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El País || Sem votos no Senado, Bolsonaro admite rever indicação de Eduardo para embaixada
“Não quero submeter o meu filho a um fracasso”, afirma o presidente. Senadores ouvidos pela reportagem acham pouco provável o recuo
62,8% são contra Eduardo Bolsonaro na embaixada nos EUA
Diante de uma iminente derrota em votação no Senado, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) disse que pode rever a decisão de indicar seu filho Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) como embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Os placares informais no Congresso mostram que são altas as chances do deputado federal ter seu nome barrado em votação pelos senadores. Na Comissão de Relações Exteriores, a conta é que os opositores teriam de 9 a 11 apoios entre 19 votantes. No plenário da Casa, de 39 a 42, entre 81 senadores. Ou seja, uma margem apertada para o Governo garantir uma vitória.
Ao deixar o Palácio da Alvorada na manhã desta terça-feira, o presidente foi questionado se desistiria da indicação de seu filho para o posto, caso notasse um cenário desfavorável no Senado. Respondeu: “Na política, tudo é possível. Não quero submeter o meu filho a um fracasso. Acho que ele tem competência, mas tudo pode acontecer”, comentou. Ao ser indagado por jornalistas, o presidente comparou o assunto a questões de relacionamento pessoal. Dessa vez voltou a fazer a comparação com um noivado. “Você está noivo, noiva virgem. Vai que você descobre que ela está grávida. Você desiste do casamento?”, questionou aos repórteres.
Horas depois, Eduardo rejeitou a ideia de que seu pai pudesse recuar da sua indicação. "Não tive nenhuma conversa dessa com ele. Está mantido. Estamos seguindo adiante. Estou esperançoso e confiante", afirmou o deputado, que já teve o nome referendado pelo Governo Trump.
Desde que anunciou que queria indicar o filho para a embaixada brasileira em Washington, Bolsonaro tem recebido uma série de críticas, inclusive de aliados. A mais recorrente é a de que o presidente estaria fazendo o que sempre criticou em sua campanha eleitoral beneficiando os seus apoiadores e familiares, ao invés de valorizar a “meritocracia”.
Nas últimas semanas, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, elogiou a indicação e, no dia 9, seu Governo deu o aval para o deputado se tornar embaixador. Porém, qualquer novo embaixador precisa ser sabatinado pela Comissão de Relações Exteriores do Senado e ter seu nome aprovado pela maioria dos senadores presentes na sessão de votação da indicação.
As primeiras repercussões no Senado nesta terça-feira foram de surpresa de um lado e de comemoração, do outro. O líder da oposição na Casa, Randolfe Rodrigues (REDE-AP), disse que o presidente “aprendeu a fazer contas”. “O presidente viu que não tinha votos para aprovar a indicação. Depois, viu que ela era absurda e descabida, principalmente depois do parecer da consultoria do Senado que mostrou que a indicação seria nepotismo”, afirmou.
Dois senadores governistas consultados pela reportagem disseram que não confiam nesse recuo do presidente. Ambos falaram sob a condição de não terem seus nomes divulgados. “Ele é dono de soltar esses balões de ensaio. Não acredito que ele vá recuar. Temos de aguardar”, disse um dos parlamentares.
Uma das possibilidades, caso se confirme o recuo, é que Bolsonaro concretize o que ele próprio ventilou recentemente, indicar seu filho para o cargo de ministro das Relações Exteriores, em substituição a Ernesto Araújo. “Se ele colocar o Eduardo como chanceler, vamos convocá-lo para ser sabatinado no Senado. Dos questionamentos ele não foge”, disse o senador Randolfe.
Os opositores também recorrerão à Justiça para impedir eventual nomeação de Eduardo Bolsonaro para o primeiro escalão do Governo, também sob o argumento de que essa indicação seria nepotismo.
El País || Medo de recessão derruba Bolsas pelo mundo e BC do Brasil anuncia venda de dólares
Índice Dow Jones recua 3% e a curva dos títulos norte-americanos se inverte pela primeira vez desde a crise financeira, mais um sinal de desaceleração econômica
Em um claro sinal da preocupação dos mercados, a taxa de juros dos títulos do Tesouro norte-americano de 10 anos caiu temporariamente abaixo da taxa de juros da dívida de dois anos, pela primeira vez desde 2007, quando a economia norte-americana estava entrando na Grande Recessão. Esse fenômeno — conhecido como inversão da curva de rendimento, uma alteração da relação normal entre os títulos — é geralmente considerado um sinal de recessão próxima. Os dados ruins de crescimento também não ajudaram a dissipar as dúvidas — uma queda de 0,1% no PIB no segundo trimestre — em uma das grandes fábricas do mundo, a Alemanha.
No Brasil, o dólar fechou a 4,038 reais e o índice Bovespa despencou 2,94%. O Banco Central anunciou que vai vender dólares das reservas externas pela primeira vez de 2009. Serão leiloados 550 milhões de dólares por dia entre 21 e 29 de agosto para conter a volatilidade cambial, num total de 3,845 bilhões de dólares. Nos últimos 10 anos, em momentos como este, de alta no valor da moeda norte-americana, a autoridade monetária brasileira leiloava contratos de swap cambial tradicional, que equivalem à venda de dólares no mercado futuro.
We are winning, big time, against China. Companies & jobs are fleeing. Prices to us have not gone up, and in some cases, have come down. China is not our problem, though Hong Kong is not helping. Our problem is with the Fed. Raised too much & too fast. Now too slow to cut....
..Spread is way too much as other countries say THANK YOU to clueless Jay Powell and the Federal Reserve. Germany, and many others, are playing the game! CRAZY INVERTED YIELD CURVE! We should easily be reaping big Rewards & Gains, but the Fed is holding us back. We will Win!
“Considerando a conjuntura econômica atual, a redução na demanda de proteção cambial (hedge) pelos agentes econômicos por meio de swaps cambiais e o aumento da demanda de liquidez no mercado de câmbio à vista, o Banco Central do Brasil comunica que, para efeito de rolagem da sua carteira de swaps, implementará a oferta de leilões simultâneos de câmbio à vista e de swaps reversos”, informou o BC em nota.
Os investidores reagiram vendendo ações em todo o mundo, provocando quedas que rapidamente anularam os lucros da terça-feira, quando a decisão do Governo norte-americano de atrasar a aplicação de tarifas sobre algumas importações chinesas provocou altas consideráveis. A já prolongada guerra comercial entre o gigante asiático e os Estados Unidos é precisamente um dos fatores das turbulências na economia global.
Essas tensões e os dados preocupantes da Europa, somados à incerteza sobre a política de taxas de juros do Federal Reserve (Fed, o banco central norte-americano), provocaram semanas de turbulências que se espalharam pelos mercados de ações e de dívida no mês de agosto.
O presidente Donald Trump reagiu via Twitter à queda dos mercados, arremetendo contra um dos habituais destinatários de suas críticas. “A China não é problema nosso. Nosso problema é com o Federal Reserve. Subiu muito e muito rápido, e agora demora muito para cortar”, disse, e chamou Jay Powell, presidente do Fed, de “inútil”.
INCERTEZA LEVA BOLSA MEXICANA AO MENOR NÍVEL EM CINCO ANOS E ATINGE O PESO
I. FARIZA, México
O México, a segunda maior economia da América Latina e um dos países mais presentes nas carteiras de investimento em mercados emergentes, foi arrastado nesta quarta-feira pelos dados econômicos globais desfavoráveis e pelo péssimo desempenho da Bolsa norte-americana. A economia do país latino-americano é uma das mais expostas ao que acontece em seu vizinho do norte. A Bolsa mexicana fechou o dia com uma queda ligeiramente superior a 2%, estabelecendo uma nova mínima desde março de 2014.
Às dúvidas sobre a saúde da economia das principais potências mundiais se junta uma série de fatores nacionais e regionais — incerteza sobre o plano do Governo mexicano para a petrolífera estatal, a Pemex, a mais endividada do mundo e envolvida em uma espiral de prejuízos, e a perda de confiança dos investidores na Argentina depois do resultado das primárias do domingo, com a vitória de Alberto Fernández e o naufrágio de Mauricio Macri. As maiores perdas da Bolsa mexicana se concentraram nas empresas dos setores industrial, de energia e de transporte de mercadorias, os mais expostos às flutuações econômicas.
O peso, a moeda de maior liquidez do bloco emergente, também sofreu com o medo dos mercados de uma recessão global: caiu 1,6% em relação ao dólar na sessão desta quarta-feira. Se na Bolsa a reação natural dos investidores é transferir parte de seu dinheiro para os títulos soberanos — por definição muito mais seguros —, no mercado de câmbio o movimento mais lógico é fugir para os valores mais estáveis: dólar, euro e iene.
Eliane Brum: A Amazônia é o centro do mundo
Eliane Brum apresentou este discurso durante jantar no primeiro encontro do 'Rainforest Journalism Fund', em Manaus, em julho
Eu quero começar lembrando onde nós estamos.
E quero lembrar que nós estamos no centro do mundo. Essa não é uma frase retórica. Também não é uma tentativa de construir uma frase de efeito. No momento em que o planeta vive o colapso climático, a floresta amazônica é efetivamente o centro do mundo. Ou, pelo menos, é um dos principais centros do mundo. Se não compreendermos isso, não há como enfrentar o desafio do clima.
Esta é justamente a razão de colocarmos o nosso corpo aqui, nesta cidade, Manaus, capital do Amazonas, estado do Brasil, país que abriga cerca de 60% da Amazônia. Manaus é tanto uma floresta em ruínas como as ruínas de uma ideia de país. Manaus pode ser vista como a escultura viva de um conflito iniciado em 1500, com a invasão europeia que causou a morte de centenas de milhares de homens e mulheres indígenas e a extinção de dezenas de povos. Neste momento, em 2019, testemunhamos o início de um novo e desastroso capítulo.
O Brasil é um grande construtor de ruínas. O Brasil constrói ruínas em dimensões continentais desde que começou a ser inventado pelos europeus no século 16. Neste momento, uma forma de vida predatória chamada bolsonarismo assumiu o poder quase total e totalitário no Brasil. O principal projeto do bolsonarismo é justamente construir ruínas com método e com velocidade na floresta amazônica. É por isso que pela primeira vez, desde a redemocratização do país, temos um ministro contra o meio ambiente.
Nenhum ministro do meio ambiente dos últimos mais de 30 anos teve a autonomia que já demonstrou ter Ricardo Salles, o ministro contra o meio ambiente. Ele é o office-boy do agronegócio predatório, este que é responsável pela maioria das mortes no campo e na floresta e é também a maior força de destruição do Brasil. Não é que hoje os ruralistas estão no Governo. No governo eles estiveram desde sempre, formalmente ou não. Hoje eles são o Governo.
O principal projeto de poder do bolsonarismo é converter as terras públicas que servem a todos, na medida em que garantem a preservação dos biomas naturais e a vida dos povos originários, em terras privadas para lucros de poucos. Estas terras, a maioria delas na floresta amazônica, são as terras públicas de usufruto dos povos indígenas, as terras públicas ocupadas pelos ribeirinhos (população que vive da pesca, da coleta do látex, da castanha e de outros frutos da floresta há mais de um século), e as terras de uso coletivo dos quilombolas (descendentes de escravos rebeldes que conquistaram seu direito aos territórios ocupados pelos antepassados).
As disputas entre os vários grupos que ocupam o Governo é constante, inclusive porque o Governo Bolsonaro tem como estratégia simular sua própria oposição, ocupando todos os espaços. A abertura das terras protegidas dos povos indígenas e a abertura das áreas de conservação, entretanto, despontam como consenso. Sobre transformar a maior floresta tropical do planeta em boi, soja e mineração não há briga. Algumas das vozes levemente dissonantes já foram deletadas do Governo.
O bolsonarismo vai muito além da criatura que lhe dá nome. Eventualmente, em algum momento, o bolsonarismo pode inclusive prescindir de Jair Bolsonaro. O bolsonarismo, intimamente conectado à crise global das democracias, está influenciando toda a região amazônica, fazendo com que figuras que se mantiveram nos esgotos por anos, às vezes décadas, estejam hoje emergindo em outros países da América Latina onde também o destino da maior floresta tropical do mundo está sendo decidido. O bolsonarismo, vale repetir, não é uma ameaça apenas para o Brasil, mas para o planeta. Exatamente porque ele destrói a floresta estratégica para o controle do aquecimento global.
Como resistir a essa enorme força de destruição, a essa competente força de destruição?
Para sermos capazes de resistir nós precisamos nos tornar floresta — e resistir como floresta. Como floresta que sabe que carrega consigo as ruínas, que carrega consigo tanto o que é quanto o que deixou de ser. Me parece que é a esse sentimento político-afetivo que precisamos dar forma para dar sentido à nossa ação. Para isso temos que deslocar algumas placas tectônicas de nosso próprio pensamento. Temos que descolonizar a nós mesmos.
O fato de a Amazônia ainda ser vista como um longe e também — ou principalmente — como uma periferia dá a dimensão da estupidez da cultura ocidental branca, de matriz primeiro europeia e depois norte-americana, essa estupidez que molda e dá forma às elites políticas e econômicas do mundo e também do Brasil. E, em parte, também às elites intelectuais do Brasil e do planeta. Acreditar que a Amazônia é longe e que a Amazônia é periferia, quando qualquer possibilidade de controle do aquecimento global só é possível com a floresta viva, é uma ignorância de proporções continentais. A floresta é o perto mais perto que todos nós aqui temos. E o fato de muitos de nós nos sentirmos longe quando aqui estamos só mostra o quanto o nosso olhar está contaminado, formatado e distorcido. Colonizado.
