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Eliane Brum || 'A notícia é esta: o Xingu vai morrer'

O Ministério Público Federal adverte que a maior tragédia amazônica hoje na região de Altamira é o “ecocídio” da Volta Grande do Xingu

Quando os incêndios na floresta queimaram as telas do planeta, a cidade de Altamira foi ocupada pela imprensa. “O mundo descobriu a Amazônia”, as pessoas falavam nas ruas, enquanto eram abordadas por uma babel de línguas. Algumas tinham a esperança de que as atrocidades tantas vezes denunciadas contra a floresta e os povos da floresta fossem finalmente vistas. Outras apenas sentiam raiva, porque a volta das operações de órgãos de governo —enfraquecidos na gestão de Michel Temer e desidratados até quase a extinção no governo de Jair Bolsonaro— atrapalhavam temporariamente o lucrativo negócio de comercializar a floresta. “Onde está o fogo? Onde está o fogo?”, perguntavam os jornalistas que chegavam de todas as partes ao maior município do Brasil. Dentro de Altamira, cabem Portugal e Suíça e ainda sobra espaço. No criminoso Dia do Fogo, em 10 de agosto, 194 focos subiram neste território. Epicentro dos conflitos amazônicos, Altamira é redescoberta periodicamente. E, em seguida, esquecida. Essa é a angústia de quem luta pelo meio ambiente nesse centro do mundo que é tratado como periferia. As chamas podem se apagar e, se Jair Bolsonaro não for impedido de seguir desprotegendo a floresta, voltar a acender e a queimar ainda mais. Algo aterrador e menos visível, porém, está em curso: a Volta Grande do Xingu está morrendo.

Esta era a mensagem que a procuradora da República em Altamira Thais Santi tentava passar aos jornalistas. Os incêndios são graves e devem ser denunciados e combatidos, mas é necessário compreender também que um rio está morrendo. Morrendo. “É ecocídio, e é genocídio”, ela afirma. A procuradora não exagera. Os fatos são eloquentes, investigados e mensurados pelos melhores cientistas da área do Brasil, e também por documentos oficiais. Na história recente da Amazônia, a grande causadora e reprodutora de violências na região do Médio Xingu, onde está a cidade de Altamira, foi e segue sendo a Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Muito pouco acontece na cidade que não tenha o DNA da Norte Energia S. A., a empresa concessionária da barragem. Esse DNA está marcado na agonia da Volta Grande do Xingu, uma região belíssima de 100 quilômetros onde vivem os povos Juruna e Arara, assim como população ribeirinha e espécies endêmicas de peixes. É também nesta região que, nos últimos anos, outra gigante, a mineradora canadense Belo Sun, pressiona a população local e assedia políticos de Belém para obter autorização para explorar aquela que seria a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil – e também o sepultamento oficial da Volta Grande embaixo de toneladas de rejeitos tóxicos.

MPF afirma que Belo Monte é inviável

No final de agosto, Thais Santi e outros 23 procuradores, incluindo coordenadores de câmaras, assinaram uma recomendação para o Instituto Nacional do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) afirmando que o hidrograma – a administração da água pela usina – deve ser suspenso e revisado. Caso isso não aconteça, o Ministério Público Federal entrará com uma ação judicial. Na prática, o que o documento demonstra e afirma é o que já se dizia e escrevia antes de Belo Monte ser construída: preservando as condições mínimas para a vida de indígenas e ribeirinhos e para a vida das outras espécies, numa das regiões mais biodiversas da Amazônia, e preservando o Xingu, um dos mais magníficos afluentes do Amazonas, do qual depende a vida de dezenas de povos originários, Belo Monte é economicamente inviável.

Esta não é nenhuma novidade. Em 2011, publiquei uma entrevista na Revista Época com Celio Bermann, professor da Universidade de São Paulo. Especialista na área energética, ele também havia trabalhado no Ministério de Minas e Energia com Dilma Rousseff no início do primeiro mandato de Lula (PT). Bermann dizia com todas as letras que Belo Monte seria construída mais para gerar propina, menos para gerar energia. E afirmava que, para gerar energia, a usina era economicamente inviável. A entrevista gerou respostas e pressões de vários protagonistas, como o então senador José Sarney (PMDB), uma das figuras mas influentes do setor energético por décadas, em diferentes governos.

Qual é o problema político com Belo Monte, acentuado num país polarizado?

Belo Monte é um crime construído pelos governos do PT/PMDB. Segundo a Operação Lava Jato, uma obra construída para a geração de propina. Como é uma obra que começou a ser articulada com Lula e foi materializada por Dilma Rousseff, uma parcela significativa da esquerda preferiu fechar os olhos para Belo Monte, como faz até hoje. Os direitos humanos tanto dos povos indígenas, o que fere diretamente a Constituição, quanto das populações ribeirinhas foram violados sistematicamente para que a usina fosse construída.

Durante a construção da usina, na segunda década deste século, pessoas analfabetas foram pressionadas a assinar papéis que não eram capazes de ler, onde aceitavam perder tudo em troca de nada ou de uma indenização que mal permitia viver alguns meses nas periferias de Altamira. Ninguém pode dizer que não sabia. Embora grande parte da imprensa exaltasse a “grandiosa obra de engenharia”, eu e outros jornalistas denunciamos as violações em nossas reportagens. E fomos fortemente pressionados junto a nossos editores pela empresa. Também fomos atacados por militantes nas redes sociais.

Foto mostra Volta Grande do Xingu em 2015, antes da seca e do início do funcionamento da usina
Foto mostra Volta Grande do Xingu em 2015, antes da seca e do início do funcionamento da usina

Este, de novo, é o problema com a morte da Volta Grande do Xingu. No momento, Lula está preso por um processo em que há escandalosas evidências de abusos cometidos por agentes públicos durante a instrução e julgamentos, excessos totalmente incompatíveis com qualquer ideia de justiça. Para piorar, a situação foi agravada pela parcialidade explícita exposta pelo vazamento das trocas de mensagens entre o então juiz Sergio Moro, atual ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, e os procuradores da Operação Lava Jato, revelado pela série de reportagens do jornal The Intercept. Neste cenário, quem quer lembrar do crime que é Belo Monte, este que tem o DNA de Lula e de Dilma Rousseff?

Tanto os governos do PT quanto o Governo Bolsonaro reproduzem a visão sobre a Amazônia da ditadura militar

O outro grande obstáculo que impede a salvação da Volta Grande do Xingu, e portanto da floresta amazônica, é que Belo Monte está totalmente afinada com a visão de Jair Bolsonaro e do grupo de militares que o acompanha no governo de extrema-direita. Bolsonaro já anunciou, por meio do ministro de Minas e Energia, que viajará para Altamira no final do ano, para orgulhosamente inaugurar a última turbina de Belo Monte, o que significará a conclusão de uma obra que custou várias vezes mais do que o previsto.

É preciso reconhecer e dizer, mesmo que seja duro para alguns: a visão para a Amazônia dos governos de Lula e de Dilma, de centro-esquerda, e do governo de Bolsonaro, de extrema direita, é semelhante. E é totalmente afinada com a visão dos militares, construída e difundida durante a ditadura (1964-1985): a exploração da floresta por meio de grandes obras e grandes projetos, sem escutar os povos da floresta nem respeitar seus direitos constitucionais, usando como estratégia a falácia da ameaça à soberania. No trato com a Amazônia não houve ruptura política, mas continuidade.

Acompanhem o que Lula afirmou à repórter Mariana Schreiber, da BBC Brasil, em excelente entrevista feita na prisão e publicada no último 29 de agosto. “Tenho orgulho de ter feito Belo Monte”. E, em outro ponto: “Não tente culpar a Dilma pelo que está ocorrendo em Belo Monte hoje. Cada um de nós é responsável pelo período que governou o país”. Lula defende Belo Monte durante vários parágrafos e empurra os problemas para os governos municipal e estadual, assim como para o atual governo federal.

Concordo com Lula que é suficiente e justo responsabilizá-lo apenas pelo período em que ele e Dilma governaram o país e impuseram aos povos do Xingu uma hidrelétrica que nem a ditadura tinha conseguido materializar num dos rios mais importantes da Amazônia. E, assim, fazer a conversão de povos ricos da floresta em pobres urbanos da periferia da cidade. E, tudo isso, justamente num momento em que o planeta vive a emergência climática. Para mim, e acredito que para muitos, se ele assumir a responsabilidade do PT no que se refere à Belo Monte durante os três mandatos completos e o quarto mandato interrompido pelo impeachment está suficiente.

É nesse ponto de rara intersecção entre Lula e Bolsonaro que o Xingu está morrendo. Quem então vai defender a vida na Volta Grande do Xingu no Brasil polarizado, se isso significa tocar no vespeiro das verdades das quais não se pode escapar? Este tem sido o desafio da parcela respeitável do Ministério Público Federal e das ONGs que lutam pela preservação da floresta e de seus povos, mas que hoje foram criminalizadas por Bolsonaro e seus seguidores. Está bastante claro que, sem a mobilização da população, não será possível salvar o Xingu. É na Amazônia que as lideranças políticas emergentes, em especial as identificadas com a esquerda, vão mostrar de fato quem são. Observemos.

2016 foi “o ano do fim do mundo” para os Juruna da Volta Grande do Xingu

A gestão da água por Belo Monte é chamada de “hidrograma de consenso”. Apesar do nome, não há consenso algum. Está mais para “hidrograma de conflito”. Quem decidiu quanta água seria liberada pela usina para a Volta Grande do Xingu foram a empresa e o governo. Segundo o livro Xingu, o rio que pulsa em nós (Instituto Socioambiental), “trata-se de um esquema hidrológico que estipula as quantidades mínimas de água que precisariam passar pela Volta Grande para garantir a sustentabilidade socioambiental da região. O hidrograma tem sua origem no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do empreendimento, anunciado como solução para conciliar a geração de energia, a quantidade de água indispensável para as funções ecológicas da região e a manutenção das condições de navegabilidade do rio Xingu”.

A partir da operação total da usina, foram previstos dois hidrogramas, o A e o B. No A, teria que passar pela Volta Grande do Xingu 4.000 metros cúbicos por segundo durante abril, mês de maior cheia. Essa baixa quantidade de água estressaria totalmente a fauna e a flora da região. No ano seguinte, então, entraria em operação o hidrograma B, quando supostamente a fauna e a flora se recuperariam com uma vazão média de 8.000 metros cúbicos por segundo também em abril.

Em 2016, ano em que os Juruna da Volta Grande do Xingu chamam de "fim do mundo", morreram 16 toneladas de peixe devido à pouca água no rio
Em 2016, ano em que os Juruna da Volta Grande do Xingu chamam de "fim do mundo", morreram 16 toneladas de peixe devido à pouca água no rio (DIVULGAÇÃO)

O problema é que, em 2016, a região viveu uma das secas mais severas das últimas décadas e, ao mesmo tempo, foi afetada pelo barramento da usina. Ainda assim, havia 9.763 metros cúbicos por segundo em abril. Ou seja: mais água entrando na Volta Grande do que o pico de 8.000 metros cúbicos por segundo previstos no hidrograma de Belo Monte. Mesmo com mais água, os Juruna da Volta Grande batizaram 2016 de “o ano do fim do mundo”. Peixes morreram às toneladas, assim como outros animais. A vida começou a se tornar inviável. Caso Belo Monte execute os hidrogramas previstos, cientistas afirmam que será o fim da Volta Grande do Xingu.

