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El País: Augusto Aras envia recado à Lava Jato e diz que golpe de 64 é “questão nebulosa”
Aprovado pelo Senado, futuro procurador-geral admite que assinou sem ler manifesto de juristas evangélicos que defende cura gay e família hétero
Augusto Aras foi aprovado nesta quarta-feira no Senado para chefiar a Procuradoria-Geral da República (PGR) pelos próximos dois anos, com 68 votos a favor, 10 contra e uma abstenção. Durante sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, o indicado de Jair Bolsonaro para um dos postos cruciais do Estado brasileiro afirmou que quer afastar "caprichos pessoais" que prejudicam o trabalho da procuradoria e sinalizou vai corrigir "excessos" na Operação Lava Jato, da qual ele exercerá o papel de acusação nos casos em que houver foro privilegiado. "Sempre apontei os excessos, mas sempre defendi a Lava Jato", disse.
Sobre a Lava Jato, o futuro PGR destacou que a operação, que enfrenta uma crise pelas revelações de conversas privadas dos procuradores pelo The Intercept e enfrenta julgamentos decisivos no Supremo, representou um marco no combate à corrupção no país. Sem citar nomes, afirmou que o mérito individual de procuradores deverá ser reconhecido, mas que a confiança deve se voltar para as instituições por causa do princípio da impessoalidade. No que pareceu um recado aos procuradores acostumados a se manifestar nas redes sociais, Aras afirmou que as investigações, quando precedidas e sucedidas de opiniões, levam a condenações prévias das pessoas mencionadas. “É fundamental que os agentes públicos se manifestem nos autos, se manifestem somente na fase da ação penal", disse.
O futuro procurador-geral afirmou que o Ministério Público tem que adotar regras de compliance, governança, transparência e prestação de contas. “Temos uma instituição com muitos sigilos e segredos, e pretendo abrir essa caixa, doa a quem doer. Não posso aceitar que um pequeno grupo corporativo, por 16 anos, estabeleça quem pode ter poder e exercer poder”, afirmou. A meta de Aras é incorporar as boas práticas da Lava Jato em todo o MP. Mas ele garante que operação pode ser aprimorada. “Talvez tenha faltado nessa Lava Jato a cabeça branca, para dizer que têm certas coisas que podem ser feitas, mas têm outras coisas que não podemos fazer”, disse.
Em relação ao coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol, que atualmente enfrenta processo administrativo disciplinar no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Aras afirma que é preciso reconhecer o “grande trabalho” que ele fez. Mas ponderou: "Talvez se tivesse lá algum cabeça branca, poderíamos ter feito tudo o que ele fez, com menos holofote”.
Aras criticou os vazamentos de informação, uma estratégia tanto da força-tarefa quanto dos advogados de réus da Lava Jato, por violarem a privacidade, a dignidade da pessoa humana e o artigo 22 do Código de Processo Penal. Também mencionou a anulação no STF da decisão do então juiz Sergio Moro contra Aldemir Bendine, ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras, condenado em 2018 por corrupção e lavagem de dinheiro. A anulação se deu por uma questão técnica: a Corte entendeu que houve cerceamento do direito de defesa do réu, num caso que o Supremo ainda analisa se repercute ou não nas demais sentenças da operação. “Vimos o Supremo anular o processo do Bendine porque não foi dado vista ao delatado. Não custa nada dar três dias ao delatado”, afirmou Aras, que garante que não vai perseguir Dallagnol por “eventuais excessos”. “Vamos tratar o colega dentro da lei”, afirmou.
Amazônia, relações homoafetivas e "cura gay"
Aras pareceu bastante confortável ao ser questionado sobre temas como direitos humanos e diversidade, questões ambientais, lei de abuso de autoridade e autonomia do Ministério Público. Bastante alinhado com as ideias de Bolsonaro, manteve o tom professoral ao defender o desenvolvimento sustentável da Amazônia, porque "há indígenas passando fome porque não têm direito de usar as próprias terras para produzir".
Ele admitiu que há um grupo de indígenas isolados que necessitam de proteção do Estado para que a riqueza de seu "modus vivendi” seja preservado. Porém, ressaltou: “Índio também quer vida boa, não quer pedir esmola. Ele tem 100.000 hectares de terra e não pode produzir, porque é obrigado e a viver como caçador e coletor. Ele tem que ter direito de produzir grãos, pecuária”, afirmou, reverberando um diagnóstico generalista e considerado de viés "integracionista" por especialistas .
