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El País: Bolsonaro emula Trump, escala retórica pela polarização e colhe críticas

Presidente volta a apostar no negacionismo histórico sobre a ditadura e questiona Comissão Nacional da Verdade. Aliado de campanha, governador de São Paulo marca distância

saudosismo pela ditadura é uma constante na longa carreira política do ultradireitista Jair Bolsonaro, mas ele agora é presidente do Brasil. O mandatário questionou abertamente nesta terça-feira a Comissão Nacional da Verdade que documentou as violações de direitos humanos especialmente entre 1964 e 1985. Ele estava sendo perguntado por jornalistas sobre comentários agressivos que fizera na véspera com relação a um militante – pai do atual presidente da OAB ( Ordem dos Advogados do Brasil) – que desapareceu nas mãos dos militares, na década de 1970. Foi então que provocou um jornalista: “Você acredita na Comissão da Verdade? Foram sete pessoas nomeadas pela Dilma”. A presidenta Dilma Rousseff – presa e torturada por pertencer à luta armada contra a ditadura – criou o órgão que estabeleceu a verdade oficial sobre aquele período.

O militar reformado é o representante mais poderoso de um movimento de negacionismo histórico cada vez mais visível. Há alguns meses, ele estimulou os militares da ativa a comemorarem o golpe de Estado de 1964. As últimas declarações têm sua origem em umas palavras que pronunciou na segunda-feira. Bolsonaro afirmou na ocasião que “poderia contar a verdade” sobre o destino do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, que desapareceu após ser detido por agentes durante o regime militar. Entre as personalidades e instituições que questionaram sua atitude destaca-se a Procuradoria dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal, que recordou que “o chefe do Estado não pode manter em sigilo informações sobre o paradeiro de um desaparecido político”. “Essa responsabilidade adquire ainda maior relevância no caso de Fernando Santa Cruz, pois o presidente afirma ter informações sobre um crime internacional que o direito considera em andamento”, segue a nota, citando o desaparecimento.

Com as declarações, Bolsonaro recupera agora o tom que o tornou conhecido. Um tom que tinha suavizado ligeiramente desde que assumiu o poder. No momento, parece em uma corrida para imitar seu homólogo norte-americano, Donald Trump, que transformou o insulto racista em uma estratégia de sua campanha para a reeleição. Nesta terça-feira, aliás, o republicano elogiou Bolsonaro chamando-o de “um grande cavalheiro”, com quem pretende “trabalhar em um acordo de livre comércio”. Trump elogiou ainda a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro como embaixador nos EUA.

A escalada retórica de Bolsonaro dos últimos dias — o questionamento à Comissão da Verdade é apenas o último dos comentários ofensivos, ameaçadores, enganosos ou simplesmente falsos feitos  sobre assuntos diversos— acontece justamente depois de uma série de críticas, até mesmo entre seu seguidores mais fiéis nas redes, à indicação de seu filho deputado para o posto de Washington. A nomeação ainda depende de uma votação do Senado brasileiro que pode ser tornar um termômetro do mau humor até de aliados diante da metralhadora verbal do Planalto. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que se apressou em marcar distância dos moderados de seu partido de centro-direita e se aproximou de Bolsonaro na campanha eleitoral, fez questão de dizer que a declaração sobre Santa Cruz era "inaceitável".

Só na última quinzena, Bolsonaro mentiu ao acusar a jornalista Miriam Leitão, da Globo, de ter inventado que foi torturada – sendo que de fato foi, quando estava grávida – e insultou os governadores do Nordeste, descrevendo-os genericamente como “governadores de Paraíba”, um termo pejorativo. Também questionou recentemente os dados oficiais sobre desmatamento.

No fim de semana, o presidente sugeriu que o jornalista Glenn Greenwald, cofundador do The Intercept Brasil, o veículo que publicou as mensagens vazadas do ex-juiz Sergio Moro, poderia “pegar uma cana”. Neste último caso, ele recebeu uma crítica indireta inclusive do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, nesta terça-feira. Maia gravou um vídeo pró-Greenwald que foi exibido em um ato no Rio de Janeiro que reuniu militantes e personalidades, como Chico Buarque, em defesa do jornalista do The Intercept. O presidente da Câmara diz nas imagens que Greenwald tem direito ao sigilo de fonte, mesmo se comprovado que o conteúdo a que teve acesso foi fruto de uma ação de um hacker. "Não a favor do Glenn, mas é a favor da nossa liberdade de expressão", disse o deputado.

DEBATE SOBRE A DITADURA PASSA PELO SUPREMO

Nesta terça-feira, Jair Bolsonaro disse que os documentos oficiais da Comissão da Verdade são "balela" e acrescentou que "respeita a Lei da Anistia de 1979", uma norma que libertou milhares de presos políticos, mas eximiu os repressores de serem levados ao banco dos réus. Já há duas decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil faz parte, que obrigam o país a desconsiderar a Lei da Anistia por se tratar de crimes imprescritíveis. Depende do Supremo Tribunal Federal, que reafirmou a lei em 2010 e tem na fila de espera reanálise do caso, a decisão final.

Um dos gestos mais abjetos de sua carreira política foi possivelmente dedicar seu voto no impeachment de Rousseff ao coronel Brilhante Ustra, o torturador da então presidenta. O ódio visceral ao Partido dos Trabalhadores foi um combustível essencial da campanha que o levou a ganhar as eleições.

A Comissão da verdade do Brasil encerrou seus trabalhos há cinco anos com um relatório que ocupa 1.300 páginas, documentando 443 mortos ou desaparecidos, além de apontar 377 responsáveis com nomes e sobrenomes, além dos depoimentos das vítimas. Um dos lugares mais infames da repressão em São Paulo foi transformado em um museu chamado Memorial da Resistência.


El País: Eduardo Bolsonaro, um aspirante a embaixador abençoado por Trump e por seu pai

Presidente afirmou que nome de seu filho deputado, de 35 anos, já foi enviado ao Governo americano, para que ele ocupe a embaixada em Washington. Senado votará a nomeação

Eduardo Bolsonaro, 35 anos, deputado federal (PSL-SP), enlace latino-americano da aliança global nacional-populista e aspirante a embaixador do Brasil em Washington, foi abençoado pelo próprio Donald Trump perante os olhos do mundo. Foi em 19 de março, nos jardins da Casa Branca, durante a primeira visita oficial de seu pai, o presidente Jair Bolsonaro, a capital norte-americana. As perguntas sobre uma possível intervenção militar na Venezuela para derrubar Nicolás Maduro dominavam a entrevista coletiva presidencial quando o norte-americano, o político mais poderoso do mundo, disse com o olhar voltado para o fundo, à sua direita: “Aliás, vejo entre o público o filho do presidente [Bolsonaro]. Pode se levantar, por favor? Você fez um trabalho fantástico”. A adulação, transmitida ao vivo pelos canais locais e internacionais, podia ser uma manobra de distração frente à imprensa, mas o fato é que Bolsonaro filho, que pouco antes tinha tido o privilégio de acompanhar o pai ao Salão Oval —o ministro de Relações Exteriores teve que ficar fora—, recebia um valioso tapinha nas costas de Trump. Um gesto que em política vale ouro.

Essa proximidade com o presidente dos EUA, na opinião de Bolsonaro, é o principal ativo de seu filho para ser o próximo embaixador do Brasil em Washington, posto vago há meses. “Qual é o principal papel de um embaixador? Não é ter uma boa relação com o chefe do Estado de outro país? [Eduardo] cumpre esse requisito? Cumpre. Simples assim”, respondeu o presidente, que não esconde seu desgosto com as críticas, incluídas as de seus eleitores. “Vou nomear, sim. E quem disser que não vai mais votar em mim, lamento”, declarou na semana passada, contestando a acusação de nepotismo. Na sexta, ele afirmou que enviou o nome de seu filho ao Governo americano, uma praxe diplomática. E, neste sábado, voltou a justificar sua escolha, ao explicar que queria se aproximar com os países de "primeiro mundo" para que eles ajudem a explorar o minério de terras indígenas: "Por isso, a minha aproximação com os Estados Unidos. Por isso, eu quero uma pessoa de confiança minha na embaixada dos EUA (...) Vocês acham que eu colocaria um filho meu em um posto de destaque desse para pagar vexame? Quero contato rápido e imediato com o presidente americano", ressaltou.

O apoio dele é essencial, mas não suficiente. A indicação deve ser aprovada também pelo Senado, que não está tão entusiasmado. E a votação é secreta.

O protagonista se apressou em negar que seja um filhinho-de-papai e enumerou seus méritos para dirigir a cobiçada legação: “Presido a comissão de Relações Exteriores da Câmara, tenho vivência, fiz intercâmbio, fritei hambúrguer lá nos Estados Unidos, e melhorei meu inglês”. Nisto também Bolsonaro imita Trump, que nomeou sua filha e seu genro, empresários, como assessores presidenciais, e o segundo como seu enviado para o Oriente Médio.

Eduardo Bolsonaro, o terceiro filho do militar da reserva e de sua primeira mulher, Rogéria Braga, não é um político novato. Em outubro foi eleito para seu segundo mandato na Câmara com a maior votação da história: mais de 1,8 milhão de eleitores de São Paulo escolheram ser representados em Brasília por esse escrivão da Polícia Federal formado em Direito. Para ir a Washington, terá que renunciar à vaga parlamentar e, segundo a Constituição, teria que esperar até 2024 para ser novamente candidato a um cargo eletivo, ou até 2028 se o chefe desta dinastia for reeleito presidente.

Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas e colunista do EL PAÍS Brasil, não duvida de que com Bolsonaro filho o Brasil ganharia acesso a Trump e à Casa Branca, mas adverte que “existem problemas estruturais (na relação bilateral)” que não mudarão. Explica que “o Brasil não pode entregar aos EUA o que estes lhe pedem, que é um maior apoio para resolver a crise da Venezuela e reduzir a influência da China na América Latina. Por exemplo, não vai vetar a Huawei”. O especialista argumenta que, em Washington, Eduardo cumpriria outra função-chave: ser o enlace com a rede de líderes e pensadores de extrema direita —o norte-americano Steve Bannon, o italiano Matteo Salvini, a francesa Marine Le Pen, o húngaro Viktor Orbán… —com vistas à reeleição de Bolsonaro.

Quando em fevereiro Bannon o nomeou representante na América Latina do seu grupo The Movement, Eduardo agradeceu e definiu assim a missão: “Trabalharemos com Bannon para resgatar a soberania das mãos de forças progressistas, globalistas e elitistas, para expandir o nacionalismo razoável”.

O mandatário lançou a proposta, que causou grande surpresa em todos os estamentos e horror entre os diplomatas profissionais, justamente no dia em que o indicado completou 35 anos – exatamente a idade mínima que a lei brasileira estabelece para ser embaixador. O rumor de que em contrapartida Eric Trump viria para a embaixada dos EUA em Brasília, também vaga, foi desmentido por este. Se a nomeação fracassar, “será um gol contra”, nas palavras do especialista Stuenkel.


El País: Moro promete destruir material apreendido por PF com hackers e eleva debate sobre ingerência

Só juiz do caso pode decidir o que fazer com conteúdo, esclarece a polícia. Quatro suspeitos detidos na terça são acusados de hackear a cúpula do poder no Brasil, incluindo Bolsonaro e Rodrigo Maia

Dois dias depois de a Polícia Federal prender quatro suspeitos de hackear a cúpula do poder no Brasil, o ministro da Justiça, Sergio Moro, tomou a iniciativa nesta quinta-feira de telefonar para outras autoridades que, assim como ele, são apontadas como alvo da investida do grupo. Ao presidente do STJ (Supremo Tribunal de Justiça), João Otávio de Noronha, Moro prometeu destruir as supostas mensagens apreendidas com os detidos, conforme revelou uma nota da própria corte. A atribuição sobre o que fazer com o material, no entanto, é do juiz do caso, informaria a Polícia Federal horas depois.

O movimento do ex-magistrado da Operação Lava Jato e a contradição exposta com a PF que ele comanda como ministro da Justiça acendeu de vez o debate sobre os limites da ação de Moro na investigação. Moro fez questão de ligar o grupo preso na terça-feira às publicações do site The Intercept, antes mesmo de os jornais revelarem que um dos suspeitos havia dito aos policiais que teria sido a fonte anônima do veículo. Além de objeto dos supostos criminosos, o ministro também é o protagonista de reportagens do The Intercept, feitas com base em mensagens vazadas, que coloca em xeque a atuação e imparcialidade de Moro como juiz durante Lava Jato. A principal linha de argumentação de defesa do ministro tem sido, justamente, dizer que o conteúdo vazado não deve ser considerado porque é fruto de uma ação de criminosos e pode ter sido adulterado.

Por causa dessa sobreposição de papéis, a conduta de Moro diante das investigações, que começaram a partir de uma denúncia feita por ele de que no dia 4 de junho tentaram invadir seu celular, está sob escrutínio. Para Rafael Mafei, professor de Direito da USP, "não faz bem" para o Ministério da Justiça ter alguém cuja conduta já vinha sendo questionada "por fatos que se relacionam" com a investigação da PF, que por sua vez integra o próprio ministério. Mafei pondera que isso não significa que os policiais federais sejam incapazes ou que seu trabalho não seja íntegro. Ele acredita que a própria permanência de Moro "projeta uma duvida sobre ministério e sobre o resultado das investigações que não é desejável".

Rafael Alcadipani, professor da FGV, lembra que o ministro é uma parte fundamental da polarização política e que sua atuação "já é suspeita desde que aceitou ir para o Governo". A divulgação das mensagens pelo The Intercept fez ainda com que Moro perdesse mais credibilidade. "Óbvio que é inconcebível que alguém esteja invadindo celulares de ministros. O problema é que, dada essa politização, existe potencial para que o caso vire uma usina de boatos e teorias de conspiração. E a permanência de Moro sem dúvida potencializa isso", argumenta ele, que é especialista em organizações policiais.

Bolsonaro, Rodrigo Maia e STF

Em declaração ao jornal Folha de S. Paulo, o ministro Marco Aurélio Mello afirmou que apenas o Judiciário pode autorizar o que fazer com o que foi apreendido e que era preciso ter cuidado para que provas não fossem destruídas. Gilson Dipp, ex-ministro do STJ, afirmou que conduta de Moro era autoritária. "Isso aí é um autoritarismo em nome da proteção de autoridades. O Ministério da Justiça está atuando como investigador, como acusador e como próprio juiz ao mandar destruir provas, se é que isso é verdade. Eu não estou acreditando ainda".

