sociais sobem, em média, 22,57%, enquanto nos anos imediatamente após ao pleito, geralmente há diminuições. O que torna um reajuste pós-eleitoral uma situação mais rara, mas não menos eleitoreira. "Ao anunciar esse 13º, Bolsonaro fez um dois em um, cumpriu uma promessa de campanha na data comemorativa de 100 dias do Governo e ainda afastou qualquer dúvida que opositores e críticos a ele tivessem sobre uma extinção do programa ou do próprio 13º salário", diz.

O Bolsa Família é concedido a famílias que têm renda mensal por pessoa de até 89 reais, além daquelas com renda familiar mensal de até 178 reais por pessoa e que tenham integrantes gestantes, crianças ou adolescentes. O valor que cada beneficiário recebe varia de acordo com o número de integrantes na família, a idade de cada um e a renda declarada. Mas, atualmente, o benefício médio é de 188 reais. Por ser uma transferência focada nos mais pobres, qualquer reajuste tem forte impacto nesta camada da população.

Para Neri, não há contradição no fato de se aumentar o valor de benefícios sociais em um momento de ajuste fiscal. "Se a reforma da Previdência é a operação tão necessária ao futuro do país, o Bolsa Família é uma espécie de anestesia. O nordestino, em particular, aquele que mais sofreu nos últimos anos vai receber um impacto 107% maior da medida anunciada que o brasileiro em geral. Similarmente, as mulheres recebem individualmente 1000,7% mais o Bolsa Família que os homens. O reajuste as empodera", completa.


Eliane Brum: Cem dias sob o domínio dos perversos

A vida no Brasil de Bolsonaro: um Governo que faz oposição a si mesmo como estratégia para se manter no poder, sequestra o debate nacional, transforma um país inteiro em refém e estimula a matança dos mais frágeis

Os 100 dias do Governo Bolsonaro fizeram do Brasil o principal laboratório de uma experiência cujas consequências podem ser mais destruidoras do que mesmo os mais críticos previam. Não há precedentes históricos para a operação de poder de Jair Bolsonaro (PSL). Ao inventar a antipresidência, Bolsonaro forjou também um governo que simula a sua própria oposição. Ao fazer a sua própria oposição, neutraliza a oposição de fato. Ao lançar declarações polêmicas para o público, o governo também domina a pauta do debate nacional, bloqueando qualquer possibilidade de debate real. O bolsonarismo ocupa todos os papéis, inclusive o de simular oposição e crítica, destruindo a política e interditando a democracia. Ao ditar o ritmo e o conteúdo dos dias, converteu um país inteiro em refém.

Este artigo é dividido em três partes: perversão, barbárie e resistência.

1) A Perversão

Tanto a oposição quanto a imprensa quanto a sociedade civil organizada e até mesmo grande parte da população estão vivendo no ritmo dos espasmos calculados que o bolsonarismo injeta nos dias. É por essa razão que me refiro à “perversão” no título deste artigo. Estamos sob o jugo de perversos, que corrompem o poder que receberam pelo voto para impedir o exercício da democracia.

Como tem a máquina do Estado nas mãos, podem controlar a pauta. Não só a do país, mas também o tema das conversas cotidianas dos brasileiros, no horário do almoço ou junto à máquina do café ou mesmo na mesa do bar. O que Bolsonaro aprontará hoje? O que os bolsojuniores dirão nas redes sociais? Qual será o novo delírio do bolsochanceler? Quem o bolsoguru vai detonar dessa vez? Qual será a bolsopolêmica do dia? Essa tem sido a agenda do país.

Mas essa é apenas parte da operação. Para ela, Bolsonaro teve como mentor seu ídolo Donald Trump. O bolsonarismo, porém, vai muito mais longe. Ele simula também a oposição. Assim, a sociedade compra a falsa premissa de que há uma disputa. A disputa, porém, não é real. Toda a disputa está sendo neutralizada. Quando chamo Bolsonaro de “antipresidente”, não estou fazendo uma graça. Ser antipresidente é conceito.

O bolsonarismo simula a sua própria oposição, neutralizando a oposição real e silenciando o debate

Quem é o principal opositor da reforma da Previdência do ultraliberal Paulo Guedes, ministro da Economia? Não é o PT ou o PSOL ou a CUT ou associações de aposentados. O principal crítico da reforma do “superministro” é aquele que nomeou o superministro exatamente para fazer a reforma da Previdência. O principal crítico é Bolsonaro, o antipresidente.

Como quando diz que, “no fundo, eu não gostaria de fazer a reforma da Previdência”. Ou quando diz que a proposta de capitalização da Previdência “não é essencial” nesse momento. Ou quando afirmou que poderia diminuir a idade mínima para mulheres se aposentarem. É Bolsonaro o maior boicotador da reforma do seu próprio Governo.

Enquanto ele é ao mesmo tempo situação e oposição, não sabemos qual é a reforma que a oposição real propõe para o lugar desta que foi levada ao Congresso. Não há crítica real nem projeto alternativo com ressonância no debate público. E, se não há, é preciso perceber que, então, não há oposição de fato. Quem ouve falar da oposição? Alguém conhece as ideias da oposição, caso elas existam? Quais são os debates do país que não sejam os colocados pelo próprio Bolsonaro e sua corte em doses diárias calculadas?

É pelo mesmo mecanismo que o bolsonarismo controla as oposições internas do Governo. Os exemplos são constantes e numerosos. Mas o uso mais impressionante foi a recente ofensiva contra a memória da ditadura militar. Bolsonaro mandou seu porta-voz, justamente um general, dizer que ele havia ordenado que o golpe de 1964, que completou 55 anos em 31 de março, recebesse as “comemorações devidas” pelas Forças Armadas. Era ordem de Bolsonaro, mas quem estava dizendo era um general da ativa, o que potencializa a imagem que interessa a Bolsonaro infiltrar na cabeça dos brasileiros.