Apenas o senador Fabiano Contarato (Rede/ES) conseguiu colocar o indicado de Bolsonaro contra a parede por ter assinado uma carta da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (ANAJURE). O documento define que “a instituição familiar deve ser preservada como heterossexual e monogâmica” e também prevê que qualquer pessoa tenha direito de “tornar-se paciente em tratamento de reversão sexual”, a chamada "cura gay". “O senhor não reconhece minha família como família, tenho uma subfamília? Essa carta estabelece a cura gay. Eu sou doente?”, perguntou Contarato, ex-delegado de polícia e primeiro senador abertamente gay do país, que é casado e tem um filho de quatro anos.
Aras admitiu que assinou sem ler o manifesto dos juristas evangélicos. “Tenho amigos e amigas que têm casamento homoafetivo (...). Não acredito em cura gay”, afirmou, ressaltando que “cura gay é uma dessas artificialidades que não tem ordem científica”. “Reconheço duas coisas: na medicina — o gênero homem e mulher, e na vida pessoal, a opção de gênero de cada um na idade adequada”, afirmou Aras. Quanto ao tema, no entanto, o subprocurador-geral fez uma ressalva: destacou que se sentiria mais confortável com a existência de uma legislação com “norma constitucional” onde não se leia mais “homem e mulher”, como ainda é definido hoje na Constituição.
Ascensão fora da lista tríplice
Aras foi o primeiro procurador-geral indicado fora da lista tríplice feita pela categoria desde 2001. A escolha de Bolsonaro sem considerar a demanda dos procuradores da República de indicarem aqueles que consideram os mais preparados para gerir a instituição foi um dos temas mais comuns nas perguntas dos senadores. Aras defendeu o que chamou que “mudança no paradigma com o novo regime de Governo”. Para ele, após 16 anos de experiência da lista tríplice pode-se constatar a “existência de graves defeitos no sistema”. “O paradigma que combatemos é o corporativista e não da unidade institucional”, diz.
O corporativismo, afirmou Aras, estaria na origem de problemas como a tentativa da força-tarefa de criar uma fundação particular para gerir 2,5 bilhões de dinheiro pago como reparação no âmbito da Lava Jato. "O presidente seria um ex-procurador-geral e o vice, o próprio Deltan [Dallagnol]. Isso é uma disfuncionalidade grave do sistema. Quem gere fundos é o poder executivo. Esta não é uma atividade típica do MP", afirmou.
El País: Rumo às eleições de 2020, PSL corre o risco de perder um terço de sua bancada
Pressão contra CPI da Lava Toga e falta de comandos regionais influenciam ameaça de debandada. Eduardo Bolsonaro manobra em São Paulo contra Joice Hasselmann, que deseja disputar Prefeitura: "Outros partidos não perderão a chance de vencer comigo"
Na onda conservadora que elegeu Jair Bolsonaro presidente da República, o PSL conseguiu fazer a segunda maior bancada da Câmara, com 53 deputados, e passou a ter representatividade no Senado, com quatro senadores. Após quase nove meses de gestão, com desentendimentos e críticas públicas, já ocorreram duas baixas, a do deputado Alexandre Frota, que migrou ao PSDB, e agora a senadora Selma Arruda, que foi ao Podemos. E há outras a caminho. Entre 15 e 20 parlamentares podem deixar a legenda nos próximos meses —ou seja mais de um terço dos congressistas ameaçam deixar o partido. São várias as suas motivações. As principais delas: descontentamento com a tentativa do Governo de barrar a CPI da Lava Toga, que pretende investigar a cúpula do Judiciário na esteira do movimento anticorrupção, a não distribuição de cargos entre os correligionários e, por último e não menos importante, as eleições municipais de 2020.
As turbulências começaram cedo no PSL. Primeiro, o deputado federal Alexandre Frota forçou uma expulsão da legenda ao tecer seguidas críticas ao presidente. Agora, foi a vez da senadora Selma Arruda, que relatou à reportagem ter sido destratada pelo primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), que não queria que ela assinasse a CPI da Lava Toga. Frota queria ser expulso para não incorrer na infidelidade partidária e acabou se tornando um tucano. No caso de Selma Arruda, não há esse impedimento, pois a lei que trata da infidelidade autoriza a troca de partido por quem ocupa cargos no Executivo ou no Senado. Agora, ela está no Podemos. Os próximos que podem deixar a legenda são o senador por São Paulo Major Olímpio Gomes, líder do PSL no Senado, e o deputado pelo Rio Grande do Sul Bibo Nunes.
Olímpio comprou briga com dois filhos congressistas do presidente. A queixa contra Flávio é a de que ele quer impedir a instalação da CPI que pode investigar o Judiciário como um favor ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Antonio Dias Toffoli. O magistrado beneficiou Flávio, que é investigado por reter parte dos salários de seus antigos assessores, ao proibir que o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) compartilhe dados sem ordem judicial. Já contra Eduardo, o embate de Olímpio se dá na seara regional. O senador paulista presidia o diretório regional do partido em São Paulo. Após pressões, cedeu a vaga a Eduardo, que chegou no diretório reclamando de seu antecessor. A série de discussões tem ameaçado a organização para a eleição de 2020.