Ao debate sobre a conduta de Moro, soma-se o espanto pela escala do crime atribuído ao quarteto de Araraquara - os acusados de serem hackers detidos são todos naturais da cidade do interior paulista e usaram uma truque simples via aplicativo Telegram. Veio do próprio Ministério da Justiça a informação de que celulares do presidente Jair Bolsonaro haviam sido alvos. O mesmo foi dito sobre os ministros do Supremo Tribunal Federal e dos presidentes da Câmara e do Senado. A divulgação da lista dos alvos e a exploração do tema pela pasta da Justiça causou desconforto. “Num dia eles prendem acusados de hackear as pessoas, e no dia seguinte vazam os nomes de todo mundo que foi vítima. Isso está errado”, reclamou Rodrigo Maia, ao blog BR18, do Estado de São Paulo.

O professor Mafei chama atenção também para o fato de que a PF aparenta estar se centrando apenas na hipótese de hackeamento dos celulares. "Até onde se sabe", explica ele, "a investigação sobre o teor das mensagens está sendo negligenciada". Ele lembra que o Código de Processo Penal determina que todos os fatos e circunstâncias de um crime sejam apurados. "Uma coisa é você hackear, pegar o conteúdo e não adulterá-lo. Outra coisa é você, além de tudo, adulterá-lo, dar publicidade e prejudicar uma pessoa. Essa é uma circunstância relevante do fato que deveria estar sendo apurada, porque poderia configurar outros ilícitos, além daqueles ligados ao hackeamento", argumenta. Desde que o The Intercept começou a publicar o material, Moro e o procurador Deltan Dallagnol levantaram suspeitas de que poderia ter sido adulterado e pediram para que os jornalistas o entregassem para uma perícia.

Especialista em organizações policiais, Alcadipani explica que a PF "culturalmente se coloca como muito independente e que a própria Lava Jato mostra isso". Contudo, pondera ele, "os mecanismos de controle das polícias brasileiras deixam extremamente a desejar" e que nenhuma possui "autonomia ou independência do poder Executivo". Afirma que Moro, ao contrário de seus antecessores, possui uma "inserção" na PF que seus antecessores não possuíam, seja por ter trabalhado lado a lado na Lava Jato com a corporação, seja porque o Governo Bolsonaro está nas entranhas das polícias". Para o professor, preocupa especialmente que a PF esteja "em um governo aparelhado que propõe manipular dados como o do desmatamento", critica.

Há outros episódios que apontam para a influência controversa de Moro na Polícia Federal. No final de junho, o presidente Bolsonaro informou a jornalistas em uma entrevista coletiva que Moro havia passado a ele informações sobre um inquérito sigiloso sobre o caso envolvendo candidaturas laranjas do PSL, partido do mandatário. Uma apuração que, por sua natureza sigilosa, não pode ser detalhada sequer para o próprio ministro e deve ser de conhecimento apenas das autoridades envolvidas.

Adere a

El País: Truque com Telegram Web foi usado para tentar obter mensagens de Moro, diz juiz

Magistrado de Brasília detalha investigação que resultou na prisão de quatro suspeitos de hackear mais de mil números, mas não faz relação com vazamentos do 'Intercept'

Um truque que combina a versão para computador do aplicativo Telegram, a clonagem de números telefônicos e a vulnerabilidade dos serviços de caixa postal de celulares é a base do golpe que foi usado para tentar acessar mensagens de mais de mil autoridades dos três Poderes, entre elas o ministro Sergio Moro. A técnica relativamente simples é descrita pelo juiz federal Vallisney de Souza Oliveira, de Brasília, na sentença que expediu as ordens judiciais para prender temporariamente quatro supostos hackers na terça-feira, acusados de formar uma quadrilha para cometer crimes cibernéticos. Em seu despacho, o magistrado não faz referência às mensagens vazadas trocadas por Moro e o procurador Deltan Dallagnol e publicadas pelo The Intercept como produto do suposto grupo criminoso. Mesmo assim, o ministro da Justiça e primeiro na linha de comando da Polícia Federal fez questão de fazer a associação entre os detidos e a série de reportagens publicadas em uma postagem do Twitter.

Para o juiz Oliveira, "há fortes indícios de que os investigados" — estão detidos o DJ Gustavo Henrique Elias Santos, de 28 anos, sua mulher, Suelen Priscila de Oliveira, 25, Danilo Cristiano Marques, 33, e Walter Delgatti Neto, 30— "integram organização criminosa para a prática de crimes e se uniram para violar o sigilo telefônico de diversas autoridades públicas brasileiras via invasão do aplicativo Telegram". O magistrado não cita entre os alvos o procurador-chefe da força-tarefa da Operação Lava Jato, Deltan Dallagnol, de onde partem as principais conversas do Telegram publicadas pelo The Intercept e outros veículos.

Segundo o jornal O Globo, no entanto, Delgatti confessou aos investigadores ter acessado mensagens inclusive de Dallagnol. O advogado de defesa do DJ e sua mulher, Ariovaldo Moreira, afirmou que seus clientes atribuem a Delgatti o golpe contras as autoridades, com o objetivo de vender as informações "para o PT". Nas redes, a presidente do PT, Gleisi Hoffman, acusou Moro de tramar contra o partido. "Tenha vergonha Moro, você não pode comandar investigação na qual está envolvido", escreveu.

À imprensa, os investigadores da Polícia Federal afirmaram que entre outras possíveis vítimas do grupo está o ministro da Economia Paulo Guedes, que afirmou nesta semana também ter sido hackeado. Os agentes também explicaram que os presos são suspeitos de integrar uma organização que já praticava crimes de "estelionato bancário eletrônico" e "fraude de cartão de débito e crédito".

Vazamentos e dúvidas

As prisões são temporárias ou seja, durarão até cinco dias, e ainda não há uma acusação formal contra os suspeitos. Para Moro, no entanto, está claro o elo entre o grupo detido e as publicações do The Intercept: "Parabenizo a Polícia Federal pela investigação do grupo de hackers, assim como o MPF e a Justiça Federal. Pessoas com antecedentes criminais, envolvidas em várias espécies de crimes. Elas, a fonte de confiança daqueles que divulgaram as supostas mensagens obtidas por crime", escreveu no Twitter.

Moro havia revelado em 4 de junho ter sido hackeado por seis horas, durante as quais seus aplicativos de mensagem teriam sido acessados. "Leio, na decisão do juiz, a referência a 5.616 ligações efetuadas pelo grupo com o mesmo modus operandi e suspeitas, portanto, de serem hackeamentos. Meu terminal só recebeu três. Preocupante", escreveu ainda o ministro da Justiça nesta quarta.

A primeira série de reportagens do The Intercept foi publicada em 9 de junho e mostrava mensagens privadas entre o ex-juiz, responsável pelas decisões que levaram centenas de pessoas à prisão, entre elas o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e Dallagnol, que os jornalistas do veículo contam ter recebido de uma fonte anônima semanas antes. Entre outras controvérsias, o conteúdo das reportagens mostra Moro orientando a acusação, o que conflita com a determinação constitucional do juiz imparcial. O ministro e a força-tarefa desde então vem repetindo que não respondem pelas mensagens porque dizem que são fruto de um crime cibernético e que podem ter sido alteradas —apesar de publicações, entre elas o EL PAÍS, ter corroborado elementos que apontam para a autenticidade delas.

Seja como for, a prisão dos suspeitos reacendeu o debate em torno do uso, inclusive legal, que pode ser feito das informações contidas na série do The Intercept, que passou a compartilhar os vazamentos com outros veículos como a Folha e a Veja. Nesta quarta, a Folha voltou a frisar que não incentiva ou promove crimes para obter informações, mas "que pode, no entanto, publicar informações que foram fruto de ato ilícito se houver interesse público no material apurado". Legalmente, as mensagens publicadas, seja qual for a origem comprovada delas, podem ser usadas nas defesa de réus, embora não para incriminar pessoas, avaliou ao EL PAÍS Ivar Hartmann, professor da FGV no Rio e coordenador do Supremo em Números, no começo do mês.

Como funciona o golpe

Os suspeitos de hackear os celulares de Sergio Moro teriam tentado invadir o Telegram do atual ministro da Justiça a partir do "acesso ao código enviado pelos servidores do aplicativo para a sincronização do serviço Telegram Web", escreveu o juiz federal Oliveira. Isso porque, ainda segundo o magistrado, "o Telegram permite que o usuário solicite o código de acesso via ligação telefônica com posterior envio de chamada de voz contendo o código". Mas a mensagem também pode ficar gravada na caixa postal das vítimas. Assim, prossegue o juiz, "o invasor realiza diversas ligações para o número alvo, a fim de que a linha fique ocupada". E o código é então direcionado para a caixa postal, posteriormente acessada pelos criminosos a partir da tecnologia VOIP (serviços de voz sobre IP), que permite os criminosos simularem o uso da linha telefônica da vítima.

O juiz Vallisney de Souza Oliveira explica ainda que a tecnologia VOIP utilizada pelos supostos hackers é oferecida pela empresa BRVOZ, cujo cliente pode utilizar a função identificador de chamadas para "realizar ligações telefônicas simulando o número de qualquer terminal telefônico como origem das chamadas", inclusive o número da própria vítima. Assim, explica o magistrado, a PF identificou que as ligações efetuadas para o telefone de Moro partiram do usuário registrado na BRVOZ como Anderson José da Silva. Em seguida, os agentes identificaram os IPs de onde partiram os ataques. "Com base nos registros cadastrais fornecidos pelos provedores de internet foram identificados os moradores dos endereços onde estariam localizados os IPs de onde partiram os ataques", completa o juiz.

Uma das dúvidas não esclarecidas no despacho é o fato de Moro dizer que não tem mais o Telegram desde 2017: mesmo sem o aplicativo instalado é possível que ele apareça como dono de uma conta web para ser alvo potencial do golpe? A polícia diz que nenhum dado de Moro foi violado.

O magistrado aceitou os pedidos de prisão temporária dos suspeitos por considerar que "são essenciais para colheita de prova que por outro meio não se obteria, porque é feita a partir da segregação e cessação de atividades e comunicação dos possíveis integrantes da organização criminosa". Além disso, acrescenta o magistrado, existe a "necessidade da realização de buscas e apreensões nos endereços residenciais dos investigados, sendo, portanto, necessária a sua privação de liberdade, a fim de viabilizar a coleta de provas, sem que as oculte ou destrua ou que desapareçam por completo". Ele ainda determinou o bloqueio dos ativos financeiros superiores a 1.000 reais e a quebra do sigilo telemático e bancário dos suspeitos. O casal Gustavo Henrique Elias Santos e Suelen Priscila de Oliveira movimento, segundo o despacho, mais de 600.000 reais em poucos meses, quantia incompatível com sua renda.


Eliane Brum: “Empresários não podem ser batedores de carteiras”

Respeitado por povos da floresta amazônica, o industrial Jorge Hoelzel Neto é um exemplo que o Brasil precisa enxergar com urgência

Décadas mais tarde, em 2015, eu participava de uma expedição a remo, a bordo de canoas, promovida pelos indígenas do povo Juruna, da aldeia Mïratu, e pelo Instituto Socioambiental, para constatar e refletir sobre a destruição promovida pela usina hidrelétrica de Belo Monte na região conhecida como Volta Grande do Xingu, no Pará. Avistei um homem muito branco, que remava silenciosamente ao lado de um adolescente que depois eu descobriria ser seu filho. “É o Jorge”, esclareceu um ribeirinho da Terra do Meio. “Ele sempre tá com a gente.” Era Jorge Hoelzel Neto, um dos acionários da terceira geração da Mercur, empresa familiar que neste ano completou 95 anos.

Fiquei intrigada. Soube então que a bolsa de água quente que eu costumava usar no inverno é hoje feita com a borracha produzida pelas reservas extrativistas da Terra do Meio, uma das regiões mais espetaculares da Amazônia brasileira. E, hoje, uma das mais pressionadas pela grilagem que explode em toda a floresta, estimulada e autorizada pelas declarações e ações do Governo Bolsonaro. E, no Pará, também pelas ações e declarações do governador Helder Barbalho (MDB).

Em mais de 30 anos de jornalismo, me mantive saudavelmente desconfiada com relação a representantes do que se chama de “mercado”. Mais ainda na Amazônia, vítima preferencial de projetos grandiloquentes que resultaram em catástrofes ainda mais grandiosas, concebidos pela iniciativa privada em parceria com diferentes governos, em especial na ditadura militar (1964-1985). Mas não só. A Amazônia guarda as cicatrizes de vários desvarios, como Fordlândia, cidade que Henry Ford construiu à beira do Tapajós para produzir borracha para os pneus de seus carros, entre os anos 20 e 40, no século passado.

Assim, preferi observar Jorge Hoelzel por anos antes de me arriscar a escrever sobre ele e sua atuação. Talvez a observação tenha sido mútua, porque na primeira vez em que abordei o assunto, ainda naquela canoada de 2015, ele deixou claro que não se pavonearia por fazer qualquer coisa de bom na Amazônia. Quem o conhece sabe que Jorge tem alergia a ternos, autoelogios e jargões do meio corporativo. Aos 58 anos, ele se autodefine como um “homem família”, ao lado da esposa e de dois filhos. Gosta mesmo é de ficar quieto, ouvir muito e curiosar com os olhos bem azuis de sua ascendência alemã acomodados embaixo de um boné. Tudo isso depois de meditar, a primeira coisa que faz a cada manhã.

Poderia se dizer que o dono da Mercur ama a Amazônia. É um fato. Mas acho que nunca se ouviu alguém admitir o contrário. É mais exato afirmar que Jorge Hoelzel é um empresário brasileiro que não odeia a Amazônia. A maioria dos empresários brasileiros parece ter raiva da floresta, onde atuam com mentalidade do século 20, ou talvez ainda do século 19. Tudo o que fazem é arrancar os recursos minerais da floresta, usando-a como um corpo para exploração e deixando destruição ambiental e humana em seu lugar. Ou transformando uma das maiores riquezas do planeta em soja ou pasto pra boi. São tragicamente poucos os empresários como Jorge que alcançaram os desafios do século 21 e compreendem tanto que a floresta é estratégica para o controle do aquecimento global quanto que a Amazônia pode definir que tipo de futuro a nossa e as outras espécies terão nas próximas décadas. Compreenderam também que a maior riqueza da floresta é justamente a floresta, ela mesma, com toda a sua diversidade biológica e também humana.

A Mercur se tornou um laboratório de boas práticas na pequena (e conservadora) Santa Cruz do Sul, cidade gaúcha mais conhecida pelas plantações de tabaco que se espalham pela região. E também pela contaminação por agrotóxicos conectada a um número alarmante de suicídios de agricultores. A cada ano, Jorge se desloca do Sul ao Norte para acompanhar a Semana do Extrativismo da Terra do Meio (SEMEX), em geral promovida numa das reservas ou numa aldeia indígena do Médio Xingu, a alguns dias de viagem de barco de Altamira, no Pará.