Dias atrás eu conversava com procuradores e defensores públicos que chegaram há pouco em cidades do interior amazônico. Era o primeiro posto deles. Porque essa é a lógica. A Amazônia é o epicentro dos conflitos, mas, para fiscalizar o Estado e defender os direitos dos mais desamparados, as instituições mandam os sem nenhuma experiência. Alguns deles — não todos — interpretam que estão sendo enviados a uma região amazônica como um teste ou mesmo um castigo, um calvário que precisam passar antes de ter um posto “decente”. Parte deles — não todos — não vê a hora de ter o que é chamado de “remoção” e deixar essa bad trip para trás. E não é culpa deles, ou não é só culpa deles, porque essa é a lógica das instituições, este é o olhar para a Amazônia. Felizmente alguns deles percebem a importância do seu papel, aprendem, compreendem, permanecem e se tornam servidores públicos essenciais para a luta pelos direitos em regiões onde os direitos pouco ou nada valem.
Lembrei a eles que, como eu, eram privilegiados. Eles estavam justamente no centro do mundo. Eles estavam no melhor lugar para se estar para quem tinha escolhido aquela profissão. Mas teriam que se esforçar muito para superar a sua ignorância, como eu me esforço todos os dias para superar a minha. Era a população local, eram os povos da floresta que teriam de ter enorme paciência para explicar a eles o que precisam saber, já que pouco ou nada sabem quando aqui chegam. O mesmo princípio vale para jornalistas e também para cientistas.
Se nós nos reunirmos aqui acreditando que somos especiais por estarmos preocupados com a floresta, não teremos compreendido nada. Se nós compreendermos a nós mesmos — nós jornalistas, nós cientistas, nós brancos para muito além da cor da pele —, como aqueles que deixam o conforto de suas casas em cidades “desenvolvidas” e supostamente com mais opções de lazer e cultura para se solidarizarem com os povos da floresta, também não teremos entendido nada. Se existe uma verdade ela está nas ruínas. A única verdade são as ruínas.
Durante mais de duas décadas, eu me desloquei para as diferentes regiões da Amazônia e depois voltei para Porto Alegre, primeiro, depois para São Paulo, onde vivia. Em 2017, me mudei para Altamira, para deixar de ser “enviada especial” à Amazônia, mudar o ponto de vista a partir do qual eu olhava para o Brasil e para o planeta e ser coerente com a convicção de que a floresta é o centro do mundo.
Na chegada, tive dificuldades para alugar uma casa. Algumas das que eu gostava pertenciam a grileiros e/ou mandantes de crimes contra povos da floresta e pequenos agricultores. Porque aqui, no centro do mundo, a relação é direta. Não é que os proprietários de casas, apartamentos, hotéis e condomínios de São Paulo sejam mais “limpinhos”, é que a cadeia entre o crime e a ponta é mais longa e tem mais intermediários.
Nas grandes cidades do Brasil e do mundo, somos afastados das mortes das quais nossos pequenos atos cotidianos se fazem cúmplices, temos o privilégio de não sermos obrigados a questionar a origem da roupa que vestimos ou a origem da comida que comemos. Aqui, na Amazônia, se você come boi, tem certeza que é boi de desmatamento. Se você compra madeira, sabe que (quase) não existe madeira efetivamente legal no Brasil. Se você compra uma mesa ou um guarda-roupa vai ficar olhando para esses móveis e pensando que muito provavelmente eles foram feitos com madeira arrancada de terra indígena ou de uma reserva extrativista. Aqui, no centro do mundo, a relação com a morte da floresta e dos povos da floresta, assim como com a morte dos agricultores familiares, é direta. É inescapável. E só podemos viver carregando — conscientemente — tanto nossas contradições quanto nossas ruínas.
Por isso, temos que enfrentar também a contradição de estarmos aqui, financiados neste evento, por recursos da Noruega. A Noruega também sustenta majoritariamente o Fundo Amazônia, hoje sob ataque do Governo de Bolsonaro. A continuidade do Fundo Amazônia, principal financiador da proteção da floresta, é essencial para barrar, ainda que minimamente, a destruição acelerada do bioma. Este fato não nos absolve, porém, da necessidade de refletir que o Rainforest Journalism Fund é financiado, em grande parte, por dinheiro proveniente do petróleo, já que a Noruega é o maior produtor de petróleo da Europa. A Noruega tem ainda participação em frentes de destruição da Amazônia, como a empresa Hydro Alunorte, que contaminou os rios de Barcarena, no Pará. Só podemos seguir adiante enfrentando todas essas contradições — e não fugindo delas. E exigindo melhores práticas e mais coerência da Noruega.
Por caminhos diferentes, penso que nós estamos aqui, e não só os que vieram de fora, mas também os que já se colocaram geograficamente aqui neste território, porque sabemos que nossa vida depende disso. Mesmo que este ainda não seja um sentimento — ou mesmo um pensamento — que todos possam nomear. Não estamos aqui para ajudar os povos da floresta, contando o que está acontecendo aqui para o mundo de lá, mas sim estamos aqui para, humildemente, perguntar se eles nos aceitam ao seu lado na luta.
Somos nós que precisamos da ajuda dos povos da floresta. É deles o conhecimento sobre como viver apesar das ruínas. São eles os que têm experiência sobre como resistir às grandes forças de destruição. Para que tenhamos alguma chance de produzir movimento de resistência precisamos compreender que, nesta luta, nós não somos os protagonistas.
Sem compreender nosso lugar nessa luta e estarmos dispostos a compartilhar o pouco poder que temos, ou mesmo ceder esse poder, acredito que será muito difícil produzir movimento real. Desta vez, somos nós que precisamos nos deixar ocupar, permitir que nosso corpo seja afetado por outras experiências de ser e de estar neste planeta. Não como uma violência, como foi a colonização da Amazônia e de seus povos, esta que está em processo até hoje, e em processo cada vez mais acelerado. Mas, desta vez, como troca, como mistura, como relação amorosa, como sexo consentido.
Reproduzo aqui uma fala do filósofo Peter Pál Pelbart, que faz essa síntese de forma brilhante: “Talvez o desafio seja abandonar a dialética do Mesmo e do Outro, da Identidade e da Alteridade, e resgatar a lógica da Multiplicidade. Não se trata mais, apenas, do meu direito de ser diferente do Outro ou do direito do Outro de ser diferente de mim, preservando em todo caso entre nós uma oposição. Nem mesmo se trata de uma relação de apaziguada coexistência entre nós, onde cada um está preso à sua identidade feito um cachorro ao poste, e portanto nela encastelado. Trata-se de algo mais radical, nesses encontros, de também embarcar e assumir traços do outro, e com isso às vezes até diferir de si mesmo, descolar-se de si, desprender-se da identidade própria e construir sua deriva inusitada”.
Durante muito tempo nós, jornalistas e cientistas brancos ocidentais, e quando me refiro a brancos ocidentais me refiro a muito além da cor da pele, me refiro a um modo de pensar e de habitar esse mundo, usamos os povos da floresta apenas como fontes do nosso trabalho. Cientistas de todas as áreas, e também da área de humanas, fizeram sua carreira a partir do conhecimento dos povos da floresta citando-os nos trabalhos acadêmicos apenas como “informantes”, isso quando os citavam.
Embora essa prática ainda seja largamente exercida na produção científica, muitos já começam a compreender que já não é eticamente possível fazer isso. Os povos da floresta precisam ser reconhecidos, no mínimo, como coautores. Os intelectuais, assim como os cientistas, não se restringem à academia. Os intelectuais e os cientistas estão também — e muito — na floresta.
É isso que muitos intelectuais indígenas estão dizendo no mundo inteiro neste momento. No Brasil, a obra mais expressiva de coautoria entre um intelectual acadêmico e um intelectual da floresta é A Queda do Céu, resultado de uma parceria efetiva, real, de mútuo respeito e mútuo aprendizado, entre Davi Kopenawa, intelectual yanomami, e Bruce Albert, antropólogo francês.
Talvez o debate mais fundamental que precisamos empreender no jornalismo é como esse desafio ético e também estético pode ocupar a produção jornalística neste momento crucial. Como colaborar com os povos da floresta para invadir e ocupar o jornalismo a partir de suas próprias experiências — e não apenas se deixando formatar pelo nosso modelo de imprensa. Esta, me parece, não deve ser apenas uma ocupação de espaço, com indígenas, ribeirinhos e quilombolas fazendo jornalismo. Deve ser também uma transformação do espaço, do próprio fazer jornalístico.
Uma das maneiras de começar esse movimento no Rainforest Journalism Fund é estimular a coautoria nos projetos de reportagem porque, a maneira mais efetiva de ocupar os espaços de poder é... ocupando os espaços de poder. E, de novo, devemos aceitar esse desafio não porque somos cool ou por concessão ou por favor — e nem mesmo porque é o mais correto a se fazer —, mas porque precisamos muito aprender e porque podemos ensinar. Precisamos nos inventar de outro jeito se quisermos ter uma chance de enfrentar este momento em que a espécie humana se tornou ela mesma a catástrofe que temia.
Bolsonaro não é apenas uma ameaça para a Amazônia. É uma ameaça para o planeta exatamente porque é uma ameaça para a Amazônia. Diante desta força acelerada de destruição que é o bolsonarismo nós, de todas as nacionalidades, precisamos fazer como os africanos escravizados que se rebelaram contra o opressor. Precisamos nos aquilombar. E, como não sabemos fazer isso, teremos que ter a humildade de aprender com quem sabe.
O melhor — e o mais potente — do Brasil atual e da Amazônia, em todas as regiões, são as periferias que reivindicam o lugar de centro. Nossa melhor chance é nos somar às forças do real centro do mundo onde a disputa pelo futuro é travada, às vezes a bala.
É a esse movimento que nós, jornalistas e cientistas, precisamos humildemente servir. Espero que os povos da floresta possam, depois de tudo o que fizemos contra seus corpos, nos aceitar ao seu lado na luta.
Discurso da jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum, integrante do comitê fundador, consultivo e julgador do Rainforest Journalism Fund, que financia reportagens na Amazônia e em outras florestas tropicais, em parceria com o Centro Pulitzer. A fala foi realizada em 12 de julho de 2019, em Manaus (Amazonas/Brasil), durante jantar em que participaram os jornalistas reunidos para o primeiro encontro do Rainforest Journalism Fund e cientistas reunidos para o encontro Sciencetelling Bootcamp & Explorer Spotlight, da National Geographic Society.
El País: Dez medidas contra Dallagnol, o que pode afastar o procurador-chefe da Lava Jato
Pressão sobre procurador aumentou após reportagens com conteúdos de mensagens recebidas pelo ´The Intercept´ apontarem que ele tentou investigar o ministros do STF
Imerso em uma crise de imagem desde o início da divulgação de suas conversas pelo site The Intercept, o coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, Deltan Dallagnol, agora corre o risco de enfrentar sanções por parte de seus pares. Ao longo dos próximos meses, o futuro do procurador está nas mãos do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão de controle externo onde ele é alvo, até o momento, de ao menos dez pedidos de investigação —sendo nove reclamações (que podem ou não se tornar processos) e um procedimento administrativo disciplinar.
O CNMP tem autonomia para aplicar sanções que vão de uma simples advertência à demissão e cassação de aposentadoria. O órgão, composto por 14 conselheiros, se reúne duas vezes ao mês e, desde 2005, quando foi criado, instaurou 250 processos contra procuradores —em 75 deles suspendeu o investigado e, em 19, determinou a demissão, por razões que iam de violência doméstica a desvio de verba pública.
Dos dez pedidos feitos contra Dallagnol, o mais avançado é o procedimento disciplinar, que deve ser colocado em pauta já na semana que vem. É um caso relativo a entrevista dada pelo procurador na qual ele critica o Supremo Tribunal Federal (STF) por ser "leniente" com a corrupção. Apesar de não ter relação direta com os diálogos do 'The Intercept', a delicada trama com o STF é justamente o que deteriorou, nos últimos dias, a situação política de Dallagnol. As conversas de Telegram divulgadas indicaram que o grupo de procuradores criticava com frequência membros da Corte. E que ao longo dos últimos anos os procuradores planejaram, inclusive, buscar na Suíça provas contra Gilmar Mendes, conforme revelou nesta semana o EL PAÍS, em parceria com o The Intercept. Na semana anterior, a Folha de S.Paulo, também em parceria com o The Intercept, já havia revelado que Dallagnol tentou buscar informações a respeito de Antonio Dias Toffoli.
Os ministros do Supremo prontamente reagiram à notícia. E Mendes fez duras críticas à Procuradoria-Geral da República [PGR], comandada por Raquel Dodge. “A mim me parece que isso é revelação de um quadro de desmando completo. Revela a gestão da Procuradoria-Geral da República, e certamente vamos ter ainda surpresas muito mais desagradáveis. Tenho que reconhecer que as organizações Tabajara estavam comandando também esse grupo [de investigadores]”, afirmou o ministro à Folha de S. Paulo. A PGR se defendeu. Ressaltou que não caberia ao órgão punir Dallagnol e os demais membros da força-tarefa por eventuais excessos. “Os membros do Ministério Público Federal possuem inamovibilidade. Não há possibilidade de o chefe da instituição ou do corregedor determinarem afastamento de membros”, afirmou uma nota da instituição.