Ao mandar comemorar o golpe de 1964, Bolsonaro deu um golpe na ala militar do seu próprio governo

Aparentemente, Bolsonaro estava, mais uma vez, enaltecendo os militares e dando seguimento ao seu compromisso de fraudar a história, apagando os crimes do regime de exceção. Na prática, porém, Bolsonaro deu também um golpe na ala militar do seu próprio Governo. Como é notório e escrevi aqui já em janeiro, os militares estão assumindo – e se esforçando para assumir – a posição de adultos da sala ou controladores do caos criado por Bolsonaro e sua corte barulhenta. Estão assumindo a imagem de equilíbrio num Governo de desequilibrados.

Esse papel é bem calculado. A desenvoltura do vice general Hamilton Mourão, porém, tem incomodado a bolsomonarquia. O que pode então ser mais efetivo do que, num momento em que mesmo pessoas da esquerda têm se deixado seduzir pelo “equilíbrio” e “carisma” de Mourão, lembrar ao país que a ditadura dos generais sequestrou, torturou e assassinou civis?

Bolsonaro promoveu a memória dos crimes da ditadura pelo avesso, negando-os e elogiando-os. Poucas vezes a violência do regime autoritário foi tão lembrada e descrita quanto neste 31 de março. Foi Bolsonaro quem menos deixou esquecer os mais de 400 opositores mortos e 8 mil indígenas assassinados, assim como as dezenas de milhares de civis torturados. Para manter os generais no cabresto, Bolsonaro os jogou na fogueira da opinião pública fingindo que os defendia.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro lembrou aos generais que são ele e sua corte aparentemente tresloucada quem faz o serviço sujo de enaltecer torturadores e impedir que pleitos como o da revisão da lei de anistia, que até hoje impediu os agentes do Estado de serem julgados pelos crimes cometidos durante a ditadura, vão adiante. Como berrou o guru do bolsonarismo, o escritor Olavo de Carvalho, em um de seus ataques recentes contra o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo da presidência: “Sem mim, Santos Cruz, você estaria levando cusparadas na porta do Clube Militar e baixando a cabeça como tantos de seus colegas de farda”.

A ditadura deixou marcas tão fundas na sociedade brasileira que mesmo perseguidos pelo regime se referem a generais com um respeito temeroso. Nenhum “esquerdista” ousou dizer publicamente o que Olavo de Carvalho disse, ao chamar os generais de “bando de cagões”. Mais uma vez, o ataque, a réplica e a tréplica se passaram dentro do próprio Governo, enquanto a sociedade se mobilizava para impedir “as comemorações devidas”.

A exaltação do golpe militar de 1964 serviu também como balão de ensaio para testar a capacidade das instituições de fazer a lei valer. Mais uma vez, Bolsonaro pôde constatar o quanto as instituições brasileiras são fracas. E alguns de seus personagens, particularmente no judiciário, tremendamente covardes. Não fosse a Defensoria Pública da União, que entrou com uma ação na justiça para impedir as comemorações de crimes contra a humanidade, nada além de “recomendações” para que o Governo não celebrasse o sequestro, a tortura e o assassinato de brasileiros. Patético.

Bolsonaro finge que não nomeou o ministro que demitiu

Outro exemplo é a demissão do ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez para colocar em seu lugar outro que pode ser ainda pior. Bolsonaro fritou o ministro que ele mesmo nomeou e o demitiu pelo Twitter. Ao fazê-lo, agiu como se outra pessoa o tivesse nomeado – e não ele mesmo. Chamou-o de “pessoa simpática, amável e competente”, mas sem capacidade de “gestão” e sem “expertise”. Mas quem foi o gestor que nomeou alguém sem capacidade de gestão e expertise para um ministério estratégico para o país? E como classificar um gestor que faz isso? Mais uma vez, Bolsonaro age como se estivesse fora e dentro ao mesmo tempo, fosse governo e opositor do governo simultaneamente.

Mesmo as minorias que promoveram alguns dos melhores exemplos de ativismo dos últimos anos passaram a assistir à disputa do Governo contra o Governo como espectadores passivos. Quem lutou pela ampliação dos instrumentos da democracia parece estar se iludindo que berrar nas redes sociais, também dominadas pelo bolsonarismo, é algum tipo de ação. A participação democrática nunca esteve tão nula.

A estratégia bem sucedida, neste caso, é a falsa disputa da “nova política” contra a “velha política”. O bate-boca entre Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), é só rebaixamento da política, de qualquer política. Se a oposição ao Governo é Maia, parlamentar de um partido fisiológico de direita, qual é a oposição? Bolsonaro e Maia estão no mesmo campo ideológico. Não há nenhuma disputa de fundo estrutural entre os dois, seja sobre a Previdência ou sobre qualquer outro assunto de interesse do país.

O mecanismo se reproduz também na imprensa. Aparentemente, parte da mídia é crítica ao Governo Bolsonaro. E, sob certo aspecto, é comprovadamente crítica. Mas a qual Governo Bolsonaro? Se Bolsonaro é mostrado como o irresponsável que é, o contraponto de responsabilidade, especialmente na economia, seriam outros núcleos de seu próprio Governo, conforme apresentado por parte da imprensa. Quando o insensato Bolsonaro atrapalha Guedes, o projeto neoliberal ganha um verniz de sensatez que jamais teria de outro modo.

Diante do populismo de extrema direita de Bolsonaro e seus companheiros de outros países, o neoliberalismo é apresentado como a melhor saída para a crise que ele mesmo criou. Mas Bolsonaro e seus semelhantes são os produtos mais recentes do neoliberalismo – e não algo fora dele. Onde então está o contraditório de fato? Qual é o espaço para um outro projeto de Brasil? Cadê as alternativas reais? Quais são as ideias? Onde elas estão sendo discutidas com ressonância, já que sem ressonância não adianta?

Bolsonaro governa contra o governo para manter a popularidade entre suas milícias

A imprensa ao mesmo tempo reflete e alimenta a paralisia da sociedade. Os cem dias mostraram que o Governo Bolsonaro é ainda pior do que o fenômeno Bolsonaro. Bolsonaro não se tornará presidente, “não vestirá a liturgia do cargo”, como esperam alguns. Não porque é incapaz, mas porque não quer. Bolsonaro sabe que só se mantém no poder como antipresidente, como enfatizei em artigo anterior. Bolsonaro só pode manter o poder mantendo a guerra ativa.

