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El País: “Bolsonaro é um dos populistas mais próximos do fascismo que já vi”, diz Federico Finchelstein

O especialista argentino, que lança seu ensaio ‘Do Fascismo ao Populismo na História’, mostra sua preocupação com o surgimento de "um novo populismo que combina o neoliberalismo com ranço fascista”

"Eu a aguentei durante um tempo, até que não pude mais e lhe disse que seu marido não governava com os votos do povo, e sim com a imposição de uma vitória [militar]. A gorda não gostou nada". A gorda era Carmen Polo, esposa do ditador espanhol Francisco Franco. A autora da frase é Eva Perón, a totêmica Evita, esposa do presidente argentino Juan Domingo Perón (1946-55 e 1973-74). O caso, ocorrido durante uma visita da primeira-dama argentina à Espanha, em 1947, aparece no livro Del Fascismo al Populismo en la Historia, o ensaio recém-publicado do historiador argentino Federico Finchelstein, e ilustra uma de sua tese centrais: que o populismo está na raiz do fascismo, mas o primeiro é intrinsecamente democrático.

"Não há fascismo sem ditadura, nem populismo sem eleições. E isto não é uma definição teórica, tem a ver com uma experiência de democratização histórica que surge sobretudo logo depois da Segunda Guerra Mundial e vai chegando a outros países. Não há ditadores populistas. Quando deixa de haver eleições reais, deveríamos falar de ditadura, não de populismo", afirma ao EL PAÍS o historiador Finchelstein (Buenos Aires, 1975), professor da New School for Social Research e do Eugene Lang College, de Nova York, e autor de várias obras sobre fascismo, populismo e o Holocausto.

Para apresentar seu livro nesta sexta-feira na Casa América de Madri, Finchelstein cruzou o Atlântico em sentido inverso ao das suas ideias oito décadas antes. Logo após a Segunda Guerra Mundial, com uma Europa abrindo os olhos para o alcance do horror nazista, e com a África e Ásia majoritariamente imersas no colonialismo ou sob regimes de partido único autoritário, a América Latina era o berço natural dessa "reformulação" do fascismo que é o populismo, argumenta. "Era o único lugar onde os fascismos não tinham perdido a legitimidade e havia um marco democrático. Não há nada de especial na América Latina naquele sentido", observa. Primeiro foi o peronismo, em 1946. Pouco depois, o regime de Getúlio Vargas (1951) no Brasil. Ambos percorreram um caminho similar: chegar ao poder a partir da ditadura e a destruíram por dentro para criar uma democracia. "O fascismo, nos casos mais paradigmáticos, que são a Alemanha e a Itália, chega ao poder através da democracia e cria uma ditadura. O populismo faz o contrário", observa, sobre seus inícios.

A situação se tornou mais complexa nas décadas seguintes, com populismos em diferentes continentes – tanto de esquerda como de direita – articulados em torno dos mesmos elementos: a identificação entre líder e povo, o culto semirreligioso ao dirigente, a substituição das categorias ideológicas clássicas pela dicotomia entre os de cima e os de baixo ("meus sujinhos", como os chamava Evita), o menosprezo pelos opositores e a imprensa crítica... Finchelstein cita os casos, com modelos neoliberais, de Carlos Menem na Argentina, Silvio Berlusconi na Itália e Fernando Collor de Mello no Brasil. Ou, da esquerda ou com estampa social, dos Kirchner, de novo na Argentina, e de Hugo Chávez na Venezuela. Entretanto, opina o especialista, "o que havia de populismo na Venezuela se perdeu, e estamos falando de formas que estão mais próximas de uma ditadura".

Em alguns casos, o populismo significou ao mesmo tempo "uma ampliação e uma limitação de direitos". Um "pacote", nas palavras do especialista, pelo que "os pobres são menos pobres e os ricos menos ricos", mas o líder "é o único dono da verdade, e aqueles que não estão de acordo passam a ser definidos não só como opositores políticos, mas também como o antipovo. Isto soa muito fascista porque tem origens fascistas", acrescenta.

Trump e Bolsonaro, uma tendência que preocupa

Ao longo do livro o nome de Donald Trump aparece com frequência como exemplo de uma tendência que preocupa Finchelstein: a emergência de "um novo populismo que combina o neoliberalismo com ranço fascista". "Não é uma volta do parafuso nem um círculo completo, mas, embora a história do populismo, à esquerda ou à direita, sempre tenha a ideia de reformular a democracia em termos autoritários sem voltar à tradição fascista, estes novos populistas fazem uma tentativa explícita de voltar a elementos centrais da tradição fascista: racismo, violência política e, em casos como o de Bolsonaro e Trump, elogios teóricos da ditadura". O presidente brasileiro é, acrescenta, "um dos populistas mais próximos ao fascismo que já vi".

racismo foi justamente uma das diferenças entre os populismos de esquerda e os de direita. Os primeiros "têm uma visão de povo que é autoritária, mas que permite ser aceito se a pessoa estiver de acordo. Nos de direita, o povo também é construído por coisas que a pessoa não decide, como a cor da pele".

Finchelstein recorre ao seu país para exemplificar como o populismo é mais um continente que um conteúdo, uma espécie de gaveta onde cabem diferentes categorias, como os torcedores de um time que não viram a casaca se o treinador e o estilo de jogo mudarem. Ou, como disse recentemente o líder sindical Hugo Moyano: "Os peronistas são assim, um dia dizemos uma coisa, e depois outra".

"O caso da Argentina é quase esquizofrênico", sentencia o especialista. "O peronismo foi o veículo para diferentes expressões de democracia autoritária: de ultraesquerda; nacionalista e popular, como o kirchnerismo; liberal, como Menem...". Sua força, décadas depois, é indiscutível. Para as eleições de outubro, o presidente Mauricio Macri – cujo estilo Finchelstein define como "populismo light" – escolheu um peronista conservador como número dois. Seu principal rival é uma chapa peronista com Cristina Fernández de Kirchner como candidata a vice. A terceira candidatura também é peronista. "Praticamente não há nenhum programa. Pedem que confiemos em um personagem ou outro. Nas propostas das três candidaturas não aparece um tema tão central como a despenalização do aborto", lamenta.


El País: Mercosul e União Europeia selam esperado acordo após 20 anos de negociações

O pacto representará um incremento do PIB brasileiro de 87,5 bilhões de dólares a 125 bilhões em 15 anos, segundo o Ministério da Economia

Após vinte anos de negociação, o Mercosul (Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai)  e a União Europeia selaram, nesta sexta-feira, um acordo de livre comércio entre os dois blocos. A informação é dos ministérios da Economia e das Relações Exteriores. O pacto é um marco histórico no relacionamento entre os dois blocos, que representam, juntos, cerca de 25% do PIB mundial e um mercado de 780 milhões de pessoas. Ele cobre temas tanto tarifários quanto de natureza regulatória, como serviços, compras governamentais, facilitação de comércio, barreiras técnicas, medidas sanitárias e fitossanitárias e propriedade intelectual.

O texto deve obter ainda a autorização dos Estados membros e do Parlamento Europeu, que podem exigir mudanças, informam os repórteres Lluís Pellicer e Álvaro Sánchez. De acordo com estimativas do Ministério da Economia, o acordo entre Mercosul e UE "representará um incremento do PIB brasileiro de 87,5 bilhões de dólares em 15 anos, podendo chegar a 125 bilhões de dólares", considerando a redução das barreiras não-tarifárias e o aumento esperado na produtividade do país.

Ainda segundo o comunicado do Governo brasileiro, o aumento dos investimentos previstos para o Brasil no mesmo período é de 113 bilhões de dólares. E as exportações para a UE podem crescer quase 100 bilhões de dólares até 2035.

O presidente Jair Bolsonaro, que participa da cúpula do G20 em Osaka (Japão), classificou o pacto comercial entre o Mercosul e a União Europeiacomo um dos mais importantes "de todos os tempos". "Histórico!", escreveu ele no Twitter. "Esse será um dos acordos comerciais mais importantes de todos os tempos e trará benefícios enormes para nossa economia". Na avaliação do Governo brasileiro, o pacto com a UE deve ser visto como um “acordo ponte”, que facilitará a negociação de futuros acordos entre o Mercosul e outros parceiros.

Jair M. Bolsonaro

@jairbolsonaro

Histórico! Nossa equipe, liderada pelo Embaixador Ernesto Araújo, acaba de fechar o Acordo Mercosul-UE, que vinha sendo negociado sem sucesso desde 1999. Esse será um dos acordos comerciais mais importantes de todos os tempos e trará benefícios enormes para nossa economia.

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Com a vigência do acordo, produtos agrícolas terão suas tarifas eliminadas, como suco de laranja, frutas e café solúvel. Os exportadores brasileiros obterão ampliação do acesso, por meio de quotas, para carnes, açúcar e etanol, entre outros.

O Governo informou, ainda, que o acordo reconhecerá como "distintivos do Brasil" vários produtos, como cachaças, queijos, vinhos e cafés, e garantirá "acesso efetivo em diversos segmentos de serviços, como comunicação, construção, distribuição, turismo, transportes e serviços profissionais e financeiros".

Ainda segundo a nota, as empresas brasileiras serão beneficiadas com a eliminação de tarifas na exportação de 100% dos produtos industriais. "Serão, desta forma, equalizadas as condições de concorrência com outros parceiros que já possuem acordos de livre comércio com a UE", informou o governo federal.

"A redução de barreiras e a maior segurança jurídica e transparência de regras irão facilitar a inserção do Brasil nas cadeias globais de valor, com geração de mais investimentos, emprego e renda", avaliou o comunicado.

O texto fechado entre os dois blocos estabelece ainda contrapartidas sociais e ambientais às duas partes expostas no capítulo “Desenvolvimento sustentável”. A principal delas é a permanência e defesa do Acordo de Paris e inclui ainda respeito aos direitos trabalhistas e garantia aos direitos das comunidades indígenas.

Participaram das negociações entre Mercosul e UE em Bruxelas o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo; a ministra da Agricultura, Tereza Cristina; e o Secretário Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia, Marcos Troyjo.


Pública: Afinal, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxico do mundo?

Não existem dados recentes que comparam consumo em diferentes países; segundo pesquisa da FAO, Brasil foi campeão em gastos com agrotóxicos em 2013, mas o sétimo na comparação com a área plantada

O título atribuído ao Brasil de “maior consumidor de agrotóxicos do mundo” é motivo de discordância entre grupos favoráveis e contrários à flexibilização da legislação sobre os químicos. A reportagem reuniu e analisou os principais levantamentos sobre o assunto para entender se há como bater martelo sobre a posição brasileira no uso de agrotóxicos mundial.

O principal dado sobre uso de agrotóxicos é o da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) feito pela consultoria de mercado Phillips McDougall. O trabalho é utilizado como referência tanto pelas indústrias do setor agroquímico, quanto por especialistas da área e ambientalistas.