Prazo de 90 dias
Desde o início da divulgação dos diálogos pelo The Intercept e veículos parceiros, foram protocolados no CNMP dez reclamações contra Dallagnol. Cinco delas pelo PT e por seus parlamentares (veja a lista completa abaixo).
Até o momento, todas estão com o corregedor do órgão, Orlando Rochadel. Cabe a ele arquivá-las ou determinar a abertura de um procedimento administrativo, o que daria início a uma investigação sobre a conduta do procurador. Aberto o processo, começa a valer um prazo de 90 dias (passível de prorrogação) para a realização de diligências e outros trâmites, até que o plenário do Conselho tenha uma sentença. Mas existe um artigo no regimento interno que permite ao relator do processo administrativo suspender o investigado de suas funções (mantido o salário) por um prazo de até 120 dias, de maneira cautelar. Este seria, no momento, o pior cenário para Dallagnol, por acelerar uma possível punição.
Ciente da morosidade dos processos contra procuradores, o ministro Gilmar Mendes também disparou nesta semana contra o considera uma lentidão dos órgãos de fiscalização. De acordo com ele, a corregedoria do Ministério Público “praticamente não funciona”. “Quem vigia o guarda neste caso? Os malfeitos cometidos por procuradores são investigados por quem? Essa é uma questão que precisa ser respondida. É preciso que haja investigação”, afirmou.
Existe, além do CNMP, outro órgão que poderia aplicar sanções ao procurador. Mas dificilmente um procedimento contra o coordenador da força-tarefa irá prosperar lá. Trata-se do Conselho Superior do Ministério Público Federal —integrado apenas por membros da carreira—. Atualmente não consta nenhuma representação contra Dallagnol nesse órgão. Assim que as primeiras reportagens do Intercept foram publicadas, chegaram a ser protocoladas quatro ações contra ele, todas arquivadas pelo corregedor-geral do MPF, Oswaldo José Barbosa Silva, com a justificativa de que as provas teriam origem ilícita.
A balança do CNMP
Dentro do CNMP o desfecho do caso de Dallagnol vai depender de um delicado equilíbrio de forças que envolve o corporativismo da instituição. O Conselho é heterogêneo. É formado por Dodge, que o preside, e conta ainda com quatro membros do Ministério Público da União, três membros de Ministérios Públicos Estaduais, dois juízes (um indicado pelo STF e outro pelo STJ), dois advogados indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e dois “cidadãos de notável saber jurídico”, indicados um pela Câmara e um pelo Senado. Em tese, tanto Dodge quanto os demais membros do MP que integram o CNMP (e que somam oito votos) tenderiam a uma postura mais corporativista do que os demais integrantes —principalmente os representantes indicados pela OAB e pelos tribunais superiores, críticos dos métodos da força-tarefa.
Além de um eventual apoio dos colegas de carreira, Dallagnol tem a seu favor o fato de nunca ter sofrido punição pelo Conselho, o que facilitaria a aplicação de uma reprimenda mais dura. As sanções a que procuradores estão sujeitos variam. A advertência é a punição mais branda prevista na Lei Orgânica do Ministério Público, aplicada por escrito, em caso de negligência das funções. Caso o procurador seja reincidente na falta, pode ser punido com uma censura. A suspensão por até 45 dias ocorre quanto o servidor que já sofreu censura comete novo deslize, ou então quando viola alguma das disposições da Lei. Por fim, a demissão ocorre apenas em casos muito específicos, como lesão aos cofres públicos, improbidade administrativa, abandono de cargo ou “condenação por crime praticado com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública entre outros”.
AS RECLAMAÇÕES CONTRA DALLAGNOL
No total, o procurador tem nove reclamações abertas contra ele no Conselho (e um processo administrativo). Seis delas tem relação com as revelações do The Intercept. Veja quais são e por qual motivo:- Autor: Senador Renan Calheiros (MDB-AL).
Assunto: uma série de tuítes feitos por Dallagnol contra ele durante as eleições de 2018.- Autor: Bancada parlamentar do PT.
Assunto: Afirmam que Dallagnol e os demais procuradores da Lava Jato extrapolaram suas atribuições ao quererem "disciplinar e dar uso" aos recursos pagos na forma de indenização pela Petrobras.- Autor: Senadora Kátia Abreu (PDT-TO).
Assunto: Afirma que Dallagnol infringiu a lei orgânica do MP por ter postado no Twitter uma reportagem que trazia fatos negativos contra a parlamentar referentes a um caso já arquivado.- Autor: Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.
Assunto: "Supostas violações a deveres funcionais" tendo como base o conteúdo das reportagens feitas pelo The Intercept.- Autor: PT.
Assunto: Mensagens divulgadas pelo The Intercept nas quais os "citados membros teriam se articulado para obter lucro mediante a realização de palestras pagas".- Autor: Bancada do PT.
Assunto: Suposta articulação de Dallagnol e o então juiz Sergio Moro no qual o procurador articula o redirecionamento de dinheiro apreendido pela Lava Jato para a campanha "10 medidas contra a corrupção". A reclamação foi feita com base no conteúdo das reportagens do The Intercept.- Autor: Deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP).
Assunto:Palestra remunerada feita por Dallagnol paga pela empresa Neoway, cujo representante se tornou colaborador da Justiça. A reclamação foi feita com base no conteúdo das reportagens do The Intercept.- Autor: Deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS).
Assunto:Palestras remuneradas feitas por Dallagnol e violação dos preceitos do cargo de procurador. A reclamação foi feita com base no conteúdo das reportagens do The Intercept.- Autor: Associação Nacional de Desembargadores.
Assunto:Suposta investigação ilegal conduzida por Dallagnol e pela força-tarefa contra o ministro do Supremo Dias Toffoli.
Um dos casos mais famosos de demissão de procurador por parte do CNMP se deu em abril de 2016. O plenário decidiu desligar o procurador Douglas Kirchner por agressão e tortura de sua mulher em 2014. À época ele investigava o suposto tráfico de influência realizado por Lula no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Para o Conselho, a atitude de Kirchner feriu a imagem do Ministério Público, o que justificou sua demissão.
El País: Reforma da Previdência agora está nas mãos do Senado
Após texto-base ser aprovado com facilidade pelos deputados, quarta-feira foi dedicada a votar destaques. Oposição fracassou na tentativa de retirar pontos
Agora, a reforma da Previdência está nas mãos do Senado. O texto da mais ambiciosa mudança econômicaplanejada pelo Governo Bolsonaro para este 2019 avançou sem dificuldades em seu teste final na Câmara dos Deputados nesta quarta-feira e será votada pelos senadores nas próximas semanas. Em votação em segundo turno, os parlamentares rejeitaram os oito destaques apresentados —em sua maioria pela oposição— para excluir algum trecho da proposta aprovada no início de julho. Na madrugada, o plenário já tinha aprovado o texto-base, em segundo turno, com um placar folgado de 370 votos favoráveis a 124 contrários. O número mínimo de votos necessários era de 308.
A aprovação do texto na Câmara, num Governo Bolsonaro que nem sequer tem maioria parlamentar estável no Congresso, coroa a liderança de Rodrigo Maiacomo um grande articulador das mudanças da Previdência, tidas como um ponto de inflexão para outras reformas econômicas de corte liberal ansiadas por empresários e investidores. Quando foi reeleito presidente da Câmara neste ano, Maia encampou a proposta de reforma de Paulo Guedes/Bolsonaro e teve o apoio de um amplo bloco na Casa, desde o centro até à direita e a extrema-direita. Teve ainda como seu avalista o mercado financeiro. O deputado sempre frisou que a atual proposta que chega ao Senado tem mais a “cara” da Câmara do que a do Planalto.
Com a conclusão desta segunda votação na Casa, o texto da reforma, que prevê entre os principais pontos uma idade mínima para se aposentar de 62 anos para as mulheres e 65 anos para os homens, segue agora para as mãos dos senadores, onde também terá que passar também por duas votações, com o apoio de, ao menos, 49 dos 81 senadores. Antes, entretanto, o texto terá que ser analisado na Comissão de Constituição e Justiça da Casa. A expectativa do Governo de Jair Bolsonaro é que em setembro ela seja promulgada.
Os senadores ainda devem apresentar uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) paralela, para estender a reforma aos servidores públicos de Estados e municípios, atentando a pedidos de governadores e prefeitos.
Todos os destaques rejeitados
Nas últimas semanas, havia uma expectativa de que o destaque apresentado pelo PC do B, que propunha retirar a possibilidade da pensão por morte ser menor que um salário mínimo (998 reais) caso o dependente tenha outro tipo de renda formal, fosse aceito por se tratar de um tema sensível e que afeta, principalmente, mulheres pobres. A grande maioria dos parlamentares, entretanto, resolveu manter essa regra da proposta. Dessa maneira, quando uma viúva já receber uma aposentadoria ou uma renda formal, sua pensão poderá ser inferior ao valor do salário.
Para evitar uma derrota neste destaque, o Governo editou uma portaria, na véspera da votação em segundo turno, detalhando o que significa exatamente uma renda formal e garantindo que nenhum pensionista terá renda inferior ao salário mínimo. O anúncio acalmou um pouco os ânimos das bancadas mais críticas às alterações.
No primeiro turno, os deputados também conseguiram abrandar um pouco a proposta inicial do Governo. Entre as principais mudanças que os parlamentares conseguiram emplacar em relação ao texto enviando em fevereiro por Bolsonaro estão a retirada das mudanças sugeridas para os trabalhadores rurais, para quem recebe o benefício de prestação continuada (BPC) e também a não criação de um regime de capitalização. A Câmara também suavizou as mudanças para propostas paras as mulheres e algumas categorias com forte lobby em Brasília, como a dos professores e a dos policiais federais.
Todas essas alterações cobraram um preço na estimativa de corte de gastos da equipe econômica do ministro Paulo Guedes. A proposta inicial, estimava uma economia de 1,2 trilhão de reais nos gastos previdenciários em dez anos. A versão aprovada até agora, no entanto, já estima uma economia menor, de 933 bilhões de reais.
Qual a cara da reforma que chega ao Senado
A fixação de uma idade mínima, de 65 anos para homens e 62 para mulheres está no cerne do texto pondo fim as aposentadorias apenas por tempo de contribuição —muitas vezes precoces—, que hoje exigem aporte de 30 anos para mulheres e 35 para homens. A proposta aprovada na Câmara estipula um tempo de contribuição no setor privado de 20 anos para homens e 15 para mulheres e, no setor público, 25 anos para ambos.
O texto aprovado nesta quarta-feira eleva ainda as alíquotas de contribuição para servidores públicos acima do teto do Regime Geral (atualmente 5.839 reais) e estipula regras de transição para os atuais trabalhadores. A proposta também modifica o cálculo do valor do benefício, que será a partir da média de todas as contribuições. Atualmente, é permitido excluir os 20% menores salários.
A pensão por morte não será mais integral caso o texto seja promulgado. O pagamento será de 50% da aposentadoria recebido pelo segurado ou do valor que ele teria direito, mais 10% por dependente (incluindo a viúva ou o viúvo). A reforma também prevê cortes no pagamento no caso de acúmulo de benefícios ( como por exemplo, aposentadoria e pensão). O com menor valor sofrerá desconto.
El País: Lava Jato planejou buscar na Suíça provas contra Gilmar Mendes
Procuradores discutiram usar caso de Paulo Preto, operador do PSDB, para reunir munição contra ministro, mostram mensagens enviadas ao 'The Intercept'. Diálogos no Telegram apontam o empenho da força-tarefa pelo impeachment do magistrado
Procuradores da Operação Lava Jato em Curitiba fizeram um esforço de coleta de dados e informações sobre o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, com o objetivo de pedir sua suspeição e até seu impeachment. Liderados por Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa, procuradores e assistentes se mobilizaram para apurar decisões e acórdãos do magistrado para embasar sua ofensiva, mas foram ainda além. Planejaram acionar investigadores na Suíça para tentar reunir munição contra o ministro, ainda que buscar apurar fatos ligados a um integrante da Corte superior extrapolasse suas competências constitucionais, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem. A estratégia contra Gilmar Mendes foi discutida ao longo de meses em conversas de membros da força-tarefa pelo aplicativo Telegram enviadas ao The Intercept por uma fonte anônima e analisadas em conjunto com o EL PAÍS.
Na guerra contra o ministro do Supremo, os procuradores se mostraram particularmente animados em 19 de fevereiro deste ano. "Gente essa história do Gilmar hoje!! (...) "Justo hoje!!! (...) "Que Paulo Preto foi preso", começa Dallagnol no chat grupo Filhos do Januário 4, que reúne procuradores da força-tarefa. A conversa se desenrola e se revela a ideia de rastrear um possível elo entre o magistrado e Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, preso em Curitiba num desdobramento da Lava Jato e apontado como operador financeiro do PSDB. Uma aposta era que Gilmar Mendes, que já havia concedido dois habeas corpus em favor de Preto, aparecesse como beneficiário de contas e cartões que o operador mantinha na Suíça, um material que já estava sob escrutínio dos investigadores do país europeu.