Um painel dos mais respeitados especialistas e instituições brasileiras afirmou em artigo científico: “Está provado, cientificamente, (...) que as vazões do hidrograma proposto no licenciamento inviabilizarão a vida na Volta Grande do Xingu. Não há condições de que os testes dos próximos seis anos ocorram com base no hidrograma inicialmente proposto, pois apenas se pode testar algo que ainda não tenha nenhum indicativo ou indício de comprovação ou de possível consolidação. A sobrevivência e a manutenção de todo o ecossistema da Volta Grande e dos modos de vida de comunidades não podem ser objetos de testes quando são contundentes e claras as evidências e indicativos de impactos graves e irreversíveis que já ocorrem e estão em curso, mesmo com vazões bem superiores às do hidrograma proposto”.

Com a corrosão do rio e as dificuldades da pesca, indígenas têm consumido mais produtos industrializados: o número de doenças aumentou

Conforme as constatações científicas e também da vistoria interinstitucional que foi feita na Volta Grande do Xingu em fevereiro, caso os hidrogramas sejam colocados em prática, haverá a remoção (palavra técnica para expulsão) dos povos indígenas Juruna e Arara, assim como de indígenas não aldeados e ribeirinhos que vivem na região, por total impossibilidade de sobrevivência. Todo o ecossistema será alterado, como já está sendo. Em 2016, os peixes morreram. Em 2017, 2018 e 2019, estavam —e estão— magros e com dificuldades para se reproduzir. As fêmeas são encontradas com as ovas em decomposição dentro do corpo. Os indígenas passaram a se alimentar principalmente de alimentos industrializados, o que vem provocando doenças como hipertensão e diabetes. A própria Norte Energia S. A. reconhece os efeitos nefastos da vazão reduzida em relatório: “Quatro das seis etnoespécies mais importantes para os indígenas da Volta Grande do Xingu apresentaram uma sutil redução de tamanho e uma diminuição mais significativa de peso. Essa diminuição foi mais forte no caso do pacu branco, principal espécie consumida pelos indígenas”.

Toda alteração tem efeito em cadeia, já que tudo é conectado na natureza. Está em curso uma catástrofe que afetará a maior floresta tropical do mundo. Não há chamas nesta tragédia, mas a Volta Grande do Xingu está sendo calcinada.

Em 30 e 31 de maio, o MPF realizou um seminário técnico na Procuradoria Geral da República, em Brasília. Foi constrangedor. A Agência Nacional de Águas (ANA) afirmou que só definiu as vazões mínimas para a navegabilidade, mas a responsabilidade da viabilidade ambiental era toda do Ibama. Já o Ibama, por sua vez, disse que o hidrograma tinha sido aprovado pela ANA. Ele, Ibama, tinha reconhecido a inviabilidade do hidrograma A e questionado o B. A Fundação Nacional do Índio (Funai) enfatizou que os impactos sobre as populações indígenas já foram ainda maiores do que os previstos.

A corrupção tornou possível uma gestão da água incompatível com a vida no Xingu

Como então foi possível? Tanto na recomendação de que o “hidrograma de consenso” seja suspenso quanto no relatório parcial que o MPF de Altamira produziu no curso do inquérito civil que acompanha a licença prévia dada a Belo Monte, a procuradora Thais Santi aponta a investigação da Operação Lava Jato sobre a obra. O que tornou possível seria a corrupção. Diz o documento:

“No presente momento, há elementos mais do que suficientes para se supor que o que ficou conhecido como ‘Hidrograma de Consenso’ é um arranjo, que sustou complexo esquema criminoso para viabilizar a construção da UHE Belo Monte, no interesse de um cartel de empreiteiras e de integrantes de partidos políticos, na obtenção de vantagem indevida, com riscos ao meio ambiente e aos recursos federais aplicados”.

De novo, não há nenhuma novidade. O leilão que tornou a Norte Energia a concessionária de Belo Monte era claramente um escândalo na época, em 2010. Mas não foi tratado como escândalo, porque nem a direita nem a esquerda estavam interessadas em denunciá-lo. Vale a pena prestar atenção a essa parte do documento do MPF de Altamira datado do final de agosto:

O leilão de Belo Monte, segundo a Lava Jato, foi uma farsa

“Conforme consta da denúncia proposta pela Força Tarefa Lava Jato em face de Edson Lobão e outros, a estruturação do esquema de desvio de recursos da UHE Belo Monte, mediante ação de cartel integrado pelas construtoras Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez e agentes do Governo Federal, pôs em curso uma pseudodisputa temerária, mediante a criação às pressas da empresa (Norte Energia S/A) destinada a vencer o leilão da hidrelétrica, com lance inexequível. Nesse contexto, forma-se um grupo investidor – fadado a ser deficitário – que disputa a concessão da hidrelétrica mediante proposta apresentada com deságio direcionado para a vitória certa no leilão, porém sem estudo de viabilidade econômica. (...) Após sagrar-se vencedor do leilão, (...) na conhecida troca de cadeiras, as construtoras reduzem expressivamente seu controle acionário, e passam a integrar o Consórcio Construtor Belo Monte, que será então contratado pela concessionária”.

Para ficar mais claro. O que aconteceu no leilão de Belo Monte, em 2010, é que as grandes construtoras se retiraram da disputa porque não haveria lucro na administração da hidrelétrica. A usina seria economicamente inviável. Apenas uma delas, a Andrade Gutierrez, permaneceu no único consórcio existente, possivelmente como disfarce. Foi então formado às pressas um outro consórcio, para dar aparência de disputa, composto por pequenas construtoras sem nenhuma tradição em obras do porte de Belo Monte. Quem ajudou a organizar esse consórcio foi Delfim Netto. Chamado de Norte Energia, o consórcio de última hora “ganhou” a “disputa”. O ex-ministro de governos da ditadura nega o recebimento de propinas e já disse, por meio de seus advogados, que recebeu apenas honorários por serviços de consultoria.

Em seguida ao leilão, as grandes construtoras que não disputaram —Camargo Corrêa e Odebrecht—, a grande construtora que disputou e perdeu —Andrade Gutierrez— e as pequenas construtoras que ganharam mas progressivamente foram deixando a Norte Energia, formaram juntas o Consórcio Construtor Belo Monte. Era ali que estava o lucro —e, segundo a Lava Jato, também a propina que teria sido combinada com PMDB e PT. As construtoras sabiam que havia muito mais vantagem em construir a usina, o que também significava que estariam livres de responder por qualquer um dos grandes passivos socioambientais, que ficariam a cargo da concessionária Norte Energia, grande parte dela formada por estatais e fundos de pensão.

Desde antes do leilão e da construção de Belo Monte, especialistas deixaram claro que, como o Xingu passa metade do ano com pouca água, por conta da seca sazonal, a operação da usina poderia ser deficitária do ponto de vista energético e econômico. O que o Ministério Público Federal denuncia neste momento é que, para Belo Monte ser economicamente viável, está matando a Volta Grande do Xingu. Esta é a história de como a corrupção está secando um pedaço da Amazônia. É também a história de como uma parte da esquerda e uma parte da direita preferem se omitir para não ter de encarar seus crimes e/ou interesses de lucros econômicos, mesmo que isso custe vidas humanas e aprofunde o colapso da Amazônia, hoje perigosamente perto do ponto de não retorno.

“Se o mundo da lei funcionasse, Belo Monte teria que ser fechada. A ninguém é dado o direito de matar o Xingu”

“O que chamam de Hidrograma de Consenso deveria ser a maior mitigação dos danos provocados por Belo Monte no Xingu. E o que vemos é que é o maior impacto. Como a maior mitigação pode ser o maior impacto?”, questiona a procuradora Thais Santi. “A notícia é esta: o Xingu vai morrer. A partilha da água da Amazônia já começou e está pautada pela corrupção.” A partir dos estudos que a filósofa Hannah Arendt fez dos estados totalitários, a procuradora considera Belo Monte “o mundo do tudo é possível”. Santi afirma: “Se o mundo da lei funcionasse, Belo Monte teria que ser fechada. A ninguém é dado o direito de matar o Xingu”.

Belo Monte segue sendo o inescapável neste país. Exatamente por isso muita gente continua repetindo que ela já é “fato consumado”. Cansei de ouvir: “Esquece Belo Monte. É verdade, foi horrível o que fizeram, mas já é passado”. Pergunta-se. Passado para quem? Para os que são empurrados para a periferia de Altamira para passar fome ou morrer à bala? Para a cidade que se tornou uma das mais violentas do Brasil, hoje a mais violenta da Amazônia? Para os indígenas que comem macarrão instantâneo porque falta peixe? Para as famílias ribeirinhas que esperam até hoje serem assentadas no reservatório, enroladas dia após dia pela Norte Energia? Para a floresta? Para os que morrem?

Não esqueceremos. Nem deixaremos esquecer.

Em 29 de julho, 58 presos foram mortos no presídio de Altamira. Decapitados ou queimados. As primeiras chamas, é preciso lembrar, foram anunciadas dentro do sistema e queimaram corpos humanos. Em seguida, outros quatro presos foram executados quando eram transferidos, totalizando 62 mortos em dependências do Estado. Foi o segundo pior massacre da história do sistema carcerário brasileiro, só perdendo para o Carandiru, em São Paulo. O DNA de Belo Monte estava lá, tanto na violência que multiplicou-se na cidade com a construção da usina quanto no atraso da entrega do novo presídio, parte das obrigações acordadas pela Norte Energia e até hoje não cumprida.

Com o massacre, Belo Monte e a Norte Energia voltaram ao centro do noticiário. Apenas alguns dias depois, porém, a floresta começou a incendiar numa proporção muito maior do que no ano anterior e com ações programadas por WhatsApp e anunciadas pelo jornal de Novo Progresso, como o Dia do Fogo, organizado na região da BR-163. As chamas desviaram a atenção e cobriram de fumaça e cinzas outras catástrofes em curso. Na Amazônia, assim como no Brasil atual, há sempre uma tragédia se sobrepondo à outra, o que colabora para a desmemória e para os apagamentos.

O próximo golpe na Volta Grande do Xingu se chama Belo Sun

A destruição da Volta Grande do Xingu é acompanhada com grande interesse pela mineradora canadense Belo Sun. Com a progressiva corrosão da vida na região e a crescente impossibilidade da existência dos indígenas, as barreiras para a instalação da gigantesca mineração de ouro vão se fragilizando. Abrir a Amazônia para a mineração é um dos principais objetivos do Governo Bolsonaro. A autorização para Belo Sun depende, porém, de outro personagem, o governador do Pará, Hélder Barbalho (MDB). Nos próximos dias, semanas e meses, será decidido se a Volta Grande do Xingu, e com ela o rio e uma parte da Amazônia seguirão morrendo, com reações em cadeia, ou se ainda há possibilidade de barrar essa operação de extermínio que poderá repercutir em todo o planeta.

No seriado de TV Chernobyl, que causou grande impacto recentemente, o personagem do cientista russo Valery Legasov, que na vida real se suicidou para chamar atenção para a verdade da tragédia, traz um monólogo que cabe com perfeição ao que hoje testemunhamos na operação de Belo Monte. Durante o julgamento dos culpados por uma das maiores catástrofes atômicas da história, ele diz:

“Eu menti ao mundo. Não sou o único a esconder esse segredo. Há muitos outros. Cumprindo ordens. (...) Nossos segredos e mentiras são praticamente o que nos define. Quando a verdade nos ofende, nós mentimos e mentimos, até que não nos lembramos mais de que a verdade existe. Mas a verdade ainda está lá. Cada mentira que contamos gera uma dívida com a verdade. Cedo ou tarde essa dívida deve ser paga”.