O relatório compara o valor investido em pesticidas nos 20 maiores mercados globais em 2013 e atribui três rankings sob diferentes perspectivas: em números absolutos, número por área cultivada e por volume de produção agrícola.

A pesquisa mostra que naquele ano o Brasil foi o país que mais gastou com agrotóxicos no mundo: 10 bilhões de dólares. Estados Unidos, China, Japão e França ficam, respectivamente, nas posições seguintes.

O segundo ranking divide os gastos totais pela área cultivada, ou seja, o quanto é investido em agrotóxico por hectare plantado. Na lista o Brasil fica em sétimo lugar, com 137 dólares por hectare. Atrás de Japão, Coreia do Sul, Alemanha, França, Itália e Reino Unido.

Afinal, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxico do mundo?

O terceiro ranking mostra quanto cada país gasta com pesticidas tendo o tamanho da produção agrícola como referência. Para isso, são divididos os gastos absolutos pelas toneladas de alimento produzidos. O Brasil é o 13º da lista (9 dólares por tonelada), que mais uma vez é liderada por Japão e Coreia do Sul.

Afinal, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxico do mundo?

O informe anual sobre a produção de commodities da FAO, divulgado em setembro do ano passado, mostrou que o Brasil é o terceiro maior exportador agrícola do mundo. Segundo o levantamento, no ano de 2016, o país era responsável por 5,7% da produção agrícola do planeta, abaixo apenas dos Estados Unidos, com 11%, e da União Europeia, com 41%.

Os dados brutos do levantamento podem ser conferidos em inglês no site da Consultoria Phillips Mcdougall.

Afinal, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxico do mundo?

O professor de Agroecologia do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (IESA/UFG) Adriano Rodrigues chama de “disputa de narrativa” a discussão em relação aos dados divulgados pela FAO.

“É justamente sobre a correlação da área produtiva coberta e do volume de agrotóxicos. Somos o país que mais utiliza veneno no mundo. Porém, efetivamente, quando você considera a quantidade de hectares de área plantada no Brasil, que é muito grande, essa correlação nos faz cair no ranking”, pontua.

Já a pesquisadora Larissa Mies Bombardi, professora da Faculdade de Geografia da Universidade de São Paulo, questiona o cálculo feito no Ranking da FAO sobre uso de pesticida por hectare. Para ela, o dado que coloca o Brasil na sétima posição não reflete a realidade. “Quando se divide o consumo de agrotóxico brasileiro pela área plantada você dilui esse volume gigantesco. São considerados área cultivada regiões como de pasto, que são terras improdutivas. Essa conta faz com que o Brasil fique lá embaixo no ranking”, explica.

Larissa é autora de um dos principais trabalhos brasileiros recentes sobre o nosso consumo de pesticidas é o Atlas Geográfico do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia. O livro, publicado em 2017, traz levantamento de dados inédito sobre o consumo de agrotóxicos no Brasil (todos com fontes oficiais) e faz um paralelo com o que acontece na União Europeia.

A autora compara a média de aumento mundial no consumo de agrotóxico com o brasileira, tendo como base os números de vendas de pesticida. Entre 2000 e 2010, cresceu em 100% o uso de pesticidas no planeta, no mesmo período em que o aumento no Brasil chegou a quase 200%. Segundo a apuração, cerca de 20% de todo agrotóxico comercializado no mundo é consumido no Brasil. O atlas conta com 296 páginas e está disponibilizado na íntegra em e-book gratuitamente.

“Em termos de volume, desde 2008, Brasil e Estados Unidos revezam o primeiro lugar”, explica a professora, baseando-se em dados da própria indústria. A especialista diz que há dificuldades em fazer rankings dos países que mais utilizam pesticidas, pois as nações utilizam diferentes metodologias, o que dificulta comparações científicas. Sobre o levantamento da FAO, Larissa explica que as informações são passadas para a organização pelo próprios países. “Não existe um monitoramento internacional para fazer a classificação”, pontua.

Para o professor Universidade Federal de Goiás (IESA/UFG) Adriano Rodrigues, além de observar os números da FAO é necessários analisar os efeitos causados pelo contato com os agrotóxicos. “Mais importante do que apenas dizer se somos ou não os maiores consumidores, é mostrar as consequências desse uso tão grande. O Ministério da Saúde emite relatórios que quantificam o número de intoxicações no Brasil por exposição a agrotóxicos, mais de 80.000 notificações”, diz.

Os dados citados pelo pesquisador fazem parte última edição do Relatório Nacional de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos, publicado em 2018, que traz um compilado de dados de 2007 a 2015. A publicação mostra que neste período foram notificados 84.206 casos de intoxicação no Brasil — em unidades de saúde pública e privada.

É possível estimar quantos litros de agrotóxico cada brasileiro bebe?

Outro dado comum no debate sobre agrotóxicos é a quantidade de defensivo que cada brasileiro consome. Em 2011, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida divulgou que cada brasileiro consumia cerca 5,2 litros de agrotóxico por ano. Para chegar ao número, a organização não-governamental dividiu o número de 1 bilhão de litros de pesticidas vendidos a cada ano pela população brasileira na época, de 192 milhões.

Quatro anos depois uma nova pesquisa da ONG, junto agora da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), mostrou que o brasileiro estava bebendo ainda mais agrotóxico. Eles utilizaram números divulgados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em 2015, referentes à quantidade de princípios ativos de agrotóxicos vendidos em 2013, e a receita anual da indústria agroquímica — cerca de 36,6 bilhões de reais.

Com uma média dos preços ponderada pela participação no mercado, a pesquisa chegou ao valor médio de 24,68 reais por litro de agrotóxico. Dividiu-se a receita anual da indústria (R$36,6 bilhões) pelo valor médio do litro de agrotóxico (24,68 reaus) — o que resultou em 1,48 bilhão de reais, número que foi dividido novamente pela população brasileira estimada pelo IBGE (201 milhões de pessoas). O resultado foi de 7,6 litros por pessoa.

Mas isso significa que o brasileiro literalmente bebe 7,36 litros de agrotóxico por ano? Não. Parte dos pesticidas são utilizados em plantações que não dão origem a alimento, como algodão, eucalipto ou soja. Além disso, boa parte da produção é exportada. E, segundo especialistas, é possível eliminar os agrotóxicos que ficam na parte de fora de alguns alimentos, embora seja impossível eliminar os que penetram dentro dos legumes.

Segundo a Abrasco, o objetivo do número é ter um indicador de aproximação do tema, com caráter pedagógico. “Ninguém literalmente bebe 7 litros de agrotóxico, porque se bebesse morreria. Trata-se de um número de aproximação, assim como o PIB, que não é demonizado. Nosso indicador tem objetivo pedagógico”, explica Fernando Carneiro, membro do Grupo Temático de Saúde e Ambiente da Abrasco.

“Evidentemente, quando calculamos o PIB per capita brasileiro e o comparamos com o de outros países, sabemos que a renda de todo brasileiro não é igual. Há grande desigualdade. Mas o PIB é um indicador de aproximação, assim como o nosso”, relata o especialista.

O que diz a indústria?

Multinacionais produtoras de agrotóxico negam que o Brasil mereça o título de maior consumidor de pesticidas do planeta. Em entrevista concedida em 2018 para a agência de notícias Deutsche Welle Brasil, a DW, o presidente da Bayer no Brasil, Theo van der Loo, explicou o motivo. “O uso dessas substâncias no Brasil é muito alto porque o Brasil é um grande produtor. Além de o país ser grande, tem duas safras por ano, às vezes até três. Na Europa e nos EUA é apenas uma safra por ano. Por hectare, de longe o Brasil não é o país que mais usa agroquímico”, disse o executivo paulista de 63 anos, no comando da empresa desde 2011.

A Syngenta tem posicionamento semelhante. Pelo Youtube, a empresa publica uma série de vídeos na qual afirma “desmistificar e esclarecer temas ligados à agricultura no Brasil”. Em um dos vídeos, a companhia diz que a afirmação do Brasil ser o maior consumidor de agrotóxico é verdadeira, “mas vem um pouco distorcida”. “No Brasil o clima quente e úmido possibilita a produção de até duas safras e meia por ano. O que é ótimo, mas contribui para o aumento do consumo de defensivos. Pois são mais safras anuais em um clima que favorece o desenvolvimento de pragas e doenças”, diz Gustavo Costa, engenheiro agrônomo da Syngenta, durante o vídeo.

A assessoria de imprensa da Syngenta diz que a imagem do Brasil como maior consumidor do mundo é “falsa”. “Essa informação é irrelevante se não compararmos os dados normalizados, ou seja, se não correlacionarmos a utilização de defensivos por área ou por produção”.

O uso de agrotóxicos continua subindo?

Desde 2013, nenhum outro estudo de tanta reputação foi realizado comparando os gastos mundiais de agrotóxico. Porém, desde então, dados nacionais mostram que a venda de agrotóxicos no Brasil cresceu quase todos os anos.

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) publica desde 2000 boletins anuais de comercialização de agrotóxicos no Brasil. Em 2013, foram 495.700 toneladas de pesticidas vendidos, enquanto em 2017 o número chegou a 539.900 toneladas. O recorde foi registrado em 2016, com 541.800 toneladas vendidas.

Os valores de 2018 ainda não foram divulgados. Mas a expectativa é que os números tenham aumento e sigam crescendo neste ano.

Afinal, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxico do mundo?

Isso porque o segmento de insumos foi o único do PIB do agronegócio brasileiro a apresentar alta no primeiro bimestre deste ano, mantendo a tendência observada em 2018. Segundo cálculo do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, em parceria com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o setor de insumos teve aumento de 2,35% em relação ao mesmo período do ano passado. Fazem parte dele os setores de fertilizantes e corretivos de solo, agrotóxicos, máquinas agrícolas, rações e de medicamentos para animais.

Apenas a produção de agrotóxicos aumentou em 34,10% na comparação com o ano passado, segundo o estudo.

*Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto.

 


El País: STF mantém Lula preso e adia análise de suspeitas sobre Sérgio Moro

Maioria dos ministros da segunda turma do Supremo rejeita proposta de Gilmar Mendes de colocar o ex-presidente em liberdade até que se vote suspeição do ex-juiz da Lava Jato

Luiz Inácio Lula da Silva seguirá preso. Após quase cinco horas, acabou nesta terça-feira a sessão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) para analisar dois habeas corpus pedidos pelo ex-presidente. A maioria dos cinco magistrados resolveram negar um primeiro pedido de liberdade do petista (por 4 votos x 1) e adiar a análise do segundo e mais esperado pedido, o que argumenta que o então juiz Sérgio Moro agiu de forma parcial ao julgar Lula. Uma proposta feita pelo ministro Gilmar Mendes de libertar temporariamente o ex-presidente até que fosse avaliado o mérito sobre Moro acabou derrotada, por 3 x 2, com o voto decisivo contrário do decano da Corte, Celso de Mello.