Durante dias, indígenas, ribeirinhos e empresários como Jorge debatem a produção coordenada por uma rede de 27 cantinas, uma parceria de várias organizações e órgãos socioambientais com associações de extrativistas e de indígenas e pelo menos uma de agricultura familiar. Entre 2018 e 2019 foram produzidos e comercializados quase 925 quilos de borracha, na forma de manta, e 5.551 quilos na forma de blocos; 1.410 quilos de farinha de mesocarpo de babaçu; e 1.800 quilos de copaíba. Em 2018, houve uma produção recorde de castanha: quase 16 mil caixas, o que rendeu às comunidades quase 1,8 milhão de reais. É importante sublinhar: tudo isso mantendo a floresta em pé, mantendo a biodiversidade e mantendo o modo de vida dos povos indígenas e ribeirinhos. Iniciativas como essa, que se espalham por diferentes partes da Amazônia brasileira, mostram que é possível e urgente produzir para a vida – e não para a morte.

Em 2019, a Semex ocorreu pela primeira vez na cidade de Altamira, e não na floresta, devido à falta de segurança resultante das declarações e ações de um governo que quer abrir as terras protegidas da Amazônia para a exploração predatória. E que não tem nenhum conhecimento sobre a real riqueza da floresta, esta produzida por ribeirinhos, indígenas e quilombolas exatamente porque têm as suas áreas protegidas. Jorge Hoelzel estava no encontro. Depois de anos observando-o na floresta e fora dela, em sua relação respeitosa com seus habitantes e no carinho que homens e mulheres tão violentados por brancos demonstram diante desse típico alienígena do sul, sinto-me segura para publicar uma entrevista em que Jorge pode contar como ele também se transformou, tão vivo quanto a borracha que compra na Terra do Meio.

Quem sabe suas palavras possam espanar a poeira de algumas mentes que se ocultam sob o jargão do mercado. Desde a redemocratização do país, a Amazônia nunca esteve tão ameaçada por um Governo como hoje. A floresta e seus povos, humanos e não humanos, precisam de todo o apoio possível para combater tanto a ignorância quanto a ganância, irmãs siamesas que hoje dominam o Planalto.

Durante as duas horas de entrevista feitas na cidade de Altamira, os olhos de Jorge orvalharam algumas vezes. Ele sabe que por melhor que seja a borracha, nossos erros não podem ser totalmente apagados. Na Amazônia, eles viram sangue e fogo.

“Nós queremos atuar em coisas que criem vida – e não morte”

Pergunta. Como sua família foi se envolver com borracha lá em Santa Cruz do Sul, numa época em que a borracha vinha da Amazônia?

Resposta. A nossa família tem um jeito meio peculiar. A gente nunca teve aquela ideia de que enriquecer era importante. Nunca foi essa a nossa batida. A Mercur é uma empresa familiar, fundada por meu avô e meu tio-avô. Os dois eram muito inquietos. Eles sempre tinham a impressão de que estava faltando coisas. Meu avô falava com o mundo inteiro com rádio amador, era um cara meio de vanguarda. Estava sempre atrás de coisas que não existiam. E tinha uma pegada espiritual forte, de cura. Às vezes tinha fila de gente na frente de casa para ele dar passe. O irmão dele tinha problema com os pneus, que rasgavam e eles não tinham como consertar. Tudo era importado. E cada pneu que estragava era uma peça enorme que tinha que ser importada. Isso na década de 20, logo depois da Primeira Guerra. Aí eles foram tentar entender de borracha pra resolver esse problema. E pegaram gosto, porque a borracha não é uma coisa certa. A borracha, ela é uma coisa viva.

P. Viva?

R. Sim. Principalmente a borracha natural. Significa que ela trabalha com o tempo. Ela não é como o plástico, que se conforma e só vai terminar daqui a 500 anos. A borracha está sempre se transformando.

P. Quando você se formou na universidade, estava com a cabeça formatada para fazer o que todos fazem: lucrar e crescer. Como foi mudando?

R. Eu percebi que eu estava num movimento meio que indo pra outro lado, né. Eu comecei a trabalhar na Mercur em 15 de janeiro de 1986. E eu estava meio incomodado, porque a gente aprende na faculdade que precisa crescer, né? E eu vim com todo gás pra crescer, pra expandir. Começamos então a construir uma equipe comercial muito forte. Convenci o meu pai que nós tínhamos que juntar as cinco empresas e criar uma só. Aí surgiu a Mercur S.A. E estávamos começando a alicerçar um modelo de crescimento forte mesmo. Criamos outros produtos escolares, como cola. Começamos a importar coisa da China. Nós tínhamos todas as licenças para crianças, como Barbie, Disney... Tudo o que passava na televisão. A gente passava o tempo inteiro dentro de avião. Uma equipe grande, viajando e consumindo. Começamos então a fazer um trabalho forte para o reposicionamento da marca. Mas, quando acabou, parecia que faltava alma. A marca estava bacana, mas não era a Mercur. Queriam que eu fizesse um lançamento em São Paulo e botasse um terno bonito, sei lá, um Armani. Mas eu não sou um cara de terno, né? A Mercur não é isso! Então fui apresentado ao Sérgio Esteves, um consultor de São Paulo que trabalha alinhado com as questões da sustentabilidade. Descobrimos então que fazíamos tudo errado. A gente achava naquela época que, pegando um pedaço do lucro e doando pra uma instituição de velhinhos, crianças, sei lá, pronto, deixava todo mundo em volta feliz. Aí ele nos mostrou que sustentabilidade era trabalhar para que as pessoas se sustentassem por conta própria.

P. Que ano era isso?

R. Isso já era 2007. E eu estava muito insatisfeito, porque todo mundo trabalhava demais na Mercur. E eu não acho que a vida é só escritório. A vida é muito mais do que isso. Aí um dia liguei pra ele: “Sérgio... Assim, ó, eu não vou conseguir dormir fazendo uma coisa legal num lado e uma coisa não legal no outro lado. Eu quero fazer tudo junto". Aí ele disse: "Bom... Aí o trabalho é maior”.

P. E como foi?

R. A gente tinha lá nosso quadrinho de valores cheio de pó, mas a gente nem olhava pra aquilo ali. Nosso negócio era ganhar dinheiro. Aí começamos a retomar as questões de princípios e de valores. Tipo... Qual é que é o nosso legado? O que a gente quer construir para a sociedade e com a sociedade? Pra que que serve uma empresa? Então a gente começou a se dar conta que a empresa não serve pra tirar dinheiro da sociedade, ela serve pra promover algum bem estar pra sociedade. E isso mexeu muito com a gente. Tanto que, na primeira vez que eu fui falar sobre a Mercur, fiz uma lâmina para o powerpoint que mostrava um cara batendo uma carteira. A gente se sentia batedor de carteira. Por quê? Porque a nossa estratégia toda de mercado era chegar o mais cedo possível no bolso do consumidor, antes do concorrente, pra esvaziar a carteira dele. E ele nem ter dinheiro pra comprar do concorrente depois, né. Essa sempre tinha sido a nossa estratégia.

P. Você acha que a maioria das empresas são batedoras de carteira?

R. Eu acho que são. Acho que são mesmo. E nem se dão conta disso. E a sociedade não se dá conta que funciona assim. Tentamos então nos enxergar do outro lado do balcão. Num período do dia, eu sou o empresário que quer vender o máximo de produtos possível, ao maior preço possível, com o maior lucro possível. Quando eu dou a volta no balcão, eu passo a ser o consumidor, eu quero ter o melhor desconto e o melhor produto. Como é que esses dois vão se entender, né? A gente percebeu que precisava construir uma coisa que nos fizesse querer estar também no outro lado, no lado do consumidor. Então, voltamos aos princípios dos fundadores e da família. E um dos nossos princípios é atuar em função da vida. Nós não queremos atuar em função de coisas que não criem vida. Ou que criem morte. Isso não pode ser só uma plaquinha presa na parede. Ela tem que fazer parte do dia a dia da empresa. Fomos então para São Paulo, juntamos um monte de pedagogos, professores, pra entender o seguinte: quando a gente faz bem pra educação e quando a gente faz mal pra educação? Aí eles foram diretos: “Olha, vocês são bacanas, os produtos licenciados são muito bacanas, mas tudo isso é um terror pra educação. Além de não servir para nada, ainda gera bullying para as crianças. E gera desperdício. E gera gasto desnecessário para os pais. Porque um produto que custa 1 real, com o rótulo da Barbie vai custar três. Aquilo mexeu com a gente, porque nós ganhávamos muito dinheiro com aquele negócio de importação da China. Era muito fácil, né? E quando você tem a licença, é só você que vende aquele produto. Não precisa nem fazer esforço de venda.

P. Quanto os produtos licenciados representavam no faturamento da Mercur?

“Não podemos iludir as crianças e fazer os pais gastar dinheiro à toa”

R. Cerca de 12%,13% do faturamento. Mas mais porque eles carregavam os produtos da Mercur junto, né? A lucratividade era muito maior, porque eram produtos que chegavam baratos, da China, e se colocava um preço ainda maior do que o produto de linha da Mercur, com a marca Mercur. Levamos mais de um ano até decidir tirar de linha. Quando acabou o período escolar de 2014 anunciamos que não trabalharíamos mais com produtos licenciados. Foi um terremoto. “Vocês são loucos! Tão rasgando dinheiro! Vocês não querem mais ganhar dinheiro?” Começamos então a visitar os clientes para explicar o que estávamos pensando e fazendo. Naquele momento foi muito importante uma característica da Mercur que a empresa nunca perdeu. Sempre tivemos um relacionamento muito forte com os clientes. Quase uma amizade. A gente faz as reuniões na cozinha. Não é restaurante chique. Não precisa nem de mesa. Tu tem a perna, bota o pedido em cima da perna. Isso foi importante.

P. Mas mesmo assim o faturamento caiu? Quanto?

R. De um ano pro outro, foi 15% de faturamento. Então, foi forte. Muita gente dentro da empresa não estava conformada com isso. Perguntavam: “Vamos ter um outro personagem da Mercur, né?”. Não, gente. Nós não queremos ter um personagem pra iludir as pessoas que elas estão comprando uma coisa que não podemos dar. Elas vão comprar uma borracha de apagar, e não um personagem. Imagina. Nós chegamos a ter a licença da Hot Wheels. Lançamos então uma coleção de carrinhos. A criança podia ter 15 borrachinhas de apagar. Que loucura! Ela precisa de duas no ano, pra que vai comprar 15, né? E claro que a criança pede isso pro pai e pra mãe. Então, não dá. Nosso papel não é o de iludir as crianças e fazer os pais gastarem dinheiro à toa. O nosso papel é fazer um produto que cumpra a função dele. Passamos a ter um sistema próprio de criação de produtos. Entra lá o usuário, o distribuidor, o lojista. Nós temos produtos pra educação, vêm pedagogo, professor, ajudar a criar produto. Na área da saúde, que a gente atua também, vêm fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, médicos, usuários. Todo mundo ajuda a construir nossos produtos.

P. Dá um exemplo.

R. As pedagogas nos disseram numa reunião que era preciso criar produtos para pessoas com deficiência, porque estas pessoas, que antes eram escondidas em casa, estavam entrando na sociedade e precisavam de produtos adaptados a elas. E o que existia era importado e muito caro. Criamos então um projeto que nós chamamos "Diversidade na Rua". A gente queria entender a diversidade. Foi um processo de co-criação. Se os dedos da pessoa não têm movimento, por exemplo, é possível criar um dispositivo para que ela possa segurar a caneta. Nós éramos uma empresa de engenheiros e contadores. De repente, nos tornamos uma empresa com pedagogos, antropólogos, fisioterapeutas etc. A empresa precisava ter a diversidade do mundo dentro dela. E todo esse caminho novo fez com que começássemos a tirar produtos de linha.

P. Como o quê?

R. A gente desenvolveu uma esteira de borracha para a indústria do tabaco, por exemplo. Porque as esteiras eram de PVC e isso podia ser tóxico. Então nós desenvolvemos, porque Santa Cruz do Sul é a terra do tabaco. E começamos a exportar. Aí um dia eu fui dormir e acordei pensando: “Gente, nós vamos ganhar dinheiro com esteira de tabaco? Não faz o menor sentido pra nós”. Nós não queremos estar em negócios de tabaco, bebidas alcoólicas, armamentos, produtos que produzam maus tratos aos animais nem, obviamente, empresas que tenham trabalho infantil. A gente está fora desses negócios aí, né? Aí fomos comunicar pra empresa de tabaco que a gente não faria mais aquele produto... Aquilo foi um terremoto na cidade. Era um negócio ainda pequeno, mas, por baixo, estávamos estimando chegar a 50 milhões de dólares por ano. Tive que explicar para os amigos que não queria quebrar a indústria de tabaco, só não queríamos participar disso.

P. Que outro produto vocês desistiram em nome de princípios?

R. Um pessoal pediu uma peça que seria vendida para o Exército argentino. Perguntei: “Essa peça é pra quê, mesmo?”. Era para o cara escorar o braço pra segurar a metralhadora, ou a bazuca... ou não sei o quê... “Ah! Nós fazer um troço pro cara segurar uma bazuca?”. E me diziam: “Bah, mas tu vê, assim ele não vai se machucar!”. Mas não é para esse tipo de bem-estar que queríamos trabalhar, né.... Imagina. O bem-estar do cara pra dar tiro no outro. A gente também vendia muita peça técnica, para equipamentos agrícolas. Marcas grandes. Mas a gente nunca foi muito a favor daquelas plantações enormes, aqueles equipamentos agrícolas que espalham veneno por tudo quanto é lugar. Então vendemos essa parte do negócio pra uma empresa em São Paulo. Assim, a Mercur vem encolhendo de uns anos pra cá.

P. Quanto?

R. Na verdade, a gente não diminuiu. O que aconteceu é que nós paramos de crescer. Estamos com o mesmo faturamento de 2012.

P. Quanto é o faturamento de vocês?

R. Hoje nós estamos com 130 milhões de reais por ano e 650 empregos diretos. E a gente não vai mais pra banco aplicar o dinheiro. Essa foi uma solução importante que demos para a nossa caminhada. Tiramos o que não queríamos mais e vamos nos dedicar a desenvolver produtos nas áreas da saúde e da educação.