Recente pesquisa do Datafolha mostrou que ele é o presidente pior avaliado num início de governo desde a redemocratização do país. Mas Bolsonaro aposta que é suficiente manter a popularidade entre suas milícias e age para elas. Bolsonaro está dentro, mas ao mesmo tempo está fora, governando com sua corte e seus súditos. Governando contra o Governo. Essa é a única estratégia disponível para Bolsonaro continuar sendo Bolsonaro.

A oposição, assim como a maioria da população, foi condenada à reação, o que bloqueia qualquer possibilidade de ação. Se alguém sempre jogar a bola na sua direção, você sempre terá que rebater a bola. E quando pegar esta e liberar as mãos, outra bola é jogada. Assim, você vai estar sempre de mãos ocupadas, tentando não ser atingido. Todo o seu tempo e energia são gastos em rebater as bolas que jogam em você. Deste modo, você não consegue tomar nenhuma decisão ou fazer qualquer outro movimento. Também não consegue planejar sua vida ou construir um projeto. É uma comparação tosca, mas fácil de entender. É assim que o governo Bolsonaro tem usado o poder para controlar o conteúdo dos dias e impedir a disputa política legítima das ideias e projetos.

2) A Barbárie

Mesmo a parcela mais organizada das minorias que tanto Bolsonaro atacou na eleição parece estar em transe, sem saber como agir diante dessa operação perversa do poder. Ao reagir, tem adotado o mesmo discurso daqueles que as oprimem, o que amplia a vitória do bolsonarismo.

Um exemplo. O vídeo divulgado por Bolsonaro no Carnaval, mostrando uma cena de “golden shower”, foi definido como “pornográfico” por muitos dos que se opõem a Bolsonaro. Mas este é o conceito de pornografia da turma do antipresidente. Adotá-lo é comungar de uma visão preconceituosa e moralista da sexualidade. É questionável que dois homens façam sexo no espaço público e este é um ponto importante. Não deveriam e não poderiam. Mas não é questionável o ato de duas pessoas adultas fazerem sexo consentido da forma que bem entenderem, inclusive um urinando no outro. O ato pornográfico é o de Bolsonaro, oficialmente presidente da República, divulgar o vídeo nas redes sociais. É dele a obscenidade. A pornografia não está na cena, mas no ato de divulgar a cena pelas redes sociais. Diferenciar uma coisa da outra é fundamental.

O discurso de ódio e de repressão à sexualidade está se infiltrando no país e sendo reproduzido mesmo pela esquerda

Outro exemplo. Quando a oposição tenta desqualificar o deputado federal Alexandre Frota (PSL) porque ele é ator pornô está apenas se igualando ao adversário. Qual é o problema de ser ator pornô? Só os moralistas do pseudoevangelismo desqualificam pessoas por terem trabalhos ligados ao sexo. Alexandre Frota deve ser criticado pelas suas péssimas ideias e projetos para o país, não porque fazia sexo em filmes para ganhar a vida. Criticá-lo por isso é jogar no campo do bolsonarismo e é também ser intelectualmente desonesto. Cada vez mais parte da esquerda tem se deixado contaminar, como se fosse possível deslegitimar o adversário usando o mesmo discurso de ódio.

Na mesma linha, o problema do ministro da Justiça, Sergio Moro, não é o fato de ele falar “conge” em vez de “cônjuge”, como fez por duas vezes durante audiência pública no Senado. Ridicularizar os erros das pessoas na forma de falar é prática das piores elites, aquelas que se mantêm como elite também porque detêm o monopólio da linguagem. Poderia se esperar que Moro falasse a chamada “norma culta da língua portuguesa” de forma correta, já que teve educação formal tradicional. Mas a disputa política deve se dar no campo das ideias e projetos.

O problema de Moro é ter, como juiz, interferido no resultado da eleição. E, em seguida, ser ministro daquele que suas ações como funcionário público ajudaram a eleger. O problema de Moro é criar um pacote anticrime que, na prática, pode autorizar os policiais a cometerem crimes. Pela proposta do ministro da Justiça, os policiais podem invocar “legítima defesa” ao matar um suspeito, alegando “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Neste caso, a pena pode ser reduzida pela metade ou mesmo anulada. O problema de Moro que interessa ao país não é, definitivamente, usar “conge” em vez de “cônjuge”.

Moradores de rua estão sendo incendiados vivos no Brasil: entre janeiro e o início de abril já foram pelo menos oito

Compreender como o discurso de ódiovai se imiscuindo na mente de quem acredita estar se contrapondo ao ódio é eticamente obrigatório. Se o governo de Bolsonaro é também oposição e crítica ao próprio Governo, isso não significa que ele não tenha um projeto e que este projeto não esteja se impondo rapidamente ao país. Tem e está. Somos hoje um país muito pior do que fomos. E somos hoje um povo muito pior do que fomos. Parte do objetivo dos violentos e dos odiadores é normalizar a violência e o ódio pela repetição. O bolsonarismo tem conseguido realizar esse projeto com uma velocidade espantosa.

Apenas em 2019 ( e escrevo na primeira quinzena de abril), pelo menos oito – OITO – moradores de rua foram queimados vivos no Brasil. Este é apenas um levantamento feito com base no noticiário, pode ser mais. Em 1 de janeiro, um morador de rua de 27 anos foi incendiado quando dormia em Ponta Grossa, no Paraná. Alguém passou, jogou álcool e colocou fogo no seu corpo. Teve mais de 40% do corpo queimado. Em 21 de janeiro, um morador de rua foi encontrado incendiado e morto numa praça de Curitiba, capital paranaense. Quatro dias depois, em 25 de janeiro, José Alves de Mello, 56 anos, também morador de rua, foi agredido e queimado num imóvel abandonado da Grande Curitiba. Em 27 de fevereiro, uma moradora de rua foi queimada quando dormia embaixo de um viaduto, no Recife, capital do estado de Pernambuco. Ela sobreviveu. Em 17 de março, José Augusto Cordeiro da Silva, 27 anos, acordou já em chamas embaixo de uma marquise na cidade de Arapiraca, no estado de Alagoas. Morreu no hospital. Em 1 de abril, um homem aparentando 30 e poucos anos morreu carbonizado próximo à escada rolante de uma estação de trem em Santo André, no ABC Paulista. O caso foi registrado como “morte suspeita”. Em 3 de abril, Roberto Pedro da Silva, 46 anos, foi incendiado quando dormia numa obra abandonada em Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul. Um homem teria jogado combustível e ateado fogo em seu corpo. Em 7 de abril, um morador de rua aparentando 30 anos foi agredido a pedradas e incendiado no interior de um ginásio de esportes em Águas Lindas de Goiás, no entorno do Distrito Federal.