Mendes foi o protagonista da jornada. Responsável por deixar o caso de Lula sete meses parado no Supremo Tribunal Federal —ele havia pedido vistas (mais tempo para analisar) o habeas corpus relativo a Moro—, o magistrado tentou, ao que parece, amenizar as críticas que vinha sofrendo por deixar o processo sem andamento. Após os vazamentos do site The Intercept Brasil envolvendo o ex-juiz Sergio Moro e os procurados da Operação Lava Jato, decidiu liberá-lo para julgamento, bem na véspera do recesso Judiciário. Um dia antes da data marcada, Mendes chegou a retirar o tema da pauta e nesta terça, após pedido da defesa de Lula, pôs a questão em análise, mas não o mérito.

O ministro estava diante de uma encruzilhada. É um contumaz crítico da Lava Jato, assim como do PT. Tinha de escolher de que lado estaria agora, da operação ou de Lula. Decidiu pelo meio do caminho: proporia adiar o julgamento do mérito e defenderia a libertação temporária do ex-presidente. Na sessão, Gilmar Mendes afirmou que tinha seu voto com relação ao mérito do processo preparado para ser apresentado. Não o fez porque alegou que não teria tempo hábil, eram 44 páginas para serem lidas e, depois dele, ainda votariam outros dois colegas. Ao mesmo tempo, ele defendeu o adiamento: argumentou que poderiam surgir "fatos novos" relacionados à crise do The Intercept. Disse até que a própria procuradora-geral, Raquel Dodge, manifestou "dúvida" a respeito da atuação de Sérgio Moro.

O papel de Celso de Mello e os próximos passos do 'The Intercept'

A jogada de Mendes, porém, não vingou. Apenas o ministro Ricardo Lewandovski o acompanhou em sua avaliação. Edson Fachin e Cármen Lúcia foram contrários e Celso de Mello selaria o destino contra a liberdade do petista, dizendo discordar da liminar de Mendes que ignoraria condenações de Lula em outras instâncias. Celso fez questão de frisar que não estava votando o mérito do caso, apesar de já ter o voto pronto, o que levantou especulações (ou esperanças no caso da defesa de Lula) de que ele poderia julgar diferente —e pró-Lula— caso o Supremo julgasse o mérito do caso. O principal motivo era um voto anterior de Celso de Mello, de 2013, quando ele considerou o Sergio Moro parcial no caso Banestado. Seja como for, o decano, ao contrário de Mendes e Lewandovski, levantou dúvidas sobre o material do The Intercept, dizendo que ainda não havia provas de que as mensagens não foram adulteradas.

Ainda não há data para a retomada do caso relativo a Moro. De todo modo, isso só ocorrerá após o fim do recesso do Judiciário. Entre os dias 2 e 31 de julho os ministros do STF estarão em férias. Já o site The Intercept e agora também a Folha prometem seguir publicando mais reportagens com base nas mensagens trocadas pelo procurador Dallagnol e por Moro. Seguirá também em curso também o inquérito da Polícia Federal que investiga a suposta invasão dos celulares das autoridades por hackers.

Antes de julgar o caso de Moro, a Segunda Turma julgou o HC que contrariava uma decisão unilateral do ministro Felix Fischer, do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Os advogados diziam que o direito de defesa foi restringido. Neste caso, o placar acabou 4 a 1 contra o ex-presidente. Só Ricardo Lewandovski foi a favor do petista.


El País: “O controle da pauta é o que há de mais autoritário no Supremo”, diz Mauricio Dieter

Criminalista Mauricio Dieter comenta as idas e vindas em torno da análise do 'habeas corpus' de Lula, prevista originalmente para esta terça, em meio às revelações de 'The Intercept'. Defesa de petista insiste na retomada do julgamento

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal adiou o julgamento de um pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que estava previsto para esta terça-feira, 25 de junho. Seria a primeira vez que ministros da Corte analisariam o pedido de Lula em meio à crise provocada pela publicação, pelo The Intercept, de mensagens trocadas entre o então juiz Sérgio Moro e os acusadores do petista. A defesa do ex-presidente, preso há mais de um ano em Curitiba condenado por corrupção, havia pedido expressamente que os diálogos fossem incluídos para reforçar seus argumentos de que Moro havia sido parcial e que, por isso, seu julgamento deveria ser anulado.

A decisão de adiar a análise do caso de Lula foi de Gilmar Mendes, o ministro do Supremo que havia meses atrás pedido vistas do processo, ou seja, pediu mais tempo para analisar o que, na prática, lhe dava poder para decidir quando o julgamento seria retomado. Mendes havia recolocado o tema em pauta há duas semanas, já após a eclosão do escândalo do The Intercept, mas nesta segunda voltou atrás. No final do dia, a ministra Cármen Lúcia, presidenta da Segunda Turma a partir desta terça, divulgou nota para rechaçar a informação de que teria partido dela o adiamento ou mesmo a previsão de que o caso ficaria em último na pauta desta terça, numa guerra de versões reveladora da tensão no tribunal a respeito. A defesa do petista reforçou a cobrança para que o caso seja julgado nesta terça, e, de acordo com as algumas interpretações, a magistrada, com sua prerrogativa de presidenta do colegiado, poderia retomar o caso ainda na sessão nesta tarde.

A incerteza e as idas e vindas em torno do tema são emblemáticas daquilo que Mauricio Dieter, professor de Criminologia e Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), chama de "autoritarismo" na pauta do Supremo. Na entrevista abaixo, ele comenta o caso e o impacto do escândalo envolvendo Moro para o futuro da Operação Lava Jato.

Pergunta. Ao que tudo indica a Segunda Turma vai adiar para o segundo semestre o julgamento do habeas corpus do ex-presidente. Como enxerga? O que está por trás? Querem ganhar tempo?
Resposta. O controle da pauta no STF é o que há de mais autoritário na Corte. Autoritário exatamente no sentido de discricionariedade sem limite. Isso mostra, entre outras coisas, a enorme distância que existe entre os ministros, incapazes de definirem uma agenda consensual para os julgamentos mais importantes do país, subordinando esses assuntos a critérios pessoais, de mera conveniência. É o tipo de disputa de micropoder local, que alguém nunca esperaria em uma Corte que, em tese, deveria ser formada por pessoas com notório saber e reputação ilibada. A pior manifestação do STF nesses casos é o silêncio provocado pelo adiamento, a renúncia em julgar diz muito sobre o lugar que, infelizmente, o STF ocupa hoje. Quanto aos motivos, só resta a especulação. E o que vem à mente não é bom, não dignifica a Corte, porque a única razão para esse adiamento parece ser o receio de não ter as próprias decisões respeitadas.

P. O que se deve esperar do Supremo diante das revelações feitas pelo The Intercept Brasil?

R. Do ponto de vista técnico-jurídico, os processos julgados por juiz que está em conluio com os acusadores são absolutamente nulos. Não há a menor dúvida quanto a isso, conforme as mais elementares lições de direito constitucional, penal e processual penal. Qualquer calouro em direito sabe disso. Entretanto, em matéria penal, o STF se comporta hoje muito mais como um tribunal político; logo, não é coerente tentar antecipar as decisões sob a lógica jurídica, mas dos interesses políticos em disputa.

P. Nesse sentido, é possível antecipar os votos dos ministros da Segunda Turma?

R. O que temos por enquanto são os votos dos ministros Luiz Edson Fachin e Cármen Lucia contrários à concessão do habeas corpus. Mas eles podem voltar atrás e alterar o voto, até porque o contexto era completamente diferente, não havia evidência da inaceitável articulação entre acusação e juiz. Mesmo assim, parece difícil que o ministro Fachin volte atrás, pois ele já deu uma declaração pública de que a Lava Jato é sólida, insuscetível de retrocesso. Por outro lado, nas novas conversas que vieram a público, o ministro Teori Zavascki foi tratado de modo claramente depreciativo; pode ser que a lembrança do ministro, de sua seriedade e honradez na Corte e dos excessos da operação que criticou à época, possam motivar a revisão dos votos já proferidos. Nós não sabemos como essas emoções podem influir decisões na prática, mas certamente elas estarão presentes.

De qualquer forma, o ministro Ricardo Lewandowski deve seguir suas posições, as quais entendo corretas do ponto de vista técnico, e votar a favor. Assim como o ministro Gilmar Mendes, até porque ele tem sido uma das principais vozes contra o absurdo que se pretende normalizar na Lava Jato, inclusive comparando a força-tarefa às ações de gângsters no plenário da Corte. Já em relação ao ministro Celso de Mello, é muito difícil tentar antever sua decisão: por um lado ele frequentemente endossou decisões da operação, algumas não pouco controversas; por outro, sempre foi um exemplo de retidão quando historicamente convocado pelas circunstâncias. Enfim, acho que teremos um 3 a 2, com tendência para soltar.

P. É comum um tribunal determinar a suspeição de um juiz e anular um processo?

"O fato de Moro dizer que é normal esse tipo de relação com procuradores já mostra que ele era um juiz parcial"

R. O corporativismo do judiciário é muito forte, à semelhança da maioria das instituições tradicionais. No Brasil só existe suspeição se o próprio juiz do caso reconhecer. Senão, esqueça. Além das hipóteses previstas na lei, você percebe a parcialidade quando um juiz está continuamente indeferindo suas perguntas, negando seus pedidos durante a instrução, tudo isso enquanto mantém uma atitude generosa com a acusação... E a partir disso as defesas que se sentem prejudicadas por uma atitude aparentemente enviesada apresentam um recurso chamado Exceção de Suspeição. Mas como advogado nunca vi uma Exceção de Suspeição ser reconhecida, e só vi apenas um habeas corpus julgado procedente e anulado o processo por atuação parcial do magistrado.

Mas neste caso é diferente. A evidência é muita e muito forte. Se o Supremo não anular, estaria negando explicitamente o que está escrito na Constituição e no Código de Processo Penal. Em que momentos da História se viu e comprovou um caso tão óbvio de parcialidade, no qual o juiz de fato dá conselhos à acusação para otimizar seu trabalho? A evidência está toda ali. Não se trata, ao menos de início, de anular toda a Lava Jato de uma só vez, já que isso envolve outros atores. Em princípio você só poderia anular os processos que tiverem relação com as conversas publicadas — embora, se o país fosse mais comprometido com os valores republicanos, toda a atuação do então juiz Moro nesse período e com esses procuradores teria que ser anulada. E ser anulado, aqui, significa que teria de ser refeito, dessa vez conforme a lei e a Constituição.

P. Moro e seus apoiadores argumentam que a condenação de Lula foi referendada por tribunais superiores, e que por isso não deve haver nulidade.