Veremos como os petistas com consciência vão agir diante do legado inescapável de Belo Monte  —e como o bolsonarismo sem consciência vai responder à tragédia em curso. No momento, Bolsonaro já declarou que vai retomar a construção das grandes hidrelétricas na Amazônia. Depende de cada um de nós impedir que essa dívida com a verdade seja paga pelo sacrifício da Volta Grande do Xingu e de seus povos.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes —o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém Vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


El País: A digital dos Bolsonaro no projeto que quer mudar a TV paga (e pode afetar o streaming)

Filhos do presidente fazem lobby para aprovar texto em tramitação no Senado que beneficia fusão da AT&T e Time Warner. Senador do PT estuda apoiá-lo, se incluir cota de produção nacional para empresas como Netflix

Depois de ver fracassada sua tentativa de pressionar a Agência Nacional de Telecomunicações para que a entidade aprovasse ainda neste ano a compra da Time Warner pela AT&T no Brasil, o Governo Jair Bolsonaro (PSL) aposta agora no Senado uma alternativa que vai beneficiar as duas empresas americanas. Na próxima quarta-feira, a Comissão de Ciência e Tecnologia pretende votar o projeto de lei 3.832/2019, que altera as regras da TV paga no país e suspende a proibição de propriedade cruzada, o que permitiria a fusão de quem produz conteúdo (Warner) com quem o distribui (AT&T, a controladora da Sky). A defesa do negócio das gigantes americanas no Brasil virou uma bandeira aberta do Planalto e, especialmente, do deputado Eduardo Bolsonaro, em campanha para ser o novo embaixador do Brasil nos EUA.

O texto, que se aprovado na comissão vai direto para a apreciação da Câmara, movimenta também as atenções e os lobbies da gigante local, Globo, e suas concorrentes Record, SBT e RedeTV, sócias da programadora de TV a cabo Simba —as últimas cultivam relações mais próximas como os Bolsonaro. Enquanto as nacionais ainda não chegaram a um consenso em pontos da matéria, como a prerrogativa de compra dos direitos de grandes eventos, outro tema embola o debate: a inclusão da Internet, o que pode ter impacto ainda mais amplo.

Caso uma emenda ao texto seja aceita, os canais de streaming, como Netflix e HBO GO, entrariam na lei e seriam equiparados aos canais de TV por assinatura e poderiam ser obrigados a exibir uma cota mínima de produção brasileira. Esse grupo é chamado de over the top (OTT – nomenclatura para transmissão não linear pela Internet). Hoje, os canais por assinatura têm de ter ao menos 3h30 de produção local por semana em sua grade de programação. No caso das OTTs, não está claro como seria essa cota, já que não é possível mensurar a sua grade pela quantidade de horas de transmissão. Tampouco a emenda ao projeto de lei deixa claro como seria feita essa contabilidade.

As iminentes alterações atingem um mercado em queda, o das TVs pagas, que registraram 17,5 milhões de assinantes no ano passado (550.000 assinantes a menos que em 2017) e um ascensão, das OTTs, que supera os 10 milhões no Brasil. Os dados são da Anatel e do mercado. A tendência é que as plataformas digitais superem em poucos anos as TVs por assinatura.

O rastro da família Bolsonaro nessa negociação está no lobby pela aprovação da proposta. O principal articulador para os Governos brasileiro e americano é o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente que deve ser indicado para assumir a embaixada do Brasil nos Estados Unidos, o que depende ainda da aprovação do Senado. A pedido da gestão Donald Trump, ele chegou a ir pessoalmente à Anatel para angariar apoio à fusão das companhias, já aprovada pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).

O pedido do deputado foi ignorado por enquanto. Dos cinco conselheiros, dois votaram a favor da união da AT&T com a Time Warner,. Um pediu vistas de 120 dias no processo. Os outros dois ainda não votaram. Em Brasília, Eduardo é visto como um lobista aguerrido em favor do Governo Trump, o que ele nega. Seu irmão, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), é outro negociador junto aos congressistas na matéria. Flávio conversou com ao menos quatro dos membros da Comissão de Ciência e Tecnologia pedindo votos a favor da mudança legal.

Segundo especialistas, caso o projeto de lei seja aprovado de forma terminativa na comissão do Senado (não precisa passar no plenário) e, posteriormente, na Câmara, o processo que tramita na Anatel será extinto, já que a lei brasileira passaria a autorizar essa união. “Uma lei federal se sobrepõe a uma norma de agência reguladora”, explicou o advogado especialista em fusões e aquisições Paulo Bardella, do escritório Viseu Advogados.

“Tem gente querendo pegar carona”

O relator do projeto de lei na Comissão de Ciência e Tecnologia, senador Arolde Oliveira (PSD-RJ), um aliado de Bolsonaro, diz que as mudanças não são apenas direcionadas para a AT&T. “Queremos apenas destravar o problema da propriedade cruzada e permitir que o país tenha mais investimentos”, afirma.

Já o opositor ao bolsonarismo, Rogério Carvalho (PT-SE), afirma que, caso seja garantida a cota de produção local para as OTTs, a oposição deve votar junto com o Governo. “Desde que a lei da TV paga surgiu, diversos produtores independentes surgiram no país. Queremos que criar um marco para que a produção voltada para a Internet respeite essa produção local”, ponderou Carvalho. Ele é o autor da emenda que pode alterar as regras para as empresas de streaming.

Na opinião do senador Oliveira, contudo, o assunto ainda não está pacificado. “Tem gente querendo pegar carona em um projeto que é simples. Por mim, não mudamos nada de Internet agora”, afirmou. Sua ideia é incluir esse tema em um projeto de lei mais profundo, no qual todos os aspectos das OTTs seriam debatidos, desde a criação de limites de produção até eventuais cobranças taxas. Sairá vencedor do primeiro round dessa batalha quem obtiver ao menos 9 dos 17 votos dos senadores da comissão na próxima quarta.


El País: Acusado de ser “traidor da Lava Jato”, Flávio irrita até bolsonaristas fiéis 

Grupos de apoiadores do presidente cobram endosso de senador à CPI da Lava Toga, para investigar cúpula do Judiciário. Comissão perde quórum para ser instalada

Nos últimos dias, algo incomum ocorreu entre apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PSL). Em seus influentes grupos no mundo virtual, especialmente no WhatsApp, até então era raro, para não dizer impossível, encontrar críticas contra o mandatário ou em desfavor de qualquer um de seus três filhos políticos: o senador Flávio, o deputado federal Eduardo e o vereador Carlos. Bastou, porém, uma articulação tida como nebulosa de Flávio Bolsonaro contra a CPI da Lava Toga, uma tentativa dos parlamentares de investigar a cúpula do Judiciário, para essa blindagem ser superada. Desde a noite de segunda-feira, é comum encontrar memes e reclamações nas redes sociais contra o filho mais velho do presidente, apelidado por ele de zero um.

Enquanto Bolsonaro se recupera de sua quarta cirurgia em um hospital de São Paulo, o senador Flávio surgiu como um dos principais articuladores para impedir a instalação da comissão destinada a investigar os ministros das cortes superiores, como Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça —o que ele nega veementemente. Para se criar a CPI, que seus defensores dizem ser necessária para seguir o trabalho contra a corrupção da Lava Jato e impedir retrocessos na operação, são necessárias as assinaturas de 27 senadores. Esse quórum foi alcançado na semana passada. Mas, na tarde de segunda-feira, Maria do Carmo Alves (DEM-SE) desistiu de apoiar a medida. Oficialmente, ela alegou que o seu partido estava concentrado em dar sustentação às reformas econômicas e que este “não é o momento de enfraquecimento das instituições democráticas”. Nos bastidores, porém, o EL PAÍS apurou que foi Flávio Bolsonaro o primeiro que lhe pediu para retirar a candidatura. O mesmo fez o filho do presidente com ao menos outros três parlamentares. Outro que também agiu junto a Maria do Carmo foi o presidente do Senado e correligionário dela, Davi Alcolumbre, embora a senadora também negue a interferência dos colegas.

Seja como for, a desistência de Maria do Carmo foi a gota d'água para irritar os promotores da iniciativa, criar uma pequena crise no PSL de Bolsonaro e virar o humor de parte dos seguidores bolsonaristas em grupos no WhatsApp. Sem o número regimental para abrir a CPI, seus idealizadores tentam agora obter novos apoios e não poupam o Planalto de sua artilharia.

Essa é a terceira vez que se tenta instalar a CPI da Lava Toga. Nas outras duas ocasiões, também houve retirada de assinaturas no último minuto e o engavetamento por parte de Alcolumbre. A ambiguidade do Planalto e de seu PSL sempre esteve presente. De um lado, estava o alinhamento aos "lavajatistas" e o apoio tácito ao bolsonarismo mais radical que criticava o Supremo. Do outro, estava um Governo recém-instalado que não teria vantagens com mais ruído no Congresso com uma CPI, muito menos uma que comprava briga direta com a cúpula do Judiciário. Agora, ganhou corpo o papel do filho mais velho do presidente, que pivô de um escândalo, tampouco quer se indispor com os magistrados mais poderosos do país. Há um processo na Justiça estadual do Rio de Janeiro que apura se Flávio, enquanto foi deputado estadual, recebia parte dos salários de seus servidores comissionados de volta, num esquema batizado de “rachadinha”. Esse é o caso que envolve o ex-policial e ex-motorista dele, Fabrício Queiroz, suspeito de ser laranja do parlamentar. O procedimento está paralisado por uma decisão do ministro Antonio Dias Toffoli, presidente do STF.

As movimentações que reverberaram nas redes sociais acabaram acentuando uma divisão entre os bolsonaristas fiéis e os lavajatistas, aqueles que votaram no presidente apostando no discurso anticorrupção. O segundo grupo tem no ministro da Justiça, Sérgio Moro, e não em Jair Bolsonaro, sua principal referência. E, apesar dos embates internos entre o presidente e seu auxiliar, o ex-juiz da Lava Jato parece incólume aos ataques que recebeu nas últimas semanas, com as revelações do escândalo da Vaza Jato. Enquanto a popularidade de Bolsonaro erodiu hoje é de 29%, a de Moro está em 54%, conforme pesquisa Datafolha.

Um exemplo eloquente de que a blindagem de Moro não está disponível integralmente aos bolsonaristas aconteceu quando o administrador de um dos grupos de WhatsApp em apoio ao presidente enviou recentemente a seguinte mensagem aos seus 15.000 membros: “Temos recebido poucas, mas barulhentas críticas por estarmos atacando o senador Flavio Bolsonaro. Por isso, faço uma única pergunta: Por que Flavio não assinou a lista que pede a abertura da CPI da Lava Toga? A estes radicais apaixonados pedimos que, ao invés de nos encher o saco, com todo respeito, liguem para o senador e perguntem diretamente a ele”. Na sequência, forneceu o telefone do gabinete do parlamentar.

Um dado que chama a atenção do apoiadores é que, entre os quatro senadores do PSL, apenas Flávio Bolsonaro não assinou o requerimento de instalação da CPI. Dois dos que assinaram, Major Olímpio e Selma Arruda, já estudam deixar a legenda, caso o partido insista em dificultar a iniciativa. O presidente do PSL, o deputado Luciano Bivar, emitiu uma nota admitindo que ele foi o responsável pela articulação contra a comissão, isentando Flávio. Mas, antes, chegou a dizer ao site O Antagonista, que o primogênito do presidente tinha agido, sim, em nome do partido.

Imagem que circula em um dos grupos pró-Bolsonaro.
Imagem que circula em um dos grupos pró-Bolsonaro. REPRODUÇÃO WHATSAPP

Na opinião do idealizador da CPI, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), há ao menos três grupos de interesse tentando impedir a investigação: os magistrados, os políticos com processos judiciais ou investigações em aberto, além de um grupo de empresários que não quer correr risco de que as reformas econômicas acabem travadas no Congresso Nacional. “Hoje, temos um poder que acha que não pode ser fiscalizado, o Judiciário. Está na hora de mudarmos isso, para o bem da democracia”.