P. Dá um exemplo?

R. Nós temos uma linha de muleta, bengala, andadores, de alumínio. Mas nós queríamos diminuir o alumínio, porque a gente não acredita que o alumínio seja uma coisa boa pra saúde. A gente queria tirar o alumínio, porque aquilo também consome muita energia, né? Aí a gente montou um projeto chamado "Colabora". Pra desenvolver produtos novos, como essa muleta com o mínimo de alumínio . Houve um grupo que se saiu muito bem, a gente pegou a ideia deles. É como se fosse uma pequena startup. Estamos desenvolvendo pra produzir no Brasil. Estamos montando a fábrica agora lá em Santa Cruz pra isso. Uma outra linha de produtos é de educação. Nós temos aquela cola branca. De criança, né? Bem tradicional. Mas a gente quer ter uma cola que não tenha petróleo. Estamos trabalhando pra desenvolver uma cola completamente atóxica, sem petróleo. E assim a gente vai indo.

P. Como a floresta amazônica entrou nesse projeto mais amplo de transformação da empresa?

R. O nosso projeto na Terra do Meio começou em 2010. A gente só comprava a borracha de São Paulo e, eventualmente, importava um pouco, quando faltava no Brasil. Meus avós compravam da Amazônia, mas, depois, a produção da borracha na floresta se desestruturou. E houve um grande incentivo para comprar a borracha no interior de São Paulo, porque uma grande estrutura foi montada, com grandes plantios. Tornou-se natural comprar borracha de São Paulo. Fui então conversar com o (socioambientalista) André Villas-Bôas, no Instituto Sociambiental, em São Paulo. Aí começamos a mandar gente nossa para as reservas extrativistas da Terra do Meio, para entender como poderíamos comprar a borracha dos ribeirinhos. Aí, em 2012 ou 2013, eu mesmo comecei a ir, porque queria entender.

“Encontrei na Amazônia gente que não quer tirar nada de ti, mas está pronta pra oferecer tudo o que tem”

P. A Terra do Meio não é um lugar comum. Mesmo para quem conhece outras Amazônias, ela é muito impactante. Como foi para você?

R. Foi quase um êxtase pra mim. E a maravilha de fazer a viagem de barco... Foi o máximo dos máximos. Dormir nas redes, andar de canoa. Parecia que aquilo já estava dentro de mim. Foi mágico, mesmo. Saí todo mordido de bicho. Mas foi mágico. Passei então a ir todo ano para entender o processo. Passei a refletir sobre como eu vinha me conectando com essa coisa do ser humano, da natureza. Encontrei ali o ser humano que não encontrava mais na cidade. Foi um encontro com gente. Gente que não quer tirar de ti, mas que tá pronta pra te oferecer tudo o que tem. (Os ribeirinhos) dão tudo pra ti, né? Eles abrem a casa. Chega uma canoa com 15 pessoas, eles abrem a casa, recebem a gente, dão a comida deles, que muitas vezes faz falta pra eles, eles te dão. Então, assim, sabe? Aquilo me chocou de uma certa forma. Nossa! Que mundo diferente é esse, né? Que coisa diferente é essa que tem aqui que a gente não consegue mais viver na cidade. Foi assim... Só fui comprovando que a gente estava certo. Aqui (na floresta) é a vida, né? Como é que a gente leva essa vida de novo pra cidade?

P. Essa mudança tem alguma relação com uma ideia de reparação? No passado a Mercur, como outras empresas, deixaram de repente de comprar a borracha da Amazônia porque o preço da borracha produzida na Malásia e depois no interior de São Paulo era mais baixo. Não houve nenhuma preocupação social naquele momento, apenas o lucro...

R. Não acho que seja uma questão de reparação somente pelo que a gente fez lá atrás, mas sim por toda uma economia regenerativa. A gente está em busca de regenerar a nossa economia, de regenerar as nossas possibilidades de obter matérias-primas naturais. Nada mais justo do que acessar matérias-primas a partir de onde elas nasceram. E a borracha nativa nasceu na Amazônia. Este é o caminho que estamos tomando para fazer esse resgate, que é um resgate da economia como um todo, e não simplesmente da Mercur. Sim, a Mercur participou desse movimento de comprar borracha mais barata da Malásia e tal, então tem uma culpa nossa nessa questão toda. Mas acho que é regenerar não apenas a nossa culpa, mas o modelo econômico. Como a gente vai em busca de um modelo econômico que se sustente ao longo do tempo? E a gente percebe que esse modelo econômico de buscar sempre o mais barato não tem sustentação.

P. Ainda é bem pouca a borracha que vem da Amazônia, né?

R. Só 2%. O restante ainda vem do interior de São Paulo.

P. E há perspectiva de aumentar isso?

R. Eu acho que tem, sabe? Eu acho mesmo. A gente tem feito um movimento lá no Acre, também.

P. Por que que é tão pouco ainda?

R. Eu acho que os ribeirinhos estão recém voltando para a borracha. Não é um trabalho fácil. O cara normalmente vai sozinho pra dentro da floresta. Passa no mínimo uma manhã ali cortando, e depois tem que buscar o látex. Quando ele volta pra casa, ele tem que logo produzir ou a manta ou o bloco, porque senão a borracha coagula, e aí já não serve mais pra nada. É um trabalho duro comparado à pesca e à coleta de castanhas, por exemplo. Mas a borracha dá sempre. E a castanha nem sempre. Chegamos a conversar se deveríamos botar meta para os ribeirinhos ou dar prêmio visando ao aumento da produção. Mas eu acho que não. Acho mesmo que isso não seria justo. Acho que eles têm a vida deles. E eu não quero que eles transformem a vida deles pra coletar borracha pra Mercur, sabe? Acho que borracha tem que ser um dos produtos da vida deles. Eles vão caçar, vão pescar, vão colher outras coisas, como a copaíba... Tem tanta outra coisa pra eles fazerem na floresta. A borracha é mais uma.

P. Se desse premiação ou botasse metas, estaria impondo a lógica do sistema capitalista a uma realidade totalmente diferente e, assim, violando o modo de vida ribeirinho...

R. Exatamente! E isso é tudo o que a gente não quer.

P. Em 2018, pela primeira vez a SEMEX (Semana do Extrativismo da Terra do Meio) foi numa aldeia indígena, a Tukaya, do povo Xipaya. Como foi essa experiência para você?

R. Há uns dois ou três anos, o Marcelo Salazar (coordenador do Instituto Socioambiental em Altamira), me perguntou: “Tem problema se os indígenas entrarem? Eles estão querendo colher borracha e tal”. Eu disse: “Ô, Marcelo...Se a Funai permitir que a gente compre deles, eu não tenho absolutamente nada contra! Que bom, que bacana, né, que eles possam entrar também!”. E aí, de uns anos pra cá, eles começaram a participar. E, no ano passado, quando o encontro foi lá na aldeia Tukaya, nossa! A borracha deles é a de melhor qualidade que nós recebemos até hoje. É impressionante a dedicação, o cuidado deles. E eu acho que isso acontece porque estão juntos, sabe.

P. Sei que a borracha da Amazônia sai mais caro para vocês do que a de São Paulo. Quanto?

“Pagar barato pode custar algo muito mais caro, que é a vida”

R. A da Amazônia custa quase o dobro do preço.

P. E por que que você resolve pagar duas vezes mais por uma borracha que você podia ter pela metade do preço?

R. Porque precisamos pensar mais no que é caro – e no que é barato. Nos significados disso. Primeiro: a qualidade da borracha, num seringal nativo, é muito superior à qualidade da borracha num seringal cultivado. Esse é o primeiro ponto. Segundo: no seringal cultivado, a produção é de larga escala. É uma arvorezinha plantada do lado da outra. Não nasce mais nada no meio daquele seringal. Na Amazônia, o seringal é uma estrada no meio da floresta. Nessa estrada tem a seringa, tem a castanha, tem a caça, tem a pesca. É uma comunicação completamente diferente do seringueiro com a vida dele. É uma floresta.

P. O seringal cultivado é tipo um latifúndio de soja, só que com seringueiras?

R. É. Numa cultura de grande escala. E eu não sou muito a favor de uma cultura única na terra. Eu acho que a terra precisa de mais coisas. Para fazer aquele cultivo de larga escala tu vai ter que matar um monte de outras coisas na volta, né? Então a terra não é mais uma coisa natural ali. É uma coisa construída. O cara que corta a seringa nesses cultivados é um assalariado. Na floresta, o seringueiro é o dono da situação. É ele que resolve quando é que vai descansar, quando é que ele vai dar a cochilada dele, se vai dar, se ele precisa acordar às cinco, às seis ou às sete... Essa é uma decisão dele, né? O trabalhador do seringal cultivado é contratado pra tantas horas, pra trazer tantos quilos de borracha. Então é diferente. Este é outro ponto. E este ponto é importante. Uma outra questão é que, para fazer a seringa cultivada lá no interior de São Paulo, tu precisou antes derrubar uma floresta nativa. Na Amazônia, não derruba nada. Pelo contrário, tu mantém a floresta em pé. E, quanto mais diversidade tiver, melhor até, porque mais coisas o ribeirinho tem pra coletar, pra levar junto pra casa dele. Essa diversidade é importante. É por isso que a gente acha importante extrair a borracha na floresta amazônica.

P. Me parece que a maioria das pessoas não entende que há um valor na floresta em pé. Ou melhor. Entendem o valor. Mas não entendem que vão precisar pagar por isso. Ou não entendem que o que parece barato, que em geral implica a destruição da floresta, vai custar a vida logo adiante. E não só a vida do ribeirinho ou do indígena, mas a deles também. Não dá mais para pensar o barato e o caro sem colocar o custo socioambiental na equação, sem colocar a crise climática no cálculo.... O valor hoje precisa ser pensado em outros termos.

R. É a própria diversidade, né? Quando se cultiva uma coisa na floresta não precisa derrubar todo resto que está na volta. Como é que tu cria uma população mais diversa de plantações ali, que te dá mais vida, que te traz mais vida? Esse é o papel da borracha nativa, da seringueira nativa. É estar no meio dos outros.

P. Estar no meio dos outros é a chave para viver nesse mundo, né? Mas, Jorge, me fala mais sobre o custo de manter a floresta em pé, porque acho que a maioria dos teus colegas empresários está bem longe de entender isso.

R. Me vem essa questão da finitude do nosso planeta. Quando eu digo que todo mundo tem que pagar pela floresta em pé, é isso mesmo. A Amazônia não é só do Brasil. A Amazônia é de todo mundo. Tudo é de todo mundo. O campo, lá no Rio Grande do Sul, onde se cria gado, também é de todo mundo. Então, se a gente não tiver um acordo mundial do que a gente vai fazer pra cuidar do nosso planeta, como é que nós vamos viver aqui? Parece que a gente está separado em tribos, né? A tribo de lá, a tribo de cá. E aquele lá diz que aquilo é dele, esse aqui diz que aquilo é dele. Mas não é. Na verdade, não é. Tudo o que a gente faz aqui reflete lá, o que faz lá reflete aqui. Quando é que a gente vai ter essa consciência de que nós precisamos nos unir mais como seres humanos que somos, pra cuidar do que que a gente está fazendo? A gente está só botando mais gente, estamos procriando numa velocidade feroz. Não sou contra nascer gente, não é isso. Mas nós vamos ter que aprender a viver. Está cada um olhando pro seu umbigo. Olhando pra suas posses, olhando pra como vai fazer o que tem crescer e como vai ganhar mais. Mas não é meu, né? Isso não é meu. Essa é a questão.

P. E como um empresário pode colaborar para o resgate do sentido de comunidade?

R. Quando um empresário define que precisa fazer o negócio dele servir à sociedade, ele precisa entender essa sociedade que ele quer servir. E essa sociedade tem que dizer pra ele como é que ela quer que ele sirva a ela. Como é que a gente começa a construir uma vida realmente mais comunitária? Acho que a gente esqueceu das comunidades. No ano passado, estando lá na aldeia Tukaya, me veio muito forte essa questão da comunidade. Eu conversei com o cacique um pouquinho, eu queria entender o que que eles faziam naquela oca lá no meio. Ele me disse: “Aqui a gente faz as cerimônias da gente, faz as danças da gente. E, quando as pessoas se desentendem, eu pego os dois desentendidos e levo lá pra dentro. Fico olhando eles conversarem. Eles só saem dali quando tiverem resolvido a confusão entre eles”. Eu disse: “Puxa vida, como a gente tá longe desse verdadeiro cultivo da comunidade, né?”. Então eu acho que ser comunidade é o que está faltando pra nós. A crise climática é resultado daquilo que nós desentendemos. Dessa individualidade muito forte, em que cada um está pensando só em si próprio e ninguém está querendo conversar com o outro para saber o que ele está pensando. Nós nos isolamos. Só que faltam pedaços neste quebra-cabeça.

P. Que pedaços?

R. Tenho percebido que as pessoas fazem leituras em que faltam pedaços. Como um quebra-cabeça que a pessoa quer fechar de qualquer jeito, só que está faltando uma peça. Tipo o rosto de alguém. Mas falta a orelha, né? E aí, como faz sem orelha? Aí dizem: “Não faz mal, fecha assim mesmo”. É assim que parece que tem funcionado o raciocínio hoje. Me parece que muitos empresários não percebem que há um custo na pecinha que está faltando. Por exemplo. Eu pego a borracha petroquímica porque ela é mais barata. É mais barata porque não é viva como a borracha natural, então não vai deteriorar tão rápido. Tudo parece mais fácil. Maravilha, né? Mas não. Como ela é produzida? É extraída do petróleo? Qual é o custo do transporte? Qual é a energia necessária para beneficiar esse petróleo e transformá-lo em borracha? E para tirá-lo da terra? Esses custos a gente não está enxergando. E precisa enxergar. É a orelha que falta no rosto. O que a gente precisa é trazer a orelha de volta. Aí vai saber o custo real, o quebra-cabeça completo. Porque alguém paga por esse custo. E, no caso da floresta, está todo mundo pagando por ele. Só que as pessoas não percebem. Só começa a perceber quando chegam as mudanças climáticas. Mas então já é difícil mudar o curso. E o que eu percebo é ainda pior, porque isso não está nem sendo colocado para as pessoas enxergarem. Um número extremamente reduzido de pessoas enxerga, e são estas que têm o controle. Somos nós, os empresários, que temos o controle disso. Mas muita gente está passando a mão, dizendo para esquecer isso, para ir por um caminho mais fácil, ou afirmando que a tecnologia vai encontrar a solução para todos os problemas. Acho lindo toda essa tecnologia. Mas será que é isso que precisamos? Eu fico pensando assim: se a gente colocar todos os custos sociais e ambientais de uma cadeia inteira da borracha sintética, será que ela vai custar mais barato que a borracha natural? Será que é isso mesmo?

P. Porque é só eliminando o custo socioambiental que fica mais barato, né? E, hoje, o custo socioambiental é a diferença entre viver num planeta ruim ou num planeta hostil.