R. A convalidação posterior não transforma os erros do processo em acertos. Desde o início havia um vício oculto — nesse caso nem tão oculto assim, como provam as alegações de inúmeros professores e advogados à época. Quando se descobre esse vício, como aconteceu agora, não importa em que fase o processo está. Mesmo tendo transitado em julgado, não importa. Ao Direito interessa mais a lisura do processo do que acertar o caso, no sentido de descobrir o que realmente aconteceu, se o que aconteceu é crime e se o acusado é culpado. Porque se não for assim, os fins justificam os meios. Voltamos a um utilitarismo rasteiro que prescinde de controle legal. O Processo Penal é, de certa forma, a disciplina de si mesmo, isto é, existe processo para garantir que se respeitem as regras do processo. Para o Direito, tanto os fins como os meios têm que ser legítimos. E se os meios são ilegítimos, a convalidação posterior dos fins pouco importa. Isso é elementar.

P. O que se tem até agora são as mensagens divulgadas pelo The Intercept, pela Folha de S. Paulo e pelo jornalista Reinaldo Azevedo em seu programa na rádio Bandnews FM. Se for comprovado que elas foram interceptadas ilegalmente isso pode afetar o entendimento do Supremo?

R. Provas ilícitas não podem ser utilizadas para incriminar alguém, mas podem ser utilizadas, e devem ser utilizadas, se determinarem a absolvição do acusado. Se você consegue provar por meio de um hacker que na noite de um estupro você não estava no mesmo lugar que a vítima, você pode até ser processado pela violação do sigilo necessária para tanto, mas você tem que ser inocentado pela Justiça. Entre outros motivos porque a Constituição assegura ampla defesa, não ampla acusação. Isso significa que você pode se defender por todos os meios, inclusive meios que são proibidos ao acusador. Ao usar meios ilícitos para isso, evidentemente, você pode eventualmente ser julgado por isso. Mas não é o caso de Lula, por exemplo, que não foi o responsável por interceptar as mensagens nem por divulgá-las.

Além disso, a imprensa tem sigilo de fonte, então pouco importa para Lula como o Intercept obteve as mensagens. E pouco importa para o Intercept qual é a legalidade disso. Quando a imprensa divulga essas mensagens como notícias, ela cria um fato que autoriza uma investigação contra Moro, Deltan e todos os demais citados. Essa investigação futura não parte do hackeamento, se é que houve, mas sim da notícia do Intercept. Assim operava, aliás, a própria Lava Jato: a partir de notícias, algumas das quais plantadas, que pudessem justificar a abertura de um inquérito ou de um procedimento de investigação.

"No Direito, tanto os fins como os meios têm que ser legítimos. Se os meios são ilegítimos, a convalidação dos fins pouco importa"

P. Não é preciso então esperar uma investigação para apurar a veracidade das mensagens e o conluio? O conteúdo publicado pela imprensa basta para anular a condenação de Lula?

R. A investigação é irrelevante, em princípio. Exceto se for evidente que se trata de uma fraude e que essas conversas não existiram, Lula tem que ser solto imediatamente. Mas o ministro Moro não nega que o material exista e não consegue negar a veracidade dos diálogos de maneira convincente. Pelo contrário: cada vez mais admite, ainda que sem querer, que o que está lá é fiel aos fatos. Ele só tem apresentado uma defesa escalonada ao dizer que "não são autênticos, se são autênticos não importa, se importa não era ilícito, se são ilícitos não importa porque era em nome do combate a corrupção". É uma estratégia dominó: se uma peça cai, as outras caem, e é o que estamos vendo. O Supremo já tem condições de soltar Lula imediatamente. Porque o erro de manter alguém preso, se essas evidências são verdadeiras, é irreparável, e porque toda presunção deve operar em favor do réu, acusado ou condenado. Além disso, o fato de Moro dizer que é normal esse tipo de relação com procuradores já não é evidência suficiente de que ele foi um juiz parcial? Como assim ele não vê nada demais nas mensagens? Só por dizer isso penso que demonstrou parcialidade declarada. É algo inaceitável para um magistrado ético e técnico ter que ouvir que isso é normal: é o contrário do normal, é a pura violação de seu dever.

P. Apesar de as mensagens indicarem parcialidade, as provas contra Lula se sustentam?

R. Lula foi basicamente condenado por uma delação que nem sequer apareceu como delação no processo. Apareceu como colaboração informal de um corréu. O então juiz Moro violou quase todos os princípios processuais para produzir as provas contra o ex-presidente. Porque prova é algo produzido em contraditório, assegurada ampla defesa, perante um juiz imparcial, competente e natural, isto é, definido em lei antes do processo... Mas agora o Brasil inteiro sabe que as alegações da defesa eram reais: que Moro não foi imparcial, que aconselhava ativamente um dos lados e que, segundo o que foi revelado pela Folha de S. Paulo, chegou a modular níveis de sigilo para evitar a perda de competência para o STF, repreendendo os agentes da Polícia Federal que não souberam guardar o indevido segredo. Por isso entendo que não, as provas não ficam em pé: foram construídas sobre o lodaçal do desrespeito ao devido processo legal.

P. Enxerga algum saldo positivo da Lava Jato?

R. A Lava Jato conseguiu de fato produzir certa ruptura em um tipo de corrupção consolidada como prática, um esquema de propinas vulgar, escancarado, a ponto de serem pagas em parcelas e de modo caricato. Explicitar isso foi importante, não tenho dúvida, até para podermos pensar em meios legítimos para evitar a reprodução dessas práticas no futuro. Em outro sentido, o saldo político da Lava Jato é horrível. O apelo simplista por mudança e toda essa histeria messiânica trouxe consigo o autoritarismo e o obscurantismo como posição política legítima.

P. Qual legado a Lava Jato deixa para o combate a corrupção? Por estar sendo hoje questionada, isso pode afetar futuramente outros processos?

R. A grande questão é: de que maneira você quer combater a corrupção, dentro ou fora da regra do jogo? Vale tudo? A Lava Jato pode ter ensinado, querendo ou não, que é necessário fazer o jogo dos corruptos para lutar contra a corrupção. Afinal, a alegação era de que o interesse público era contaminado por interesses privados em operações com a Petrobras. Mas o Intercept comprovou que existiam também interesses privados, políticos e ideológicos na Lava Jato, que contaminavam o interesse público na apuração rigorosa e imparcial dos fatos. Qual é a diferença, do ponto de vista moral? É muito difícil enfrentar gente poderosa e corrupta respeitando as regras do jogo. Ok. Mas é só isso que nós temos, ou seremos iguais a eles.

P. O STF vai julgar o próximo habeas corpus de Lula com uma imagem desgastada. Isso é resultado do quê?

R. O que o STF não percebeu é que quanto mais você politiza a Corte, mas você a torna suscetível às flutuações da opinião pública. Se o STF, em matéria penal e processual penal, tivesse seguido a literalidade constitucional, as pessoas poderiam não gostar de determinada decisão, mas elas reconheceriam o lugar de onde essas decisões vieram. Mas quando os ministros afirmam, contra o que diz com todas as letras o texto constitucional, que a pessoa pode sim começar a cumprir a pena antes do trânsito em julgado, que é possível criminalização por analogia em função de omissão legislativa, que condenados estão proibidos de dar entrevista... Qual é o limite? O que queremos é um STF fiel à Constituição, com votos cada vez mais técnicos e menos preocupados com frases de efeito que possam gerar repercussão positiva na TV Justiça. Hoje a classe política não consegue fazer nada sem a anuência do Ministério Público e do Judiciário. Ambos têm que voltar para os seus lugares de origem, para o bem da democracia.

P. O que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) podem fazer com relação a Moro e aos procuradores?

R. O CNJ não pode fazer nada [porque Moro deixou a magistratura]. O CNMP, sim. Ele já está em cima dos procuradores. Mas vai depender muito do que vier. Se é verdade que existem áudios interceptados, quando ouvirmos a voz de certos personagens acho que a ficha vai cair definitivamente, até para os mais incrédulos ou muito radicais.


El País: “Sergio Moro usa a população como escudo para justificar as violações”, diz senador Fabiano Contarato

Ex-delegado e defensor da Lava Jato, senador Fabiano Contarato confrontou ministro no Senado, em embate que condensa os próximos passos da crise. Ministro adia depoimento na Câmara

Sergio Moro teve poucos momentos de desconforto durante a audiência na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) na última quarta-feira. Por quase nove horas, Moro respondeu a alguns questionamentos, concordou com afirmações e agradeceu a outros tantos elogios realizados por parlamentares aliados. Também fugiu com facilidade de seus oponentes mais inflamados. Foram poucas as vezes em que o ex-juiz da Operação Lava Jato foi, de fato, confrontado. Uma delas, foi quando o senador capixaba Fabiano Contarato (Rede-ES) questionou se Moro havia ferido o princípio da isonomia, ao manter, na condição de juiz, conversas e até fazer orientações a procuradores, conforme publicado pelo The Intercept e agora também pela Folha —os implicados dizem que não respondem pelas mensagens porque dizem que elas podem ser sido adulteradas. Pressionar o ministro a responder teve seu preço: o senador está sendo acusado nas redes sociais de ser contra a Lava Jato. Mais, em algumas leituras, ele é apontado como contrário ao combate da corrupção.

Professor de direito, advogado e delegado por mais de 20 anos, o senador capixaba se muniu de argumentos também repetidos por especialistas e por parte do mundo jurídico para embasar seus questionamentos ao ministro da Justiça. "Eu questionei se Moro feriu o princípio da isonomia. Não entro no mérito do conteúdo, mas estou falando de um um juiz que tem como premissa ser imparcial, que tem que manter distância e um tratamento isonômico”, disse o senador, por telefone, ao EL PAÍS. “Agora, estão querendo, como uma forma de blindar o comportamento ético do juiz, jogar para a opinião pública a ideia de que quem faz qualquer crítica ao juiz é contra a Lava Jato”.

A guerra de narrativas no embate, que condensa boa parte dos grande dilemas da crise provocada pelos vazamentos, foi iniciada pelo próprio ministro da Justiça ao responder ao senador, ainda que a primeira frase que Contarato tenha dito na CCJ tenha sido em defesa da Operação Lava Jato. “Não se trata de uma discussão de se é contra e a favor da Lava Jato. Sabemos da importância dessa operação que foi um divisor de águas no Brasil”, afirmou, no Senado. Feita a ressalva, Contarato partiu para suas críticas com argumentos jurídicos. “A declaração universal dos direitos humanos no artigo 10 é clara: [diz] que todo ser humano tem direito a ser julgado por um tribunal independente e imparcial”, afirmou. “O código do processo penal também. Ele fala no artigo 254: o juiz dar-se-á por suspeito se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes. Inciso quarto se tiver aconselhado qualquer uma das partes”, seguiu o senador, para, em seguida, mencionar também o código de ética do direito.

Moro respondeu tratando de levar as acusações contra ele às últimas consequências e vinculando seu destino ao de toda Lava Jato: se seu comportamento havia sido viciado, então a resposta era anular toda a operação? Devolver até o dinheiro dos que confessadamente roubaram a Petrobras? “Pelo que entendi da sua fala, o senhor defende a anulação de tudo então. Todas as condenações, todas as denúncias, devolver o dinheiro para [os ex-diretores da Petrobras] Renato Duque, Paulo Roberto Costa… Eu entendi dessa forma”, disse o ministro.