Nesta terça, o jornal O Globo publicou um novo capítulo das disputas em São Paulo, que desagradaram Joice Hasselmann. A líder do Governo na Câmara, ostentando seu título de deputada federal mais votada da história, fala abertamente de seu desejo de disputar a Prefeitura da maior cidade do país no ano que vem. Segundo o jornal, o diretório estadual do PSL-SP, presidido por Eduardo, aprovou uma nominata para criar o diretório municipal, um nova instância que seria entregue a Edson Salomão, tido como oponente de Joice na sigla. A deputada reagiu falando da possibilidade de deixar a legenda: "Não acho que o PSL será injusto com quem tem mais de um milhão de votos, 700 mil na cidade de São Paulo. Mas, se for, outros partidos não perderão a chance de vencer a eleição comigo”, disse ao Globo.
Já Bibo Nunes se envolveu em uma discussão com Luciano Bivar, presidente do PSL. E, depois da desavença, perdeu postos no comando do diretório regional do partido em seu Estado. Nunes ameaçou deixar a legenda. Outros cinco deputados ouvidos pela reportagem disseram que avaliam convites de outras legendas.
O poder de atração do Podemos
Com a ameaça de debandada, quem tenta engrossar suas fileiras na Câmara é o Podemos, que hoje tem 10 deputados. Dois dos parlamentares questionados pela reportagem se sairiam do PSL, responderam, sorrindo, com um discurso idêntico: “Podemos ficar no PSL. Ou podemos sair”.
A estratégia para o Podemos crescer no Senado, com a adesão de Selma Arruda, foi a de ceder aos seus novos membros funções de direção em seus Estados, assim como o de poderem conduzir os processos eleitorais locais, manejando as verbas partidárias para onde acharem melhor. Na Câmara, o movimento é o mesmo, além da garantia de que, em caso de vitória nas urnas, os novos filiados terão à sua disposição cargos na máquina municipal, algo que o PSL não conseguiu entregar na esfera federal. A dificuldade de quem pretende sair do PSL hoje é o risco que correm de perder os seus mandatos por infidelidade partidária. “Eu só sairia se tivesse a garantia de que ninguém pediria a minha cassação”, afirmou um parlamentar.
Questionado o que estaria fazendo para impedir a debandada dos peesselistas, o líder da legenda na Câmara, Delegado Waldir, disse desconhecer o tema e que esse trabalho caberia, principalmente, à Executiva nacional da legenda. Admitiu, contudo, que seus colegas de bancada não estão em total sintonia. “Há alguns atritos, descontentamentos, divisões em alas. Isso acontece em vários partidos. Desconheço essa vontade desses parlamentares, mas não duvido que nos deixem”, afirmou. Procurado, o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar, não atendeu aos telefonemas da reportagem nem respondeu aos questionamentos feitos para a sua assessoria.
Os cálculos de Jair Bolsonaro
Conforme dois aliados do presidente ouvidos pela reportagem, até o próprio Jair Bolsonaro avalia a possibilidade de deixar o PSL. Neste caso, haveria duas alternativas. Encontrar um outro partido na qual possa ter influência ou fundar o seu próprio. Essa segunda hipótese foi ventilada no início do ano e tinha o apoio do deputado federal Eduardo Bolsonaro, que queria recriar a UDN (partido que deu sustentação ao golpe militar de 1964). A ideia, no entanto, não prosperou.
Apesar de ser discutida internamente entre membros do Governo, a saída de Bolsonaro ainda é uma possibilidade remota. Seu objetivo inicial é fazer o que fez nas eleições de 2018, sacar Bivar do comando do partido e colocar alguém de sua confiança na direção do PSL para coordenar as eleições municipais de 2020. A maior dificuldade seria exatamente encontrar uma pessoa com experiência em gestão partidária que seja de extrema confiança do presidente. No ano passado, seu então assessor Gustavo Bebianno assumiu interinamente a presidência do PSL. Depois de eleito, Bolsonaro o transformou em ministro da Secretaria-Geral, mas 49 dias depois da posse o demitiu a pedido do seu filho Carlos Bolsonaro, o principal articulador de suas redes sociais.