“As ONGs que eu conheço na Amazônia trabalham com a dignidade das pessoas”

R. Exatamente.

P. Que impacto teve essa experiência amazônica em outros negócios?

R.  O modelo de fazer negócio muda. Muda também onde a gente vai buscar a matéria-prima que a gente usa. A gente usa muito tecido de algodão para alguns produtos da área da saúde, como tipoias, por exemplo. Então: “Gente, onde é que está o algodão orgânico no Brasil?”. E aí a gente foi conhecer em Porto Alegre, mesmo. Tem uma associação lá, nas vilas atrás do aeroporto. Tem uma associação de mulheres que se chama “Justa Trama”. Elas têm uma ligação com agricultores do Ceará que plantam algodão agroecológico. Uma empresa em Minas Gerais faz a fiação, faz o tecido, e elas compram esse tecido e fazem produtos. Então, através delas, nós fomos conhecer, e acabei indo parar no interior do Ceará. Estamos sempre em busca de encontrar onde é que estão esses movimentos de vida. Pra gente poder traduzir isso e levar pra cidade.

P. Como é o movimento de vida nas reservas extrativistas da Terra do Meio?

R. Eu acho que está muito bem construído e muito bem pautado. Gosto muito de elogiar as instituições, as organizações não governamentais que trabalham na região, como o Instituto Socioambiental e o Imaflora, por exemplo. Porque essas organizações trabalham com a dignidade das pessoas. Conheci um garoto uns anos atrás. Ele tinha deixado a floresta, foi para a cidade e se drogou. Então percebeu que não era por aí, que precisava voltar para a floresta. E voltou. Esse é o tipo de movimento que essas organizações fazem. De mostrar caminhos que não sejam os da violência e da ilegalidade, caminhos que respeitam a autonomia e a dignidade das pessoas. Dão escolha para as pessoas, mostram que elas podem escolher por si mesmas por onde preferem andar. Isso eu acho que é muito importante. Há alguns anos atrás, ribeirinhos e indígenas não sentavam à mesma mesa. Estavam um apontando a arma para o outro, o arco e flecha um para o outro. Hoje estão juntos, construindo algo. Testemunhar isso me emociona muito.

“A verdade só aparece quando todo mundo está junto”

P. Como você avalia o atual contexto político brasileiro, no qual o governo Bolsonaro defende a abertura das áreas protegidas da floresta, como a dos indígenas, ribeirinhos e quilombolas, para a exploração do agronegócio e para a mineração?

R. Eu acho que esse Governo não tem sensibilidade, né? Porque ou eles não conhecem a realidade ou não querem conhecer.

P. Qual das duas opções você acha que é?

R. Eu acho que eles teriam meios para conhecer. Então, se não conhecem, é porque não querem, né? O governo está tomando algumas decisões sem conhecer a realidade, sem conhecer o impacto das decisões que eles estão tomando. Na empresa, quando a gente quer desenvolver um produto, nós juntamos todo mundo que está envolvido com aquele produto. Por quê? Porque todo mundo traz o seu problema. O lojista traz o problema dele, o usuário traz o problema dele, a indústria traz o problema dela, o fornecedor traz o problema dele. Pra gente conseguir chegar numa coisa que se sustente minimamente pra todo mundo. Não vai ser 100% pra ninguém. Se for 100% pra um, deu errado! Todo mundo tem que abrir mão de alguma coisa. Eu olho pra esse governo e penso: “Gente, esses caras pelo menos têm que entrar na floresta, eles têm que conhecer, eles têm que ver a realidade”. Talvez tenham que estudar um pouco mais, talvez tenham que viver um pouco mais, né?

P. E por que é assim?

R. Parece que um é contra o outro, parece que o outro é visto como barreira. Enquanto o governo não enxergar que está governando pra todo um povo, não interessa se votou ou se não votou nele, será difícil. Se quer ser um governo de um país, ele tem que olhar pra tudo. Não pode se colocar na situação de dizer: “Ah, eu vou fazer agora como eu penso!”. Não. Senão, não é governo. Tanto faz o lado que está, vai ser uma ditadura. Porque vai impor a verdade dele. E a verdade de ninguém é uma verdade absoluta. A verdade só aparece quando todo mundo está junto. É quando os livros se abrem. Aí aparece a verdade. De certa forma, todo mundo no Brasil vinha conquistando o direito de colocar sua palavrinha na história, né? O que me parece é que esse governo está tirando a oportunidade de algumas pessoas escreverem a sua parte na história.

“É na diversidade que a gente vive, e não no individualismo”

P. E como você analisa os seus pares, isso que se chama “mercado”? Uma parte importante do empresariado foi protagonista do impeachment de Dilma Rousseff (PT) e depois apoiou Jair Bolsonaro (PSL)...

R. Acho que há uma ilusão, e acreditamos nessa ilusão. E essa ilusão nos mostra caminhos que fazem com que pareça que não há outra escolha. O caminho do avanço econômico e financeiro, me parece, é de que a solução seria continuar crescendo. O modelo econômico é de crescimento infinito. Promete um crescimento infinito. E isso não é verdade. Não existe crescimento infinito. Tudo para de crescer em algum momento. E o planeta é finito. Então, como é que a gente espera manter um crescimento infinito num planeta que é finito? Qual é a tecnologia que vai existir que vai conseguir dar conta disso? Pode ser que eu seja muito burro e não entenda de tecnologia, mas não consigo acreditar que isso vai dar certo. Acho que a tecnologia ajuda um monte, mas não é só ela. Precisamos entender que nós somos uma comunidade. E não é só a comunidade humana. É a comunidade humana vivendo com outras comunidades. Parece que nós somos o dono do campinho, né? Podemos fazer e acontecer e dominar tudo. Mas a realidade está mostrando que não temos tanto domínio assim. Sabe o que eu acho? Quando eu disse antes que a Mercur era uma empresa de engenheiros e contadores, é isso. Antes a gente só tinha essa visão do engenheiro e do contador. Então a gente começou a trazer outros olhares e passamos a enxergar mais. Mas, como assim? Uma fábrica de borracha com antropólogo? O que vocês querem com isso? É, gente, mas é que a vida não é a fábrica de borracha. Tem mais coisas na volta dela, né? Assim como a floresta não é uma única árvore. Há várias árvores em volta dela. E essas outras árvores é que dão a sustentação para que aquela árvore possa sobreviver o tempo que ela precisa sobreviver, e ela também dá condição para as outras sobreviverem. É na diversidade que a gente vive, e não no individualismo.

P. Você é um empresário que não quer crescer?

R. Não é que eu não queira crescer, mas não é o meu foco. Não é a minha busca. Não é pra isso que eu trabalho. Se crescer é porque alguém está achando bom o que eu estou fazendo. E desde que o meu crescimento não atrapalhe outras coisas. Mas, se não puder crescer, não tem problema nenhum. A nossa responsabilidade, hoje, é muito maior. Se a responsabilidade é crescer, é fácil. Derrubando os outros, tu vai crescendo. Agora, a responsabilidade de fazer as coisas de uma forma que se sustente economicamente, ambientalmente, socialmente e humanamente, é muito mais difícil. É isso que queremos que dê certo. Não é crescer. Minha busca atual é viver conforme. E é muito difícil a gente viver numa conformidade com tudo o que a gente acredita.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


El País: Bolsonaro precisa de apoio do Congresso para levar adiante ameaças à Ancine

Presidente fala em "filtro" para financiamento de produções e em extinguir a Agência Nacional do Cinema, mas, sozinho, ele não tem esse poder

Criticar obras e políticas públicas para a Cultura sempre esteve no radar do presidente Jair Bolsonaro. Durante a campanha eleitoral, ele prometia extinguir o Ministério da Cultura e rever a Lei Rouanet. Dito e feito: eleito, subordinou a pasta ao Ministério da Cidadania, e depois reduziu o teto de captação da Lei Rouanet de 60 milhões para 1 milhão de reais. Nessa esteira, a Agência Nacional do Audiovisual (Ancine) entrou na mira do presidente, que, na semana passada, ameaçou extingui-la caso o Governo não possa impor algum “filtro” sobre as produções audiovisuais brasileiras. A ameaça veio junto à redução do Conselho Superior de Cinema e sua transferência do Ministério da Cidadania para a Casa Civil. No final, o presidente ainda ventilou a possibilidade de mudar o escritório da Ancine do Rio de Janeiro para Brasília.

Para entender como essas medidas e ameaças podem afetar uma atividade que movimenta cerca de 25 bilhões de reais ao ano, segundo estimativas do setor, é preciso separar o que é viável e só depende do presidente e o que não, apesar dos ataques do Planalto, parte da guerra cultural conservadora que é chave em sua estratégia de comunicação. A Ancine e o Conselho Superior de Cinema foram criados em 2001 por Fernando Henrique Cardoso (PSDB), por meio de uma Medida Provisória e posteriormente regulamentados por lei. Originalmente, o conselho, órgão que desenvolve as diretrizes para o audiovisual, estava vinculado à Casa Civil, mas, em 2002, sob a gestão Lula (PT), passou para o Ministério da Cultura. Era formado por sete ministros e outros nove representantes de fora do Governo, sendo seis da indústria audiovisual e três da sociedade civil. Agora, o conselho volta à Casa Civil como era na sua criação, mantendo-se os sete ministros e reduzindo os membros de fora do Governo para três.

Com a nova formação, o ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni será o presidente do Conselho e os demais ministros que fazem parte são: Sergio Moro (Justiça), Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Abraham Weintraub (Educação), Osmar Terra (Cidadania), Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia) e Luiz Eduardo Ramos (da secretaria do Governo). Caberá a Onyx indicar os membros da indústria e da sociedade civil. O que muda, portanto, é que o Governo passa a ter maioria na composição.

Essas mudanças são as únicas que de fato ocorreram até o momento. O restante anunciado pelo presidente ainda está somente no plano das ideias. Extinguir a Ancine, como ameaça o presidente, não é uma tarefa simples. Para fazê-lo, seria necessária a criação de outra Medida Provisória ou Projeto de Lei e, em ambos os casos, teria de passar pela análise e votação do Congresso. Ou seja, sozinho, o Governo não pode simplesmente extinguir nenhuma agência reguladora, seja ela a Anvisa, a Anatel ou a Ancine. E, ainda que consiga aval do Congresso para “fechar” a Ancine, como Bolsonaro diz, muitas das leis do audiovisual são anteriores à criação da agência e continuariam existindo.

E essa é uma das razões pelas quais nem mesmo enforcar o orçamento do setor é tão simples assim. Hoje, as fontes de financiamento do setor são oriundas da Lei Rouanet, Lei do Audiovisual do Fundo Setorial, de onde estima-se que venha mais da metade dos orçamentos de filmes hoje. O Fundo Setorial tem a maior parte do orçamento originária do Condecine, que é a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, além de receitas, concessões e permissões principalmente vindas do setor de telecomunicações. O Condecine, cujo orçamento previsto para este ano é de 724 milhões de reais, também é regulamentado por uma lei própria. Ou seja, mais uma vez, o Congresso seria necessário para alteração desta lei. Procurada, a Ancine não quis se pronunciar sobre as declarações do presidente.

Mudar a sede e censura

A Ancine, cujas atribuições são o fomento, a regulação e a fiscalização do mercado do cinema e do audiovisual no Brasil, tem sede no Distrito Federal, escritório central no Rio de Janeiro e um escritório regional em São Paulo. Transferir sua sede para Brasília, como propôs o presidente, implica os custos que a transferência dos servidores vai acarretar e, na prática, muda pouca coisa. Vera Zaverucha, ex-diretora da Ancine e que participou da sua criação, explica o que isso pode significar. “Na prática, o presidente está dizendo que os diretores têm que estar em Brasília. Porque a sede da Ancine já é lá, então dizendo isso, ele está sinalizando que quer que a direção fique perto dele”.

Kleber Mendonça Filho

@kmendoncafilho

The day after 4 🇧🇷 films are selected for Locarno, in a remarkable year for Brazilian cinema w/ strong selections In Sundance, Rotterdam, Berlin and Cannes, Bolsonaro announces plans to shut down the Brazilian film agency because he's not happy with the films it has been funding.

555 pessoas estão falando sobre isso

Já a cineasta Laís Bodanzky, diretora-presidente da SPCine e diretora de longas como Bicho de Sete Cabeças e Como nossos pais, afirma que questões como o endereço do escritório central são pequenas diante do que pode estar por vir. “Mudança de endereço não é prioridade para um setor tão importante que movimenta recursos e empregos neste país”, diz. “Isso tudo é um desvio de foco do que é mais importante, que é: qual é o projeto do Governo para o audiovisual?”, questiona. Kleber Mendonça, diretor de Aquarius e Bacuraurecentemente premiado no Festival de Cannes, se pronunciou por meio do Twitter, afirmando, em inglês, que Bolsonaro anunciou o plano de acabar com a agência brasileira de cinema no dia seguinte ao que quatro filmes foram selecionados para o festival internacional de cinema de Locarno. O diretor também lembra que este é um ano notável para o cinema brasileiro com seleções no festival de Sundance, Rotterdam, Berlim e Cannes. E que o anúncio do presidente é porque ele "não está feliz com os filmes que estão sendo financiados".

Por ora, o único projeto sinalizado pelo presidente para o setor é o de instituir o que ele chama de “filtro” nas produções. “Não posso admitir filmes como Bruna Surfistinha com dinheiro público”, afirmou Bolsonaro na semana passada, criticando o financiamento do longa de 2011 de Marcus Baldini que narra a história real de uma adolescente de classe média que vira garota de programa. "Se não puder ter filtro, extinguiremos a Ancine. Não pode é dinheiro público sendo usado para filme pornográfico".

Mas, na realidade, a produção audiovisual brasileira nada tem a ver com o gosto dos presidentes em exercício. “Hoje para a aprovação de um filme é analisado o tipo de conteúdo e se o orçamento condiz com o que o produtor diz que vai fazer”, diz Vera Zaverucha. E essa análise não passa pela presidência. Ela explica que, na prática, esse “filtro” de Bolsonaro não tem vias para ser instituído. “Como você vai dizer que não pode fazer determinado filme? Seria censura, não teria como. Ele teria que editar um decreto explicitando o que não pode. E ele não pode fazer isso, porque a Constituição proíbe a censura”.


El País: “A reforma da Previdência é importante para as contas públicas e para o povo”, diz Wellington Dias

Petista Wellignton Dias diz que projeto atual na Câmara é só "meia reforma", por não atacar todo o déficit, e ainda luta pela inclusão dos Estados nas mudanças

Enquanto os parlamentares do PT formam uma das principais frentes contrárias à reforma da Previdência apresentada pelo Governo de Jair Bolsonaro e aprovada em primeiro turno na Câmara, o governador do Piauí, o petista Wellington Dias, vai na direção contrária e tenta negociar em Brasília a entrada dos Estados e municípios nas novas regras de aposentadoria. "Hoje temos milhares de leis diferentes sobre previdência nos municípios e Estados. Isso é o problema brasileiro que precisa ser encarado", explica o governador. Dias reconhece que o rombo das aposentadoris e pensões é atualmente o maior desafio enfrentado pelo Piauí, que acumula um déficit de 1,2 bilhão de reais ou 12% da receita líquida do Estado.