Se fôssemos gente decente de um país decente, pararíamos exigindo o fim da barbárie.

Em 4 de abril, policiais militares mataram 11 dos 25 suspeitos de assaltar bancos no município de Guararema, na Grande São Paulo. O governador do estado, João Doria (PSDB), afirmou que vai condecorá-los. Até bem pouco tempo atrás, um governador não ousaria dar medalhas a policiais que assassinaram suspeitos. Em nenhum país democrático do mundo matar suspeitos é considerado um bom desempenho policial. Pelo contrário.

Se fôssemos um país decente de gente decente, pararíamos diante da barbárie representada pelo massacre dos mais frágeis

No Brasil, que oficialmente não tem pena de morte, o governador do maior estado do país elogia e premia a execução de suspeitos por agentes da lei. Em março, a polícia paulista matou 64 pessoas. Bem mais do que em 2018, no mesmo mês, quando houve 43 homicídios por parte de policiais, o que já era uma enormidade. Autorizada pelas autoridades, a polícia brasileira, conhecida por ser uma das que mais mata no mundo, mostra que neste ano já começou a matar mais.

Se fôssemos um país decente de gente decente, pararíamos diante da barbárie cometida por agentes da lei com autorização e estímulo de autoridades que não foram eleitas para promover a quebra do Estado de Direito.

No último domingo, 7 de abril, militares dispararam 80 tiros – OITENTA – contra o carro de Evaldo dos Santos Rosa, 51 anos, um músico negro que levava a sua família a um chá de bebê em Guadalupe, na zona norte do Rio de Janeiro. Ele morreu fuzilado. Seu filho de 7 anos viu o pai sangrar e soldados do Exército de seu país rirem do desespero da mãe. Graças a uma lei sancionada por Michel Temer, em 2017, os militares que atacaram uma família civil serão julgados não pela justiça comum, mas pela militar, que comprovadamente é corporativa e conivente com os crimes.

Se fôssemos um país decente de gente decente pararíamos diante da barbárie e exigiríamos justiça.

3) A Resistência

O Brasil se espanta muito menos do que há bem pouco tempo atrás com o cotidiano de exceção. É justamente assim que o totalitarismo se instala. Pelas frestas do que se chama normalidade. Pelas mentes no senso comum e nas horas do dia. Depois, é só oficializar. O Brasil já vive sob o horror da exceção. A falsificação da realidade, a corrupção das palavras e a perversão dos conceitos são parte da violência que se instalou no Brasil. São parte do método. Essa violência subjetiva tem resultados bem objetivos – e multiplica, como os números já começam a apontar, a violência contra os corpos. Não quaisquer corpos, mas os corpos dos mais frágeis.

É urgente se unir para resgatar o que resta de democracia no Brasil antes que o autoritarismo se instale por completo

O desafio – urgente, porque já não há mais tempo – é resgatar o que resta de democracia no Brasil. É pela pressão popular que as instituições podem se fortalecer ao serem lembradas que não servem aos donos do poder nem aos interesses de seus membros, mas à sociedade e à Constituição. É pela pressão por outros diálogos e outras ideias e outras realidades que ainda respiram no país que a imprensa pode abrir espaço para o pluralismo real. É pela pressão por justiça e pelo levante contra a barbárie que podemos salvar nossa própria alma adoecida pelos dias.

O resgate da democracia pelo que ainda resta dela, aqui e ali, não será tarefa de outros. Como já escrevi antes, só há nós mesmos. Nós, os que resistimos a entregar o Brasil para os perversos que hoje o governam – e o governam também pelo controle dos espasmos diários que impõem aos brasileiros.

Eu gostaria de dizer: “Acordem!”. Mas não é que os brasileiros estejam dormindo. Parece mais uma paralisia, a paralisia do refém, daquele que vive o horror de estar entregue ao controle do perverso. Não é mais desespero, é pavor. Precisamos encontrar caminhos para romper o controle, sair do jugo dos perversos, tirar a pauta dos dias de suas mãos.

Como?

Essa resposta ninguém vai construir sozinho. A minha é que precisamos criar o “comum”. O que aqui chamo de comum é o que nos mantêm amalgamados, o que permite que, ao conversarmos, partimos do consenso de que a cadeira é cadeira e a laranja é laranja e que nenhum de nós dois sente na laranja e coma a cadeira (leia aqui). Os perversos corromperam a palavra – e têm repetido que a cadeira é laranja. Só por isso podem dizer que o Brasil está ameaçado pelo “comunismo” ou que o nazismo é de “esquerda” ou que o aquecimento global é um “complô marxista”. Essas três afirmações, apenas como exemplo, não têm lastro na realidade. É o mesmo que dizer que laranja é cadeira. Apenas que menos gente tem clareza do que foi o nazismo e do que é o comunismo e do que é o aquecimento global, tornando mais fácil embrulhar as coisas.

Precisamos voltar a encarnar as palavras ou enlouqueceremos todos

Eles repetem e repetem, assim como tantas outras corrupções da realidade, porque corromperam o voto que receberam ao usar a estrutura do Estado para produzir mentiras. É assim que os perversos enlouquecem uma população inteira – e a submetem: dizendo que laranja é cadeira dia após dia. As palavras deixam de significar, a linguagem é rompida e corrompida e a conversa se torna impossível. Como você vai falar com alguém sobre laranjas se o outro acha que laranja é cadeira? É isso que hoje acontece no Brasil, e este ataque é desferido diariamente pelas redes sociais dominadas pelo bolsonarismo.