“Vai que tem um para o Gilmar…hehehe”, diz o procurador Roberson Pozzobon no grupo, em referência aos cartões do investigado ligado aos tucanos. A possibilidade de apurar dados a respeito de um ministro do Supremo sem querer é tratada com ironia. “vc estara investigando ministro do supremo, robinho.. nao pode”, responde o procurador Athayde Ribeiro da Costa. “Ahhhaha”, escreve Pozzobon. “Não que estejamos procurando”, ironiza ele. “Mas vaaaai que”. Dallagnol então reforça, na sequência, que o pedido à Suíça deveria ter um enfoque mais específico: “hummm acho que vale falar com os suíços sobre estratégia e eventualmente aditar pra pedir esse cartão em específico e outros vinculados à mesma conta”, escreve. “Talvez vejam lá como algo separado da conta e por isso não veio" (...) "Afinal diz respeito a OUTRA pessoa”. A força-tarefa de Curitiba tem dito que não reconhece as mensagens que têm sido atribuídas a seus integrantes e repetiu à reportagem que o "material é oriundo de crime cibernético e tem sido usado editado ou fora de contexto, para embasar acusações e distorções que não correspondem à realidade".
Nas mensagens, que o EL PAÍS optou por deixar com a grafia original, tudo começa porque Dallagnol comenta saber de "um boato" vindo da força-tarefa de São Paulo (FT-SP) de que parte do dinheiro mantido por Paulo Preto em contas no exterior pertenceria a Mendes. "Mas esse boato existe mesmo?", pergunta o procurador Costa. "Pessoal da FT-SP disse que essa info chegou a eles", responde Julio Noronha, em referência aos colegas paulistas.Procurada, a assessoria de imprensa do FT-SP afirmou que “jamais recebeu qualquer informação sobre suposto envolvimento de Gilmar Mendes com as contas no exterior de Paulo Vieira de Souza”. E também que “se recebesse uma informação a respeito de ministro do STF, essa informação seria encaminhada à PGR [Procuradoria Geral da República]". E que “jamais passaria pela primeira instância para depois ir para a PGR”.
O artigo 102 da Constituição determina que os ministros do Supremo só podem ser investigados com autorização de seus pares, a não ser que apareçam em uma investigação já em curso, a chamada investigação cruzada. Caso seja este o caso, a competência é necessariamente da PGR. Para o procurador da República Celso Três, que atuou no início do caso Banestado, um marco contra a lavagem de dinheiro, e trabalhou diretamente com o ex-juiz Sergio Moro, os procuradores não cogitam nos diálogos apenas um atalho para chegar a Mendes. "É uma violação grave do devido processo legal", afirma em entrevista ao EL PAÍS. Ele avalia que, nas conversas, os procuradores de Curitiba demonstraram intenção de desviar a finalidade da investigação, porque tinham autoridade para escrutinar o operador do PSDB, mas planejaram aprofundar essa colaboração com o intuito de atingir o ministro do Supremo. “Não estou defendendo Gilmar, mas está muito claro que estavam em seu encalço”.
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A reportagem questionou à força-tarefa de Curitiba se os procuradores pediram informações aos investigadores na Suíça sobre possíveis ligações de Mendes e Paulo Preto. E, caso tenham encontrado elementos, se foram enviados à PGR. Por meio da assessoria de imprensa, os procuradores afirmaram que "não surgiu nas investigações nenhum indício de que cartões da conta de Paulo Vieira de Souza tenham sido emitidos em favor de qualquer autoridade sujeita a foro por prerrogativa de função". "Qualquer ilação nesse sentido, por parte de quem for, seria mera especulação", ressaltou a nota. "Em todos os casos em que há a identificação de pagamentos de vantagens indevidas e lavagem de ativos no exterior, o Ministério Público busca fazer o rastreamento do destino de todos os ativos ilícitos, para identificar os destinatários desconhecidos", ressalta. Eles insistem que sempre que surgem indícios do envolvimento em crimes de pessoas com foro privilegiado, a força-tarefa encaminha as informações à Procuradoria-Geral da República e ao Supremo Tribunal Federal.
"Cuidado porque o STF é corporativista"
Celso Três diz que os procuradores poderiam até enviar à PGR material contra Gilmar, desde que estas provas tenham sido encontradas acidentalmente em alguma investigação. "Isso pressupõe fundamentalmente que a prova caia no teu colo", afirmou. "Não existe encontro fortuito de prova quando você busca alguma coisa", acrescentou. Outro especialista, que concordou em analisar as mensagens sob anonimato, acrescenta que, no caso de toparem com alguma prova relacionada com detentores de foro privilegiado, como Mendes, a investigação é suspensa e precisa ser remetida para a PGR. “Isso é bem comum em casos de políticos que foram encontrados em investigações da Lava Jato”, explica o jurista, que frisa não conhecer casos de ministros do Supremo que tenham sido denunciados a partir de investigações cruzadas.
Ciente do terreno minado que a força-tarefa entra ao mirar Mendes, Dallagnol tenta se precaver: “E nós não podemos dar a entender que investigamos GM”, diz em certo momento, em referência a Gilmar Mendes. Mas, na sequência, afirma: “Caso se confirme essa unha e carne, será um escândalo”, diz sobre a relação próxima entre o ministro e o operador. E sugere: “Vale ver ligações de PP pra telefones do STF”, ressalta, referindo-se a Paulo Preto. Mais uma vez, Dallagnol recebe um alerta de um colega. “Mas cuidado pq o stf é corporativista, se transparecer que vcs estão indo atrás eles se fecham p se proteger”, diz Paulo Galvão. Dias depois, a força-tarefa descobriria que o ex-senador tucano Aloysio Nunes ligou para o gabinete de Mendes no dia da prisão de Paulo Preto.
A tese levantada nas conversas por alguns procuradores para ligar Mendes a Paulo Preto, especialmente por Dallagnol, passa justamente pelo tucano Aloysio. Nas conversas, os procuradores lembram que Paulo Preto era subordinado do tucano durante o Governo FHC, quando o ex-senador foi ministro-chefe da Secretaria-geral da Presidência, entre 1999 e 2001. E que Gilmar Mendes trabalhava “do ladinho” —segundo as palavras de Roberson Pozzobon— de ambos. A triangulação se fecharia porque, naquele período, Mendes foi subchefe para assuntos jurídicos da Casa Civil (entre 1996 a 2000) e advogado-geral da União (de 2000 a 2002). Em 21 de fevereiro deste ano, no mesmo chat, Pozzobon diz: “Acho que tem uma chance grande de ALOYSIO ter colocado GILMAR no STF”. O procurador Paulo Roberto Galvão pondera. “Mas calma que isso não quer dizer muita coisa rs”. Dallagnol, então, discute uma estratégia para direcionar a pauta e fazer a história aparecer na imprensa. "Tem q botar no papel. Mostrar suspeição. Pegar quem trabalhava nessa época no mesmo local. Imprensa é o ideal", ressalta ele.
Mais uma vez, o procurador Paulo Galvão tenta puxar o freio de mão do entusiasmo do coordenador da força-tarefa. “Mas não é novidade que Gilmar veio do psdb e de dentro do governo fhc!!! Cuidado com isso”. Mas Dallagnol insiste: “agora é diferente" (...) "Não é uma crença ou partido em comum" (...) "É trabalhar lado a lado, unha e carme”. Pozzobon também pondera e diz que é preciso ter informações mais fundamentadas antes de passá-las para a imprensa. “Mas acho que temos que confirmar minimamente isso antes de passar pra alguém investigar mais a fundo, Delta”.
Na semana passada, a Folha de S. Paulo e o Intercept revelaram que Dallagnol também tentou buscar informações a respeito de Antonio Dias Toffoli. Nas mensagens, aparece o interesse do procurador no eventual envolvimento de Toffoli, Gilmar Mendes e suas respectivas mulheres com empresas envolvidas no esquema de corrupção da Petrobras. Os ministros do Supremo prontamente reagiram à notícia. Gilmar Mendes afirmou que a Lava Jato é uma “organização criminosa para investigar pessoas”. Outro ministro do STF, Marco Aurélio, disse ser “inconcebível que um procurador da República de primeira instância busque investigar atividade desenvolvida por um ministro do Supremo”.
"Sonho que Toffoli e GM acabem fora do STF"
Apesar da animosidade da força-tarefa contra Gilmar Mendes, nem sempre o magistrado, um dos mais criticados da Corte, esteve contra a Lava Jato, segundo pensavam os procuradores. Em março de 2016, por exemplo, Gilmar se mostrou um aliado tático da operação, quando suspendeu a nomeação de Luiz Inácio Lula da Silva como ministro da Casa Civil, deixando assim o ex-presidente sem foro privilegiado. Pelo menos desde 2017, no entanto, Dallagnol aparece nas mensagens atribuindo ao magistrado o objetivo de “desmontar as investigações de corrupção”, por estar, segundo o procurador, ligado a parte delas.
As mensagens analisadas pelo EL PAÍS e o The Intercept, parte do pacote de arquivos que o site começou a revelar em 9 de junho, apontam para uma busca sistemática de Dallagnol por maneiras de afastar o ministro do Supremo das ações da Lava Jato, mas não apenas ele. "Sonho que Toffoli e GM acabem fora do STF rsrsrs", comenta. O procurador chega a mobilizar assistentes para produzir um documento com "o propósito de mostrar eventuais incongruências [de Mendes] com os casos da Lava Jato". E, ao longo de anos, insiste nas possibilidades de pedir a suspeição do ministro e encampar um processo de impeachment. Os colegas, entretanto, ponderam sobre a ideia de partir para a via do impedimento político e a iniciativa acaba não saindo do papel.
Em 5 de maio de 2017, por exemplo, o coordenador da força-tarefa falou aos pares de pleitear o impedimento de Gilmar Mendes caso o ministro concedesse habeas corpus a Antonio Palocci, condenado na Lava Jato. "Caros estive pensando e se perdermos o HC do Palocci creio que temos que representar/pedir o impeachment do GM". O habeas corpus (HC), ele sustentava, seria a gota d’água que faltava para pedir o afastamento do ministro. Para embasar o pedido, elencou declarações públicas do ministro contra a força-tarefa, “incoerência de votos”, “favorecimentos”, e até seus antigos confrontos com o ex-ministro da Corte Joaquim Barbosa — "só para dar força moral”.
“Calma, Deltan”, diz a procuradora Laura Tessler. Ela afirma, então, que soube que o jurista Modesto Carvalhosa entraria com um pedido de impeachment contra o ministro. “Eu não acho que nós devemos fazer pedido de impeachment. outros fazerem é bom”, completou o procurador Paulo Roberto Galvão. Carvalhosa protocolaria o pedido de impedimento neste ano de 2019, o terceiro contra o ministro, que se soma a ao menos a outros nove pedidos de impedimento de membros da corte que esperam encaminhamento do presidente do Senado, o único capaz de iniciar os processos.
Na lista de Dallagnol também entrou o caso envolvendo os empresários do setor de transportes Lélis Teixeira e Jacob Barata Filho, acusados de pagar propina a políticos. Conhecido como o Rei do Ônibus, Barata Filho é pai da afilhada de casamento de Gilmar e sua mulher, Guiomar Mendes. O caso também envolve um advogado de Gilmar que faz a defesa também de Barata Filho. Gilmar Mendes mandou soltar os empresários por três vezes seguidas ao longo de 2017.
Naquele ano, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, chegou a pleitear a suspeição do ministro no caso, mas o pedido foi arquivado pela presidenta do Supremo, ministra Cármen Lúcia, em setembro de 2018. Na época, Cármen Lúcia afirmou ter consultado Raquel Dodge, atual procuradora-geral da República, antes de tomar a decisão. No xadrez da Lava Jato, Dodge é a rainha do outro lado do tabuleiro dos procuradores. Nas conversas, eles afirmam que ela é muito próxima de Gilmar e que só não o confronta porque “sonha” com uma cadeira no Supremo assim que seu mandato na PGR terminar, em cerca de um mês, afirma Dallagnol em mensagem em junho de 2018.
Em março de 2019, a força-tarefa insistiria de novo em mais um pedido de suspeição de Gilmar Mendes, desta vez no caso Paulo Preto, alegando relações do magistrado com Aloysio Nunes. Dallagnol articularia com as forças-tarefas da Lava Jato de Curitiba, do Rio de Janeiro e de São Paulo para dar força ao pedido, que seria arquivado novamente.
Ainda por meio de nota enviada à reportagem, os procuradores afirmaram que "dentre os deveres do membro do Ministério Público, está o de 'adotar as providências cabíveis em face de irregularidades de que tiver conhecimento, em especial quando relacionadas a casos em que atuam". "A eventual pesquisa das decisões de um julgador para analisar qual a eventual medida a adotar seria perfeitamente regular", ressaltaram. "Dentre as medidas que podem ser analisadas e estudadas pelo Ministério Público em face de decisões que cogite inadequadas de um julgador está a análise de jurisprudência para apresentar recursos, a representação à respectiva corregedoria ou ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça) ou ainda a representação pela suspeição ou pela apuração de infração político-administrativa (seguindo o rito de impeachment). Nesse contexto, contudo, como é público, os procuradores jamais realizaram representação pelo impeachment do ministro Gilmar Mendes, embora tenham apresentado pedido de reconhecimento de suspeição", destacou a nota.