Apesar de ver com bons olhos a tentativa do Senado de incorporar, em uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) paralela, os Estados e municípios na reforma, o petista não está otimista. "Há uma preocupação dos parlamentares com o desgaste ao apoair a medida e ainda disputas internas. É muito difícil". Para além da inclusão dos Estados, ele defende  ainda a busca de receitas extras para resolver o probelma atual, que poderiam vir da recuperação de impostos sonegados, da exploração de novos campos de petróleo e da taxação de lucros e dividendos.

Questionado pelo EL PAÍS, na última quinta-feira, sobre a relação dos estados de oposição com o Governo, o petista não chegou a tecer nenhuma crítica direta à gestão Bolsonaro. A entrevista foi realizada, no entanto, antes de ser vazada a fala do presidente que disse: "daqueles governadores de 'paraíba', o pior é aquele cara do Maranhão, tem que ter nada com esse cara". O uso de um termo pejorativo para se referir aos nordestinos e a retaliação foi recebida por Dias com indignação, segundo nota enviada à reportagem. Junto com outros governadores do Nordeste, ele assinou uma carta pedindo explicações para o presidente.

A seguir, a entrevista com o governador do Piauí:

Você pode não fazer a reforma da Previdência, mas tem um preço. Fazer tem um preço e não fazer tem um preço.

Pergunta. Qual é hoje a maior dificuldade de convencer os parlamentares da bancada de oposição da necessidade de uma reforma da Previdência também para os Estados e municípios?
Resposta. No Brasil, temos um problema de origem da Previdência, de como começou lá trás. Era muito mais um fundo de pensão. Para alguns setores não tinha contribuição, tínhamos situação de gratificação, algumas vantagens, com regras que colidiram com a lógica de previdência. E a consequência disso é que o sistema nasceu desequilibrado, ficou um longo período desequilibrado, chegando, em 2018, com um déficit nos Estados e municípios de quase 100 bilhões de reais. No momento em que se vai trabalhar a reforma, cresceu uma esperança da minha parte, creio que de grande parte dos governadores, de criarmos um entendimento para fazer para valer uma reforma. Se analisarmos, todos os Governos das últimas três décadas propuseram mudanças e fizeram um pequeno ajuste. É o que está acontecendo novamente. Desde o início, defendemos a necessidade de ter um regramento unificado para o Regime Geral, que, no Brasil, vai até cerca de 5.600 reais de teto, e que, a partir dali, seja previdência complementar. Isso já é uma realidade em alguns Estados, como o Piauí, mas é necessário unificar o setor público e privado, União, Estados e municípios. Após várias tentativas frustradas de entendimento, se decidiu apresentar o relatório na Câmara para votação sem Estados e municípios. Os governadores os prefeitos não tinham muita força para tratar com nossos partidos porque a promessa de entendimento foi quebrada. Os partidos, a partir daí, votaram na realidade da Previdência da União e do INSS.

Há uma preocupação dos deputados com desgaste da medida e há ainda disputas internas, alguns são candidatos a prefeito, outros pensam nos seus mandatos futuros

P. Mas o que foi colocado nas negociações para que Estados e municípios também entrassem na reforma? O que a oposição propôs?
R. Para sentar à mesa, sugerimos duas coisas. Primeiro, que fosse uma reforma que abarcasse os três níveis de Governo, União, estados e municípios. Dois, uma mudança que não trouxesse mudanças na lei orgânica da assistência social, no BPC [Benefício de Prestação Continuada] e nas aposentadorias rurais principalmente. Também havia uma rejeição ao modelo de capitalização e ainda uma reação sobre regras de desconstitucionalização. Tivemos que sentar e negociar. Da parte dos Estados, o entendimento vai em duas linhas. Tínhamos que estabelecer regras sobre o tempo de contribuição e idade. Defendíamos tratamento diferenciado especialmente para mulheres. Mas também para professores e policiais, por conta da tradição brasileira, e uma alíquota maior de 14% para compensar a diferenciação. Compreendemos também que era necessário sair da reforma como uma alternativa de solução para o déficit imediato.

P. Mas várias dessas condições foram contempladas ao longo das mudanças do texto-base...
R. Reconheço que teve uma posição favorável do Rodrigo Maia [presidente da Câmara], mas ela não foi apoiada pela maioria dos líderes. Na verdade, os líderes em razão de diferenças regionais, disputas estaduais, preferiram trabalhar uma tese que não iriam tratar de Estados e municípios. Eu sou um defensor da permanência.

P. Ainda que seu partido, o PT, continue sendo contrário a essa reforma, certo?
R. O meu partido terminou indo nessa direção...Mas é bom lembrar que até onde a gente tinha possibilidade de ter Estados e municípios e construir um texto por entendimento havia uma abertura de dialogar com os partidos. Mesmo que o partido não tivesse uma posição favorável, mas que não radicalizasse ao ponto de determinar punições etc. Era possível que alguns parlamentares votassem. No primeiro momento, antes de alguns avanços que fizemos em relação ao texto, ainda não havia 308 votos. Claro que foi por conta desses avanços que se conseguiu os 379. Hoje, eu continuo dizendo que o próximo presidente da República irá anunciar uma próxima reforma. Porque estamos saindo com uma meia reforma. Um problema de 200 bilhões de reais estamos com um olhar sobre uma parte de 100 bilhões. Caso a reforma seja aprovada na forma que veio na Câmara, nos primeiros 12 meses da implantação vamos ter um déficit da União caindo de 100 bilhões para 80 bilhões. Porque de um lado tem o ganho, mas também uma corrida a aposentadoria por conta das novas regras. Era isso mesmo que a gente queria?

Atualmente, tenho que pegar 1,2 bilhão de reais, que era para investimento, e destinar para não atrasar o pagamento de aposentados e pensionistas

P. Como o senhor avaliou a conduta do PDT de suspender a deputada Tabata Amaral do partido após o voto contrário à bancada?
R. No momento em que Estados e municípios ficaram de fora, isso dificultou um argumento forte dos governadores e prefeitos em relação à direção de seus partidos. Claro que valorizo os partidos, eu entendo que a deputada Tabata como outros parlamentares analisaram a realidade dos seus Estados e ao votar tiveram razão para isso. Muitas vezes você toma uma decisão e não é compreendido. Com o passar do tempo, muitas vezes demonstra que você tinha razão. É uma decisão que exigia muita coragem na minha opinião. Vamos acompanhar o que vai acontecer com o Brasil. Na minha opinião, mais Estados e mais municípios entrarão em dificuldade. Quem irá socorrer? A União. Quem irá pagar a União? O povo. Ou seja, você pode não fazer a reforma, mas tem um preço. Fazer tem um preço e não fazer tem um preço.

P. Acredita que os Estados e municípios poderiam ser incorporados num segundo momento, no Senado?
R. No Senado, há hoje uma possibilidade de trazer Estados e municípios na reforma, no que eles chama de PEC paralela. Isso já foi experimentado. Mas o texto terá que passar também pela Câmara, que é a mesma. Eu que vivi a experiência da Câmara e do Senado aprendi que quando se cristaliza uma posição, como ocorreu, é pouco provável que isso sofra alteração. Há uma preocupação dos deputados com desgaste da medida e há ainda disputas internas, alguns são candidatos a prefeito, outros pensam nos seus mandatos futuros. Mas, mais vale uma esperança tarde que um desengano cedo. É muito difícil, mas acho que é um gesto importante por parte do Senado.

P. Se a PEC do Senado não passar, caberá então a cada um dos Estados realizar sua própria reforma...
R. É o caminho mais provável. Ele é bom? Não. Ele já foi experimentado. Por exemplo, lá trás o Brasil fez uma opção de trabalhar a Previdência complementar. Quantos Estados brasileiros implementaram? Como não era obrigatório, como ficou para regulamentação à mercê de cada Estado e município, cada um dos que fez ainda alterou pontos. O resultado é caótico. Nós temos milhares de leis diferentes sobre Previdência nos municípios e Estados. Isso é o problema brasileiro que precisa ser encarado. Terminado a reforma, cada Estado vai se debruçar sobre o que foi aprovado e tomar a decisão sobre o que é possível implementar. Se tiver algo que seja aproveitado no Piauí, irei dialogar com a Assembleia Legislativa. Mas no diálogo com o presidente da Câmara e o Senado colocamos na ordem do dia um ponto que tem solução imediata. Entendemos que o problema da Previdência é grave e, por isso, 27 Estados decidiram que, de agora em diante, as novas receitas que o Congresso Nacional tratar serão destinadas para a cobertura do déficit da Previdência.

P. Quais receitas são essas?
R. No momento, quatro alternativas de receitas novas tramitam no Congresso. Uma delas é sobre os recursos do pré-sal. Do leilão que começa agora em novembro, na chamada cessão onerosa, vamos ter duas receitas o bônus de assinatura e a chamada receita do óleo excedente. Ela é dos Estados, municípios da União. Há ainda na Câmara o projeto da Lei Kandir, que a União deve disponibilizar 4 bilhões de reais. Também existe um projeto de securitização da dívida ativa. A parte dos Estados soma 400 bilhões e estamos propondo um moderno sistema de cobrança. Todas essas possíveis novas arrecadações serão destinadas à cobertura do déficit da Previdência dos Estados ou para os investimentos. Quem não tiver déficit, que são apenas três Estados, usa para investimento.

P. Qual a situação do rombo da Previdência no Piauí?
R. O déficit da Previdência é hoje o maior desafio do Estado. Hoje temos uma dívida pequena com a União. É um Estado que mantém o controle na parte de custeio, folha de pagamento e vem se mantendo com capacidade de investimento. Mas tem um problema: 12% da receita corrente líquida do Piauí é para a cobertura do déficit. Atualmente, tenho que pegar 1,2 bilhão de reais, que era para investimento, e destinar para não atrasar o pagamento de aposentados e pensionistas, porque o dinheiro próprio da Previdência não foi suficiente. E assim como eu estão 24 das 27 das unidades federações. É um problema do Brasil.

P. Os Estados também dependem muito de repasses do Governo. Como oposição, como tem sido a relação com a gestão Bolsonaro?
R.Quem está com a maior crise é a União. Ela precisou mandar para o Congresso autorização para cobrir um déficit nas suas contas em 2019 de aproximadamente 250 bilhões, muitos Estados, como o meu, não estão mandando para seus legislativos autorização para cobrir o negativo. Eu compreendo que o que me moveu como brasileiro a fazer a defesa da reforma é porque ela é importante para as contas públicas e para o povo. Não é só quem é governador que faz parte da oposição que está com dificuldade de ter recursos da União. O problema de escassez está com a União. Vamos ter que encontrar soluções. Por isso, defendo a regulamentação de receitas de royalties e participação especial, mecanismo para cobrar sonegação, tributação sobre lucros e dividendos. O Governo mandou o Plano Mansueto [referência ao secretário do Tesouro, Mansueto Almeida], que é um plano para Estados em dificuldades, que de um lado exige contrapartidas na área fiscal mas libera condições de empréstimo. Isso é uma alternativa para investir.

P. Mas o Plano Mansueto ainda é apenas um projeto...
R. Tivemos um compromisso do Rodrigo Maia que ele irá colocar em votação em agosto e Davi Alcolumbre [presidente do Senado] disse que, chegando no Senado, ele aprecia em setembro. Quando a economia tem um crescimento baixo, qualquer esforço na área da despesa, ajustes fiscais vão ser incapazes de solucionar o problema. É preciso ter a condição de concluir uma carteira de cerca de 23 mil obras paralisadas em todo o Brasil, gerar cerca de 2 milhões de empregos. Isso que gera renda e faz a economia girar. Meu esforço ao trabalhar alternativa nas PECs tem um objetivo estratégico de, independentemente de partido, alavancar o crescimento econômico.

P. Ainda que a reforma da Previdência não tenha sido concluída já se começa a falar nas propostas de uma reforma tributária. Acredita que ela terá também forte aceitação ou será uma discussão mais complexa com a sociedade?
R. Acompanho a discussão há muitos anos e acho que agora tem chances de sair. Conseguimos um milagre dentro de uma conjuntura adversa: 27 governadores celebraram um termo de concordância para a reforma tributária. Por que no Brasil sempre na hora "h" não deu certo? Por falta de entendimento com os Estados. Mas com um olhar de desburocratização, olhando para o empreendedor, com cuidado com os pequenos, com a população de baixa renda, o que estamos fazendo é um projeto que unifica vários tributos em dois tributos. Você terá o ICMS, o IPI, O ISS, vários que serão unificados, o imposto sobre bens, direitos e serviços. Ele será aplicado no Brasil inteiro com apenas três alíquotas. Uma mais baixa para a cesta de consumo prioritária da população, alimentos, medicamentos etc., uma intermediária para aquilo que é considerado normal no dia a dia do consumo e uma mais elevada para o supérfluo. Ele é semelhante ao projeto do Bernado Appy, que o Baleia Rossi trouxe para a discussão no Congresso e nossa ideia é discutir a proposta ancorada neste projeto. Uma transição em dez anos, o fim da guerra fiscal, o fim da bi e da tri tributação que há no Brasil. Da mesma forma, no Governo Federal vamos ter a unificação de tributos da União, no imposto sobre serviços. Essa mudança é um passo muito grande e acho que vai contribuir para acelerar crescimento.


El País: Vazamentos da Lava Jato jogam luz nos limites éticos do Judiciário e MP

Mensagem mostram que as linhas que separam o que é ilegal, imoral e legítimo sob os olhos da Justiça frequentemente se confundem no Brasil

Em meio às mensagens da chamada #VazaJato sobram questionamentos. Juiz pode ou não pode orientar advogado? Procurador pode lucrar com palestra? Discutir na imprensa casos em andamento é permitido? O EL PAÍS conversou com juristas para trazer à luz questões-chave da Justiça brasileira.

A controversa figura do “super juiz” brasileiro
Nesta semana, conversas privadas entre procuradores analisadas pela Folha de S. Paulo indicam que Moro interferiu nas negociações de delações. De acordo com a reportagem, no início de 2015, a força-tarefa negociava acordo de leniência com a Camargo Corrêa e delações premiadas para seus executivos, presos desde 2014. Porém, na reta final das negociações, Dallagnol sugere ao então procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que atuou na força-tarefa até setembro de 2018, que consultasse Moro antes de fechar qualquer acordo, uma vez que o juiz teria dito que não homologaria acordos cujas penas não incluíssem ao menos um ano de prisão em regime fechado.