Precisamos voltar a encarnar as palavras. Ou enlouqueceremos todos. A criação do comum começa pela linguagem (Escrevi sobre isso aqui e aqui). Precisamos também criar comunidade. Não comunidade de internautas que ficam gritando cada um atrás da sua tela. Mas comunidade real, que exige presença, exige corpo, exige debate, exige negociação, exige compartilhamento real. Não há nada que os regimes de exceção temam mais do que pessoas que se juntam para fazer coisas juntas. É por isso que Bolsonaro tanto critica o ativismo e os ativistas – e já deu vários passos na direção da criminalização do ativismo e dos ativistas.

O ativista é aquele que deixa o conforto do seu umbigo e do seu entorno protegido para exercer a solidariedade. Governos como o de Bolsonaro agem para que cada um veja o outro como inimigo, e por isso temem o ativismo. Os bolsonaristas se alimentam da guerra porque a guerra separa as pessoas e faz com que elas não tenham tempo para criar futuro. A solidariedade é um gesto temido pelos autoritários. Por que você não está em casa lustrando o seu umbigo, é o que gostariam de perguntar? Ao corromper as palavras, é também esse o objetivo. Condenar cada um à prisão do seu silêncio (ou do seu eco), incapaz de alcançar o outro pela falta de uma linguagem comum.

O governo quer que você fique em casa lustrando o seu umbigo. Levante-se!

Assim, tentam eliminar a solidariedade à bala. Ou exilá-la. Mandá-la para fora do país que privatizaram para si. Bolsonaro disse isso com todas as letras. É o que tem feito com os movimentos sociais e suas lideranças. É também por isso que é necessário uma polícia com autorização para matar, como quer Bolsonaro, e como obedece Sergio Moro.

A polícia, cada vez mais, se torna também ela uma milícia privada dos donos do poder. Deixa de exercer seu dever constitucional de proteger a população para exercer a guerra contra a população. Durante a intervenção federal no Rio, policiais civis e militares mataram 1.543 pessoas. Em 2018, um em cada quatro homicídios no Rio de Janeiro foi cometido por um policial – e isso segundo os registros das próprias polícias. Ninguém tem qualquer dúvida que a maioria dos mortos é negra – e é pobre.

Quando vai para as ruas nos protestos, o que a polícia reprime não é o que chama de “baderneiros” ou “vândalos”, mas a solidariedade. Ao bater nos corpos, sufocá-los com bombas de gás lacrimogêneo, o que querem é controlar os corpos, castigá-los porque em vez de ficarem trancados em casa coçando a barriga foram às ruas lutar pelo coletivo. Como assim você luta pelo outro e não apenas por si mesmo? Como você ousa ser solidário se a regra do neoliberalismo é cuidar apenas de si e dos seus?

Resistir ao medo e se juntar para criar futuro é o ato primeiro de resistência. Se nos encarcerarmos em casa, como o governo quer, armados também, como o governo quer, atirando uns nos outros, como o governo quer, a guerra continuará sendo ampliada, porque só assim os perversos nos mantêm sob controle e se mantêm no poder. Se contarmos apenas como um não podemos nada. Temos que ser um+ um+ um. E então poderemos muito.

A arte é também um instrumento poderoso. Não foi por outro motivo que ela foi tachada de “pornográfica” e “pedófila” pelas milícias da internet nos últimos anos. Não é por outro motivo que o bolsonarismo investe contra a lei Rouanet e desmonta os mecanismos culturais. A arte não é firula. Ela tira as pessoas do lugar. Ela faz pensar. Ela questiona o poder. E ela junta os diferentes.

Precisamos fazer arte. Mais uma vez, vou indicar aqui o livro da Pussy Riot Nadya Tolokonikova (Pussy Riotum guia punk para o ativismo político, Ubu Editora, 2019). A arte é um ato ao alcance de todos nós. O maior golpe contra o Governo do déspota Vladimir Putin veio de um bando de garotas que não sabe nem cantar nem tocar direito, mas fazem arte tocando e cantando o ridículo dos perversos.

Rir. Precisamos rir. Rir junto com o outro, não rir do desespero do outro. É o perverso que gosta de rir sozinho, é o perverso que goza da dor do outro, como faz Bolsonaro, como riram os soldados que deram 80 tiros no carro da família que ia para um chá de bebê. O deles não é riso, é esgar. Já o riso junto com o outro tem uma enorme potência.

Vamos rir juntos dos perversos que nos governam e começar a imaginar um futuro onde queremos viver

Vamos rir juntos dos perversos que nos governam. Vamos responder ao seu ódio com riso. Vamos responder à tentativa de controle dos nossos corpos exercendo a autonomia com os nossos corpos. Vamos libertar as palavras fazendo poesia. Como escrevi tantas vezes aqui: vamos rir por desaforo. E amar livremente.

Rir despudoradamente diante de suas metralhadoras de perdigotos. O ódio não é para nós, o ódio é para os fracos. Vamos afrontá-los denunciando o ridículo do que são. Vamos praticar a desobediência às regras que não criamos. Temos que desobedecer a esse desgoverno. É assim que se quebra o jugo dos perversos. Levando-os suficientemente a sério para não levá-los a sério.

E temos que começar a imaginar o futuro. É assim que o futuro começa, sendo imaginado. Ninguém consegue viver num presente sem futuro. Mas é impossível controlar quem é capaz de imaginar depois que já começou a imaginar. A imaginação é a melhor companheira do riso.

Sim, ninguém solta a mão de ninguém. Mas não vamos ficar segurando as mãos uns dos outros paralisados e em pânico. Vamos rir e criar futuro. Juntos. Lembrem-se que “a alegria é a prova dos nove”. Nos cem dias que já dura o domínio oficial dos perversos, foi o Carnaval quem mais desafiou o exercício autoritário do poder. Pela alegria, pela sátira, pelo riso, pelos corpos nas ruas.