Noves fora as iniciativas consideradas fora da alçada de Curitiba na avaliação de especialistas, Dallagnol não está só em sua frustração contra algumas decisões do Supremo, e de Gilmar Mendes em particular. Grupo de estudiosos da corte tem apontado a proliferação de medidas individuais dos magistrados e a falta de coerência na jurisprudência do STF com um fator instabilidade política. Um dos problemas é que, excetuada a saída via do impeachment, "no sistema judicial, o Supremo é o ponto cego", pondera o jurista que analisou as mensagens dos procuradores sob anonimato. "Um ministro do Supremo não está sujeito ao Conselho Nacional de Justiça, não tem corregedoria e um ministro, inclusive, não pode corrigir o outro”, explica.
Para Gilmar Mendes, no entanto, o problema da falta de correição e do corporativismo estão do outro lado. “O próprio CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público] funciona muito mal. A corregedoria do Ministério Público praticamente não funciona. Estamos a falar de uma questão que, em termos republicanos, é muito séria. Quem vigia o guarda neste caso? Os malfeitos cometidos por procuradores são investigados por quem? Essa é uma questão que precisa ser respondida”, disse o ministro nesta segunda-feira, no registro do site especializado Jota. O CNMP tem ao menos um procedimento aberto contra Dallagnol, o que apura se ele e um colega cometeram falha disciplinar ao serem flagrados, em mensagens reveladas pelo The Intercept e pela Folha, planejando obter lucro ou benesses com a realização de palestras pagas por empresas e entidades interessadas em se associar à imagem da Lava Jato.
El País: Câmara aprova em 2º turno texto-base da reforma da Previdência
Nesta quarta-feira, serão votados os destaques, que podem suprimir pontos específicos da reforma. Depois, texto segue para o Senado
Após uma maratona que entrou madrugada a dentro, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base da reforma da Previdência. Na tarde desta quarta-feira, serão votados os destaques, que poderão modificar pontos específicos, para que o projeto siga, então, para a apreciação do Senado já na próxima semana.A expectativa do Governo de Jair Bolsonaro é que em setembro ela seja promulgada.
A votação em segundo turno começou na noite desta terça-feira. Após conseguir aprovar um requerimento para se quebrar o prazo mínimo de cinco sessões entre os dois turnos, o presidente da Casa, Rodrigo Maia, abriu uma nova sessão para discutir e votar as novas regras previdenciárias. Para tentar evitar qualquer mudança no texto durante a votação, o secretário da Previdência, Rogério Marinho, já começou a articulação política no início do dia. Assinou, nesta terça-feira, uma portaria que garante que nenhum pensionista terá renda inferior ao salário mínimo. O tema é um dos mais sensíveis e o que vinha gerando maior crítica nos debates sobre as novas regras previdenciárias. O anúncio da nova portaria foi feito após Marinho receber integrantes da bancada evangélica, que pressionavam por mudanças no texto sobre as pensões.
A reforma propõe acabar com a possibilidade de pensão de morte integral. Segundo o texto, o pagamento para o principal beneficiário será de 60% do valor original da aposentadoria, mais 10% por dependente. Com a nova regra, abre-se a possibilidade de um pensionista receber menos de um salário mínimo —o que não acontece atualmente— caso o dependente tenha outra fonte de renda.
A portaria editada pelo secretário define ainda quais os critérios serão utilizados para definir o que será considerado uma renda formal, que não era detalhado no texto da reforma. Segundo o ofício, será o "somatório de rendimentos recebidos mensalmente, constantes de sistema integrado de dados relativos a segurados e beneficiários de regimes da previdência, de militares, de programas de assistência social, ou de prestação indenizatórias, igual ou superior ao salário mínimo". O texto detalha ainda que serão considerados os rendimentos mensais constantes no Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) do INSS.
De acordo com a equipe econômica liderada pelo ministro Paulo Guedes, as mudanças nas regras da pensão devem garantir uma economia de 128 bilhões de reais em uma década, quase 15% do impacto total da reforma. Hoje, as pensões por morte previdenciárias representam um quarto dos benefícios concedidos no regime geral e têm um valor médio de 1.687 reais. São as mulheres, mais especificamente as viúvas e órfãs, as mais contempladas(83%).
Neste segundo turno, os partidos poderão apresentar apenas destaques supressivos, ou seja, para excluir algum trecho do texto aprovado em primeiro turno no início de julho, que prevê entre os principais pontos uma idade mínima para se aposentar de 62 anos para as mulheres e 65 anos para os homens. Nada novo poderá ser incluído. Entre os principais temas que a oposição deve tentar retirar do texto estavam a questão das pensões abaixo de um salário mínimo.
Governo libera 3 bilhões para pagar emendas
Cumprindo promessa feita a deputados, o Governo também mandou para o Congresso projeto que libera para vários ministérios de 3 bilhões de reais, dos quais 2 bilhões serão destinados para emendas parlamentares. O valor supera a soma que foi liberada no primeiro semestre deste ano (janeiro a junho), que foi de 1,7 bilhão de reais.
Recebemos agora na secretaria representantes da bancada evangélica e assinamos portaria que define critérios para apuração da renda formal e esclarece que nenhum pensionista terá renda inferior ao salário mínimo, como previsto na PEC da #NovaPrevidência.
Assim como Maia, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, afirmou mais cedo nesta terça-feira que o Governo espera terminar a votação da reforma na Câmara dos Deputados até a noite desta quarta-feira."Devemos entrar num pedaço da madrugada, na noite de hoje (terça) e amanhã, ao longo da manhã, tarde, e início da noite, a gente conclui a votação", disse o ministro.
El País: “É preciso apagar a ideia de que reduzir a desigualdade é coisa de comunista”
Ex-economista do Banco Mundial, Martin Ravallion agora dá aulas em Georgetown. De família humilde, sofreu em primeira pessoa o impacto da pobreza antes de lutar contra ela
Uma hora de conversa com Martin Ravallion (Sidney, 1952) é o mais parecido a um livro de macroeconomia aberto em duas páginas: a da desigualdade e a das falhas do capitalismo do século XXI. Pai da tabela de um dólar (4 reais) diário como linha global de pobreza quando era economista do Banco Mundial — onde anos depois dirigiu seu prestigioso grupo de pesquisa para o desenvolvimento —, é desde 2013 professor da Universidade Georgetown (EUA). Ravallion, instalado há anos entre os 100 economistas mais reconhecidos do mundo de acordo com a classificação do Ideas-Repec, sabe bem o significado da desigualdade: nasceu em uma família pobre, sofreu na própria carne o que significa viver com dificuldades e decidiu que “não queria ser pobre” nunca mais, como disse quando recebeu o prêmio Fronteiras do Conhecimento BBVA, em 2016. “Todos os meus papers são muito chatos”, diz rindo ao EL PAÍS pouco depois de dar uma conferência organizada pela Oxfam no Colégio do México. Não é verdade: o australiano é um dos especialistas que melhor explicam, com palavras ao alcance de todos, por que a iniquidade é um dos grandes problemas globais de nosso tempo.
Pergunta. A pobreza extrema caiu bastante nas últimas décadas, mas a desigualdade ofuscou essa boa notícia.
Resposta. A desigualdade global, entendida como aquela entre todos os habitantes do planeta e em termos relativos, também caiu. Não tanto como a pobreza, mas caiu. E isso é algo que costuma confundir as pessoas.
P. Cito um recente estudo do Banco Mundial, que o senhor conhece bem: “A queda na taxa de pobreza desacelerou, aumentando dessa forma a preocupação sobre a consecução do objetivo de acabar com a pobreza extrema em 2030”. O que está acontecendo?
R. Parte disso tem a ver com a desaceleração (econômica) na África e com o fato de que a redução da pobreza teve a ver em boa medida com o boom das matérias-primas, que se deteve. Mas são coisas que flutuam, e acho que não deveríamos ver isso como um grande problema: estamos no caminho, desde que não ocorra outra crise financeira global, para cumprir com o objetivo do próprio Banco Mundial de diminuir a 3% a pobreza extrema global em 2030. Ainda que, claro, não sou isento porque colocar esse número foi uma das últimas coisas que fiz no Banco Mundial (risos). Se traçarmos como meta o objetivo de desenvolvimento sustentável (das Nações Unidas) de “eliminar a pobreza” chegando a 0%, isso não ocorrerá sem uma grande mudança nas políticas: ao ritmo atual levará 200 anos.
P. Mas mesmo eliminar a pobreza extrema não quer dizer que deixarão de existir milhões de pessoas em situação de miséria.
“Gostaria que o capitalismo funcionasse para todo mundo. Não vejo isso acontecer”
R. De forma alguma. A linha de 1,90 dólares (7,5 reais) por dia é realmente baixa: imaginemos o pouco que se pode comprar com essa quantidade.
P. A desigualdade irrompeu na agenda, mas fala-se o suficiente dela?
R. Não, deveríamos falar mais e fazê-lo de maneira mais específica. Devemos nos centrar menos nas estatísticas e mais em aspectos concretos que possam atrair a atenção (da sociedade) e nos mobilizar à ação. Ainda que a desigualdade atraia maior atenção, a pobreza sempre dominou o debate. “Pobreza” é uma palavra popular e “desigualdade” não, mas, em parte, isso está mudando: a pobreza está se transformando em uma questão respeitável na literatura acadêmica e a sociedade é cada vez mais consciente.
P. A evolução recente na América Latina deve nos preocupar?
R. Sim. A situação da pobreza é muito melhor do que em outras regiões, como a África subsaariana, mas sua evolução está sendo pior. A desigualdade na América Latina é muito alta e isso é um problema, tanto ao crescimento econômico como à luta contra a pobreza. E a falta de consenso em relação a esse ponto é um grande problema: há muita complacência e muita falsa retórica. Toda a desigualdade é sempre ruim? Não, não é verdade. Há níveis de desigualdade que são positivos em termos de incentivos, ao crescimento e à própria redução da pobreza. Mas esse grau de desigualdade, como a desigualdade racial e de gênero, é inaceitável e devemos construir um consenso em torno disso.
P. Como?
R. É preciso mostrar mais às pessoas como a desigualdade é custosa. Não é somente ética e moralmente repulsiva: também é uma má notícia ao crescimento econômico. Se a desigualdade não é bem gerida não ocorre muito crescimento e não será possível aproveitar seus benefícios. Tudo está conectado.
P. Há um consenso quase total em torno à ideia de que a pobreza é negativa e deve ser combatida, mas não existe o mesmo consenso em relação à desigualdade. Por que alguns ainda veem na desigualdade um catalisador do crescimento?
R. Muita gente apela à ideia de que em um mundo sem desigualdade não haveria incentivos e, como dizia, há uma certa verdade nessa afirmação. Mas o objetivo não deve ser a desigualdade zero, e sim a pobreza zero. O objetivo deve ser um nível de desigualdade manejável, aceitável, que não se perpetue. Continuam existindo economistas que não prestam atenção às questões de distribuição de renda: nunca será possível fazer com que todos os economistas da academia concordem em algo. Mas não acho que alguém possa consultar a literatura disponível hoje e discordar do fato de que a desigualdade é um freio ao crescimento. Há 15 ou 20 anos, a maioria dos economistas pensava unicamente na eficiência e dizia que a desigualdade era positiva ao crescimento: novamente, depende dos níveis de desigualdade de que estamos falando, mas agora já são poucos. É significativo que o livro de economia mais vendido de todos os tempos seja um sobre desigualdade, O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty.
P. Qual seria a desigualdade “aceitável”?
R. Não sei: sabemos quando é muito alta, como em muitos países latino-americanos hoje, e quando é muito baixa, como na extinta União Soviética, na China anterior aos anos oitenta. E quando nos movemos na direção correta.
P. Pensemos em um índice como o de Gini. Em que ponto deveria estar a iniquidade para que fosse “manejável”?
R. Não focaria tanto nos índices, e sim nas causas: é preciso existir boas condições de saúde, creches e escolas decentes, os jovens devem poder estudar na Universidade e desenvolver todo o seu potencial... Essas são as coisas que verdadeiramente importam: é preciso focar mais nas políticas do que nos índices e nas taxas. Também apagar a ideia de que querer reduzir a desigualdade é coisa de comunista: eu gostaria que o capitalismo funcionasse para todo mundo. E não vejo isso acontecer.
P. A pergunta de um milhão: como podemos fazer com que o capitalismo funcione para todos?
R. Principalmente, assegurando que o campo de jogo fique muito mais nivelado: tentando minimizar a desvantagem das crianças que nascem em famílias pobres. E isso requer uma intervenção a partir das menores idades: precisamos de políticas que corrijam essa iniquidade desde o começo.
P. Mas acha possível um capitalismo que funcione para todos.
R. Sem dúvida. Não disseram que o capitalismo é uma ideia terrível, mas melhor do que as outras? Não adoro o capitalismo, mas acho que não há nenhum outro sistema que possa se equiparar à economia de mercado. Dito isto, o capitalismo de hoje não é o mesmo do qual falava Adam Smith: se tornou menos competitivo e muito mais dominado por monopólios. Deveríamos nos preocupar por isso: como é a concorrência na indústria tecnológica, por exemplo? As coisas que um capitalismo verdadeiramente competitivo pode conseguir são incríveis, mas para isso precisamos nos assegurar de que a concorrência se mantenha e que se lide bem com a desigualdade. E para isso são necessárias boas políticas.
P. Aprendemos com os erros de políticas públicas cometidos no passado?
R. Não. É muito frustrante ver a falta de atenção dada à avaliação das políticas. Em parte, porque quase todos os políticos não querem escutar que seus programas não funcionam bem e em parte porque muitas vezes os programas são muito inflexíveis. Avançamos muito nos programas de avaliação de impacto desses planos nos últimos 20 anos, mas o maior desafio é que isso chegue ao processo político.