Vieira faz parte de um grupo de 21 senadores que se autodenomina Muda Senado. Eles estiveram entre os que apoiaram a eleição de Davi Alcolumbre para a presidência da Casa contra o experiente e multi-investigado Renan Calheiros (MDB-AL). Agora, esses parlamentares tentam convencer seu antigo candidato de que a apuração contra os magistrados é necessária. E decidiram usar um expediente que se tornou comum desde 2013: convocaram uma manifestação para o próximo dia 25. A pauta é o apoio à CPI da Lava Toga, a apreciação pelo Senado dos pedidos de impeachment de ministros do Supremo e o fim do foro privilegiado. Será um teste para saber quanto o grupo lavajatista "puro" tem em poder de mobilização.


El País: 'Há um ataque ao Brasil democrático e plural construído desde a Constituição', diz Edison Lanza

Edison Lanza, relator da OEA para a liberdade de expressão, diz que Bolsonaro busca impor relato único e discriminar ideias. Filho do presidente diz que "vias democráticas" atrasam transformações do país enquanto ato na USP cobra defesa da democracia

A liberdades mais fundamentais, sobretudo a liberdade de expressão, estão sofrendo um ataque sistemático no Brasil. A avaliação é do advogado e jornalista Edison Lanza, relator especial para a liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos). “Há um ataque ao Brasil aberto, democrático e plural construído desde a Constituição de 1988”, afirmou o uruguaio em entrevista ao EL PAÍS nesta segunda-feira. Horas mais tarde, Lanza e outras centenas de pessoas e autoridades lotavam o salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no centro da capital paulista, para um ato público em defesa da democracia, da liberdade de expressão e do jornalismo.

O encontro na USP foi promovido em razão do assédio e das ameaças recebidas pelos jornalistas The Intercept, em especial Glenn Greenwald, desde que o site começou a divulgar em parceria com outros meios, entre eles o EL PAÍS, o conteúdo de mensagens privadas trocadas no Telegram entre procuradores da Operação Lava Jato, incluindo o ex-juiz e ministro da Justiça Sergio Moro. "É preocupante o ataque à imprensa independente ou que o Governo não controla: The Intercept, Globo, Folha, os jornalistas Patricia Campos Mello e Glenn Grennwald e colunistas. Quando o presidente faz uma campanha desacreditando jornalistas, o que faz é expô-los ao ódio de seus seguidores nas redes sociais", afirma Lanza.

O relator da OEA vê um ataque à liberdade de expressão não apenas no âmbito da imprensa como em sentido mais amplo, como no episódio de censura a livros de conteúdo LGBT ordenada pelo prefeito carioca, Marcelo Crivella, que acabou recebendo a chancela de uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado. Coube ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Antonio Dias Toffoli, revogar a medida. "É preocupante que alguns juízes não tenham ciência de quais são os fundamentos básicos da democracia. Há um componente de polarização que incentiva essas medidas equivocadas", explica Lanza. "A liberdade de expressão é o que permite, sem repressão, a convivência de distintas correntes de opinião e pensamento."

Para o relator da OEA, "o Governo busca impor um relato que cria uma série de inimigos e ideologias que deveriam estar censuradas ou excluídas do ambiente artístico, acadêmico e político". Além disso, "parece querer se dar ao direito de estabelecer quais são as ideias que devem prevalecer no espaço público e quais devem ser descartadas em nome da cidadania", acrescenta. Ele descreve o que chama de mecanismos para reduzir as ideias no espaço público, "eliminando ou criando filtros para os incentivos públicos ao cinema, privilegiando determinados meios de comunicação em detrimento de outros, discriminando ideias, eliminando dos textos públicos construções históricas de movimentos sociais, ou ainda criando situações grotescas como a do Rio". O especialista se refere, por exemplo, ao fato de que Bolsonaro vem enunciando publicamente que deseja criar um "filtro" para a Agência Nacional do Audiovisual (Ancine). "Existe um movimento político que explicitamente diz querer impor uma narrativa, como ocorreu na Venezuela ou no Equador".

Lanza pondera que os casos de Venezuela, Nicarágua e Cuba não podem ser comparados ao brasileiro, uma vez que nesses três países a democracia e as liberdades foram suprimidas. Contudo, ele chama atenção para um padrão em expansão na América Latina de descrédito da democracia que vem elegendo governantes "que não toleram críticas, perguntas ou investigação" e que "promovem discriminação política e ideológica". Neste sentido, diz esperar que o Governo Bolsonaro "entenda os alertas internacionais" feitos não só por ele, "mas também pelo relator de liberdade de expressão e de opinião da ONU, a alta comissária para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, Repórteres sem Fronteiras, o Comitê de Proteção aos Jornalistas", entre outros. "Os sinais de alerta foram dados. Obviamente ocorreram alguns freios ou algumas decisões judiciais corretas", celebra.

Força da sociedade civil e Carlos Bolsonaro

Para Lanza, são movimentos organizados da sociedade civil brasileira, como o ato desta segunda-feira na USP pela liberdade de expressão, "que geram esperança de que a democracia e as liberdades serão preservadas". "As crises às vezes são oportunidades de que nos lembremos de que as liberdades não são garantias dadas de presente, mas sim conquistas que a sociedade tem que defender. Estou vendo uma sociedade vibrante que está reagindo", afirmou.

No ato na Faculdade de Direito estiveram figuras públicas como o ex-candidato petista Fernando Haddad, os deputados federais Sâmia Bonfim e Ivan Valente (PSOL) e o ex-chanceler do Governo tucano Celso Laffer. José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça do Governo FHC e atual presidente da recém criada Comissão Arns, de defesa dos direitos humanos, não pode comparecer e enviou uma mensagem que foi lida durante o ato. No palco, jornalistas e personalidades se revezaram com mensagens semelhantes à de Lanza. O jornalista Juca Kfouri saudou "o renascer na sociedade civil brasileira". A jornalista Carla Jiménez, diretora do EL PAÍS Brasil, afirmou que o encontro na USP era um pequeno "ecossistema que precisa se mover e ficar firme, como ocorreu no fim de semana" no Rio durante a bienal. "Que sejamos essa caixa de ressonância, porque isso vai continuar, e vai continuar por muito tempo. Não temos o direito de capitular", disse.

"Vim aqui para celebrar a divergência de opinião", discursou o jornalista Reinaldo Azevedo, identificado com a direita brasileira. Glenn Greenwald, fundador do portal The Intercept, chamou a atenção para o papel do jornalismo em também denunciar a corrupção na Justiça. "Há corrupção no executivo, há corrupção no parlamento, mas há também corrupção no Judiciário, na Lava Jato e no Ministério Público. E isso só pode ser revelado graças a uma imprensa livre", afirmou. "A Constituição de 88 nasceu porque esse país não queria mais censura, não queria mais tortura e não queria mais ditadura", discursou, por sua vez, o jornalista Eugênio Bucci. "O presidente atenta contra a Constituição todos os dias, quando ele faz apologia da tortura e da morte, quando elogia o torturador Carlos Alberto Ustra", acrescentou.

Enquanto o ato se desenrolava, o mundo político repercutia as declarações do filho do presidente, Carlos Bolsonaro (PSL-RJ). O vereador carioca usou sua conta no Twitter para dizer que as "vias democráticas" travam as mudanças no país que almeja. "Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos... e se isso acontecer. Só vejo todo dia a roda girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominaram continuam nos dominando de jeitos diferentes!", escreveu o filho do presidente, próximo do mandatário e influente na estratégia digital do pai do Planalto. A mensagem fez recordar outro filho do mandatário, deputado Eduardo, criticado por dizer, durante a campanha eleitoral, que só bastava "um cabo e um soldado" para fechar o Supremo Tribunal Federal. Na época, diante do rejeição contundente, inclusive do Supremo, Bolsonaro disse: “Eu já adverti o garoto."

Carlos Bolsonaro

@CarlosBolsonaro

O governo Bolsonaro vem desfazendo absurdos que nos meteram no limbo e tenta nos recolocar nos eixos. O enredo contado por grupelhos e os motivos cada vez mais claro$ lamentavelmente são rapidamente absorvidos por inocentes. Os avanços ignorados e os malfeitores esquecidos.

Carlos Bolsonaro

@CarlosBolsonaro

Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos... e se isso acontecer. Só vejo todo dia a roda girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominaram continuam nos dominando de jeitos diferentes!

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El País: Governo vive encruzilhada com teto de gastos e sem fórmula para reativar investimentos

Com Orçamento apertado para 2020 e sem sinais de reação da economia, Bolsonaro chega a flertar com mudança no teto, mas volta atrás. Falta de plano para não paralisar a máquina administrativa preocupa

Os vaivéns de suas falas na área econômica, seara que o presidente já admitiu mais de uma vez que pouco entende, ocorrem principalmente por conta de um aperto orçamentário para 2020. Há ministério que sofrerá cortes de até 58%. E uma brusca redução dos investimentos públicos. Analisando o Orçamento nota-se que, apesar de ele ter crescido 3,37% em relação ao ano passado —chegando aos 3,6 trilhões de reais— diversas pastas precisaram passar por cortes significativos. Somente 7 dos 31 ministérios e autarquias não sofreram redução nos gastos, conforme levantamento do jornal O Globo. As principais reduções ocorreram no ministério do Turismo (58%), no da Mulher, Família e Direitos Humanos (41%) e no de Minas e Energia, Infraestrutura e Meio Ambiente (30% cada um). Nem os ministérios de Educação e Saúde foram poupados, com reduções de 9% e 1,4%, respectivamente.

Na Câmara tramita uma proposta de emenda constitucional (a de número 438/2018) que reduz os valores de repasses constitucionais e que afunila a margem de manobra do Governo diante da tarefa de decidir onde e quanto deve ser investido. A dúvida é se em algum momento essa conta vai conseguir fechar.

Desde 2014, os investimentos do Governo federal vêm sofrendo seguidas quedas. Naquele ano, a União investiu 99 bilhões de reais. Caiu para 50 bilhões de reais em 2019. E o projeto de lei orçamentária anual enviado na última semana ao Congresso Nacional mostra que a previsão é que no próximo ano invista 19 bilhões de reais. Uma queda de 80% em seis anos. Especialistas dizem que há um claro risco do Brasil ser obrigado a paralisar serviços em 2020 numa espécie de colapso, ou shutdown, como ficou conhecida a expressão nos Estados Unidos quando o Congresso não valida o orçamento do Governo.

Outro fator que influenciou na mudança de discurso do presidente foram queixas diretas do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, e as declarações do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Maia afirmou que “abrir o teto” não é tratar do problema. “É você esconder o problema, aumentar a despesa, aumentar o endividamento e gerar uma nova crise no futuro. É por isso que tem que manter o teto”.

A atual encruzilhada se dá, principalmente, porque cerca de 94% do orçamento da União é vinculado às despesas obrigatórias – como salários e aposentadorias, pagamento da dívida pública e transferências constitucionais – e apenas 6% às discricionárias – como investimentos em obras públicas, financiamento de pesquisas, manutenção de prédios públicos, modernização de hospitais e universidades.

A regra do teto, criada em 2016, prevê que o Governo não pode registrar despesas superiores às que teve no ano anterior somadas à inflação dos últimos 12 meses. Quando foi aprovada, foi apontada por alguns dos especialistas como uma das soluções para colocar o país nos rumos do crescimento. Enquanto outros a viam exatamente ao contrário, a classificavam como uma barreira que impediria qualquer investimento público e reduziria a arrecadação. Essa corrente entende que o governo tem de ser propulsor dos investimentos na economia. E somente a partir dos seus estímulos, a economia reage. Dessa maneira, aumenta o faturamento das empresas, elevando a arrecadação pública.