Não há lei que nos obrigue a obedecer a um Governo de perversos. Desobedeçam aos senhores do ódio. Os próximos cem dias – e todos os outros que virão – precisam voltar a nos pertencer.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


El País: Abraham Weintraub, um segundo ‘olavete’ no MEC para gerir a “terra arrasada”

Economista e professor, novo ministro da Educação prega contra o "marxismo cultural" e terá desafio de romper paralisia na pasta e encontrar solução para impressão do ENEM 

Um professor universitário contra o “marxismo cultural”, que trata seus opositores como inimigos, especialista em Previdência social, que passou pelo mercado financeiro, mas nunca gerenciou nada na área educacional. Foi aluno de Olavo de Carvalho – o ideólogo do bolsonarismo. Esse é o novo ministro da Educação, o economista Abraham Weintraub. Ao lado de seu irmão, o advogado e professor Arthur Weintraub, administrou o Centro de Estudos em Seguridade e prega a bandeira ideológica e conservadora do Governo Jair Bolsonaro (PSL). Chega ao cargo com o desafio de administrar uma “terra arrasada” deixada por seu antecessor Ricardo Vélez. Entre idas e vindas,  Vélez demitiu mais de dez assessores e quatro secretários-executivos, além de não conseguir dar andamento a quase nenhum projeto em pouco mais de três meses de gestão.

Aos 47 anos de idade, Abraham Weintraub é professor universitário da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) desde 2014. Dois de seus colegas consultados pela reportagem disseram que ele teve uma passagem discreta pela universidade porque parecia se dedicar mais aos seus projetos pessoais do que à academia. Em 2014, apoiou a campanha presidencial de Marina Silva (REDE). Antes de abraçar a carreira acadêmica, Abraham atuou no Banco Votorantim e na Quest Corretora.

A aproximação dos irmãos Weintraub com presidente se iniciou há quase dois anos, por intermédio de Onyx Lorenzoni (DEM), o ministro da Casa Civil. Ao mesmo tempo ganhou a confiança do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o filho mais novo do presidente. Em princípio, Abraham atuaria no ministério da Economia como um dos responsáveis por elaborar a reforma da Previdência. Mas o ministro Paulo Guedes preferiu nomear alguém com experiência legislativa para a função de secretário especial de Previdência e Trabalho. Afinal, era necessário convencer parlamentares sobre a necessidade de se aprovar a reforma. Assim, a vaga ficou com o ex-deputado federal Rogério Marinho (PSDB-RN). Abraham acabou, então, na secretaria executiva da Casa Civil. Enquanto isso, o irmão dele, Arthur, tornou-se chefe da assessoria especial da Presidência da República.

Na Cúpula Conservadora das Américas no ano passado, evento promovido pelo deputado Eduardo, Abraham chamou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de sicofanta (mentiroso), disse que o ex-ditador cubano Fidel Castro era um playboy e que o petismo não estava morto, por isso teria de ser combatido. “Quando caiu o muro de Berlim, teve um monte de goiaba que falou: agora o comunismo acabou. Agora, que o Jair Bolsonaro ganhou, tem muita gente dizendo que o PT está derrotado, que podemos ficar tranquilos. Não, não podemos”. Ressaltou, ainda, lições de Carvalho, caso seus colegas professores passassem criticá-los por serem de direita. “A gente adaptou a teoria do Olavo de Carvalho de como enfrentar eles [comunistas] no debate intelectual. Não precisa mandar pastar. Quando eles falam, a ciência é burguesa, então vá embora daqui porque aqui é o templo da ciência, seu religioso”.

Nessa segunda-feira, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, disse que não precisa seguir na íntegra o que o ideólogo sugere. “Ele tem ideias muito boas, mas não sigo ipsis litteris tudo o que ele fala. Não é porque gosto de música clássica que não escute rock and roll de vez em quando”. Dentro do MEC, contudo há a expectativa do retorno de boa parte dos olavetes que foram demitidos nas últimas semanas por Ricardo Vélez. Outras declarações do ministro também já provocam repercussão negativa, como a de que "crack foi introduzido de caso pensado no Brasil". "Em vez de as universidades do Nordeste ficarem aí fazendo sociologia, fazendo filosofia no agreste, [devem] fazer agronomia, em parceria com Israel", disse ele no ano passado, em uma transmissão ao vivo citada no UOL. 

Os desafios na pasta

Entre seus desafios na pasta está a impressão e organização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), já que a gráfica que faria o trabalho declarou falência, e a definição de uma agenda na área de educação básica e a aproximação de áreas sensíveis, como ciência e tecnologia.

Desde que Vélez começou a perder força no cargo, há quase duas semanas, uma lista de nomes foi sugerida ao presidente. Além de Abraham, outros dois corriam por fora. O senador Izalci Lucas (PSDB-DF) foi defendido pela bancada evangélica e o empresário e consultor em educação Stravos Xanthopoylos foi sugerido por membros do mercado educacional. O que pesou na escolha do presidente foram seus dois padrinhos Olavo e Onyx. Ambos foram consultados por Bolsonaro e a decisão anunciada nesta segunda-feira.

A troca foi vista de maneira positiva por apoiadores de Bolsonaro. “O MEC precisa de um bom gestor e não de um ideólogo do atraso, que defenda a revolução contramarxista do século XIX”, afirmou o cientista político Antonio Testa, um antigo colaborador do presidente na área de educação. Segundo ele, Abraham é um técnico capaz de gerenciar a pasta com o segundo maior orçamento do Governo, com 115 bilhões de reais.

Outros especialistas, contudo, entendem que a troca não deverá surtir efeito no Governo. Entendem, por exemplo, que é necessário empossar alguém com experiência na área educacional. “Todo esse jogo de cena, trazendo para o MEC pessoas completamente alheias ao sistema educacional tem como objetivo o desmonte”, afirmou o sociólogo César Callegari, ex-membro do Conselho Nacional de Educação e presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada.

Na opinião de Callegari, o papel de Abraham será o de defender os planos do ministério da Economia de desvincular a educação do orçamento da união. Conforme a Constituição, o Governo federal tem de investir 18% de seu orçamento em educação, enquanto que as gestões estaduais e municipais são obrigadas a gastar 25%. Uma proposta de emenda constitucional deverá ser enviada nas próximas semanas revisando esses percentuais.