25 DE FEVEREIRO DE 2015
Dallagnol - Carlos Vc quer fazer os acordos da Camargo mesmo com pena de que o Moro discorde? Acho perigoso pro relacionamento fazer sem ir FALAR com ele, o que não significa que seguiremos. Podemos até fazer fora do que ele colocou (quer que todos tenham pena de prisão de um ano), mas tem que falar com ele sob pena de ele dizer que ignoramos o que ele disse. Vc pode até dizer que ouve e considera, mas conveniência é nossa e ele fica à vontade pra não homologar, se quiser chegar a esse ponto. Minha sugestão é apenas falar (sic)

Não é a primeira vez que sugestões de Moro aparecem em meio aos diálogos. Já no começo dos vazamentos, mensagens nas quais o ex-juiz aparentava orientar as ações do procurador, como o pedido para inverter ordem de fases das investigações ou a reclamação de que a força-tarefa estava muito tempo sem realizar uma operação, colocaram em xeque a imagem do juiz imparcial, uma garantia constitucional no Brasil.

Muitos viram Moro ora no papel de um juiz de garantias – aquele que atua apenas na fase de investigação, antes do oferecimento da denúncia –, ora como juiz de instrução – responsável por colher as provas, como um membro da força policial. Mas estas figuras não existem no Código de Processo Penalbrasileiro. “No sistema processual espanhol, uma das formas de resguardar a imparcialidade é impedir que o juiz que aprecia as diligências da investigação seja o mesmo que julgue a causa”, explica Edilson Vitorelli, professor de direito do Mackenzie e autor do livro Qual ministro eu sou?, que explica o funcionamento do Supremo Tribunal Federal. 

Vitorelli afirma que a premissa que justifica esta separação de funções é psicológica. Seus defensores alegam que, na medida em que o juiz acompanha a execução de provas, ele pode ir se convencendo da veracidade das provas, o que pode prejudicar o réu. No Brasil, no entanto, o juiz que preside o inquérito é o mesmo que julga a causa.

Sobre reportagem da Folha de S. PauloMoro afirmou pelo Twitter que não reconhece a autenticidade das mensagens. Porém, defendeu que “o juiz tem não só o poder, mas o dever legal de não homologar ou de exigir mudanças em acordos de colaboração excessivamente generosos com criminoso”. Não é a primeira vez que ele defende essa espécie de "super poder" dos juízes. Em 2017, Moro havia se mostrado contra a separação de funções em audiência pública na Comissão Especial do Novo Código de Processo Penal, que define quem deve fazer a investigação criminal, quem deve denunciar o acusado, quais são os direitos do réu e como esses direitos podem ser exercidos ao longo de todo o processo. “Tenho dúvidas de que separar o juiz de garantias do juiz do processo seria algo que se justifique ou que vai apenas trazer prejuízos ao processo. Falta consistência, ao meu ver, nessa construção relativa ao juiz de garantias”, disse.

Nas discussões do novo Código de Processo Penal – o atual é de 1941, apesar de já ter sido bastante alterado –, há proposta para que este sistema mude, mas não sem controvérsias. Para Oscar Vilhena Vieira, diretor da FGV Direito SP, o sistema no qual o mesmo juiz que acompanha a investigação é responsável pelo julgamento não é o mais adequado para garantir o devido processo. “O juiz se torna muito próximo aos investigadores e ao Ministério Público Federal (MPF), o que pode impedir um comportamento imparcial. Há muito os advogados e réus no Brasil reclamam dessa proximidade excessiva entre juízes criminais e o MPF. Parte é resultado do desenho institucional, parte da cultura jurídica. Em cidades do interior coabitam o mesmo fórum. Certamente precisamos repensar o modelo”.

Vitorelli, por outro lado, não acha uma boa ideia. “Não há pesquisas fundadas o bastante para dizer que há necessidades desta mudança. Não podemos decidir com base em casuísmo. Há ideias, opiniões, mas falta pesquisa para saber como o país se comportaria. Vejo vantagens e desvantagens”, diz. Dentre as desvantagens, ele aponta que o número de juízes atual não seria capaz de atender a demanda. “Especialmente em cidades pequenas, seria inviável a figura do juiz de instrução e garantir. Só iríamos atrasar o processo penal, com ganho pequeno de justiça”, diz.

Dar aulas versus lucrar com casos em andamento

JULHO DE 2017
Dallagnol - Eu pedi pra pagarem passagens pra mim e família e estadia no Beach Park. As crianças adoraram (...) Além disso, eles pagaram um valor significativo, perto de uns 30k [30 mil reais]. Fica para você avaliar (sic)

A crise das palestras não é um debate novo e envolve membros de diversos setores do funcionalismo público, mas voltou à tona com as mensagens que mostram membros do MP falando sobre como lucrar com a realização de palestras pagas por empresas e entidades interessadas em se associar à imagem da Operação Lava Jato.

Conselho Nacional do Ministério Público instaurou reclamação disciplinar contra Dallagnol e e seu colega Roberson Henrique Pozzobon após a "ampla repercussão" das mensagens, mas admitiu em nota que não tem um ato normativo que trate especificamente da realização de palestras por membros do MPF. A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), por outro lado, defende as palestras como atividade docente, o que é permitido por lei.

Vieira afirma que, embora esse seja um problema de difícil solução, não é preciso novas regras para dar clareza à questão, uma vez que as atuais já impediriam excessos. “Lembro de uma vez ter perguntado a uma juíza da Suprema Corte norte-americana, Sandra O’Conner, sobre um caso. Ela me disse que não poderia falar sobre o assunto pois eventualmente iria julgar a questão. Fiz então uma outra questão sobre um caso julgado. Ela me disse que não falaria sobre um caso já julgado pela Suprema Corte, pois aos acadêmicos, políticos e cidadãos cabem julgar as decisões da corte, não aos próprios juízes”, conta.

De fato, o Código de Ética e Disciplina da Organização Brasileira dos Advogados(OAB) tem normas rígidas quanto as formas de comunicação permitidas. Orienta advogados a não dar entrevistas para se promover profissionalmente, por exemplo. Evitar insinuações e debates de caráter sensacionalista também constam no código, que, certamente, foi escrito antes do advento das redes sociais, espaço disputado por juristas para arrebanhar apoio para suas causas. É pelo Twitter que Dallagnol fala frequentemente com seus apoiadores. E foi por ali que diversas vezes, defendeu o trabalho do MPF na Lava Jato como “técnico, imparcial e apartidário”. O procurador tem quase 900 mil seguidores, mas perde de Moro com seus 1,2 milhões de fãs. “Toda a nossa regulamentação sobre comunicação não acompanhou os avanços sobre internet”, explica Vitorelli. A lentidão nos processos normativos também é um problema. “Se tivéssemos regulado as redes sociais, é possível que ainda estivéssemos falando do Orkut.”

Quando um juiz deve se declarar impedido?

Uma das críticas mais rotineiras a Sergio Moro é que ele teria sido parcial ao condenar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que liderava as pesquisas, e depois aceitar um cargo no Governo. O tema foi motivo de debate entre procuradores nas conversas obtidas pelo The Intercept. E não foram poucos que disseram que Moro deveria ter se declarado impedido de julgar o ex-presidente, apenar ao ter uma inclinação política diferente.

31 DE OUTUBRO DE 2018
Conversa entre procuradoras
Isabel Groba – É o fim ir se encontrar com Bolsonaro e semana que vem ir interrogar o Lula.
Jerusa Viecili – Concordo com tudo, Isabel!
Laura Tessler – Tb! Pelo amor de Deus!!!! Alguém fala pro Moro não ir encontrar Bolsonaro!!! (sic)

O impedimento de um juiz não é matéria comumente discutida no Brasil, mas é tema presente no imaginário popular. O personagem do juiz que se declara impedido ou suspeito de fazer um julgamento porque determinada preferência pode afetar sua imparcialidade é comum em vários seriados que abordam a Justiça norte-americana, mas não tem amparo legal por aqui. “No Brasil, diferentemente de outros países, imparcialidade não é questão psicológica, um sentimento”, explica Vitorelli. “Os EUA têm uma visão de distanciamento judicial diferente da nossa. Ser favorável a um partido aqui não impacta. A não ser que seja forte o bastante para impedir uma decisão justa. Mas não conheço nenhum caso que isso tenha acontecido”, diz.

Os artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil trazem uma lista bastante específica de casos em que há a suspeição do juiz, mas que esbarram em zonas cinzentas. Por exemplo, um juiz não pode ser amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou seus advogados – algo bastante subjetivo no país que ficou conhecido pelo seu "homem cordial", para lembrar o conceito forjado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda. Segundo levantamento feito pela revista Piauí, nos últimos cinco anos, o Supremo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e os cinco Tribunais Regionais Federais deram 1 432 decisões contrárias ao afastamento de juízes por suspeição e apenas dezenove favoráveis.

O que não significa que estejam liberados para fazer política. “Juízes devem prestar contas de sua atividade e a melhor forma de fazê-lo é fundamentando e justificando suas decisões”, explica Vieira. “Não devem usar a toga para fazer política. Juízes aplicam a lei. Políticos fazem política. Quando não gostamos do que fazem, não os elegemos mais. Quando juízes fazem política, não temos como nos defender”, diz.


El País: Brasil se alia a EUA e vizinhos e cria grupo antiterrorista na Tríplice Fronteira

Decisão foi anunciada durante visita do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, em Buenos Aires, para participar da segunda reunião hemisférica contra o terrorismo

Brasil se alia a EUA e vizinhos e cria grupo antiterrorista na Tríplice Fronteira Presidente do Irã diz que a Casa Branca tem “atraso mental”
A Argentina, o Brasil, o Paraguai e os Estados Unidos criaram um grupo de coordenação antiterrorista para vigiar a Tríplice Fronteira entre os três países latino-americanos, uma região turbulenta onde, de acordo com diversos serviços de espionagem, a organização libanesa Hezbollah arrecada fundos para suas atividades no continente. O anúncio coincidiu com a visita a Buenos Aires de Mike Pompeo, chefe da diplomacia norte-americana, e com a crise entre Washington e Teerã. O Hezbollah, que acaba de ser incluído na lista de organizações terroristas pelo Governo argentino, está diretamente ligado ao regime iraniano.

Pompeo viajou a Buenos Aires para participar das homenagens dos 25 anos do atentado contra a sede da AMIA (Associação Mutual Israelita Argentina), em que 85 pessoas morreram. Tanto os Estados Unidos como a Argentina acusam o Hezbollah de haver cometido o atentado, impune até hoje, e consideram que o responsável direto pela matança foi o libanês Salman Raouf Salman, também conhecido como Samuel Salman El Reda, membro do Hezbollah e casado com uma argentina. O Departamento do Tesouro norte-americano anunciou que recompensará com sete milhões de dólares (26 milhões de reais) a quem der informações sobre o paradeiro de Salman, que supostamente se encontra no Líbano.

Os Governos de Washington e Buenos Aires, ambos conservadores, parecem viver um idílio intenso —a relação da Casa Branca com o Planalto também vive momento de sintonia celebrada por Jair Bolsonaro. John Bolton, conselheiro de segurança Nacional da Casa Branca, elogiou Mauricio Macri por incluir o Hezbollah na lista de organizações terroristas, o que permitirá o bloqueio de contas correntes ligadas à organização. Mike Pompeo, em Buenos Aires, afirmou que o Hezbollah mantinha “uma forte e ameaçadora presença” no Cone Sul latino-americano e pediu que “todos os países sigam o exemplo argentino”. “Entramos em uma nova era em relação à cooperação entre os Estados Unidos e os países latino-americanos”, disse. O grupo de cooperação antiterrorista na Tríplice Fronteira se reunirá antes do final do ano em Assunção (Paraguai) para estabelecer sua estrutura de funcionamento.

O ministro das Relações Exteriores argentino, Jorge Faurie, disse que o Hezbollah mantinha ligações com a guerrilha colombiana e com o que restou do Sendero Luminoso no Peru, e significava “um perigo para toda a região”.

Tudo leva a crer que a boa relação pessoal entre os presidentes Donald Trump e Mauricio Macri propiciou uma troca de favores. O ministro Faurie agradeceu na presença de Pompeo “o apoio dos Estados Unidos durante nossas dificuldades financeiras”. Os Estados Unidos são o principal acionista do Fundo Monetário Internacional, que em setembro emprestou 57 bilhões de dólares (213 bilhões de reais) à Argentina (a maior ajuda já proporcionada pelo órgão) e desde então atendeu a todos os pedidos vindos de Buenos Aires, em especial os que se referiam ao uso de parte dos fundos concedidos para deter a desvalorização em relação ao dólar.

Enquanto a Casa Branca apoia Macri, que precisa de um mínimo de estabilidade macroeconômica para tentar ser reeleito nas eleições presidenciais de outubro, o argentino se alinha firmemente à Casa Branca em todas as questões diplomáticas, incluindo as iniciativas antiterroristas. Tradicionalmente, a proximidade a Washington não costumava dar bons resultados eleitorais aos governos argentinos; talvez, como disse Mike Pompeo, “os tempos estejam mudando”.

A proximidade entre os dois governos fez com que a Casa Branca autorizasse a publicação dos dados da CIA sobre o atentado contra a AMIA, o que é considerado em Buenos Aires como uma amostra de confiança. De acordo com a CIA, não existem dúvidas sobre a autoria do Hezbollah, “com o apoio do Irã”. A CIA considera que funcionários do corpo diplomático iraniano trabalharam conjuntamente com os três grupos do Hezbollah (o de informação, o de execução e o encarregado de apagar rastros) que organizaram e cometeram o atentado de 1994.

O jornal argentino Infobae informou que o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, telefonou ao presidente Mauricio Macri para agradecer-lhe a inclusão do Hezbollah na lista de organizações terroristas.


El País: O inesperado silêncio de Bolsonaro sobre o encerramento do caso Adélio

Presidente não recorreu da sentença que considera seu agressor inimputável por problemas psicológicos nem comentou encerramento do processo contra ele. Um segundo inquérito policial ainda investiga a possível participação de terceiros no ataque

Era plena campanha de uma das eleições mais polarizadas do Brasil. Há pouco mais de dez meses, o presidente Jair Bolsonaro caminhava pelas ruas da cidade mineira de Juiz de Fora, acompanhado por centenas de apoiadores aos gritos de "mito!", quando sofreu um ataque que quase lhe custou a vida. Adélio Bispo de Oliveira cravou uma faca no abdômen do então candidato, segundo ele mesmo justificou às autoridades policiais, por motivos políticos e religiosos. Acreditava que Bolsonaro fazia parte de uma conspiração maçônica que incluía "o extermínio dos militantes dos partidos de esquerda e minorias" e que ele havia sido escolhido por Deus para salvar o país, conforme consta em documentos anexados ao processo. Laudos médicos particulares e judiciais apontam que o responsável pelo crime tinha problemas psicológicos, uma versão que o presidente nunca comprou. "Sabe por que a jogadinha de ser maluco? É que daqui para frente, se ele resolver fazer delação premiada, não vale mais porque ele é maluco", disse em ao vivo, no Facebook.