“O teto de gastos é um instrumento extremamente importante para acabar com a trajetória declinante da despesa obrigatória”, avaliou o consultor de orçamento da Câmara dos Deputados Hélio Martins Tollini. O professor da Universidade de Brasília, Roberto Piscitelli, avalia que esse princípio seria quebrado em algum momento porque o teto travaria o investimento público, frearia os financiamentos em pesquisas e a própria manutenção da máquina. “Não esperava que essa flexibilização pudesse ocorrer tão cedo”, ponderou. Para Piscitelli, a própria limitação de gastos já tem feito com que algumas atividades sejam paralisadas e a tendência é que sigam assim, caso nada seja feito.

Pela lei, a previsão de revisão só poderia ocorrer em 2026. Antes, qualquer mudança tem de acontecer mediante alterações legislativas por meio de uma emenda constitucional. Para evitar a alteração no teto de gastos, o consultor Tollini entende que a única alternativa seria reduzir a despesa obrigatória. E essa alteração só ocorreria mediante mudanças legislativas.


El País: O bispo que converteu um ministro da ditadura em protetor dos indígenas

Dom Erwin, Bispo emérito do Xingu, chegou a Altamira em 1965 e acompanhou as grandes transformações da região. Em entrevista ao EL PAÍS, conta como direitos indígenas entraram na Constituição com apoio do ex-ministro Jarbas Passarinho

Em 1965, Erwin Kräutler (Koblach, 1939) decidiu seguir os passos do tio e desembarcou em Altamira, no Pará, porque em sua Áustria natal "havia tanto padre que um pisava no pé do outro". E também porque, quando criança, "já sonhava com o rio Xingu". Dedicou toda a sua vida aos povos mais vulneráveis da Amazônia, em especial os indígenas. De sua terra só ficou o sotaque. Após acompanhar todas as grandes transformações que a região passou – desde a construção da rodovia Transamazônica até os recentes incêndios que tanto alarmaram a comunidade internacional, passando pela construção da gigante hidroelétrica de Belo Monte — não hesita em dizer que Altamira vive seus momentos mais difíceis. "Digo sem pestanejar".

Sua Altamira já não é o lugar pacato de 7.000 habitantes que encontrou nos anos 60. A colonização promovida pelos militares a partir da década seguinte e, mais recentemente, a corrida por trabalho impulsada pela construção de Belo Monte fizeram dela uma cidade inchada, hoje mais de 100.000 habitantes, alto desemprego e uma violência urbana antes só encontrada nas grandes metrópoles. Nos últimos anos, vem ocupando o topo do ranking dos municípios que mais matam.

O maior município do Brasil em extensão territorial é também uma terra sem lei onde os interesses de grandes fazendeiros, grileiros, pequenos agricultores, indígenas, garimpeiros e madeireiros se cruzam com armas e motosserras. Dom Erwin, como é chamado por todos, forma parte de uma vertente mais progressista da igreja Católica. Sempre posicionou-se ao lado dos mais fracos. "Não sou catedrático, mas a terra é para a vida, não para o negócio. A pequena agricultura e familiar tem que ser mais valorizada. É fixar o homem e a mulher na terra, dar possibilidades para sobreviver com o suor da testa e das próprias mãos", afirma. A coleção de desavenças faz com que já não possa andar pelas ruas de Altamira sem escolta.

Apesar dos riscos, segue em sua missão de vida. Aos 80 anos, a postura permanece ereta, o raciocínio continua fresco e o olhar miúdo por trás dos óculos, atento. Também continua intensa a agenda de viagens. Recentemente foi convidado pelo papa Francisco para ser membro do conselho pré-sinodal, que vem atuando na preparação do Sínodo Especial dos Bispos para Amazônia, previsto para ser realizado entre os dias 6 e 27 de outubro deste ano, em Roma. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) afirmou nos últimos dias que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) está monitorando o encontro, que irá discutir questões ambientais.

O desmonte promovido pelo Governo em instituições federais como o IBAMA e o ICMbio e a retórica que estimula a ocupação ilegal da Amazônia são, para os especialistas da área, as principais causas do aumento do desmatamento e dos incêndios registrados na região. Dom Erwin faz a mesma análise. "Sua campanha eleitoral foi anti-indígena. Ele já falava que não iria demarcar nenhum centímetro, o contrário do que determina a Constituição brasileira", opina. Os direitos dos povos nativos estão nos artigos 231 e 232 da Carta Magna. Em suas disposições territoriais, dá um prazo de cinco anos para que todas as áreas indígenas estivessem demarcadas. "Talvez metade já esteja homologada. Um presidente que diz que não seguirá com as demarcações não está, obviamente, de acordo com o que ela determina. Ele se arvora em cima da própria Constituição".

Dom Erwin, na última segunda-feira.
Dom Erwin, na última segunda-feira.

Mas a questão vai além da recusa em demarcar novos territórios e, como lembra o líder religioso, defender que mineradoras e empresas multinacionais explorem as riquezas das terras indígenas. O discurso de Bolsonaro, "velhíssimo", remete a uma ideia de que o índio deve se integrar com o resto da sociedade. "Ou seja, para você ser brasileiro, você tem que deixar de ser índio e renunciar a sua identidade. É o maior absurdo", afirma Dom Erwin. Também demonstra, prossegue, que o presidente "não acredita na função da Amazônia como um macrobioma que regula o clima planetário".

Os dias pareciam ser mais promissores. Especialmente durante a constituinte que resultou na inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988. "Conseguimos um milagre", recorda dom Erwin, que presidia naquela época o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e montara um grupo estratégico com defensores da causa para estar no Congresso e fazer "uma espécie de lobby". Durante esse processo contou com um aliado improvável: o então senador pelo Pará Jarbas Passarinho, ministro do Trabalho e da Educação durante a ditadura militar e um dos signatários do Ato Institucional de número cinco, que fez da repressão política um programa de governo. É dele a famosa frase "às favas todos os escrúpulos de consciência" durante a assinatura do AI-5.

Dom Erwin conversa com o EL PAÍS em seu escritório em Altamira, na última segunda.
Dom Erwin conversa com o EL PAÍS em seu escritório em Altamira, na última segunda.LILO CLARETO

Naquele 1987, Passarinho ficou viúvo de sua esposa Ruth. E coube a dom Erwin rezar uma missa em sua memória e recordar sua atuação social, sobretudo a favor da infância. Dois dias depois, o senador e o bispo se encontraram em um voo rumo a Brasília. "Ele desatou o cinto, levantou, me abraçou e chorou, chorou amargamente. Disse que estava muito grato pela minha fala durante a missa". Ao aterrissar na capital, o bispo foi convencido pelos advogados do CIMI a telefonar para Passarinho, um dos principais articuladores do Congresso. Uma importante votação se aproximava, era questão de vida ou morte. "Telefonei por volta de 20h30 para seu gabinete e disse que tinha um assunto muito grave para tratar com ele sobre a questão indígena. 'Venha, estou no gabinete, venha agora. O senhor é quem manda', me disse. Bem político", recorda.

Dom Erwin se dirigiu ao gabinete rezando para encontrar as palavras certas. E as encontrou. "O senhor nasceu no Acre e diz que sua placenta ficou enterrada no Acre. E hoje é senador pelo Pará. Acre e Pará são as duas colunas que sustentam a Amazônia e, por isso, o senhor vai ter a missão de defender os povos indígenas. Se o senhor não fizer isso, quem vai fazer?" O senador escutou atento as palavras do bispo e, em seguida, a dos advogados do CIMI. Afinal se convenceu de que os modos de vida e o direito à terra dos brasileiros originários deveriam ser respeitadas. "Dois dias depois fez um discurso inflamado no Congresso que convenceu. Eu nunca teria conseguido isso, mas ele tinha uma oratória... Meu Deus. Quando ele falou, a gente aplaudiu não só o conteúdo, mas a maneira como ele se expressou". A votação final foi arrasadora: mais de 400 parlamentares constituintes se posicionaram a favor, alguns se abstiveram e apenas oito foram contrários. "Isso para mim foi um milagre. Se não tivéssemos tido a possibilidade de falar com esse homem...".


El País: Indústria agropecuária do Brasil se alia a ONGs para exigir que Bolsonaro detenha o desmatamento

A principal exigência é que o Governo abandone a retórica antiambientalista, aplique a lei e persiga com afinco os que ocupam terras ilegalmente na Amazônia

A grave crise de imagem sofrida pelo Brasil, principalmente após os incêndios de agosto na Amazônia, levou a indústria agropecuária a uma atípica aliança com a sociedade civil. Representantes dos empresários, ONGs e da academia se reuniram na sexta-feira em São Paulo para exigir que o Governo de Jair Bolsonaro leve a sério o aumento do desmatamento e tome medidas para deter “o roubo de terras públicas”, principal detonador do desmatamento ilegal que ameaça a maior floresta tropical do mundo. E ameaçam a economia dessa potência agrícola.

A principal exigência ao Governo Bolsonaro é que abandone a retórica antiambientalista, aplique a lei e persiga com afinco os que ocupam terras ilegalmente na Amazônia. Porque o que costuma ocorrer depois é o corte das árvores para explorar a terra à margem das leis, com a consequente deterioração ambiental. E aí está o problema. O desmatamento disparou desde que Bolsonaro assumiu o poder há oito meses. “A indústria agrícola se vê prejudicada por quadrilhas que atuam na ilegalidade manchando a reputação do setor, aumentando a insegurança jurídica e a concorrência desleal para produtores e empresas”, de acordo com Marcello Brito, o presidente da Associação Brasileira do Agronegócio. Em sua visão, nunca na história a imagem do Brasil no estrangeiro foi tão ruim. “Não vi o cancelamento de nenhum contrato no setor, mas as luzes vermelhas estão piscando em ritmo acelerado. Se medidas não forem tomadas, se a retórica não mudar, a situação pode piorar”, disse após sugerir, sem mencionar marcas, que o anúncio da H&M e outras empresas de que não comprarão couro do Brasil “pode ser marketing”.

Brito frisou que não é um problema da indústria a qual representa, e sim do Brasil, porque afeta diretamente a economia, que não se recupera à velocidade esperada. Também participam da aliança os exportadores de carne, os processadores de cacau, os produtores de gado sustentável e de árvores, além das ONGs Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e Imazon.

A indústria e as ONGs apresentaram juntas sua campanha publicitária para conscientizar as autoridades e seus compatriotas brasileiros enquanto na Amazônia colombiana, em Leticia, os presidentes da região realizaram uma reunião para conseguir respostas à crise. Bolsonaro participou por videoconferência porque será operado neste domingo. Os empresários e a sociedade civil começaram a campanha, que durará três anos, na véspera com uma ação mais própria do ativismo clássico. Simularam ocupar à força um pequeno parque de frondosa flora na principal avenida da metrópole.

Os incêndios de agosto foram em maior número e maiores do que os dos outros anos. No mês passado quase 30.000 quilômetros quadrados queimaram na Amazônia, quatro vezes mais do que a superfície que pegou fogo em agosto do ano passado. E o pior provavelmente está por vir porque setembro é tradicionalmente um mês com mais incêndios.

Diante do discurso do presidente Bolsonaro, que faz referências constantes ao fato de que a preservação prejudica o desenvolvimento econômico da Amazônia, os representantes dessa atípica aliança frisaram que “não é preciso desmatar para crescer economicamente”, o que é necessário é “harmonizar a produção com a preservação” ambiental, nas palavras de André Guimarães, do IPAM. O pesquisador da Imazon Paulo Barreto acrescentou que é imprescindível mudar a mentalidade dos brasileiros que, nas instituições e nas ruas, ainda perdoam a ocupação ilegal de terras com o argumento de que depois produz riqueza. Barreto frisou que de início o que poderia ser feito é a exploração correta dos 12 milhões de hectares de pastos degradados que existem hoje na Amazônia.