A estratégia de Sergio Moro, posteriormente utilizada por internautas nas redes sociais para atacar quem questionou o ministro, foi rebatida na sequência por Contarato. “Com todo o respeito, vossa excelência está colocando palavras na minha boca. Em nenhum momento defendo a anulação. O que eu estou questionando é que houve a quebra do princípio a imparcialidade”. Visivelmente incomodado, Moro curvou os ombros para dentro, ficou de lado na cadeira e recuou: “Não sei se compreendi de maneira equivocada suas palavras, mas não houve nenhuma quebra [do princípio da imparcialidade]. É comum a conversa entre juízes, procuradores, policiais e advogados”. O ex-juiz da Lava Jato menciona então textos publicados pela imprensa feitos por outros juristas que defendem como normal esse comportamento. Uma parte do Ministério Público se mostra também pronto a defendê-lo, dizendo que é natural que o juiz de instrução (o que dá as autorizações de cada etapa a investigação, como por exemplo, quebra de sigilo ou operações policiais) tenham contato com os procuradores —ainda que não para dar conselhos ou discutir politicamente o caso.

Ao EL PAÍS, Contarato rejeita a ideia de que haja no meio jurídico essa dualidade. “Se eu te perguntar o que é motivo fútil, para você pode ser uma coisa, para mim, outra”, diz. “Mas a suspeição, o contato direto via telefone ou aplicativo, mantendo contato com o titular da ação penal, sugerindo que os procuradores têm que se preparar, indicando testemunhas? Quem não concordar que houve quebra do princípio da imparcialidade, com todo respeito, tem desconhecimento do Código Penal”. De acordo com ele, o juiz deve estar acessível às diferentes partes do processo de igual modo. “E isso não foi feito. Isso não é dúbio, não é controverso, não tem dúvida”.

Ofensas e dilema no STF sobre a Lava Jato

Eleito com mais de 1 milhão de votos pelo Espírito Santo, Contarato está sem seu primeiro mandato. O senador desbancou o favorito nas pesquisas, o pastor bolsonarista Magno Malta (PR-ES), contrário à união homoafetiva e à criminalização da homofobia. Contarato é o primeiro senador assumidamente gay do Brasil. E ele diz que inclusive sua orientação sexual virou alvo de ataques após a audiência desta semana na CCJ. “Estou sendo ofendido moralmente, tanto no aspecto da minha orientação sexual, quanto das pessoas falando que eu sou contra a Lava Jato, contra o país”.

Por isso, durante a entrevista, o senador reafirmou ser a favor da Lava Jato. “Eu sou a favor da operação, não tenho dúvidas disso. O que eu questiono é se houve quebra do princípio da imparcialidade. Onde fica a imparcialidade disso?”, afirmou. “Temos dois fatos graves: a quebra da invasão de privacidade [do ex-juiz e dos procuradores], que tem que ser apurada, mas não podemos ignorar que houve também a quebra do princípio da isonomia”.

Para ele, os ataques que vem sofrendo são uma maneira de blindar Moro dos questionamentos enquanto juiz da operação. "Ele está utilizando a população como escudo para justificar todas as violações, desde da Declaração Universal dos Direitos Humanos, passando pelo Código de Ética e pelo Código Penal".

O agora ministro da Justiça dá sinais de que buscará ganhar tempo antes de novos embates como com o senador capixaba. Moro pediu para adiar a audiência que a que prometeu comparecer na Câmara dos Deputados, na próxima quarta-feira.

Para além do confronto com o senador, a pergunta de Moro sobre o que será da Lava Jato se ele for punido seguirá como a tônica da semana e, talvez, dos próximos meses, especialmente no STF. Como no duelo com Contarato, o ex-juiz parece querer se proteger citando os riscos de um princípio jurídico que ele cita nas gravações publicadas, o Fiat iustitia, et perat mundus: faça-se se Justiça, ainda que o mundo se acabe. Ou seja, quer argumentar que não vale a pena puni-lo se for para arriscar boa parte do legado da Lava Jato. O debate ganha contornos éticos fortes: para muitos analistas não puni-lo legitima combater a corrupção mesmo com desvios da lei, com consequências graves para o sistema político e jurídico. Há ainda uma terceira via que aventa ser possível anular eventualmente só os processos citados nos vazamentos, se for considerado que Moro agiu de forma ilegal. Seja como for, os números falam por si. Só o ex-juiz de Curitiba foi responsável pela condenação de mais de 140 pessoas, entre eles, seu réu mais célebre, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e qualquer anulação poderia gerar um efeito cascata.

O Supremo Tribunal Federal pode começar a responder tanto a Moro como a Contarato na terça-feira, 25 de junho, para quando está prevista que sua segunda turma julgue um pedido de habeas corpus de Lula. O principal objetivo da defesa é convencer este colegiado da corte que o então juiz da Lava Jato foi parcial, e já anexou aos autos as revelações do The Intercept. A acusação vai sustentar, como Moro, que as mensagens não são provas idôneas.


El País: ‘The Intercept’ e ‘Folha’ publicam novos diálogos de Moro e elevam voltagem da crise e pressão sobre STF

Associação de site e jornal debilita estratégia da defesa de ministro de atacar divulgação de mensagens. Mais uma vez, material mostra ex-juiz como conselheiro e espécie de coordenador da Lava Jato

A crise provocada pelo vazamento de mensagens entre o então juiz Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato parece longe do fim. Neste domingo, Folha de S. Paulo publicou, em parceria com o The Intercept, mais uma reportagem com base em diálogo travado entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol, parte do acervo que o site diz ter recebido de uma fonte anônima. Como nas reportagens anteriores, o agora ministro do Governo Bolsonaro aparece repreendendo e aconselhando Dadllagnol a respeito de passos da investigação, conduta que se choca com a previsão de juiz distanciado das partes no direito brasileiro. Os diálogos, segundo as publicações, acontecem durante um capítulo emblemático da Lava Jato, dias depois do movimento mais controverso e de mais impacto de Moro até então: a divulgação de interceptações telefônicas entre Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff que incendiaram as ruas do país e acelerariam a marcha do impeachment.

Moro e os procuradores têm atacado a publicação dos diálogos, que se deram via aplicativo Telegram, e têm dito que não podem garantir que as mensagens, que segundo eles foram obtidas por hackers, não foram adulteradas. Seja como for, a associação entre The Intercept e Folha, que o jornal anuncia que seguirá nos próximos dias, dá mais voltagem política ao material e debilita a estratégia do ministro de atacar a divulgação e a própria reputação do site progressista.

The Intercept diz que procurou parceiros para análise dado o volume do material e rechaça ainda todas as acusações de que suas reportagens buscam proteger o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Já a Folha, o maior jornal brasileiro, afirma não ter encontrado indícios de que o acervo fornecido pelo site tenha sido adulterado e já havia advertido na semana passada que publicaria o material, mesmo que se provasse que o pacote de mensagens é fruto da invasão dos celulares —há uma investigação da Polícia Federal a respeito. O jornal considera que a divulgação é de interesse público.

Na reportagem deste domingo, as publicações exploram mensagens trocadas entre Moro e Dallagnol a partir de 23 de março de 2016. O então juiz parece preocupado com a repercussão negativa com a divulgação das gravação de Lula e Dilma e todo um pacote de interceptações envolvendo a família do ex-presidente, algumas sem qualquer ligação com as investigações. Havia críticas pelo açodamento de Moro em divulgar os áudios minutos depois de recebê-lo, especialmente por causa do trecho envolvendo Dilma, que como presidenta tinha foro privilegiado, ou seja, fora da alçada de Moro. Outra crítica era o fato de que a captação se dera fora do período legal autorizado. Moro havia sido advertido pelo ministro Teori Zavascki, então relator da Lava Jato do Supremo, e também temia punições no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o que não aconteceu.

Foi neste contexto que ele avaliou que a Lava Jato cometera "uma lambança". A Polícia Federal havia permitido a divulgação de uma lista apreendida em escritórios da Odebrecht que supostamente implicava parlamentares e outros políticos com foro privilegiado em doações ilegais, o que levava o caso para a alçada do Supremo Tribunal Federal. "Não pode cometer esse tipo de erro agora", disse Moro a Dallagnol. O procurador da Lava Jato busca animar Moro e promete apoio: "Faremos tudo o que for necessário para defender você de injustas acusações", escreveu. Em outro momento, Moro critica os "tontos" do MBL (Movimento Brasil Livre), um dos principais movimentos de defesa da Lava Jato e do impeachment de Dilma, por protestarem no condomínio do ministro Zavaski. "Isso não ajuda evidentemente".

Todos os holofotes no STF

A guerra política em torno do caso nos próximos dias deve se dar em duas frentes principais: a política e a jurídica. Na primeira, a oposição tentará manter viva a pressão sobre Moro para coletar assinaturas para uma eventual investigação parlamentar sobre o caso, algo que soa pouco provável à luz das revelações até agora. A segunda e mais importante é o Supremo Tribunal Federal. Uma das duas turmas da corte prevê analisar na próxima terça-feira um pedido da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado por corrupção no âmbito da Lava Jato. Lula reclama que não teve julgamento justo dada a parcialidade que atribui a Moro. A equipe legal do petista já pediu que as revelações do The Intercept sejam incorporadas ao pedido.

Ainda não é certo que haverá julgamento —os ministros do STF, como já fizeram em outras oportunidades, sempre podem lançar mão de instrumentos legais para adiar a análise, apesar do desgaste que o movimento provocaria em parte da opinião pública a essa altura. Na sexta-feira, a procuradora-geral, Raquel Dodge, já se antecipou tentando bloquear a investida da defesa de Lula. Ela destacou que "o material publicado pelo site The Intercept Brasil ainda não havia sido apresentado às autoridades públicas para que sua integridade seja aferida" e disse que ainda está sendo investigado se o vazamento foi criminoso. Em linha com Moro, Dodge diz ainda que não se sabe se as mensagens "foram corrompidas, adulteradas ou se procedem em sua inteireza, dos citados interlocutores".

Adere a

El País: Dodge afirma que há “fundadas dúvidas” sobre mensagens do ‘The Intercept’

Procuradora-geral se manifestou ao Supremo sobre pedido de habeas corpus da defesa de Lula, que menciona as mensagens de Moro e Dallagnol vazadas

"Há fundadas dúvidas jurídicas sobre os fatos nos quais se ampara a alegação de suspeição feita neste pedido de habeas corpus", diz a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em manifestação enviada nesta sexta-feira ao Supremo Tribunal Federal (STF). Dodge se refere às mensagens trocadas entre o então juiz responsável por julgar os casos da Operação Lava Jato em Curitiba, o hoje ministro da Justiça Sergio Moro, e membros da força-tarefa responsável por acusar políticos como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As mensagens vêm sendo publicadas pelo site The Intercept Brasil há quase duas semanas, e a defesa do ex-presidente reforçou com elas sua tentativa de anular a condenação que levou Lula à cadeia no ano passado. O STF agendou para o próximo dia 25, terça-feira, um julgamento sobre a questão.