El País: Bolsonaro, pressionado por queda recorde de popularidade em pesquisa

Números do Datafolha, como os do Atlas Político publicados no EL PAÍS no dia 3, mostram empate triplo na avaliação do Governo. Cifras devem complicar vida do Governo no Congresso

Na próxima quarta-feira, 10 de abril, Jair Bolsonaro completará cem dias no cargo pressionado por uma queda recorde da aprovação de seu Governo na comparação com todos os demais presidentes brasileiros desde Fernando Collor (1990-1992). Os dados são do Datafolha, que mostram, como havia antecipado a pesquisa do Atlas Político publicada no EL PAÍS na quarta-feira, que a população está dividida em fatias praticamente equivalentes: 30% acham que o Governo é ruim ou péssimo, 32% acham bom ou ótimo, enquanto 33% consideram a gestão regular. Já nesta segunda-feira, outra pesquisa também do Datafolha apontou queda no otimismo dos brasileiros em relação à economia.

Com as cifras, Jair Bolsonaro tem o pior desempenho para um presidente em primeiro mandato desde a eleição de Collor, em 1989, de acordo com a série histórica do Datafolha. Após três meses no poder, Bolsonaro tem 30% de avaliação ruim ou péssimo, contra 19% de reprovação de Collor no mesmo período, 16% de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), 10% de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e 7% de Dilma Rousseff (2010-2016). A pesquisa do Datafolha ouviu presencialmente mais de 2.000 pessoas pelo país e tem margem de erro de dois pontos percentuais, —já o Atlas Político recruta seus entrevistados pela Internet, balizando amostra com parâmetros populacionais, como renda, idade e gênero.

Na análise de Mauro Paulino e Alessandro Janoni, ambos do Datafolha, parte da performance de Bolsonaro é fruto da intensa polarização de campanha, da qual o presidente herda, por exemplo, a baixa aprovação entre mulheres de maior escolaridade. Mas chama a atenção de ambos a queda de aprovação de Bolsonaro entre seus próprios eleitores —quase metade deles já não o consideram um presidente ótimo ou bom. A variável principal que explica a queda, dizem Paulino e Janoni, diz respeito à imagem de Bolsonaro, visto como alguém pouco preparado para o cargo, que "em nenhuma situação, se comporta como um presidente da República”.

Vídeo incorporado

Jair M. Bolsonaro

@jairbolsonaro

Depois de o Datafolha publicar que "Lula e Dilma são mais inteligentes do que Bolsonaro", um pouco de como o povo me trata:

20,2 mil pessoas estão falando sobre isso

Em relação à economia, o percentual de entrevistados que acha que a situação econômica do Brasil vai melhorar nos próximos meses caiu de 65%, em dezembro, para 50% agora. Os que acreditam que o cenário econômico vai piorar subiram de 9% para 18%. De acordo com o instituto, que realiza a série histórica desde 1997, é comum o otimismo antes da posse de um novo presidente, entretanto, não houve registro de queda no otimismo no primeiro trimestre dos primeiros mandatos dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff (PT), mas houve nas reeleições de ambos e de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Quase metade dos brasileiros acredita que o desemprego vai piorar (47% dos entrevistados), antes da posse 29% pensavam assim. A pesquisa também mostrou que subiu de 27% para 45% a porcentagem de pessoas que crê que a inflação vai voltar a subir no Brasil.

Vacina nas redes sociais

Se na campanha não surtiu qualquer efeito negativo Bolsonaro admitir que não entendia de economia ou manter o mesmo tom belicoso que o marcou no Congresso, agora a expectativa sobre uma atuação mais conforme à liturgia do cargo parece ter mais peso na avaliação do público geral. Por ora, a sinalização do Planalto é que deve ser mantida a estratégia principal do presidente, que é de continuar basicamente em campanha nas redes sociais, surfando em polêmicas ou deliberadamente as provocando, para estimular os bolsonaristas mais duros a se manter coesos em torno do Governo. Aqui e ali, e para os meios de comunicação mais tradicionais, Bolsonaro modula a mensagem com recuos e moderações.

Neste domingo, a primeira reação do presidente foi dizer que não comentaria a pesquisa para, ato seguido, usar postagens para rebatê-la nas redes sociais. Em uma delas, um vídeo com trilha sonora embala imagens de Bolsonaro cumprimentando eleitores em Brasília. Outro, com uma pergunta sobre a percepção sobre a inteligência dos ocupantes do Planalto, mereceu apenas um típica risada das redes sociais ("kkkk"), o que, desde logo, não pode ser lido como uma preocupação de parecer "presidencial".

Seja como for, os números e a conduta não devem agradar uma parte do empresariado e de investidores do mercado financeiro, que embarcaram de maneira decisiva em sua campanha em 2018. Da parte do empresariado, já há reclamações públicas sobre a condução do Governo, especialmente no trato com o Congresso que tramita a reforma da Previdência. Os efeitos da pesquisa também não devem ser animadores entre os congressistas. A base de apoio do Governo ainda está em formação e hesita em abraçar a defesa das impopulares mudanças nas aposentadorias.

"Eu não espero que a queda de popularidade de Bolsonaro vá continuar no mesmo ritmo. Essa parcela de 30% de ótimo e bom é composta principalmente por eleitores fiéis, que são a ala mais radical de seu eleitorado, que ele deve demorar mais a perder", analisa Andrei Roman, do Atlas Político. "Espero, semelhante ao que aconteceu com Trump nos EUA, uma estabilização dos polos de aprovação e desaprovação, isso supondo que o Governo vai seguir ser ao menos medíocre, que vai conseguir funcionar mais ou menos como até agora", complementa.

O Atlas Político e o Datafolha, ainda que com perguntas e metodologias diferentes, chegaram a resultados semelhantes sobre a percepção da opinião pública sobre o ex-juiz da Operação Lava Jato e ministro da Justiça, Sérgio Moro. No Atlas, 61,5% disseram ter boa imagem de Moro, em comparação com os 59% de aprovação no Datafolha. "Os resultados sinalizam que a popularidade de Moro supera a do presidente, o que pode impactar em evoluções políticas futuras", afirma Roman.

Enquanto Bolsonaro tinha a tarefa desagradável de responder aos números do Datafolha neste domingo, em Boston, nos EUA, seu vice Hamilton Mourão era ovacionado pela plateia de um evento organizado por estudantes brasileiros das universidades Harvard e MIT. De novo, o general da reserva agradou ao se mostrar como mais moderado e aberto que o ocupante do Planalto. Os números da pesquisa mostram, porém, que esse frisson de apoio a Mourão é localizado: a maioria dos entrevistados do Datafolha, mais precisamente 59%, não soube dizer quem era o vice-presidente da República.