El País: Augusto Aras, um conservador sob medida para a PGR de Bolsonaro

Pela primeira vez desde o Governo FHC, presidente ignora lista tríplice da categoria. Na campanha para o cargo, subprocurador-geral da República falou contra a ideologia de gênero e a criminalização da homofobia

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) anunciou o nome do subprocurador-geral Augusto Aras, 60 anos, como o novo chefe da Procuradoria Geral República (PGR). Essa é a segunda vez nos últimos 18 anos que um presidente ignora a lista tríplice apresentada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e nomeia uma pessoa que não constava dela, um passo criticado pela categoria. Antes de Bolsonaro, apenas Fernando Henrique Cardoso (PSDB) havia escolhido outro candidato.

Pela Constituição Federal, o presidente não precisa seguir a lista da ANPR, mas os últimos três presidentes, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer a respeitaram, ainda que o último não tenha escolhido o candidato mais votado. A lista foi criada em 2001 como uma tentativa de diminuir a interferência política na escolha para a PGR, além de ser um elemento de coesão corporativa (e corporativista) entre os procuradores. Era uma reposta ao mais longevo procurador-geral no cargo, Geraldo Brindeiro, que, nomeado por FHC, ficou no cargo entre 1995 e 2003 e foi apelidado por seus críticos de "engavetador-geral" por supostamente não levar adiante casos contra as mais graduadas autoridades.

Em nota, a ANPR declarou receber a notícia da indicação de Aras com “absoluta contrariedade”. “O indicado não foi submetido a debates públicos, não apresentou propostas à vista da sociedade e da própria carreira. Não se sabe o que conversou em diálogos absolutamente reservados, desenvolvidos à margem da opinião pública. Não possui, ademais, qualquer liderança para comandar uma instituição com o peso e a importância do MPF”, diz trecho da nota da entidade. No documento, assinado pela diretoria da associação, há queixas sobre discursos de Bolsonaro comparando o cargo de procurador-geral a uma dama do jogo de xadrez, no qual o presidente seria o rei que precisa ter alguém alinhado a ele na função. “O MPF é independente, não se trata de ministério ou órgão atrelado ao Poder Executivo”. Os procuradores prometem uma mobilização contra essa indicação para o próximo dia 9.

Um conservador forjado sob medida

Augusto Aras é natural da Bahia e está no Ministério Público há 32 anos. Além de subprocurador-geral da República, ele é professor de direito comercial e eleitoral na Universidade de Brasília (UnB). O padrinho político de Aras foi o ex-deputado federal e membro da bancada da bala Alberto Fraga (DEM-DF). O ex-parlamentar chegou a ser cotado para ocupar um ministério ou cargo em segundo escalão no Governo Bolsonaro, mas seu projeto não decolou porque foi condenado por receber propina de 350.000 reais em contratos de transporte. O crime chama-se concussão, que é obter vantagens indevidas em cargo público. Sua pena foi de quatro anos e dois meses de detenção. Ainda assim, sua influência é grande junto ao presidente.

Augusto Aras não concorreu ao cargo na eleição da ANPR, mas ganhou a simpatia do presidente por se forjar publicamente com uma pessoa conservadora, não de esquerda. Em entrevista publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, em 12 de agosto, o procurador defendeu o presidente Bolsonaro e disse que tinha como objetivo montar um gabinete com profissionais de perfil de direita. “Eu não posso, como cidadão que conhece a vida, como sexagenário, estudioso, professor, aceitar ideologia de gênero [...]. Não cabe para nós admitir artificialidades. Contra a ideologia de gênero é um dos nossos mais importantes valores, da família e da dignidade da pessoa humana”. Desde meados de julho, o procurador teve ao menos cinco encontros com o presidente.

Bolsonaro fez o anúncio do nome nesta tarde, em evento no Ministério da Agricultura: “Já estou apanhando na mídia e isso é um bom sinal, porque a indicação nossa é boa. Acabei de indicar o senhor Augusto Aras para chefiar o Ministério Público Federal”. O presidente ainda disse que, na PGR, Aras vai respeitar os ruralistas. "Uma das coisas conversadas com ele e já era sua praxe também é na questão ambiental. O respeito ao produtor rural e também o casamento da preservação do meio ambiente com o produtor".

O nome de Aras sempre esteve entre os preferidos de Bolsonaro. Mas, por um tempo, perdeu força porque bolsonaristas o vincularam ao PT, após uma reportagem do site UOL mostrar que Aras deu uma festa em sua casa que tinha como convidados militantes do partido, em 2013. Na ocasião, comemorava o lançamento do livro do ex-deputado petista Emiliano José. O então presidente do PT na época, Rui Falcão, e o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu estiveram no evento.

Nesta semana, quando o nome de Aras voltou se fortalecer nos bastidores, a diretoria da ANPR emitiu uma nota pedindo que houvesse uma recusa coletiva de cargos oferecidos por qualquer procurador-geral que não estivesse entre os indicados pela lista tríplice. Caso assuma a função, essa será uma das primeiras barreiras que Aras terá de superar. Hoje, há ao menos 18 cargos de procuradores diretamente vinculados ao gabinete da PGR.

Para ser efetivado no cargo que hoje é ocupado por Raquel Dodge, ele ainda precisa ser sabatinado pelo Senado Federal e ter seu nome aprovado. O mandato de Dodge acaba no próximo dia 17.

O futuro da Lava Jato

A nomeação do PGR por Bolsonaro era uma das mais esperadas porque o cargo detém poder estratégico e com capacidade de reverberação em vários setores —alguns ramos da MPF, como a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, tem sido um dos bastiões mais críticos de medidas e declarações de Bolsonaro, como apologia à ditadura. Ao procurador-geral cabe, em última análise, investigar e denunciar (acusar formalmente) as principais autoridades do país, como o presidente e o vice-presidente da República os presidentes da Câmara e do Senado. É ele também quem dá o tom das investigações, coordena os 1.152 procuradores federais e orienta a criação de grupos de trabalho de determinadas áreas, como a Operação Lava Jato.

A Lava Jato, aliás, será um dos mais espinhosos que ele terá de enfrentar. Ao jornal O Globo, Aras disse em agosto que a investigação tem “desvios a serem corrigidos”. Citou a pessoalidade de algumas ações, justamente no momento em que a Lava Jato está sob intenso ataque decorrentes das revelações do site The Intercept e da primeira decisão do Supremo Tribunal Federal que reverteu uma condenação do então juiz Sergio Moro.


El País: Bolsonaro prepara a venda das empresas que possuem dados de toda população brasileira

Estimadas em 6 bilhões, Serpro e Dataprev reúnem 12.500 funcionários e possuem informações desde o imposto de renda, até registros de nascimentos e óbitos

Um ex-servidor começa a receber ligações telefônicas oferecendo empréstimo consignado dias depois de se aposentar. Uma seguradora de veículos com quem um cidadão jamais teve contato lhe oferece um novo seguro semanas antes de vencer o contrato que está em vigência.O timing não é mágica. É uma estratégia planejada, com base em informações confidenciais mantidas pelo Governo e consideradas valiosíssimas para qualquer empresa que busca dados de potenciais clientes. O que elas têm em comum é que todas são processadas e armazenadas por duas lucrativas companhias públicas brasileiras que o Governo Jair Bolsonaro (PSL) pretende privatizar, o Serpro e a Dataprev. E, com isso, de uma hora para outra, uma companhia qualquer pode passar a ter acesso, por exemplo, a todos os dados que o contribuinte declarou em seu imposto de renda.

Só no ano passado o Serpro teve um faturamento de 3,2 bilhões de reais, e a Dataprev, de 1,26 bilhão de reais. A primeira possui cerca de 9.100 funcionários concursados, a segunda, 3.400. No mercado, juntas, as empresas têm o valor estimado de seis bilhões de reais, mas as informações que armazenam ainda não têm um preço calculado. Elas possuem dados de toda a população brasileira: da data de nascimento ao quanto se contribuiu para Previdência ou pagou de impostos ao longo da vida. Entre os interessados em adquiri-las estão fundos de investimentos e empresas de tecnologia da informação nacionais e estrangeiras. A transação depende de aprovação do Congresso Nacional.

Os estudos para a venda das duas empresas foram anunciados há cerca de duas semanas. Estão sendo feitos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e a expectativa é que a venda se concretize no ano que vem. No último dia 29 de agosto estava prevista uma audiência pública na Câmara da qual participariam os presidentes do Serpro, Caio Paes de Andrade, e da Dataprev, Christiane Edington. Diante da mobilização de servidores para tentar frear a venda, na noite anterior ao debate, ambos cancelaram a participação no encontro.

No Serpro há mais de 4.000 sistemas de informação que incluem a declaração do imposto de renda, a emissão de passaportes e carteiras de motoristas, o pagamento do Bolsa Família, os registros sobre veículos roubados ou furtados em todo o país, dados da Agência Brasileira de Inteligência, do sistema de comércio exterior e de transações que passaram pelos portos e aeroportos nacionais, entre outros. Na Dataprev, seus 720 sistemas possuem todos os registros de nascimento e óbitos no país, cadastros trabalhistas de nacionais e estrangeiros, detalhes das empresas registradas em todos os Estados, além do processamento dos pagamentos de aposentadorias, pensões e seguro desemprego.

A Dataprev recentemente também abriu uma licitação para adquirir uma tecnologia de reconhecimento facial e de impressão digital, contestada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), que pede que ela seja suspensa. O órgão afirma que é preciso, primeiro, que a empresa de dados resolva "o sistemático vazamento de dados dos beneficiários do INSS". “Esses vazamentos criaram uma cadeia perversa, onde os dados são utilizados na oferta abusiva de crédito consignado aos aposentados, o que gera o espiral de superendividamento", afirma Diogo Moyses, coordenador do programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec, em uma nota do órgão que ilustra como os dados já são usados por interesses próprios de empresas.

O temor de especialistas e dos servidores é que essas informações passem a ser comercializadas sem a devida autorização dos cidadãos que estão cadastrados nesses bancos de dados de forma sistemática. É comum ouvir entre os estudiosos do assunto que dados são, hoje, o novo petróleo. Por meio deles consegue-se direcionar uma venda ou definir quem pode ou não ter acesso a crédito junto a instituições financeiras, por exemplo.  “São informações sensíveis que não deveriam cair nas mãos de uma empresa privada, sob o risco de ferir até a soberania nacional”, afirmou o diretor do Sindicato de Processamento de Dados do Distrito Federal, Kléber Santos. Funcionário do Serpro há oito anos, Santos é um dos servidores que encampam uma campanha contrária à privatização do órgão.

“Se eu resolvo montar um dossiê contra uma pessoa, busco no seu histórico do imposto de renda o quanto arrecada, qual é o seu patrimônio. Hoje, essas informações estão só nas mãos do Estado. Após privatizar, correm o risco de serem comercializadas livremente”, alerta a servidora Socorro Laco, representante da Coordenação Nacional de Campanha da Dataprev.

Advogado e especialista em proteção de dados pessoais, Bruno Bioni diz que hoje a proteção de dados pessoais é a nossa própria identidade. “Na medida em que o cidadão é enxergado, julgado, não com base no rosto deles, mas com o que uma base de dados diz sobre ele, a proteção de dados pessoais passa a ser um eixo e um vetor de sua própria cidadania”, diz Bioni, fundador da empresa Data Privacy. “Olhar como os dados vão ser bem protegidos talvez seja hoje o principal alicerce na relação entre estado e cidadão”, acrescenta.