Em sua manifestação, encaminhada ao relator do pedido de habeas corpus, ministro Edson Fachin, a procuradora-geral destaca que "o material publicado pelo site The Intercept Brasil, a que se refere a petição feita pela defesa do paciente, ainda não foi apresentado às autoridades públicas para que sua integridade seja aferida". Portanto, sua autenticidade ainda não teria sido analisada "e muito menos confirmada". Dodge diz ainda que não se sabe se as mensagens, que sugeriram proximidade entre Moro e procuradores como Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima, "foram corrompidas, adulteradas ou se procedem em sua inteireza, dos citados interlocutores".

A procuradora aproveita ainda para manifestar "preocupação com a circunstância de que as supostas mensagens divulgadas pelo site The Intercept Brasil tenham sido obtidas de maneira criminosa", e lembra que requisitou inquérito policial para investigar a questão. Mencionando o caso em que um suposto hacker teria se apropriado de uma conta de um conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para se passar por ele em grupos de mensagens, a procuradora-geral diz que "é possível que, com o furto e uso de identidade, tais mensagens tenham sido adulteradas ou de alguma forma manipuladas".

A defesa de Lula reagiu à manifestação de Raquel Dodge dizendo, por meio de nota, que a Procuradoria Geral da República "erra ao dizer que HC de Lula é baseado em reportagens do The Intercept". "Referido habeas corpus, que começou a ser julgado pela Suprema Corte em 04/12/2018 — muito antes, portanto, das reportagens do 'The Intercept' — mostra que o ex-juiz Seergio Moro 'sempre revelou interesse na condução do processo e no seu desfecho' a partir de fatos concretos que estão descritos e comprovados naquele requerimento", diz a nota assinada pelos advogados Cristiano Zanin Martins e Valeska Martins.

Segundo eles, o pedido de habeas corpus se baseia em outras alegações, como a autorização para o monitoramento do telefone do escritório dos advogados de Lula, a imposição de condução coercitiva para o ex-presidente depor e a "atuação [de Moro] fora das suas atribuições legais para impedir o cumprimento da ordem de soltura emitida pelo Des. [desembargador] Federal Rogério Favreto". Os defensores alegam que a inclusão das mensagens publicadas pelo The Intercept Brasil remetem à “conjuntura e minúcias das circunstâncias históricas em que ocorreram os fatos comprovados nestes autos". A nota termina com os advogados dizendo que os fatos anteriores às reportagens do The Intercept Brasil "já são mais do que suficientes para evidenciar que o ex-presidente Lula não teve direito e um julgamento justo, imparcial e independente".

Força-tarefa se defende

A força-tarefa da Lava Jato divulgou mais uma nota nesta sexta-feira para repudiar o que chamou de "notícia falsa sobre troca de procuradores em audiência do caso Triplex". Um dia antes, o colunista Reinaldo Azevedo havia dito, a partir de material conseguido em parceria com The Intercept Brasil, que Moro instruiu os procuradores sobre a atuação da procuradora Laura Tessler em uma inquirição e isso fez com que os acusadores mudassem a composição de sua equipe, o que teria auxiliado a equipe de acusadores. "Não houve qualquer alteração na sistemática de acompanhamento de ações penais por parte de membros da força-tarefa", rebatem os procuradores, destacando que a procuradora, cujo desempenho havia sido criticado por Moro via mensagens, participava e seguiu participando da ação que tratava do ex-ministro Antônio Palocci.

"Além de desrespeitosa, mentirosa e sem contexto, a publicação de Reinaldo Azevedo não realizou a devida apuração, que, por meio de simples consulta aos autos públicos acima mencionados, evitaria divulgar movimento fantasioso de troca de procuradores para ofender o trabalho e os integrantes da força-tarefa", diz na nota a força-tarefa, que aproveita para reforçar suas críticas ao "modo tendencioso" com que o site The Intercept Brasil estaria tratando o material que tem revelado. Os procuradores e o hoje ministro Sergio Moro vêm se defendendo das alegações de parcialidade contra Lula desde que as mensagens começaram a ser divulgadas. Na última quarta-feira, Moro esteve no Senado para se explicar sobre o assunto. Ele voltará a enfrentar os parlamentares na próxima quarta-feira, desta vez na Câmara.


El País: Moro encarna político, se esquiva de perguntas e vê ataque “estruturado” contra a Lava Jato

Ex-juiz participou de audiência ao longo de nove horas no Senado na tentativa de evitar a abertura de comissão de investigação para tratar das revelações feitas pelo 'The Intercept'

Em quase nove horas de inquirições, o ministro da Justiça, Sergio Moro, deixou claro quem ele é agora. Não é mais o juiz da Operação Lava Jato. É agora plenamente um político que, ao ser sabatinado por parlamentares, exibe não apenas alguns argumentos como se apresenta como quem tem um gigante boneco inflável, com sua face pintada e vestindo uniforme de super-homem, na frente do Congresso Nacional como símbolo de sua base de apoio. Durante audiência na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, na qual ele compareceu voluntariamente nesta quarta-feira para se defender de vazamentos de diálogos que o envolvem, Moro estabeleceu um mantra que repetiu com disciplina: confrontou opositores do Governo Jair Bolsonaro (PSL) e seus questionadores como potenciais inimigos da luta anticorrupção como um todo, negou conluio com o Ministério Público Federal contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e outros réus e tratou as reportagens publicadas pelo site The Intercept Brasil como textos sensacionalistas que servem a um "grupo criminoso" que busca “obstaculizar” as investigações.

As respostas de Moro foram uma tentativa de evitar a abertura de um processo de investigação contra si no Senado e uma sinalização de que está disposto a conversar com os parlamentares enquanto a crise provocada pelas revelações se desenrola. É provável que, nas próximas semanas, o ministro ainda fale em alguma comissão da Câmara dos Deputados, um terreno menos seguro para os governistas, já que a oposição lá costuma ser mais estridente do que a dos senadores.

Uma das linhas de defesa de Moro foi tratar com desconfiança o The Intercept. O ministro se negou a citar o nome do site ou de Glenn Greenwald, o jornalista que coordena a equipe responsável pelas divulgações. Reclamou até que as reportagens não foram publicadas prontamente e em conjunto. “Eu li uma afirmação de que havia material para divulgar por um ano. Vão ficar por um ano divulgando isso a conta-gotas? Apresente-se a uma autoridade independente, para que seja então verificada toda a verdade, sem sensacionalismo”, cobrou.

"Se houver irregularidade de minha parte, eu saio"

Em todo o tempo da audiência, Moro perdeu o prumo em poucas ocasiões. Uma foi quando o senador Fabiano Contarato (REDE-ES) disse que seus diálogos com Deltan Dallagnol, quando ele aparece dando orientações ao procurador, reclamando da defesa de Lula ou sugerindo fontes de acusação, quebravam o “princípio da isonomia” que um magistrado tem de ter nos processos judiciais, dando o mesmo peso aos acusadores e aos defensores. Em um primeiro momento, Moro disse que o senador capixaba defendia a anulação de todos os atos da Lava Jato, o que em nenhum momento ele disse.

A outra situação foi quando o senador Rogério Carvalho (PT-SE) o questionou sobre um suposto treinamento de mídia que ele teria feito nos últimos dias para se preparar para a audiência e sobre eventuais diálogos que ele teve com o desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a corte responsável por analisar as decisões da 1ª instância. “Não fiz media training nenhum para vir aqui. Eu não preciso fazer media training para vir aqui falar a verdade. Desculpe. Se o senhor tem esses elementos, apresente então. São falsas essas afirmações que o senhor está fazendo”, respondeu irritado.

Na estratégia de defesa, o ministro evitou referendar ou negar o conteúdo das mensagens reveladas pelas reportagens. Repetia que não se lembrava de alguns diálogos (em outros momentos, também disse não se lembrar de outros detalhes perguntados e assim se esquivava de responder) e afirmava que era impossível falar com base nos trechos divulgados que não sabia se eram fidedignos, manipulados ou fraudados pelos "hackers". Ele sugeriu ao site leve as mensagens para a análise do Supremo Tribunal Federal, para que sua legitimidade seja verificada. Quando indagado se se afastaria do cargo para passar por uma investigação, negou-se a fazê-lo e alegou não ter tido nenhuma conduta ilegal. “Se minhas comunicações com quem quer que seja forem divulgadas sem alteração e sem sensacionalismo, minhas correções serão observadas”, disse. E completou: “Não tenho apego ao cargo em si. Se houver irregularidade de minha parte, eu saio.”

Contra a acusação de que atuou em conluio com a acusação —algo que estará em escrutínio do STF que na semana que vem julgará um pedido da defesa de Lula—, tratou de ressaltar os números obtidos pela Operação Lava Jato. Segundo um levantamento apresentado por ele, nos quatro anos em que esteve à frente da operação, foram apresentadas 90 denúncias e emitidas 45 sentenças, sendo que o Ministério Público recorreu de 44 delas. “Se falou muito em conluio. Aqui é um indicativo claro de que não existe conluio nenhum, inclusive divergência”. Afirmou também que absolveu 63 dos 291 acusados. Além de seu mantra, Moro quis destacar em vários momentos as irregularidades descobertas pela Lava Jato. “O que houve foi uma captura da Petrobras, para atender a interesses especiais de agentes públicos e de agentes privados inescrupulosos”, disse.

“Quem com ferro fere, com ferro será ferido”, provocou o opositor, Paulo Rocha (PT-PA), para reclamar do "sensacionalismo" adotado frequentemente pelas operações policiais da Lava Jato. A frase também parecia estar na mente do petistas, que criticavam as declarações do ministro contra a suposta fonte ilegal do The Intercept quando ele mesmo minimizou parâmetros legais ao divulgar em 2015 os diálogos entre a então presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (ambos do PT). Na época, a divulgação resultou em uma série de protestos pelo impeachment dela e na proibição de Lula se tornar ministro da Casa Civil. Moro seria, então, advertido pelo STF por publicizar um diálogo de um presidente da República que não estava em sua alçada e pediria desculpas. Além disso, tecnicamente a gravação aconteceu quando já havia expirado o mandato legal que autorizada os grampos telefônicos. Nesta quarta, ministro afirmou que os dois casos são distintos e não poderiam ser comparados. “Ali [no caso Lula-Dilma] havia uma interceptação autorizada legalmente”, disse o ministro. “Aqui, nós estamos falando de alguma coisa completamente diferente: um ataque de um grupo criminoso organizado, hacker, contra autoridades envolvidas no enfrentamento da corrupção”.