Desde o ataque, Bolsonaro passou a defender veementemente a tese de que Adélio seria apenas um instrumento de uma suposta tentativa de assassinato planejada por opositores políticos. Chegou a se irritar com as investigações sobre o crime — praticado durante um ato de campanha e, por isso, amplamente documentado em vídeos e fotografias — e até acusou a Polícia Federal de tentar "abafar o caso". "Parece que a PF age em parte como uma defesa do criminoso. Não quero que inventem o responsável, mas quero que apurem o caso", afirmou em uma entrevista semanas depois do atentado. Em fevereiro, a PF apontou que Adélio teria agido só. Meses depois, Bolsonaro mandou reforçar as investigações.

No último mês de junho, a Justiça considerou Adélio inimputável por apresentar problemas psicológicos. Bolsonaro não gostou da decisão. Indignado, prometeu que iria "até as últimas consequências" para que o grave ataque contra ele não ficasse impune. Também chegou a dizer que seria importante evitar que o caso transitasse em julgado para que Adélio tivesse a "oportunidade de falar" quem encomendou sua morte. Nesta semana, porém, a 3ª Vara Federal de Juiz de Fora encerrou o caso porque não recebeu recursos nem do Ministério Público Federal (MPF) nem dos advogados do presidente, que atuavam como assistentes de acusação.

Apesar de ter feito duras críticas às investigações e de ter endossado uma narrativa de conspiração em torno do caso ao longo dos últimos meses, Bolsonaro decidiu silenciar sobre o fim do processo e não explicar por que não recorreu, mesmo tendo criticado o reconhecimento da insanidade mental de seu agressor pela Justiça. No Twitter, onde o presidente costuma ser bastante atuante, a última manifestação sobre o caso aconteceu no dia 11 de junho. Bolsonaro postou um vídeo em que o advogado de Adélio, Zanone Manuel de Oliveira Júnior, se recusa a revelar quem o contratou.

A tese do presidente é de que o responsável pelo pagamento dos honorários indicaria os supostos mandantes do crime contra ele. O mistério em torno disso e o fato de Adélio ter sido filiado ao PSOL durante seis anos (2008-2017) são os principais fatores que alimentam a narrativa do presidente sobre o crime —enquanto, do lado oposto da polarização política, há até um documentário apócrifo no YouTube que garante que o ataque nem sequer ocorreu. O partido, inclusive, costuma ser relacionado ao caso frequentemente tanto pelo presidente quanto pelos seus filhos em suas postagens nas redes sociais. Em referência ao clamor na Internet para apurar os mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco, chegaram a criar a hashtag Quem mandou matar Bolsonaro. Cinco dias após o encerramento do processo, porém, ainda impera o silêncio no clã bolsonarista.

A ausência de reação causou estranhamento até mesmo junto a correligionários, como por exemplo o deputado federal Alexandre Frota. No Twitter, o parlamentar, que já vinha fazendo pequenas críticas ao Governo, reclamou que o caso da facada ficaria impune. "A facada vai ficar por isso mesmo. Nem o esfaqueado se interessa em punição, justiça ou dar continuidade ao processo do suposto crime. Esse é o Brasil estranho", publicou.

Sem recursos que contestassem a sentença, o processo contra Adélio Bispo foi definitivamente finalizado — ou transitado em julgado, no vocabulário jurídico. Ele já não pode mais ser condenado pelo crime praticado contra o presidente Bolsonaro, mas ainda está em curso uma investigação sobre a possível participação de terceiros. Na sentença de Adélio, o juiz federal Bruno Savino reconhece que ele planejou o crime, chegando a fotografar os locais que seriam visitados por Bolsonaro previamente, mas entende que o réu não pode ser responsabilizado por seus atos pela comprovação de insanidade mental. Adélio seguirá, então, internado por tempo indeterminado na Penitenciária Federal de Segurança Máxima de Campo Grande (MS) e deverá ser reexaminado por psiquiatras e psicólogos em um prazo de três anos, quando terá sua periculosidade reavaliada.

A sentença foi proferida no último dia 14 de junho. Três dias depois, o Ministério Público Federal foi intimado, mas não apresentou recurso. "Não havia o que pleitear em recurso nem sobre o que recorrer", explica o procurador Marcelo Medina, responsável pelo caso. Ele lembra que, antes da sentença na ação penal, a Justiça já havia reconhecido a insanidade mental e a consequente inimputabilidade do Adélio. "Então, na ação penal, só havia dois caminhos: a sentença absolutória, caso se entendesse que Adélio não praticou o fato, e a absolutória imprópria, com a aplicação de medida de segurança. Um terceiro caminho não seria possível juridicamente", argumenta.

No dia 28 de junho, o presidente também foi intimado, mas igualmente não apresentou recurso, apesar de Bolsonaro haver dito que iria até as últimas consequências. O EL PAÍS procurou o escritório de advocacia Moraes Pitombo, que representa o presidente no caso, mas não obteve retorno. Ao jornal Estado de São Paulo, o escritório enviou uma nota na qual informa que mudou de estratégia: “Os advogados do sr. presidente preferiram adotar nova estratégia jurídica, em razão da persecução penal evidenciar que o condenado se apresentou como instrumento, ou parte de uma engrenagem, para a prática do grave crime”. O Planalto também não comentou a mudança de estratégia.

O MPF e os advogados do presidente não discutiram a possibilidade de questionar a sentença. Segundo o procurador Marcelo Medina, não seria tecnicamente cabível agora um recurso. "Ele teria que ter sido interposto lá atrás, contra a decisão que reconheceu a inimputabilidade de Adélio. Só que essa decisão também estava calcada em laudos periciais e provas. Não havia nada a defender no recurso", explica.

Segundo inquérito e conspiração
O processo que foi encerrado trata apenas da atuação de Adélio no atentado contra Jair Bolsonaro. Uma eventual existência de coautores no crime continua sendo investigada em outro inquérito da Polícia Federal, que nos últimos dez meses ouviu mais de 100 pessoas que tiverem contato com Adélio. Um deles é o advogado Zanone Oliveira, que prestou novamente depoimento à PF na última segunda-feira (15) para esclarecer informações sobre o pagamento de despesas de uma viagem que fez a Campo Grande, onde seu cliente Adélio está detido. Alguns desses gastos teriam sido custeados por emissoras de televisão.

No depoimento, Zanone manteve a versão de que uma pessoa que frequentava a mesma igreja de Adélio em Montes Claros pagou 5.000 reais para que ele assumisse a defesa, mas desapareceu após a intensa repercussão do caso. Disse ainda que não revela o nome desta pessoa por questões de segurança e que não tem mais contato com ela. E que decidiu seguir o trabalho mesmo sem pagamento. As investigações policiais devem continuar até o fim de agosto, mas podem ser prorrogadas por mais 90 dias caso o Ministério Público Federal julgue necessário.

Segundo o procurador Marcelo Medina, diversas medidas têm sido adotadas com autorização judicial no curso do inquérito, mas todas elas estão sob sigilo. "Elas se destinam a identificar quais são os interlocutores com quem Adélio manteve contato antes do ataque e a verificar dados sobre vida financeira dele. Todas essas questões não podem ser publicizadas porque envolvem quebra de sigilo bancário e telefônico", explica.


El País: Eduardo Bolsonaro ficará inelegível ao menos até 2024 caso vire embaixador

Constituição proíbe candidaturas de familiares de chefes do Executivo, salvo aqueles que tenham mandato e busquem reeleição. Inelegibilidade se estenderá até 2028 caso presidente se reeleja

Se Eduardo Bolsonaro (PSL) deixar a Câmara dos Deputados e se tornar embaixador do Brasil nos Estados Unidos, como propõe seu pai, não terá aberto mão apenas dos 1,8 milhão de votos que fizeram dele o deputado federal mais votado da história do país. Renunciará também à possibilidade de se candidatar a qualquer cargo eletivo nos próximos anos. Ao menos — salvo imprevistos — até as eleições municipais de 2024. Caso seu pai, o presidente Jair Bolsonaro (PSL), se reeleja em 2022 e fique no cargo até 2026, neste caso a inelegibilidade se estenderá até 2028.

Quem diz é ninguém menos que a Constituição Federal, que no parágrafo 7º de seu artigo 14 determina o seguinte: "São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição".

Isso significa que, enquanto o presidente for seu pai, Eduardo pode hoje no máximo tentar se reeleger deputado federal em 2022. "A única exceção é a reeleição. A finalidade do artigo é impedir o uso da máquina pública [por parte da família do mandatário de turno] e evitar influência. A não ser quando o sujeito já possuía determinado cargo antes", explica Diogo Rais, especialista em Direito Constitucional e Eleitoral e professor da Mackenzie. Essa norma vale apenas caso Eduardo mantenha o mandato e decline o convite de assumir a embaixada nos EUA —algo que para acontecer, de todo modo, ainda depende da aprovação dos senadores. Seus irmãos, o senador Flavio Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro, estão com as vias livres para buscar reeleição futuramente. "Se ele sai para a embaixada, ele perderia esse coringa da reeleição", assegura Rais.

Contudo, o professor explica que o texto da Constituição é dúbio com relação ao tema, deixando-o vulnerável "a uma questão de interpretação, que é bem elástica". O problema é que a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também não é favorável ao zero três do clã Bolsonaro. Ironicamente, o precedente que pode atrapalhar seus planos está relacionado a família do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva: em 2008, o tribunal impugnou a candidatura a vereador em São Bernardo do Campo de Marcos Cláudio Lula da Silva, filho do então chefe de Estado.

O que estava em jogo era o entendimento do tribunal com relação ao "território de jurisdição", segundo explica Rais. Na época prevaleceu por 5 votos a 2 a tese do relator Felix Fischer. "No caso do presidente Lula, a circunscrição era nacional. Ficava então a discussão sobre se isso englobava Estados e municípios. Ou seja, o filho dele não poderia se candidatar aos cargos federais ou a nada?". O tribunal decidiu que, sim, engloba. "Foi uma surpresa", acrescenta o professor.

Possível mudança na jurisprudência

Analisando juridicamente a questão, Rais lembra que "direito político é fundamental e só pode ser restrito com uma norma que seja muito clara". Ou seja, um direito só pode ser retirado "em caso de certeza, não de dúvida". O professor raciocina a partir de uma leitura garantista da Carta Magna: "O entendimento do TSE é polêmico porque ele deu maior amplitude a uma norma que restringe um direito fundamental. Por mais que o ente federal tenha abrangência nacional, a Constituição faz referência a uma mesma jurisdição. Fazia sentido impedir candidaturas federais, não estaduais ou municipais", argumenta.

Assim, existem duas alternativas para que Eduardo Bolsonaro possa se candidatar em poucos anos novamente. Uma delas é que Jair Bolsonaro deixe a Presidência da República pelo menos seis meses antes do pleito de 2022 ou 2026, conforme determina a Constituição. A outra, segundo Rais, é que haja "uma virada jurisprudencial do TSE ou do Supremo". Algo que ele vê como possível. "Não existe consenso sobre o tema. Foi um 5 a 2 em um momento político tranquilo. A decisão é instável".


El País: Supremo suspende investigação e alivia pressão sobre Flávio Bolsonaro

O senador e filho do presidente é acusado de malversação de fundos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa

O presidente do Supremo Tribunal Federal tomou nesta terça-feira uma decisão que suspende provisoriamente a investigação por corrupção contra Flávio Bolsonaro, de 38 anos, senador e primogênito do presidente Jair Bolsonaro. A decisão do presidente do STF, José Antonio Dias Toffoli, foi tomada em resposta a um recurso apresentado pela defesa de Flávio Bolsonaro, investigado pela promotoria estadual do Rio de Janeiro por malversação de fundos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa. O caso, que eclodiu antes que Jair Bolsonaro ganhasse as eleições, ganhou ainda mais relevância após sua vitória e tem causado danos político ao presidente, que durante a campanha se vangloriou de ter as mãos limpas em meio a uma legião de políticos que estão presos por — ou são suspeitos de — corrupção.

A investigação sobre Flávio Bolsonaro começou por uma série de pagamentos supostamente irregulares a Fabrício Queiroz, um motorista e assessor que trabalhava em seu gabinete quando o atual senador era deputado estadual do Rio. Dentro dessa investigação, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), um órgão público que luta contra a lavagem de dinheiro, pediu e obteve informações sobre anos de movimentações bancáriasfeitas por Flávio Bolsonaro e por outros investigados.

O STF tem um enorme poder para administrar seus próprios tempos, para decidir se é urgente analisar uma causa ou adiá-la com ou sem prazo determinado, o que na prática lhe dá uma enorme influência sobre a política.

O presidente do mais alto tribunal do Brasil sustenta agora que, para evitar uma possível nulidade futura dos casos, ficarão suspensas provisoriamente todas as investigações em andamento no país nas quais o Ministério Público tiver obtido informações, sem autorização judicial, do Coaf, da Fazenda ou do Banco Central, segundo o jornal O Estado de S. Paulo. Todos os casos ficarão suspensos até novembro, quando o plenário do Supremo pretende analisar o mérito da questão. Os advogados de Flávio Bolsonaro recorreram com o argumento de que a Coaf usou um atalho para obter dez anos de movimentações bancárias de seu cliente.

A decisão de Toffoli é um sopro de oxigênio para o presidente Bolsonaro e seu filho senador, que tem se mantido discreto nos últimos meses, diferentemente de seus dois irmãos políticos. A suspensão temporária da investigação que envolve seu filho mais velho em um caso que inclui ligações com grupos paramilitares do Rio é a terceira boa notícia que Jair Bolsonaro recebe nos últimos dias, depois de uma primeira aprovação, na Câmara, da reforma da Previdência — projeto-chave de seu mandato que deve passar por nova votação na Câmara baixa antes de ir ao Senado — e do acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. O que não está tão claro é se o presidente conseguirá nomear seu terceiro filho, Eduardo, para o cargo de embaixador em Washington, porque não tem os votos necessários no Senado e porque as acusações de nepotismo não diminuem.

Queiroz, um policial aposentado que atuava como chefe de gabinete informal de Flávio, é acusado pela Coaf de ter movimentado 1,2 milhão de reais entre 2016 e 2017, algo incompatível com seu salário. Entre as transações, passou um cheque para a mulher do presidente, Michelle. Flávio já havia tentado, sem sucesso, paralisar as investigações sobre ele apelando para sua imunidade parlamentar.