Na opinião de Bioni, contudo, tão importante quando discutir se a privatização é prejudicial à proteção de dados pessoais, é considerar os seus limites caso tais empresas públicas passem a ser da iniciativa privada. Segundo ele, o que importa saber é se os dados coletados serão usados somente para o fim pelo qual foram obtidos. Por exemplo, se um estudante requereu um financiamento estudantil, as informações que ele repassou ao Governo só podem ser analisadas para essa finalidade, não poderiam basear qualquer outra análise, tampouco serem vendidas. “A finalidade pela qual o dado está sendo confiado, ela segue o dado. Existe essa limitação para que as empresas usem esse banco de dados”.

No segundo semestre de 2020, entrará em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, que prevê maior rigor no controle de quais informações podem ser usadas por empresas e governos. Além disso, autoriza que apenas o que for expressamente autorizado seja repassado para os sistemas.

Procurado, o Governo informou, por intermédio do Ministério da Economia, que as empresas devem ser vendidas para seguir a lógica traçada pelo ministro Paulo Guedes, de que o maior número de companhias públicas passarão para a iniciativa privada. "A orientação é reduzir o tamanho do Estado, privatizando o máximo de empresas e focando naquilo que o Estado deveria cuidar como saúde, educação, segurança e infraestrutura", disse a pasta em nota. A gestão Bolsonaro/Guedes acredita que não faz sentido o poder público ter empresas de processamento de informações. "O Governo entende que a manutenção de dados da população sob guarda dessas empresas não garante sua proteção mais do que sob guarda de empresas privadas". Como exemplo, o Ministério da Economia cita o sigilo bancário dos correntistas, que costumam ser protegidos pelas instituições financeiras particulares ou públicas.


El País: A última despedida do Che Guevara

As cartas completas do revolucionário oferecem um relato autobiográfico no qual o pessoal se mistura com o político. O volume, publicado em Cuba, inclui inéditos

Entre as cartas de despedida que Che Guevara escreveu chama a atenção uma enviada aos seus filhos meses antes de morrer, quando estava na selva boliviana acendendo a chama de um foco guerrilheiro. Encabeçando o texto lê-se: “De algum lugar da Bolívia, 1966”, e em seu último parágrafo diz ao filho menor: “Tatico, você cresça e vire homem, que depois veremos o que se faz. Se ainda houver imperialismo, saímos para brigar com ele; se isso acabar, você, Camilo e eu podemos ir de férias para a Lua”.

É a conclusão de Epistolario de un Tiempo. Cartas 1947-1967, volume recém-publicado em Cuba que agrupa e classifica 350 páginas de cartas pessoais e políticas desde a época em que Ernesto Guevara de la Serna termina o ensino médio e parte de moto para descobrir as Américas até suas últimas palavras, escritas na Bolívia e dedicadas aos seus pais, aos filhos e à sua esposa, Aleida March, a quem confessa em sua carta final: “Há dias em que a saudade avança incontrolável e se apossa de mim. No Natal e Ano Novo, sobretudo, você não sabe como sinto falta das suas lágrimas rituais, sob um céu de estrelas novas, que me recordava o pouco que aproveitei a vida no campo pessoal…”.

Trata-se de uma exaustiva e reveladora seleção que inclui algumas poucas cartas desconhecidas, e muitas outras conhecidas, mas que até agora não tinham sido publicado juntas, e aí reside um dos valores desta compilação: permite apreciar o crescimento pessoal, intelectual e político de Guevara e comprovar sua evolução, aproximar-se de sua trajetória como estadista e descobrir aspectos pouco conhecidos de sua vida, como o de suas relações familiares e com os amigos.

Do ponto de vista histórico, Epistolario de un Tiempo é também um documento importante para quem se interessa pelos primeiros anos da revolução, pois está cheio de referências a fatos concretos dos quais Guevara participou como ator principal e que marcariam o futuro de Cuba.

O livro é ordenado cronologicamente em torno de quatro grandes blocos: Cartas de Juventude (1947-1956), que inclui a correspondência enviada da pequena cidade de Villa María, aonde foi trabalhar aos 19 anos, e durante suas viagens pela Argentina e América Latina; Cartas da Luta (1956-1959), escrita na guerrilha da Serra Maestra e durante a invasão da zona central de Cuba, que comandou ao lado de Camilo Cienfuegos e culminou com a tomada da cidade de Santa Clara e o triunfo da revolução; Cartas como Dirigente Político (1959-1965), etapa em que ocupa diferentes cargos no Governo cubano, incluindo os de ministro da Indústria e presidente do Banco Nacional, e participa dos grandes debates econômicos e políticos do país, em muitas ocasiões assumindo uma posição crítica; e Cartas da Solidariedade e do Internacionalismo (1965-1967), que compreende, entre outros, os fracassados episódios guerrilheiros do Congo e da Bolívia, quando escreve seus famosos diários de campanha.

Uma das cartas, da qual até agora só se conheciam alguns fragmentos publicados como prólogo do livro Apuntes Críticos à Economia Política (2006), é sem dúvida a grande carta do Epistolario, a tal ponto que alguns especialistas na obra guevariana asseguram que marca um antes e um depois. Trata-se da segunda carta de despedida que Che escreveu a Fidel Castro antes de partir para a guerrilha no Congo. A primeira é amplamente conhecida —“Outras terras do mundo exigem o concurso de meus modestos esforços…”—, pois foi lida por Castro no dia em que foi criado o Partido Comunista de Cuba e eleito seu primeiro Comitê Central, em 3 de outubro de 1965. A segunda despedida, que agora se publica na íntegra, está datada de 26 de março desse mesmo ano e é uma análise crítica e rigorosa dos males políticos e econômicos da revolução.

Facsímil de uma carta enviada pelo Che a seus filhos em 1965.

Facsímil de uma carta enviada pelo Che a seus filhos em 1965.

“Acredito que cometemos muitos erros de tipo econômico”, diz o Che a Castro. “O primeiro deles, o mais importante, é a improvisação com que levamos adiante nossas ideias, que deu por resultado uma política de inclinações bruscas. Improvisação e subjetivismo, diria eu. De tal maneira que se davam metas que acarretavam crescimentos impossíveis…”, argumenta em seu longuíssimo texto, com o qual se propõe a “fazer uma crítica construtiva, caso venha a servir para melhorar alguns problemas que continuam sendo graves”. As observações do Che são demolidoras e revelam não pouco desânimo. “Tenho certa sensação de que isto é um pouco de perda de tempo para todos, porque tenho cópias de outros escritos anteriores, de um tom parecido, e realmente pouco mudou desde então, e nada do fundamental”, diz, esclarecendo ao líder: “São críticas que faço amparado na velha amizade e na avaliação, admiração e lealdade sem limites que lhe professo”.

No mesmo tom, porém com mais ironia, se expressa em carta enviada ao histórico dirigente Armando Hart em 1965, quando acabava de ser nomeado secretário de organização do Partido Comunista de Cuba. Depois do fracasso da guerrilha do Congo, Che estava na Tanzânia, esperando para entrar clandestinamente na Bolívia. “Neste longo período de férias meti o nariz na filosofia, coisa que faz tempo pensava fazer. Deparei-me com a primeira dificuldade: em Cuba não há nada publicado, se excluirmos os tijolos soviéticos que têm o inconveniente de não deixarem você pensar, já que o partido faz isso no seu lugar, e você só precisa digerir”, escreve. Guevara tinha alergia aos esquemas dos manuais da URSS, e propõe a Hart fazer um novo programa de estudos de filosofia para Cuba: “Fiz um plano de estudo para mim que, acredito, pode ser analisado e melhorado muito para constituir a base de uma verdadeira escola de pensamento; já fizemos muito, mas algum dia teremos também que pensar”.

Primeira página de uma missiva a Fidel Castro desse mesmo ano.
Primeira página de uma missiva a Fidel Castro desse mesmo ano. OCEAN PRESS

Disamis Arcia Muñoz, compiladora da correspondência, com María del Carmen Ariet García, do Centro de Estudos Che Guevara, destaca que tanto essas como outras cartas mostram seu estilo direto e sincero ao expor suas críticas, mas como "um exercício honesto da discussão revolucionária, dentro de um objetivo comum, apesar das diferenças que se manifestam”. Quando você escreve um ensaio ou discurso, presta atenção à linguagem, à pontuação, mas, em uma carta pessoal, não se preocupa com essas coisas, é você quem fala e a sua voz é autêntica, por isso que este livro, diz Arcia, oferece a possibilidade de uma abordagem diferente do pensamento de Che.

Epistolario de un Tiempo é a última fase do Projeto Editorial Che Guevara, que começou em 2000 e tem mais de 20 títulos publicados, a maioria pela editora Ocean Sur. Na Espanha, esses livros circularam muito pouco, quase sempre em edições não autorizadas e por editoras minúsculas, mas, de acordo com a agente literária Paula Canal, da Ident Agency —que representa a Ocean Press em língua espanhola—, esse novo volume despertou interesse editorial e poderá ser publicado.

"Che é um personagem que ainda conserva um grande capital simbólico em todo o mundo, que representa valores universais que transcendem a revolução cubana. Essas cartas são um retrato de Che de vários ângulos de sua vida privada e pública e política, e mostram muitos aspectos surpreendentes de um indivíduo complexo: o líder político, o guerrilheiro, o filho, o pai, o amante, o filósofo, o poeta. Algumas são tremendamente engenhosas e, às vezes, mordazmente sarcásticas, enquanto outras escritas para amigos e familiares são profundamente carinhosas e até nostálgicos". Como a última que mandou aos pais antes de cair na Bolívia: "Queridos velhos: novamente sinto sob meus calcanhares as costelas de Rocinante, volto à estrada com minha adarga no braço. Faz quase dez anos lhes escrevi outra carta de despedida ... Pode ser que esta seja a definitiva. Não a busco, mas está dentro do cálculo lógico de probabilidades. Se assim for, vai aqui um último abraço”.


EL País: O limbo legal da Lava Jato que confiou cegamente no Telegram

Mensagens entre procuradores da Lava Jato, obtidas pelo 'The Intercept', mostram fé cega na segurança do aplicativo e revelam doses de “abuso de autoridade pública”, diz jurista

As mensagens entre procuradores e membros da força-tarefa da Lava Jato, publicadas desde o início de junho pelo The Intercept e outros veículos, incluindo o EL PAÍS, têm colocado em xeque a imparcialidade da maior operação contra a corrupção do Brasil. Entre emojis e documentos sigilosos, as conversas reveladas viraram de cabeça para baixo a atuação da procuradoria em Curitiba trazendo à tona a informalidade na troca de informações sensíveis para a investigação. A Vazajato mostra, dentre outras coisas, que foi pelo Telegram, por exemplo, que os procuradores enviaram uns aos outros a proposta de delação do ex-ministro Antonio Palocci, documento que deve estar sob sigilo e protegido pela lei da colaboração premiada.

Se por um lado aplicativos de conversas instantâneas são práticos e eficientes, por outro, o uso dessas ferramentas privadas por autoridades pode por em risco não só à segurança da informação como também das próprias instituições. Longe de ser uma mera formalidade, a utilização de e-mails oficiais colocam as informações trocadas em ambientes um pouco mais seguros e seus registros podem ser mais bem controlados. “O e-mail corporativo pode deixar registros que podem ser acessados por técnicos, por exemplo”, afirma Bernardo Wahl, especialista em segurança internacional. No entanto, para o coordenador da força-tarefa Deltan Dallagnol, o Telegram era "mais seguro que e-mail", segundo ele mesmo disse em um chat privado a um assessor de imprensa em março de 2016.