El País: Senado rejeita decreto de armas de Bolsonaro; texto vai para a Câmara

Sem controle do Congresso, Planalto perde de novo. Por 47 votos a 28, senadores aprovaram Projeto de Decreto Legislativo que anula texto do presidente, que agora vai para a Câmara

Em nova derrota para o Governo, o projeto legislativo que derruba o decreto de armas de Jair Bolsonaro foi aprovado nesta terça-feira no Senado por 47 votos a 28. Na semana passada o texto do presidente já havia sido vencido na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado por 15 votos a 9. Agora a matéria vai para a Câmara, onde deve tramitar em comissão e no plenário. Até que seja analisado pelos deputados, o decreto de Bolsonaro segue valendo.

Em maio Bolsonaro flexibilizou as regras para a posse e porte, praticamente enterrando o Estatuto do Desarmamento. O decreto tem sido alvo de críticas desde então. Além de permitir que jornalistas, caminhoneiros e outras categorias profissionais andem armados, o texto tinha uma brecha que permitia o porte de fuzis semiautomáticos com alto poder de fogo. Posteriormente este erro foi corrigido pelo Governo. O decreto também desagradou os parlamentares, que alegaram uma “invasão de competência” do Legislativo, uma vez que matérias semelhantes tramitam no Congresso.

A derrota é mais uma na conta do Planalto, que ainda não conseguiu articular uma base eficiente no Congresso e coleciona reveses em ambas as casas. A reforma da Previdência do ministro Paulo Guedes ainda engatinha, e o projeto anticrime de Moro deve ser pautado apenas no segundo semestre, de acordo com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Antes do início da votação vários senadores disseram ter recebido ameaças anônimos para que votassem favoravelmente ao decreto do Governo. "Falam que a arma defende a democracia, mas com palavras ameaçadoras querem colocar a população contra nós”, afirmou Rose de Freitas (Podemos-ES). "Perguntaram se eu ando em carro blindado", disse a parlamentar.

"Sou um democrata", diz Bolsonaro
Ao falar sobre a derrubada do decreto, Kátia Abreu (PDT-TO) lembrou o episódio ocorrido em 1995 no qual o então deputado Bolsonaro, mesmo portando uma arma, foi assaltado e teve a moto e a pistola roubados. “Isso porque ele era um militar treinado”, disse Abreu. Em defesa do texto de Bolsonaro, Telmário Mota (PROS-RR) afirmou que “o cidadão tem direito à legítima defesa”. Segundo ele, “o desarmamento tirou a segurança das famílias, mas o bandido que compra arma de forma clandestina está bem armado”.

Já prevendo uma possível derrota, o presidente afirmou na manhã desta terça-feira que não deve editar medidas semelhantes ao texto que foi derrubado no Senado. "Sou um democrata", e não um "ditador", disse Bolsonaro. O acesso às armas sempre foi uma plataforma do ex-militar, e se tornou uma de suas principais bandeiras de campanha. Apesar de afirmar que a medida tem apoio da sociedade, a última pesquisa Ibope, divulgada no início do mês, apontou que 73% da população é contrária à flexibilização do acesso às armas.


El País: Acuado, Moro decepciona um país com a Lava Jato sob escrutínio

Revelação de conversas entre o antigo juiz e o promotor da Lava Jato lança graves dúvidas sobre sua imparcialidade

Acuado, Moro decepciona um país com a Lava Jato sob escrutínio Conversas entre Moro e Dallagnol poderiam anular processos, incluindo o da prisão de Lula, segundo juristas
O antigo juiz Sergio Moro, 47 anos, está acostumado a escutar milhares de gargantas gritarem seu nome como um herói em manifestações nas quais passeiam enormes bonecos com seu rosto fantasiados de Super-Homem. Foi uma cena frequente nos grandes protestos de rua para retirar a presidente esquerdista Dilma Rousseff do poder. E se repetiu no final de maio em uma concentração de bolsonaristas em frente ao Congresso, em Brasília. Moro, o juiz que entrou na cruzada para acabar com cinco séculos de impunidade aos poderosos do Brasil, entendeu logo que para realizar semelhante tarefa era essencial ter a opinião pública do seu lado. E a teve durante anos. Mas nessa semana sua carreira sofreu um duro golpe que não o derrubou (por enquanto), mas prejudicou muito sua credibilidade. Agora as dúvidas afloraram também entre os que continuaram defendendo sua imparcialidade quando aceitou ser ministro da Justiça após condenar o ex-presidente Lula a nove anos de cadeia por corrupção e acabando assim com suas pretensões eleitorais.

A origem do escândalo são conversas privadas do à época juiz Moro com o promotor-chefe do caso Lava Jato, Deltan Dallagnol, que o site The Intercept Brasil começou a divulgar na noite de domingo. Desde o primeiro minuto, monopolizou o debate político e o foco informativo. Tomou o lugar até do escândalo que tinha envolvido o Brasil durante os dias anteriores, a denúncia de estupro contra Neymar.

Mensagens no Telegram
As mensagens trocadas no Telegram – uma rede social que se orgulha de ser imune aos piratas informáticos – mostraram ao público a fluida relação entre o juiz e o promotor, as sugestões do primeiro ao segundo sobre estratégias, prazos e pistas e as dúvidas do representante do Ministério Público sobre a solidez de seu caso contra Lula. Outras mensagens mostram os promotores falando sobre como impedir que Lula fosse entrevistado na prisão pela Folha de S. Paulo e o EL PAÍS antes do primeiro turno das eleições, quando era favorito nas pesquisas, porque achavam que isso favoreceria o Partido dos Trabalhadores.

As dúvidas sobre sua imparcialidade são tantas que até o jornal que ele escolheu para dar sua primeira entrevista após o escândalo, o conservador Estadão, pediu em um duro editorial que Moro abandone temporariamente o cargo enquanto sua conduta é investigada. A manchete de capa da Veja é Desmoronando. A revista, que nesses cinco anos cobriu com cuidado as investigações da Lava Jato, acusa Moro de “transpassar inequivocamente a linda da decência e da legalidade”.

O ministro, que coloca em dúvida a veracidade das mensagens e frisa que foram obtidas ilegalmente, se declara tranquilo, afirma que o revelado até agora “não compromete as provas, as acusações e o papel separado do juiz, do promotor, do advogado”, e frisa que trocas de mensagem como as reveladas agora são frequentes no Brasil: “Sei que outros países têm práticas mais restritivas, mas a tradição jurídica brasileira não impede esse contato pessoal”.

São muitos os que discordam dessa opinião, incluindo vários juízes do Supremo Tribunal e importantes acadêmicos. Moro terá que ir ao Senado dar explicações no próximo dia 19.

O político mais popular
O presidente, o ultradireitista Bolsonaro, frisou na sexta-feira que “existem zero possibilidades” de que afaste Moro do cargo após os dois terem sido vistos juntos no Maracanã após o estouro do escândalo como um primeiro gesto de apoio público. Em um Governo com três ministros demitidos em seis meses, marcado pelas discrepâncias internas e prejudicado por inúmeras polêmicas, Moro tem sido até agora um dos ativos indiscutíveis. É o político mais popular do Brasil, ainda que as revelações do The Intercept tenham derrubado sua imagem. Seu apoio caiu 10 pontos até chegar em 50% em um mês de acordo com o Atlas Político. Mas a população ainda tem depositadas enormes esperanças nele para que as leis contra o crime que pretende levar adiante sejam aprovadas e consigam reduzir a violência, que é junto com a economia a prioridade dos brasileiros.

Mas existe a possibilidade real de que isso prejudique suas opções de subir ao próximo posto, o Supremo Tribunal, onde deseja ocupar o cargo que ficará vago em pouco tempo.

Mãos Limpas como modelo
Desde jovem dava indícios do que seria. Amigos e colegas de apartamento de seus anos universitários contaram que à época já tinha um arraigado senso de justiça. Frequentemente menciona os juízes italianos da operação Mãos Limpas como seu modelo. “É inegável que constituiu uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa que transformou a Itália em uma democracia vendida”, escreveu em 2004 em um longo artigo acadêmico o juiz e professor de Direito penal. Essa cruzada projetou Silvio Berlusconi, o primeiro líder fruto da antipolítica populista que tantas vitórias eleitorais conquistou nos dias de hoje.

Descendente de imigrantes italianos, Moro nasceu em Maringá, no Paraná, em 1972, é casado com uma advogada que na campanha mostrou no Facebook sua preferência por Bolsonaro. Seu marido foi a grande aquisição do antigo militar que baseou sua campanha em atacar o PT. Lembrado por seus colegas por ser muito estudioso, entrou na magistratura aos 24 anos após se especializar em crimes financeiros e corrupção. Nos anos seguintes participou de um curso da faculdade de Direito de Harvard e em uma viagem pelos Estados Unidos dedicada à lavagem de dinheiro organizada pelo Departamento de Estado para jovens líderes estrangeiros. Fala um bom inglês.

Moro é um personagem crucial no terremoto que abalou a política brasileira durante os últimos cinco anos pela investigação da Lava Jato. Participou do primeiro grande caso em que os brasileiros viram como seus juízes prendiam seus políticos corruptos por mais poderosos que fossem. O atual ministro foi ajudante de uma das juízas do Mensalão sobre o sistema de compra de votos organizado pelo PT que explodiu em 2005. Isso quebrou um tabu, mas ninguém poderia imaginar à época que os pagamentos de propinas milionárias da Petrobras em troca de obras significariam condenações de 160 políticos e empresários brasileiros que somam mais de 2.000 anos, atingiriam praticamente todos os ex-presidentes vivos e estenderiam seus efeitos por toda a América do Sul.

O caso Lava Jato caiu no tribunal de um jovem e discreto magistrado de Curitiba, que de maneira metódica, seguindo o exemplo dos juízes da Mãos Limpas, se outorgou a missão de erradicar a corrupção das classes política e empresarial. Quando recebeu o caso tinha uma sólida formação e empreendeu sentença a sentença a mudança do sistema, da legislação e da prática jurídica para conquistar seu objetivo. Os promotores da Lava Jato receberam muitos elogios, além de críticas, basicamente por utilizar a prisão preventiva como maneira de pressionar os investigados para que colaborassem com a Justiça.

E as suspeitas de que são movidos por interesses políticos têm sido frequentes, principalmente vindas do entorno de Lula, a peça mais preciosa das muitas que a investigação conseguiu. O ex-presidente, seus advogados e seu partido sentem-se contemplados com as últimas revelações e pretendem tentar a anulação do processo judicial. De qualquer forma, o ex-presidente tem uma segunda condenação e é investigado em outros seis casos. Para eles a Lava Jato sempre foi uma perseguição política. O ex-mandatário deixou isso claro em uma entrevista recente ao EL PAÍS e à Folha em Curitiba, onde cumpre sua primeira condenação. “Estou obcecado em desmascarar Sergio Moro e seus amigos”.