El País: Quem vai parar Jair Bolsonaro?
Presidente vai da violência retórica à ingerência em instituições em poucas semanas. Supremo volta do recesso e acena que fará contrapeso junto com o Legislativo, liderado por Rodrigo Maia
Jair Bolsonaro (PSL) segue a cartilha de Donald Trump e aposta na escalada da violência retórica dirigida contra quem considera ser seu adversário. Mas não só isso. Nas últimas semanas de recesso do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, o presidente da República também aproveitou para desautorizar e interferir diretamente em instituições de Estado. Entre os alvos mais recentes está a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos (CEMDP)da ditadura militar, cujo colegiado foi substituído na última quinta-feira por bolsonaristas do PSL que defendem o regime autoritário. A mudança ocorreu na mesma semana em que o presidente atacou diretamente o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Seu pai, Fernando Santa Cruz, foi preso pela ditadura militar em 1974 e desapareceu. “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade”, afirmou o mandatário na última segunda-feira, provocando crises tanto de lideranças políticas da esquerda como da direita. Ele desautorizou publicamente o relatório da Comissão Nacional da Verdade e erroneamente garantiu que ele havia sido morto pelo grupo Ação Popular, do qual sequer fazia parte.
O jurista Miguel Reale Júnior, ministro da Justiça no Governo Fernando Henrique Cardoso, presidente da CEMDP durante seis anos e um dos autores do pedido de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff (PT), acredita que Bolsonaro "está beirando" ao menos uma das hipóteses legais para a abertura de outro processo de destituição do presidente. A lei, considerada por especialistas muito abrangente e de interpretação subjetiva, determina que "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo" é um dos crimes de responsabilidade pelos quais um presidente pode ser afastado. "O que está havendo é uma somatória de fatos dessa natureza que atingem a sensibilidade das pessoas e os valores fundamentais da Constituição. A partir do momento que ele é a favor do trabalho infantil, quer reduzir a punição para o trabalho escravo ou os presos tenham trabalho forçado, Bolsonaro vai contra os valores fundamentais da República. Isso é quebra o decoro", opina Reale Júnior.
Ao mesmo tempo que acredita que a base jurídica para um impeachment virá com a somatória de "provocações e ofensas", o advogado, filiado ao PSDB até 2017, afirma que falta um elemento central para que um processo vá adiante: "Ainda não há condições politicas seja na sociedade, seja no Congresso. Ele precisa se desgastar mais. Isso pode ocorrer na medida que houver um acúmulo". Mas ele se mostra cético: "Acho que as instituições e a sociedade estão muito caladas. As manifestações acontece nas redes, onde não existe sociedade civil. O que existe são desconhecidos e anônimos que colocam suas idiocrasias. A sociedade precisa estar alerta para se unir e se juntar contra esse processo que eu chamo de fascismo cultural".
O advogado Pedro Dallari, professor de Direito Internacional da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV), se mostra mais otimista. Apesar de dizer que é "um paradoxo" o fato de que "uma democracia em consolidação ter um presidente que nega suas conquistas", ele diz não ter receios "do ponto de vista da cidadania e das liberdades". Isso porque, para ele, Bolsonaro se equivoca ao considerar que sua base de eleitores congrega valores de ultradireita. "Um conjunto de circunstâncias fez com que Bolsonaro acabasse capitalizando uma posição da sociedade contra a corrupção, contra o desemprego, contra a precariedade dos serviços públicos, principalmente de segurança, e isso fulminou as candidaturas do campo social-democrata, incluindo as do PT e PSDB", argumenta Dallari, que foi filiado ao PT até meados dos anos 90. "Mas acho que ele vem perdendo progressivamente o apoio de segmentos, inclusive da classe média conservadora que dá importância para temas como meio ambiente ou direitos da população LGBT", acrescenta.
A última pesquisa Datafolha, divulgada na sexta-feira, 2 de agosto, parece dar respaldo a afirmação do jurista: 86% dos entrevistados se disseram contra a garimpagem de terras indígenas, algo que Bolsonaro vem prometendo legalizar. Uma maioria expressiva, de mais de 70%, já havia se manifestado também contra a liberação do porte de armas. "Do ponto de vista dos direitos civis, acho que a resistência social e institucional, seja pelo Legislativo ou pelo Judiciário, vem sendo efetiva. Essa radicalização retórica talvez seja em razão disso", argumenta. Ele cita como exemplo a queda do decreto presidencial que liberava o porte de armas para vários setores da sociedade. "Não recordo de um decreto ser derrubado dessa forma no Congresso, obrigando-o a recuar", argumenta.
Há momentos em que Bolsonaro parece testar as instituições até o limite. O presidente havia editado em janeiro uma Medida Provisória (MP) que transferia para o Ministério da Agricultura a competência para demarcar terras indígenas e quilombolas. Em maio, o Congresso Nacional devolveu a competência para o Ministério da Justiça, que também voltou a abrigar a Fundação Nacional do Índio (Funai). Em 19 de junho, o presidente decidiu enfrentar a decisão do Legislativo e editou uma nova MP para reverter a ação, avisando que "quem manda sou eu". No dia 24, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso concedeu liminar suspendendo a MP. Na última quinta, o caso foi para o plenário do Supremo, que decidiu por unanimidade manter a medida suspensa. Em seu discurso, o decano Celso de Mello afirmou que a Corte deveria fazer o seu papel de contrapeso, em claro recado ao chefe do Poder Executivo. Após a decisão do STF, o mandatário recuou: disse ter sido uma "falha" de seu Governo, e dele pessoalmente, a reedição de uma segunda medida provisória insistindo em deixar a Funai sob os comandos dos ruralistas. "Teve uma falha nossa. Eu já adverti a minha assessoria. A gente não poderia no mesmo ano ter que fazer uma MP de uma ação já decidida. Houve falha nossa. A falha é minha né. É minha porque eu assinei. Considero a decisão (do STF) acertada, sem problema nenhum", afirmou Bolsonaro, na sexta.
"O STF tem tido um ativismo judicial, às vezes positivo, às vezes negativo, que muitas vezes transborda os limites da ação judicial, criando normas e soluções. Mas neste momento o Supremo deve ter um papel muito importante de poder moderador", afirma Reale Júnior, concorda com Dallari sobre o apoio relativo que Bolsonaro ainda possui em sua base.
Além do impeachment, Reale Júnior aponta como possibilidade que o presidente seja denunciado por um crime comum, como pelo delito de abuso de autoridade. Algo evidente, segundo o jurista, quando Bolsonaro ameaçou o jornalista Glenn Greewald de ser preso, também na última semana. Neste caso, caberia ao Supremo aceitar a denúncia e pedir autorização para a Câmara dos Deputados para seguir com o julgamento. "Ele estaria sendo processado como Temer foi e responderia por crimes praticados no exercício da Presidência. Porque não é um ato que ele faz como Pessoa Física, mas na condição de Presidente da República", acrescenta.
Outro alvo recente da ira de Bolsonaro foi o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Seu diretor, Ricardo Galvão, foi exonerado na última sexta-feira após uma série de desentendimentos públicos com o presidente. O Governo vem questionando os dados sobre o cada vez maior desmatamento da Amazônia e anunciou que contratará uma firma privada para fazer a medição. Outros membros do Governo, como o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e o general Augusto Heleno, também vem expressando suas discordâncias com a divulgação de dados de desmatamento que consideram desfavoráveis para a imagem do Brasil ou até falso. O risco é que o desmatamento se torne para o bolsonarismo o que a inflação, maquiada durante anos na Argentina, se tornou para o kirchnerismo. "Meu único receio é com a área ambiental, porque gera padrões irreversíveis. A acentuação do desmatamento como vem sendo feita, o descaso com medidas contra o aquecimento global, a destruição da malha normativa de proteção dos índios... São males que serão irreversíveis", afirma Dallari.
Juan Arias: O desprezo do presidente pelo melhor da alma do Brasil
O desprezo do presidente pelo melhor da alma do Brasil
Entre as muitas barbaridades pronunciadas irresponsavelmente pelo presidente Jair Bolsonaro nos primeiros sete meses de seu Governo, que Eliane Brum qualifica neste mesmo jornal de perversas em seu magnifico artigo Doente de Brasil, há uma que, talvez por ser estrangeiro, ofendeu-me de modo especial. É quando ele afirma: “Temos uma profunda repulsa por quem não é brasileiro”.
A afirmação, no plural, daria a entender que não só ele, mas também todos os outros brasileiros, alimentam essa repulsa contra aqueles que não são, o que é uma injúria com milhões que sempre acolheram os estrangeiros com admirável gentileza, respeito e até carinho. Porque, além do mais, nas veias dos brasileiros pulsa o sangue de tantos povos vindos de todo o mundo. Basta pensar que só em São Paulo convivem em paz, sentindo-se brasileiros e sendo aceitos como tal, pessoas de 90 países diferentes.
Embora estejamos acostumados às palavras de desprezo do presidente de ultradireita por tudo que não sejam suas ordens autoritárias e seus horizontes mesquinhos de civilização, afirmar que sente repulsa por quem não é brasileiro é algo grave em quem deveria ser o defensor de todos e de cada um daqueles que habitam este grande continente, o quinto maior país do mundo. Todos, de algum modo, somos brasileiros. Aqui não há estrangeiros.
Segundo o dicionário Michaelis, repulsa é sinônimo de “repugnância, asco, aversão, revolta”. Se é isso que ele pensa daqueles que, como eu, escolheram livremente este país para viver e o sentem como seu, está fazendo uma tremenda injustiça que o define melhor do que todas as suas bravatas. Mais uma vez, com rejeição e repulsa em relação àqueles que não são brasileiros, o presidente revela que nele predominam os sentimentos negativos, suas pulsões de morte, sua atração por tudo que significa destruição e desqualificação do próximo.
Significa, acima de tudo, uma injúria e uma ofensa ao melhor deste país, que, apesar de todos os seus defeitos, tem uma virtude indiscutível, a acolhida aos estrangeiros. Estou aqui há 20 anos e posso dizer que me sinto mais querido do que em minha própria terra.
Bolsonaro despreza e até persegue o melhor dos brasileiros, a rica pluralidade de suas diferenças étnicas, culturais, humanas e religiosas. Quando eu ainda estava fora do Brasil, pude observar em minhas viagens pelo mundo que a palavra “Brasil” despertava principalmente simpatia e vontade de conhecer o país. Em um mundo no qual está sempre à espreita o perigo das guerras, o Brasil, apesar de sua carga de violência institucional e de suas grandes injustiças sociais, era visto como um povo que deseja viver em paz e que não lembra quando teve sua última guerra.
Agora, pela primeira vez em muito tempo, o Brasil vive sob um Governo que fala mais de guerra do que de paz, de matar do que de dar vida, que assassina a cultura e despreza as diferenças, o que significa renegar a alma deste país, que até ontem era visto pelos sociólogos europeus como um caldeirão de experiências positivas em sua convivência pacífica com os estrangeiros, aos quais poderia oferecer o sonho de um futuro com espaço e liberdade para todas as experiências em um clima de paz e desejo de felicidade.
Talvez seja este o maior pecado do novo presidente, o de estar criando um clima de guerra entre os brasileiros, incitando seus sentimentos de ódio e desprezo por tudo o que significa buscar caminhos novos de convivência e liberdade para experimentar novas formas de viver a existência sem que ninguém os ameace ou assuste.
Bolsonaro, que se apresenta como cristão, parece ter esquecido que os tempos do “olho por olho, dente por dente” morreram há mais de 2.000 anos e que foram os primeiros cristãos aqueles que pregaram: “Agora já não há judeu nem gentio, escravo nem livre, porque todos são um em Cristo”. Semear, como o presidente faz, sementes de morte e divisão, de desprezo e até de ameaças a todos aqueles que não se ajoelhem diante de sua visão autoritária e estreita do mundo, é ofender este país e segregá-lo do mundo moderno sem fronteiras, querendo impor novos muros que nos separem uns dos outros.
É precisamente essa a missão de satanás, dividir e semear ódios para impedir as pessoas de ser felizes, de ser como elas querem e não como pretende um Governo que parece apreciar mais as armas do que a paz, a discórdia do que a concórdia. Isso, na verdade, é assassinar o país em vez de abrir novos horizontes para ele em um mundo que está com dores de parto e tudo de que precisa é que o ajudem a criar uma nova vida, em vez de se deixar arrastar pelos demônios que tentam destruir seus sonhos.
Eliane Brum: Doente de Brasil
Como resistir ao adoecimento num país (des)controlado pelo perverso da autoverdade
Jair Bolsonaro é um perverso. Não um louco, nomeação injusta (e preconceituosa) com os efetivamente loucos, grande parte deles incapaz de produzir mal a um outro. O presidente do Brasil é perverso, um tipo de gente que só mantém os dentes (temporariamente, pelo menos) longe de quem é do seu sangue ou de quem abana o rabo para as suas ideias. Enquanto estiver abanando o rabo – se parar, será também mastigado. Um tipo de gente sem limites, que não se preocupa em colocar outras pessoas em risco de morte, mesmo que sejam funcionários públicos a serviço do Estado, como os fiscais do IBAMA, nem se importa em mentir descaradamente sobre os números produzidos pelas próprias instituições governamentais desde que isso lhe convenha, como tem feito com as estatísticas alarmantes do desmatamento da Amazônia. O Brasil está nas mãos deste perverso, que reúne ao seu redor outros perversos e alguns oportunistas. Submetidos a um cotidiano dominado pela autoverdade, fenômeno que converte a verdade numa escolha pessoal, e portanto destrói a possibilidade da verdade, os brasileiros têm adoecido. Adoecimento mental, que resulta também em queda de imunidade e sintomas físicos, já que o corpo é um só.