Carlos Ari Sundfeld, especialista em direito público, opina que a escolha por canais extraoficiais para a troca de informações sigilosas, somada a outras condutas de alguns procuradores é parte de uma cultura que envolve informalidade e até abuso da autoridade. "Os procuradores cometem infrações imaginando que suas instituições vão protegê-los, fica uma certa sensação de impunidade", diz. "Fica evidente também o abuso no exercício da autoridade pública". Para ele, se a Lei de Abuso de Autoridade, que passou no Congresso e depende de sanção presidencial, já valesse desde o início da Lava Jato, algumas das atitudes inadequadas de juízes ou procuradores flagradas em conversas do Telegram poderiam ter sido enquadradas.

Um policial norueguês Randi Bang, que interagiu com os procuradores, mostrou surpresa ao ser incluído em um grupo de Telegram criado pelos procuradores brasileiros em julho de 2015. “Eu devo admitir que essa é uma nova forma de comunicação para nós. Qual tipo de informação é possível compartilhar por aqui com segurança?”, questionou Bang no grupo Norway-Brazil car wash connection. Mas a confiança na troca de mensagens pelo chat naquele momento ainda era inabalável. “Este é um canal muito seguro, eu diria. Aqui no Brasil, nós compartilhamos entre nós algumas informações sensíveis, tudo baseado na confiança mútua”, responde o procurador Carlos Fernando Lima. “Esse app usa tecnologia criptografada para transmitir os dados. Então, é muito seguro”, completou, horas mais tarde, o procurador Orlando Martello. A Noruega entrou no radar da Lava Jato em 2015, quando passou a investigar propinas em contratos com a Petrobras por meio da empresa Sevan Drilling, especializada em exploração de petróleo em alto-mar.

Naquele mesmo ano, o jornal The New York Times revelava que Hillary Clinton havia instalado um servidor particular em sua casa, em Nova York, por onde enviou e recebeu todos os emails —pessoais e profissionais— enquanto era secretária de Estado, entre 2009 e 2013. Mas nem mesmo aquela tempestade causada nos Estados Unidos, cujo pivô era justamente a segurança da informação, abalou a confiança nos chats da procuradoria aqui no Brasil. Ainda que tratassem de assuntos que envolviam bilhões de reais, que afetavam o destino de muitas das pessoas mais poderosas da República do Brasil e de outros países, a fé nas qualidades do aplicativo era surpreendente, como afirma Sundfeld. "Me surpreende, diante de uma situação tão relevante, que os procuradores tenham trocado mensagens em grupos de aplicativos", diz. "Parece que estão todos no pré-primário da segurança da comunicação".

"Eu não costumo apagar grupos inativos"

Aparentemente, os procedimentos adotados pelos procuradores com a segurança das mensagens se limitava a criar novos grupos de conversa de quando em quando, apagando os antigos, e alertar para que os computadores não ficassem abertos no ambiente de trabalho quando as mensagens eram consultadas ali. “Pessoal, tenho visto que muitos costumam deixar suas mesas sem bloquear computador. Aí as mensagens do Telegram ficam pipocando nas telas para qualquer pessoa ver”, disse o procurador Paulo Galvão, no grupo FT MPF Curitiba 2, em maio de 2015. "Não escreva nada que outra pessoa não pode ler", brinca o procurador Antônio Carlos Welter, no mesmo chat.

Mais tarde, em agosto do ano seguinte, Galvão alertou para que os demais apagassem as mensagens do grupo antigo, após a criação do novo. “Caros, favor todos saírem e depois apagarem o grupo FT 3. WELTER ainda falta sair do FT 2”, escreveu ele, no grupo Filhos do Januario 1, sobre os chats 2 e 3 da força-tarefa.

Ao contrário do que aconselhava o colega, Dallagnol parecia permanecer em alguns grupos mesmo depois que eles já estavam desativados. “Fiquem à vontade para sair do grupo (eu não costumo apagar grupos inativos, então fico por aqui rs)”, afirmou o procurador em uma mensagem em julho de 2016, no chat 10 Medidas - Congresso, Brasília. Naquele momento, o procurador agradecia o empenho dos demais no projeto das 10 medidas contra a corrupção. “Bom não apagar para guardar a memória das batalhas! No seu livro tudo terá de ser contado 🤗”, disse o procurador Vladimir Aras. Dallagnol respondeu com emojis: “😂😂😂”.

Para Sundfeld, ao mesmo tempo em que as mensagens podem revelar a boa intenção da procuradoria, também deixam evidente uma dose de “arrogância”. "Você percebe que os procuradores em Curitiba estão empenhados, estão entusiasmados com as investigações, mas percebe também um certo grau de arrogância e imprudência e até de limite do exercício de autoridade que impressiona", diz. "Isso tem resultados muito nocivos para a instituição".

Mônica Sapucaia, doutora em direito político e econômico, especialista em administração pública, lembra que caso da Vazajato virou um case internacional ao expor o limbo jurídico para abordar o uso de ferramentas tecnológicas em situações do gênero. “A inclusão da tecnologia na Justiça ainda não está resolvida. Com o tempo ela foi entrando na estrutura da gestão e hoje não há determinação única a respeito do seu uso”, diz Sapucaia.

Eduardo Bastian@ebastian_me

Apparently even Telegram was hacked, fueling a huge political scandal in Brazil:https://theintercept.com/2019/06/09/chat-moro-deltan-telegram-lava-jato/ 

Chats privados revelam colaboração proibida de Moro com Deltan

Moro sugeriu trocar a ordem de fases da Lava Jato, cobrou novas operações, deu conselhos e pistas e antecipou ao menos uma decisão, mostram conversas privadas ao longo de dois anos.

theintercept.com

Telegram Messenger

@telegram

Telegram was not hacked. But there are other risks one should consider. See: https://telegra.ph/Keeping-your-chats-secure-06-10 

Keeping your chats secure

Telegram encryption protects your messages when they travel along the communication lines and when they rest in Telegram's encrypted cloud. Secret Chats are further protected by a layer of end-to-end...

telegra.ph

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Sistema próprio de comunicação

De acordo com a Procuradoria-Geral da República (PGR), desde outubro do ano passado os servidores podem utilizar o eSpace, ferramenta para a troca de mensagens "protegida pelo conjunto de controle de segurança que resguarda os demais sistemas e serviços de tecnologia do MPF", como informou a PGR, por meio de nota. Mas, embora disponível há quase um ano, foi somente no início de julho deste ano que a procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, determinou que os procuradores usassem o eSpace, ao invés do WhatsApp ou do Telegram. A determinação ocorreu quase um mês depois que as primeiras mensagens começaram a ser publicadas pelo The Intercept Brasil.

A PGR afirmou também que vem tomando medidas de proteção ao menos desde o início de maio, "quando foram identificadas tentativas de ataques" a celulares de autoridades. Dentre as medidas, estão a elaboração de informes de segurança e a determinação de investigações aos ataques cibernéticos. Leia íntegra da resposta da PGR aqui.

Logo após a publicação da primeira reportagem, o Telegram compartilhou no Twitter uma nota afirmando que "não foi hackeado". Em português, também escreveu na rede social algumas "dicas básicas de segurança de contas", que incluem um sistema duplo de verificação que vetaria, em tese, o golpe que usa a caixa de mensagens do celular do usuário. Para Bernardo Wahl, não basta um aplicativo ser seguro, se, por trás dele, há um humano. “Não existe 100% de segurança. O elo humano acaba sendo o mais fraco”.

Questionada sobre a preferência do Telegram ao invés do eSpace, a força-tarefa de Curitiba afirmou, por meio de nota, que "a recomendação pelo uso do eSpace só foi feita após os ataques de hackers". "Até então, o Telegram era tido como um dos mais seguros aplicativos de mensagens e foi utilizado por centenas de colegas em todo Brasil, inclusive no âmbito da alta administração do Ministério Público Federal", segue a nota. "Empregar ferramentas que permitem que decisões sejam debatidas e discutidas por diversas pessoas é bastante recomendável. O que é errado é a invasão criminosa de aplicativos de mensagens utilizados por autoridades públicas, e não sua utilização legítima como meio de comunicação", finalizam.


Eliane Brum: Bolsonaro está espionando o Papa?

O Sínodo da Amazônia vai manter a atenção sobre a floresta mesmo que as chamas se apaguem

A próxima briga de Jair Bolsonaro pode ser com o Papa. Acuado pela reação do mundo diante das imagens da floresta amazônica em chamas, o presidente e seus generais tentam convencer a população que a Europa quer tomar a Amazônia do Brasil. Apelam para o embolorado truque da “soberania nacional” para encobrir que os alertas de desmatamento aumentaram 278% em julho e os focos de incêndio triplicaram em agosto, comparados aos mesmos períodos de 2018. O problema é que, ainda que as chamas se apaguem, as câmeras continuarão apontadas para a floresta. Ao realizar o Sínodo da Amazônia, o Vaticano colocará o tema no centro das atenções globais durante o mês de outubro. Em carta divulgada em 30 de agosto, os bispos da região expressaram a tensão: “Lamentamos imensamente que hoje, em vez de serem apoiadas e incentivadas, nossas lideranças são criminalizadas como inimigos da Pátria”. No dia seguinte, Bolsonaro confirmou que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) está monitorando o Sínodo, conforme divulgou o jornal O Estado de S. Paulo.

A Igreja Católica tem uma atuação forte na Amazônia. Padres e freiras compreenderam que viver segundo o evangelho significa respeitar a cultura dos povos da floresta e não convertê-los em outros como fizeram no passado. A maioria das lideranças dos movimentos sociais foram formadas nas pastorais da igreja. A missionária Dorothy Stang foi assassinada em 2005, em Anapu, a mando de um consórcio de grileiros, por defender o uso social e sustentável da terra por pequenos agricultores. Em 2018, seu sucessor, Padre Amaro Lopes, foi preso. É um exemplo de como a ação da Igreja Católica confronta os interesses daqueles que querem converter a floresta em boi, soja e minério.

Nos últimos anos, porém, os católicos vêm perdendo espaço. O número de evangélicos neopentecostais têm crescido de forma acelerada nas cidades da Amazônia e nas comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas. Mas ainda que a maioria dos evangélicos tenha dado seu voto a Bolsonaro, isso não significa apoio incondicional à sua política colonialista. Algumas das mais aguerridas lideranças surgidas nos últimos anos na luta pela floresta são evangélicas, o que impede uma leitura fácil de um fenômeno complexo.

A política de destruição de Bolsonaro tem conseguido a façanha de, ao mesmo tempo, afastar essa parcela emergente de lideranças evangélicas e devolver ao palco lideranças católicas que começavam a perder protagonismo, assim como garantir a renovação de ativistas ligados à Igreja. A Romaria da Floresta deste ano, promovida em julho pela Comissão Pastoral da Terra, revelou uma participação impressionante de jovens. A caminhada costuma terminar no local onde Dorothy Stang foi assassinada com seis tiros. A placa que marca o acontecimento, presa a uma árvore, está perfurada de balas. É neste contexto que o Sínodo da Amazônia será realizado. Se o colapso climático garantia as atenções do mundo para o Vaticano, a floresta em chamas multiplicou a potência.

Em fevereiro, o Sínodo já era tratado pelo Governo como ameaça à “segurança nacional”. Hoje, a paranoia se instaurou. Já que desta vez Bolsonaro não pode usar sua aversão por mulheres como munição, como fez com Emmanuel Macron ao atacar sua esposa Brigitte, resta saber onde o ultradireitista vai mirar para dar um golpe baixo no Papa Francisco.