A conexão brasileira de Greenwald
A publicação das mensagens dos promotores do caso Lava Jato é exclusividade do The Intercept Brasil, escrita pelo norte-americano Glenn Greenwald e dois jornalistas brasileiros. Afirmam que o revelado até agora é uma parte mínima do material que chegou a eles através de uma fonte anônima. Para o mundo, Greenwald é a pessoa a quem o analista Edward Snowden entregou um dos vazamentos mais poderosos dos últimos anos: os documentos que provavam a espionagem maciça feita pela NSA (a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos).

Mas no Brasil, além de um reputado jornalista, é o marido de David Miranda, deputado do PSOL. E um inimigo dos ultraconservadores revigorados pela vitória de Bolsonaro. Mora no Rio de Janeiro desde 2005. Diante de uma reunião de assinaturas nessa semana para que seja deportado do Brasil, lembrou que investiu sua vida pessoal aqui. Há 14 anos, está casado com David Miranda , que entrou no Congresso Federal após a renúncia de outro parlamentar gay, Jean Wyllys, que abandonou o Brasil por ameaças. Greenwald e Miranda há anos são pais adotivos de dois irmãos. O The Intercept Brasil faz parte do veículo de comunicação homônimo criado pelo fundador do eBay, o filantropo Pierre Omaydar.


El País: Câmara prevê contribuição menor para aposentadoria das mulheres

Nova versão da reforma, apresentada pelo relator à comissão da Câmara, muda proposta do Governo que previa mesmo tempo de contribuição para os dois sexos

Nesta quinta-feira, o relator da reforma da Previdência, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), apresentou à comissão especial da Câmara o seu parecersobre o texto da reforma proposto pelo Governo Jair Bolsonaro. Entre as principais mudanças trazidas no relatório estão a flexibilização de regras para as mulheres, uma nova alternativa de transição, a retirada de mudanças na aposentadoria rural e no Benefício de Prestação Continuada (BPC), além da exclusão da criação de um regime de capitalização. A nova versão da reforma da Previdência reduz a previsão de economia para 913,4 bilhões de reais em dez anos, abaixo da meta da proposta entregue pela equipe econômica de Paulo Guedes, que era de 1,2 trilhão de reais em uma década.

Mulheres contribuirão menos anos que os homens

A fixação de uma idade mínima está no cerne do texto original do Governo pondo fim as aposentadorias apenas por tempo de contribuição —muitas vezes precoces—, que hoje exigem aporte de 30 anos para mulheres e 35 para homens. Pela proposta de Bolsonaro, as mulheres só poderão se aposentar a partir dos 62 anos e os homens a partir dos 65 anos. Os beneficiários de ambos os sexos terão de contribuir por ao menos 20 anos.

O novo texto do relator mantém a idade mínima para aposentadoria dos trabalhadores urbanos, mas defende que o tempo de contribuição suba dos 15 para 20 anos apenas para o trabalhador urbano do sexo masculino. “É notório que o afastamento do mercado de trabalho para cuidado dos filhos ou de algum familiar em situação de dependência ou com deficiência prejudica as mulheres e, portanto, justifica-se este tratamento diferenciado”, explica o relator.

Professoras poderão se aposentar aos 57 anos

Pela regra atual, os professores têm duas regras distintas. No setor privado não há idade mínima, mas se exige o tempo mínimo de contribuição de 25 anos para as mulheres e de 30 para os homens. No setor público, as mulheres se aposentam a partir dos 50 anos e os homens, dos 55. A PEC proposta pelo Governo prevê que para ambos os setores a idade mínima será de 60 anos.

No novo texto do relator a proposta é de que a idade mínima para aposentadoria das mulheres professoras seja de 57 anos e a dos homens de 60 anos, até que sejam definidos novos critérios por meio de lei complementar. A regra vale para professores de educação infantil, ensino fundamental e médio.

Regime de capitalização fica de fora

Em relação a criação de um regime de capitalização proposto pelo Governo Bolsonaro, no qual cada trabalhador contribui para sua futura aposentadoria, o parecer do relator considera que o modelo não é o mais adequado para um país cujos trabalhadores têm baixos rendimentos, além de ter elevado custo de transição. Por isso, o relatório retira do texto a possibilidade de uma lei complementar que deveria instituir esse novo regime.

BPC não terá regras alteradas

Desde que o Governo apresentou o projeto da reforma, alterando regras do Benefício de Prestação Continuada (BPC), houve um consenso entre a oposição e os deputados do centrão de que as mudanças não deveriam ser mantidas,porque atingiriam a população mais pobre do país. Hoje, o benefício é um pagamento assistencial de um salário mínimo para idosos a partir dos 65 anos ou para deficientes físicos que tenham renda inferior a um quarto do salário mínimo. Na proposta do Governo, esses beneficiário passariam a receber 400 reais a partir dos 60 anos, e um salário mínimo a partir dos 70 anos. Nesta quinta-feira, o parecer confirmou a exclusão de qualquer alteração no BPC.

Aposentadoria rural só muda para os homens

O Governo previa economizar 92,4 bilhões de reais em dez anos com as alterações sugeridas na aposentadoria para os trabalhadores rurais. Pelas regras atuais, o homem pode se aposentar aos 60 anos e as mulheres aos 55. Segundo o texto de Bolsonaro, a idade seria mantida em 60 anos para os homens e de 55 anos para as mulheres. No caso delas, contudo, haveria um aumento progressivo até 2030, quando passariam a poder se aposentar somente a partir dos 60 anos. Além disso, ambos teriam de contribuir por ao menos 15 anos, também com aumentos progressivos, quando em 2030 esse período de contribuição deveria atingir os 20 anos.

A nova versão do texto apresentada pelo relator estipula, no entanto, que a idade mínima para a aposentadoria das mulheres continue sendo de 55 anos com 15 anos de contribuição e que apenas os homens elevem o tempo de contribuição de 15 para 20 anos. A reforma queria que esse valor passasse pra um salário

Abono salarial para quem recebe até 1.364 reais

O abono salarial passará a ser pago para quem recebe até 1.364,43 reais, segundo o parecer do relator Samuel Moreira. Anualmente, trabalhadores que recebem até dois salários mínimos têm direito a receber um abono equivalente ao salário mínimo vigente (em 2019 é 998 reais). A reforma do Governo previa que esse abono só seria válido para quem recebesse até um salário mínimo mensal. Caso a nova regra do texto original da reforma fosse aprovada, 23,4 milhões de trabalhadores seriam afetados.

Reajuste dos benefícios pela inflação

A proposta original do texto da reforma da Previdência excluía o trecho da Constituição que garantia o reajuste dos benefícios pela inflação. Na nova versão do texto, a garantia do reajuste retorna à proposta.

Pensão por morte

Quanto à pensão por morte, o parecer do relator manteve a proposta do Governo de diminuir o valor do benefício  —que hoje é de 100% para segurados do INSS. Tanto para trabalhadores do setor público como do privado, a proposta do Governo é reduzir o benefício para 60% do valor mais 10% por dependente adicional. O parecer garantiu, contudo, um benefício de pelo menos um salário mínimo para os beneficiários que não têm outra fonte de renda. O relator alterou ainda o trecho que retirava o benefício de dependentes com deficiência grave, equivalente a 100% da aposentadoria.  "Certamente, o custo de vida da pessoa com deficiência é bem superior ao das demais pessoas, especialmente na ausência de familiares que possam prover cuidados necessários para o exercício de atividades da vida diária, que possibilitem sua participação na vida comunitária.", esclarece o parecer.

Estados e municípios ficam de fora

A proposta do Governo esperava incluir os servidores dos Estados e Municípios. Para a União, essa inclusão seria uma medida mais política do que econômica, já que não impacta nos cofres federais. Parlamentares não querem arcar com o desgaste de aprovar mudanças nas regras de aposentadorias de funcionários públicos estaduais e municipais.O relator ressaltou que os legislativos de cada ente federativo terão de aprovar regras próprias por meio de lei complementar, mas que não desistiu da inclusão das unidades da federação.

Nova regra de transição

O relator acrescentou uma nova regra de transição (além das outras três propostas pelo Governo, conforme explicado abaixo), que vale tanto para o regime geral de Previdência quanto para o regime próprio, dos servidores públicos. Pela alternativa, os trabalhadores que já contribuem hoje poderão se aposentar com 57 anos, no caso das mulheres, e com 60 anos, no caso dos homens, e precisam ter 30 e 35 anos de contribuição, respectivamente. Além disso, terão que pagar um pedágio de 100% do tempo que ainda falta para se aposentarem. Isso significa que essas pessoas teriam que trabalhar o dobro do tempo que faltaria para se aposentar pelas regras atuais. Um trabalhador homem que já tiver idade mínima e 33 anos de contribuição quando a PEC entrar em vigor terá que, por exemplo, trabalhar os dois que faltam para completar os 35, mais dois de pedágio.

Ele concordou, no entanto, que as outras três regras sejam contempladas na reformas. São elas:

- Transição 1 - tempo de contribuição + idade

A regra é semelhante à atual, estabelecida na fórmula 86/96: o trabalhador deverá alcançar uma pontuação que resulta da soma de sua idade somada ao tempo de contribuição. A fórmula tem esse nome porque hoje, para homens, essa pontuação é de 96 pontos, e, para mulheres, de 86 pontos, respeitando o mínimo de 35 anos de contribuição para homens e 30 para mulheres. A transição prevê um aumento de 1 ponto a cada ano, chegando aos 105 pontos para homens em 2028, e aos 100 pontos para mulheres em 2033.

- Transição 2 – tempo de contribuição + idade mínima

Estipula, desde já, a exigência de uma idade mínima para aposentadoria. Começa com 56/61 (mulheres/homens), em 2019, e aumenta seis meses a cada ano, até chegar aos 62/65, em 2031. É preciso ter completado o tempo mínimo de contribuição de 30/35 anos

- Transição 3 – pedágio

Quem estiver a dois anos de completar o tempo mínimo de contribuição, de 35 anos para homens e 30 para mulheres, pode pedir a aposentadoria nas regras atuais, mas precisa pagar pedágio de 50% sobre o tempo que falta para completar essa exigência. Quem estiver a um ano dos 30/35 de contribuição, por exemplo, precisará ficar outros seis meses além do um ano que falta, mas não precisa cumprir idade mínima. Incide o fator previdenciário, um cálculo que leva em conta a expectativa de sobrevida do segurado medida pelo IBGE. Quanto maior a expectativa, que vem aumentando a cada ano, maior a redução do benefício.

-Regra de transição para o setor público

Para os servidores públicos, a transição é feita por meio de uma pontuação que soma o tempo de contribuição com a idade mínima, começando em 86 pontos para mulheres e 96 pontos para homens. A nova regra prevê aumento de 1 ponto por ano, ao longo de 14 anos para mulheres e de nove anos para homens. O período de transição termina quando a pontuação alcançar 100 pontos para as mulheres, em 2033, e 105 para homens em 2028.