El País: Lula e Marielle, símbolos de duas esquerdas separadas nas ruas

Ato da campanha Lula Livre, semanas depois das homenagens à vereadora assassinada, marcam as diferenças de idade e prioridades temáticas das mobilizações progressistas

O ato realizado em São Paulo neste domingo pedindo a libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi marcado por algumas ausências. A pequena multidão reunida na avenida Paulista entre às 14h e 17h para recordar o primeiro ano de prisão do petista era composta, em sua maioria, por pessoas oriundas de uma classe média trabalhadora que possuíam uma média de idade que facilmente beira os 50 anos. Sobrou melancolia e nostalgia por tempos vividos num passado não muito distante, quando o país fazia sua transição para a democracia ou vivia o auge da inclusão social e do pleno emprego durante os Governos do Partido dos Trabalhadores. Mas, salvo exceções, como os militantes da União Nacional dos Estudantes (UNE) ou do Levante Popular da Juventude, faltaram os jovens. Jovens negros e periféricos que há menos de um mês, no dia 14 de março, engrossavam outra manifestação, a que recordava o primeiro ano da brutal execução da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.

Lá os protagonistas eram outros. Chamou atenção o fato de que poucos homens e lideranças partidárias — com exceção das deputadas Talíria Petrone, Mônica Francisco, Dani Monteiro e Renata Souza, consideradas as herdeiras políticas de vereadora assassinada — tenham subido no palco montado na Cinelândia, no centro do Rio. No festival de música e poesia organizado por Anielle e Luyara Franco, irmã e filha de Marielle, estavam artistas e coletivos negros e feministas como o Slam das Minas, que dizia que "a justiça não é cega, é daltônica". Também escutava-se uma multidão entoando o samba enredo da Mangueira, campeão do carnaval de 2019, que evoca um país "que não está no retrato" e que deve ouvir "as Marias, Mahins, Marielles, malês". Ao invés de um discurso político como gran finale, o ato terminou com um grande baile funk — porque, quando era adolescente, Marielle fugia de casa para escutar Furacão 2000, recordava Anielle no microfone.

A vereadora representa para Amanda Gabriela, uma estudante de História de 30 anos que participava do ato, "a força da mulher dona de seu mundo, de sua verdade e de seu caminho". Também enxergava um sentido de urgência em estar na rua. "Se ficarmos em casa, sem trazer as pautas para a rua, vamos morrer", dizia.

Em São Paulo, escutava-se o clássico Guantanamera, uma marca da ainda reivindicada Revolução Cubana, apesar do Governo autoritário da ilha, e o vereador Eduardo Suplicy acalentando corações com Blowing in the Wind, de Bob Dylan. Maria de Lourdes, uma bancária aposentada, de 64 anos, viajou de Marília, interior de São Paulo, para acompanhar o ato. "Eu poderia estar em casa descansando na piscina, assistindo de camarote. Mas não consigo. Me sinto fazendo parte de um momento importante da vida do país. E também retribuindo por todas as oportunidades que tive, por terem dado o direito ao voto e aberto o mercado de trabalho para as mulheres", explicava.

Havia jovens com suas famílias e jovens que estavam de passagem. Alguns chegaram a fazer fila para tirar foto com Guilherme Boulos, principal liderança do MTST e candidato a presidente pelo PSOL em 2018. Uma liderança política nova que começa seu discurso com um "boa tarde a todos e todas", ao invés do velho "companheiros e companheiras" que seus colegas tanto usaram neste domingo para defender Lula e a democracia.

Em uma entrevista para este jornal sobre a falta de renovação da esquerda, a filósofa e matemática Tatiana Roque falava sobre como os protestos de junho de 2013, que eclodiu em todo o país, embaralhou o campo progressista. "Novos atores estavam se apresentando ali na cena política e foram rechaçados pela esquerda, que não conseguiu até hoje dar um sentido para junho de 2013 e entender as pautas, as formas de organização, a estética... Não conseguiu entender o movimento". É dela também a explicação de que a esquerda ainda carrega uma ideia de trabalhador muito "homogeneizante" que dificilmente se aplica nos dias de hoje. "Os modos de vida, as experiências, as sensibilidades se tornaram muito mais importantes ao se inserir num coletivo. Não à toa vemos tantos coletivos feministas, negros, LGBTs, de legalização das drogas, de ambientalistas... Os coletivos se organizam mais em função daquilo que os afeta de modo singular", explicava em outra entrevista para este jornal.

"A esquerda precisa de unir em grande frente progressista", dirão uns. Uma frente que chegou a se desenhar nas ruas com o movimento #EleNão, contra o então candidato e atual presidente Jair Bolsonaro. O problema é que questões temáticas e até estéticas parecem separar essas duas esquerdas, que têm pautas em comum e se solidarizam uma com a outra, mas nem sempre se encontram nas ruas. Uma tem Lula como símbolo. A outra tem Marielle Franco como símbolo. Uma acha graça quando o ator José de Abreu se autoproclama presidente e diz que Marielle seria sua primeira dama in memorian. A outra acha a piada ofensiva e gostaria que Marielle tivesse sido a presidente. Uma veste camiseta vermelha. A outra exibe com orgulho cabelo estilo black power. Uma mira com nostalgia o passado e se apoia em antigas lideranças. A outra surge como uma grande potência transformadora, aponta questões consideradas mais urgentes — o racismo, o machismo e a LGBTfobia que mata milhares diariamente, por exemplo — e quer ser protagonista do futuro, não apenas mera espectadora.

Lula e Marielle representam, ontem e hoje, lutas pela democracia mais que legítimas. Nessa equação está uma imensa massa de pessoas historicamente abandonada pelo Estado que ainda tem o petista como principal referência e fizeram que Fernando Haddad chegasse ao segundo turno no ano passado. Mas isso já não é suficiente. Resta saber agora quando essas esquerdas voltarão a confluir, se é que isso acontecerá, em um novo projeto que volte a conquistar os setores populares, geralmente ausentes das ruas. Não é fácil.