É desta ordem os relatos que tenho recolhido nos últimos meses junto a psicanalistas e psiquiatras, e também a médicos da clínica geral, medicina interna e cardiologia, onde as pessoas desembarcam queixando-se de taquicardia, tontura e falta de ar. Um destes médicos, cardiologista, confessou-se exausto, porque mais da metade da sua clínica, atualmente, corresponde a queixas sem relação com problemas do coração, o órgão, e, sim, com ansiedade extrema e/ou depressão. Está trabalhando mais, em consultas mais longas, e inseguro sobre como lidar com algo para o qual não se sente preparado.
O fenômeno começou a ser notado nos consultórios nos últimos anos de polarização política, que dividiu famílias, destruiu amizades e corroeu as relações em todos os espaços da vida, ao mesmo tempo em que a crise econômica se agravava, o desemprego aumentava e as condições de trabalho se deterioravam. Acirrou-se enormemente a partir da campanha eleitoral baseada no incitamento à violência produzida por Jair Bolsonaro em 2018. Com um presidente que, desde janeiro, governa a partir da administração do ódio, não dá sinais de arrefecer. Pelo contrário. A percepção é de crescimento do número de pessoas que se dizem “doentes”, sem saber como buscar a cura.
Vou insistir, mais uma vez, neste espaço, que precisamos chamar as coisas pelo nome. Não apenas porque é o mais correto a fazer, mas porque essa é uma forma de resistir ao adoecimento. Não é do “jogo democrático” ter um homem como Jair Bolsonaro na presidência. Tanto como não havia “normalidade” alguma em ter Adolf Hitler no comando da Alemanha. Não dá para tratar o que vivemos como algo que pode ser apenas gerido, porque não há como gerir a perversão. Ou o que mais precisa ser feito ou dito por Bolsonaro para perceber que não há gestão possível de um perverso no poder? Bolsonaro não é “autêntico”. Bolsonaro é um mentiroso.
Podemos – e devemos – discutir como chegamos a ter um presidente que usa, como estratégia, a guerra contra todos que não são ele mesmo e o seu clã. Como chegamos a ter um presidente que mente sistematicamente sobre tudo. Podemos – e devemos discutir – como chegamos a ter um antipresidente. Assim como podemos – e devemos – perceber que a experiência brasileira está inserida num fenômeno global, que se reproduz, com particularidades próprias, em diferentes países.
Esse esforço de entendimento do processo, de interpretação dos fatos e de produção de memória é insubstituível. Mas é necessário também responder ao que está nos adoecendo agora, antes que nos mate.
Em 10 de julho, o psiquiatra Fernando Tenório escreveu um post no Facebook que viralizou e foi replicado em vários grupos de Whatsapp. Aqui, um trecho: “Acabei de atender a um homem de 45 anos, negro, sem escolaridade. Nos últimos cinco anos, viu seus colegas de setor serem demitidos um a um e ele passou a acumular as funções de todos. Disse-me que nem reclamou por medo de ser o próximo da fila. Tem sintomas de esgotamento que descambam para ansiedade. Qual o diagnóstico para isso? Brasil. Adoeceu de Brasil. Se eu tivesse algum poder iria sugerir ao DSM (o manual de transtornos mentais da psiquiatria) esse novo diagnóstico. Adoecer de Brasil é a mais prevalente das doenças. Entrei agora na Internet e vi que a reforma da previdência corre para ser aprovada sem sustos. O povo, adoecido de Brasil, permanece inerte. Vai trabalhar sem direito a aposentadoria até morrer de Brasil”.
Não há normalidade nem jogo democrático quando um perverso governa a partir da administração do ódio e da mentira
Alagoano da pequena Maribondo, Fernando Tenório fez residência e atuou na rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro. Atualmente, mantém consultório na capital fluminense e atende trabalhadores de um sindicato do setor hoteleiro. O psiquiatra me conta, por telefone, que cresceu muito o número de pessoas que chegavam ao seu consultório com sintomas como taquicardia, desmaios na rua, sinais de esgotamento corporal, dores de cabeça frequentes, sentimentos depressivos. Eram pessoas que estavam objetiva e subjetivamente esgotadas pela precarização das condições de trabalho, como jornada excessiva, acúmulo de funções, metas impossíveis de cumprir, falta de perspectivas de mudança, insegurança extrema. Tinham um “trabalho de merda” e, ao mesmo tempo, medo de perder o “trabalho de merda”, como testemunharam acontecer com vários colegas.
O psiquiatra diz que ele mesmo se descobriu adoecido meses atrás. “Fiquei muito mal, porque me senti quase um traficante de drogas legais. Estava tratando uma crise, que é social, no indivíduo. E, de certo modo, ao dar medicamentos, estava tornando essa pessoa apta a sofrer mais, porque a jogava de volta ao trabalho.” Na sua avaliação, o adoecimento está relacionado à precarização do mundo do trabalho nos últimos anos, acentuada pela reforma trabalhista aprovada em 2017, e foi agravado com a ascensão de um governo “que declarou guerra ao seu povo”. “O Brasil hoje é tóxico”, afirma.
Após a publicação do post, Tenório sentiu ainda mais o nível da toxicidade cotidiana do país: recebeu xingamentos e ameaças. Um dos agressores lembrou que sua filha, cuja foto viu em uma rede social, um dia poderia ser estuprada. A menina é um bebê de menos de 2 anos.
“Tóxico” é palavra de uso frequente de brasileiros ao relatarem o sentimento de viver em um país onde já não conseguem respirar. Na constatação de que o governo Bolsonaro já aprovou 290 agrotóxicos em apenas sete meses, o envenenamento ganha uma outra camada. É como se os corpos fossem um objeto atacado por todos os lados. País que ultrapassou a possibilidade das metáforas, a toxicidade do Brasil abrange todas as acepções.
Cresce nos consultórios os casos de depressão provocados e alimentados pelo contexto político e social
Mas que adoecimento é este que Tenório chama de “doente de Brasil”? Um psicanalista que prefere não se identificar por temer represálias explica que aumentou muito nos consultórios os quadros depressivos provocados pelo momento vivido pelo Brasil, em que especialmente pessoas ligadas à esquerda, mas não necessariamente ao PT, sentem uma total perda de sentido e horizonte. “Para a psiquiatria, a depressão é a tristeza sem contexto. Ou seja, ela é relacionada à estrutura psíquica de cada pessoa, às fundações e alicerces construídos na infância”, explica. “O que temos vivido hoje nos consultórios é o aumento da depressão com contexto, esta que não tem a ver com a estrutura do indivíduo e que nem vai melhorar no divã. Esta em que o uso de medicamentos só vai servir para obscurecer o esclarecimento das questões. Esta que só pode ser sanada por mudanças sociais.”
O rompimento dos laços, como a divisão das famílias provocada pela polarização política, tornou as pessoas ainda mais sujeitas ao adoecimento mental e com menos ferramentas para lidar com ele. Como disse um filósofo, ninguém deixa de dormir porque está tendo uma guerra no outro lado do mundo, com exceção daqueles que vivem a guerra. Com isso, ele queria dizer que as pessoas perdiam o sono muito mais por pequenas dores e preocupações comezinhas com as quais se identificavam, como as relacionadas à família e ao mundo dos afetos, do que por enormes barbáries que ocorriam no outro lado do mundo.
O que os brasileiros testemunharam foi uma inversão: a política, que sempre foi algo do campo público, invadiu o campo privado, passando a ser um fator íntimo, um fator primeiro de identificação. Dias atrás uma amiga presenciou uma conversa em que duas garotas decidiam quais os critérios para dividir apartamento com uma outra. “Não suportaria dividir com uma petista”, disse uma delas. Essa conversa, exceto no caso de militantes mais radicais, dificilmente aconteceria anos atrás: ninguém costumava perguntar qual era a orientação política antes de dividir a casa com alguém.
A eleição, que costumava ser um acontecimento pontual, da esfera pública, tornou-se algo crucial na esfera privada. Do mesmo modo, o inverso também aconteceu. Questões íntimas, como a orientação sexual de cada um, como o que acontece na cama de cada um, passaram a ser discutidas publicamente. Esse fenômeno atingiu fortemente laços que cada um considerava incondicionais, como os familiares, laços com os quais se contava para enfrentar a dureza da vida. E acentuou ainda mais os quadros depressivos e persecutórios, aumentando ansiedade e angústia, corroendo a saúde.
O sofrimento é agravado pela constatação de que as instituições não barram a violência do governo e do governante
Uma psicanalista de São Paulo, que também prefere não se identificar, acredita que o adoecimento do Brasil de 2019 expressa a radicalização da impotência. As pessoas, hoje, não sabem como reagir à quebra do pacto civilizatório representada pela eleição de uma figura violenta como Bolsonaro, que não só prega a violência como violenta a população todos os dias, seja por atos, seja por aliar-se a grupos criminosos, como faz com desmatadores e grileiros na Amazônia, seja por mentir compulsivamente. Não sabem, também, como parar essa força que as atropela e esmaga. Sentem como se aquilo que as está atacando fosse “imparável”, porque percebem que já não podem contar com as instituições – constatação gravíssima para a vida em sociedade. E então passam a sentir-se como reféns – e, seguidamente, a atuar como reféns.
“Como reagimos à violência de alguém como Bolsonaro, que faz e diz o que quer, sem que seja impedido pelas instituições?”, questiona. “Toda a nossa experiência dá conta de que a vida em sociedade é regulada por instâncias que vão determinar o que pode e o que não pode, que têm o poder de impedir a quebra do pacto civilizatório, este pacto que permite que a gente possa conviver. Nesta experiência de que há um regulador, se uma pessoa é racista, ela vai ser processada – e não virar presidente do país. O que vivemos agora, com Bolsonaro, é a quebra de qualquer regulação. E isso tem um enorme impacto sobre a vida subjetiva. Ninguém sabe como reagir a isso, como viver numa realidade em que o presidente pode mentir e pode até mesmo inventar uma realidade que não corresponde aos fatos.”
A documentação das experiências de autoritarismo em diferentes épocas e países costuma relatar o sofrimento físico e psíquico das vítimas, mas geralmente em condições explícitas. Como, por exemplo, um judeu num campo de concentração nazista. Ou uma das mulheres torturadas no Doi-Codi, em São Paulo, durante a ditadura militar do Brasil (1964-1985). Perceber essa violência explícita como violência é imediato. O que a experiência autoritária do bolsonarismo tem demonstrado é o quanto pode ser difícil resistir (também) à violência do cotidiano, aquela que se infiltra nos dias, nos pequenos gestos, na paralisia que vira um modo de ser, nas covardias que deixamos de questionar.
O cotidiano de exceção tem se infiltrado e realizado em milhões de pequenos gestos de autocensura, silêncio e ausência no Brasil
Há milhares, talvez milhões de pequenos gestos de conformação acontecendo neste exato momento no Brasil. Em silêncio. Pequenos movimentos de autocensura, ausências nem sempre percebidas. Uma autora me conta que conseguiu manter seu livro no catálogo da editora sem usar a palavra gênero.... para falar de gênero e sexualidade. Uma diretora me diz que vestiu os corpos de suas atrizes, até então nuas, numa peça de teatro. A professora de uma das mais importantes universidades públicas do país me relata que muitos colegas já deixaram de analisar determinados temas em salas de aula por medo do “poder de polícia” dos alunos, que têm gravado as aulas e se comportado de forma ainda mais violenta que a polícia formal. Um curador de eventos preferiu não fazer o evento. Mudou de assunto. Outro deixou de convidar uma pensadora que certamente levaria bolsocrentes para a sua porta. Nunca saberemos o que poderia acontecer, porque o acontecimento foi impedido para não sofrer o risco de ser impedido.
Há tantos que já preferem “não comentar”. Ou que dizem, simpaticamente: “me deixa fora dessa”. É também assim que o autoritarismo se infiltra, ou é principalmente assim que o autoritarismo se infiltra. E é também assim que se adoece uma população por aquilo que ela já tem medo de fazer, porque antecipa o gesto do opressor e se cala antes de ser calada. E em breve talvez tenha medo também de sussurrar dentro de casa, num mundo em que os aparelhos tecnológicos podem ser usados para a vigilância. Chega o dia em que o próprio pensamento se torna uma doença autoimune. É assim também que o autoritarismo vence antes mesmo de vencer.
Um dos sintomas do cotidiano de exceção que vivemos é a colonização de nossas mentes. Mesmo pessoas que viveram a ditadura militar não têm recordação de algum momento da sua vida em que tenham pensado todos os dias no presidente da República. Bolsonaro administra o horror dos dias, com suas violências e mentiras, de um modo que o torna onipresente. Faça o teste: quantas horas você consegue ficar sem pensar em Bolsonaro, sem citar uma bestialidade de Bolsonaro? É isso o autoritarismo. Mas sobre isso poucos falam.
Bolsonaro encarna a vanguarda messiânica-apocalíptica do mundo
Se Bolsonaro encarna a vanguarda messiânica-apocalítica do mundo, é preciso sublinhar que os brasileiros não estão sós. Um amigo estrangeiro me conta que, desde que Donald Trump assumiu, a primeira coisa que ele faz ao acordar é conferir qual é a barbaridade que o presidente americano escreveu no Twitter, porque sente que isso afeta diretamente a vida dele. E afeta.
Mario Corso, psicanalista e escritor gaúcho, aponta que não é possível pensar no que ele chama de “ethos depressivo” deste momento fora do contexto do Ocidente. “Veja o Reino Unido. O novo primeiro-ministro (referindo-se ao pró-Brexit Boris Johnson) é um palhaço. E eles já tiveram Churchill!”, exemplifica. “O problema, no Brasil, é que além de toda a crise global, elegemos um cretino para presidente”, diz o psicanalista. “O que assusta é que não há freios para impedi-lo. E, assim, ele segue atacando os mais frágeis. Como Bolsonaro é covarde, ele não engrossa com os maiores que ele.”
Boris Johnson não chega a ser um Donald Trump. E nem Donald Trump chega a ser um Jair Bolsonaro. Mas a diferença maior está na qualidade da democracia. Tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido, as instituições têm conseguido exercer o seu papel. No Brasil, não chega a ser perda total – ou não bastou (ainda) “um cabo e um soldado” para fechar o STF, como sugeriu o futuro possível embaixador do país nos Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro, o garoto zerotrês. Mas a precariedade – e com frequência a omissão – das instituições – quando não conivência – são evidentes. “Enquanto Bolsonaro não consegue uma ditadura total, porque isso ele quer, mas ainda não conseguiu, ele antecipa a ditadura pelas palavras”, diz Corso. “Bolsonaro usa aquilo que você definiu como autoverdade para antecipar a ditadura. Os fatos não importam, o que ‘eu’ digo é o que é.”
“A guerra acontece quando a palavra, como mediadora, se extinguiu”
Para Rinaldo Voltolini, professor de psicanálise da Universidade de São Paulo, a autoverdade é a amputação da palavra no sentido pleno. “Este é um grande disparador do sofrimento das pessoas, ao constatarem que estão fora no nível mais importante. Não é que você está fora porque não tem uma casa ou um carro, hoje você está fora das possibilidades de leitura do mundo. O que você diz não tem valor, não tem sentido, não tem significado. É como se, de repente, você já não tivesse lugar na gramática”, diz o psicanalista. “O que é a guerra? A guerra acontece quando a palavra, como mediadora, se extinguiu. Isso acontece entre duas pessoas, entre países. Sem a mediação da palavra, se passa diretamente ao ato violento".
A autoverdade, como escrevi neste espaço, determinou a eleição de Bolsonaro. E seguiu moldando sua forma de governar pela guerra, o que implica a destruição da palavra. Assim, desde o início do governo, Bolsonaro tem chamado os órgãos oficiais de mentirosos sempre que não gosta do resultado das pesquisas. Como quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostrou que o número de desempregados tinha aumentado no seu governo.
Nos últimos dias, porém, o antipresidente levou a perversão da verdade, esta que torna a verdade uma escolha pessoal, à radicalidade. Decidiu que a jornalista Míriam Leitão não foi torturada – e ela foi. Insinuou que o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil teria sido executado pela esquerda, quando ele desapareceu por obra de agentes do Estado na ditadura militar. Decidiu que ninguém mais passa fome no Brasil – o que é desmentido não só pelas estatísticas como pela experiência cotidiana dos brasileiros. Decidiu que os dados que apontaram a explosão do desmatamento na Amazônia, produzidos pelo conceituado Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, eram mentirosos. Isso porque apenas no mês de julho de 2019 foi destruída uma área de floresta maior do que a cidade de São Paulo, e o índice de desmatamento foi três vezes maiores do que em julho do ano passado. E Bolsonaro decidiu ainda que “só os veganos que comem vegetais” se importam com o meio ambiente.
Bolsonaro controla o cotidiano porque fora de controle. Bolsonaro domina o noticiário porque criou um discurso que não precisa estar ancorado nos fatos. A verdade, para Bolsonaro, é a que ele quer que seja. Assim, além da palavra, Bolsonaro destrói a democracia ao usar o poder que conquistou pelo voto para destruir não só direitos conquistados em décadas e todo o sistema de proteção do meio ambiente, mas também para destruir a possibilidade da verdade.
O que vivemos não é mal-estar, mas horror
“Narrar a história é sempre o primeiro ato de dominação. Não é por acaso que Bolsonaro quer adulterar a história. A história da ditadura é construída por muitos documentos, é uma produção coletiva. Mas ele decide que aconteceu outra coisa e não apresenta nenhum documento para comprovar o que diz”, analisa Voltolini. “Não é que estamos vivendo o mal-estar na civilização. Isso sempre houve. A questão é que, para ter mal-estar é preciso civilização. E hoje, o que está em jogo, é a própria civilização. Isso não é da ordem do mal-estar, mas da ordem do horror.”
Como enfrentar o horror? Como barrar o adoecimento provocado pela destruição da palavra como mediadora? Como resistir a um cotidiano em que a verdade é destruída dia após dia pela figura máxima do poder republicano? Rinaldo Voltolini lembra um diálogo entre Albert Einstein e Sigmund Freud. Quando Einstein pergunta a Freud como seria possível deter o processo que leva à guerra, Freud responde que tudo o que favorece a cultura combate a guerra.
Os bolsonaristas sabem disso e por isso estão atacando a cultura e a educação. A cultura não é algo distante nem algo que pertence às elites, mas sim aquilo que nos faz humanos. Cultura é a palavra que nos apalavra. Precisamos recuperar a palavra como mediadora em todos os cantos onde houver gente. E fazer isso coletivamente, conjugando o nós, reamarrando os laços para fazer comunidade. O único jeito de lutar pelo comum é criando o comum – em comum.
É preciso dizer: não vai ficar mais fácil. Não estamos mais lutando pela democracia. Estamos lutando pela civilização.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
El País: Lava Jato tem técnica para resgatar mensagens apagadas do Telegram. Dallagnol tentou usá-la?
Ferramenta usada pela PF e pela operação permite recuperar conversas deletadas em aplicativos, na maior parte dos casos. Procurador não responde se cogitou utilizá-la para contestar 'The Intercept'
Enquanto o mundo político debate as possíveis consequências legais das conversas de Deltan Dallagnol e Sergio Moro publicadas pelo site The Intercept, o procurador e o ex-juiz da Lava Jato, agora ministro da Justiça, repetem um discurso que lhes ajuda a conter os riscos de investigações na esfera criminal, o único tipo de cerco que poderia apreender seus telefones celulares e verificar a autenticidade dos diálogos vazados. Moro e Dallagnol, desde as primeiras conversas vazadas, afirmam que os diálogos poderiam ter sido adulterados por hackers que roubaram criminosamente as conversas. Afirmaram ainda que não podiam provar essa eventual adulteração porque apagaram os aplicativos do Telegram de seus celulares e, consequentemente, as mensagens.
“Várias análises mostraram que os diálogos são falseáveis. A origem são pessoas acusadas de crimes, inclusive de falsificação, e quem tem o documento com os diálogos não o apresentou para verificação”, repetiu Dallagnol em entrevista à rádio CBN, na sexta-feira, após a prisão dos hackers suspeitos de ter tentado roubar dados de seu celular e de quase mil autoridades.
Mesmo depois que o principal detido confessou o suposto crime à Polícia Federal e disse não ter alterado o conteúdo, o procurador de Curitiba segue repetindo que suas conversas podem ter sido mudadas e não é possível cotejar com as originais (ainda que não detalhe se apenas deixou de usar o Telegram no celular ou se apagou a conta em si no serviço, o que mudaria o tempo de armazenamento do conteúdo). O EL PAÍS, no entanto, obteve documentos da própria Operação Lava Jato e fez entrevista com o fornecedor de uma ferramenta utilizada pela Polícia Federal que demonstram que, sim, é possível recuperar, em muitos casos, mensagens apagadas do Telegram e de outros aplicativos.
Tanto é possível resgatar mensagens deletadas de SMS, WhatsApp, Telegram e até de outros aplicativos que peritos da PF recuperaram várias conversas dos celulares de presos da Lava Jato. Desde o começo da megainvestigação em Curitiba, em 2014, a Superintendência da Polícia Federal no Paraná utiliza a tecnologia que executa a tarefa. Trata-se de um dispositivo eletrônico batizado de UFED (Universal Forensic Extraction Device), parecido a um microcomputador em formato de maleta, que foi vendido pela empresa israelense Cellebrite. O dispositivo, que também é oferecido como aplicativo para instalação em computadores ou notebooks, já foi vendido para outras unidades policiais do país.
Relatório da PF cita que foram recuperadas mensagens do celular do doleiro Alberto Youssef.
A ferramenta funciona da seguinte forma: uma vez apreendido o celular, basta conectar por cabo o celular à maleta ou ao computador com a ferramenta instalada. Pelo aplicativo da Cellebrite, o perito escolhe se faz a extração integral dos dados ou se produz relatórios específicos. A Cellebrite, no entanto, explica que nem sempre é possível recuperar mensagens deletadas de um aparelho celular. É preciso que os dados estejam acessíveis na memória interna do aparelho, que costuma deixar os dados registrados mesmo depois de deletados dos aplicativos, ou na nuvem de dados do aplicativo utilizado. Também é preciso que a versão do aplicativo da Cellebrite esteja atualizada para acessar os sistemas operacionais mais recentes dos aparelhos. A empresa israelense oferece novas atualizações à medida em que fabricantes como Apple e Samsung criam novos sistemas operacionais.
O UFED, na prática, consegue acessar e extrair a memória interna dos aparelhos celulares, mesmo com aplicativos deletados, e também consegue extrair, a partir do aparelho, os dados na nuvem dos aplicativos instalados. Em alguns casos, a empresa israelense diz que a ferramenta consegue até quebrar senhas de proteção de tela e códigos de restrição de acesso de aplicativos. “Via de regra, tudo pode ser recuperado, incluindo o conteúdo de mensagens. O que é relevante para recuperar informação é o tempo que foi gravada”, explicou Frederico Bonincontro, vice-presidente de vendas para a América Latina da Cellebrite, em entrevista ao EL PAÍS. “Hoje, por exemplo, WhatsApp e Telegram podem ser recuperados na grande maioria das situações, mas existem casos em que o aparelho tal, da versão tal, com chip tal, com Telegram versão A, B, ou C, não permite que seja recuperado”, acrescentou.
Procurados por e-mail, nem o ministro da Justiça, Sergio Moro, nem o procurador Deltan Dallagnol responderam se submeteram ou tentaram submeter seus celulares à extração de dados pela ferramenta pelo UFED. Se o investigado trocar de aparelho e mantiver a mesma linha, também não é possível recuperar conteúdo apagado caso não tenha sobrado nada na nuvem de dados dos aplicativos. Também questionados pela reportagem, Moro e Dallagnol não responderam quando e se trocaram de aparelhos celulares.
Uma ferramenta útil pra Lava Jato
Na Lava Jato, o UFED já recuperou conversas do doleiro Alberto Youssef em um celular, como demonstra o pedido de prisão da Operação Juízo Final, que prendeu os principais sócios e executivos de empreiteiras do país em 14 de novembro de 2014. “Foram recuperadas no aparelho analisado diversas mensagens trocadas entre YOUSSEF e o Interlocutor ‘CARECA”, diz o relatório da Polícia Federal que pediu a prisão do agente Jayme Oliveira Filho, apelidado de “Careca”, um policial federal no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, que fazia bicos como entregador de propinas distribuídas por Youssef. Nem todo investigado, porém, era cuidadoso como Youssef ao ponto de apagar mensagens. O empreiteiro Léo Pinheiro, sócio da OAS, por exemplo, jamais tinha apagado suas conversas de celular, trocadas por anos, por SMS e WhatsApp, o que forneceu um volume gigante de pistas para as investigações.
Ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo e a ausência de mensagens nos telefones de Moro e Dallagnol seria uma forma legítima de controlar o risco potencial das mensagens na esfera criminal. Especialistas expressam que os diálogos comprovam ilegalidades processuais que poderiam inclusive serem usados para anular sentenças de Moro. A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o condenado mais célebre do ex-juiz da Lava Jato, questiona no Supremo Tribunal Federal (STF) a neutralidade de Moro em seu caso e já comunicou aos magistrados da existência do material revelado pelo The Intercept, sem, no entanto, anexá-lo como possível prova. O caso deve ser retomado em agosto.
De qualquer forma, a localização do hacker pela Polícia Federal e a apreensão dos computadores no qual dizem ter cópias das mensagens virou também uma forma de comprovar a autenticidade e o conteúdo das mensagens. O material roubado encontrado com os suspeitos —não o material do Intercept, protegido pelo sigilo de fonte—, pode também ser analisado pela Justiça, se ela for instada a fazê-lo e decidir favoravelmente.
Nesta semana, o PT apresentou uma queixa-crime contra o ex-juiz, acusando-o de abuso de autoridade, violação do sigilo funcional e supressão de documentos. A queixa foi motivada pela conduta do ministro na prisão dos quatro suspeitos de roubar as mensagens. Na ocasião, Moro ligou para autoridades e, sem competência para tal, declarou que as mensagens seriam destruídas. Foi desautorizado pela PF.