Cimi: Sob Bolsonaro, dobra o número de terras indígenas invadidas
No mesmo dia em que o presidente criticou na ONU as demarcações indígenas e a extensão de áreas demarcadas no Brasil, relatório do Cimi aponta agravamento da situação
No mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro criticou a extensão das demarcações de terras indígenas, ao discursar pela primeira vez na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denunciou que dobrou, sob a gestão atual, o número de áreas indígenas invadidas no Brasil. Nos nove primeiros meses de 2019, 153 áreas foram invadidas em 19 Estados, enquanto em todo o ano de 2018 ocorreram invasões em 76 terras indígenas de 13 Estados, aponta o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil. A entidade, vinculada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) da Igreja Católica, pondera que os dados deste ano são "parciais e preliminares", já que o relatório se aprofunda sobre as informações do ano passado, embora tenha adiantado algumas informações de 2019. Entretanto, demonstra preocupação com os registros coletados até o lançamento do documento.
Na avaliação da entidade, o discurso de autoridades contra as demarcações das terras indígenas — uma marca forte do presidente Bolsonaro desde sua campanha eleitoral — impulsionam as invasões a estas áreas tradicionalmente ocupadas, especialmente na região da Amazônia. No ano passado, foram registrados 109 casos de invasão, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio em 74 terras indígenas.
"A principal motivação para as invasões é disponibilizar estas terras para a exploração pelo agronegócio, pelas mineradoras, pelas madeireiras, dentre outros segmentos. E para atingir este objetivo, um leque bastante diverso de violações de direitos e tipos de violência tem sido praticado", explica o relatório, que revela também aumento no número de assassinatos de indígenas em 2018: foram 135 casos no ano passado, 25 a mais que em 2017. Casos assim, aponta o relatório do Cimi, costumam ser intensificadas com a paralisação das demarcações de terras, quando se ampliam tanto as ações de retomada pelos indígenas quanto as invasões. Em Nova York, para a Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro reforçou mais uma vez sua promessa de "não demarcar um centímetro sequer de terra indígena".
"Quero deixar claro: o Brasil não vai aumentar para 20% sua área já demarcada como terra indígena, como alguns chefes de Estados gostariam que acontecesse", afirmou Bolsonaro à comunidade internacional. Em 1988, a Constituição brasileira estabeleceu que os territórios indígenas no Brasil fossem demarcados pela União em um prazo de até cinco anos. Não foram. O processo—que inclui várias fases e envolve a Funai, o Ministério da Justiça e a União — tem sido lento e repleto de tensões nas comunidades indígenas e em Brasília ao longo de vários governos.
A desaceleração das demarcações vem desde o Governo da ex-presidenta Dilma Rousseff, considerado um dos que menos demarcaram desde a redemocratização do Brasil pela pressão da bancada ruralista. Durante os dois anos de Governo de Michel Temer, a situação se agravou. A única terra que chegou a ser homologada nesse período foi revertida na Justiça. Mas essa questão ganhou barreiras ainda maiores desde que Bolsonaro assumiu o Planalto, em janeiro. Foi o primeiro presidente a falar abertamente que não retomaria as demarcações em um contexto em que 63% das 1.290 terras indígenas brasileiras ainda aguardam providências do Governo para serem reconhecidas ou homologadas.
“Quero deixar claro: o Brasil não vai aumentar para 20% sua área já demarcada como terra indígena, como alguns chefes de Estados gostariam que acontecesse”, afirmou Bolsonaro, na ONU
"14% do território brasileiro está demarcado como terra indígena, mas é preciso entender que nossos nativos são seres humanos, exatamente como qualquer um de nós. Eles querem e merecem usufruir dos mesmos direitos de que todos nós", discursou Bolsonaro na ONU, para defender sua posição. O relatório do Cimi aponta que paralisar as demarcações sem implementar medidas para impor limites aos invasores é preocupante. Destaca que "nunca se desmatou tanta floresta dentro das terras indígenas como em 2018". Mais de 500 garimpos foram instalados apenas na terra indígena Munduruku. E há registro da presença de milhares de pessoas explorando ouro ilegalmente no território Yanomami, que, apesar de demarcado, não está protegido.
Os Yanomami foram citados por Bolsonaro durante seu discurso na ONU. O presidente destacou a grande abundância de ouro e outros minérios ali. E criticou que os povos dessa etnia, alguns ainda isolados, tenham uma área de 95.000 quilômetros quadrados demarcada para apenas 15.000 indígenas. Essa demarcação aconteceu em 1991 pelo então presidente Fernando Collor, por pressões internacionais às vésperas da ECO 92. A região é alvo de exploração de minério há décadas. O garimpo ilegal levou à morte centenas de indígenas, especialmente pelas doenças trazidas pelo contato com o não índio.
Agora, Bolsonaro defende que o índio não deve ficar isolado, que deve se integrar à sociedade, e deve poder explorar as suas terras. "O índio não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas, especialmente das terras mais ricas do mundo. E que os que criticam sua postura estão preocupados não com o ser humano índio, mas com as riquezas minerais e a biodiversidade de suas terras", disse à comunidade internacional em Nova Iorque. Neste mês, Bolsonaro já havia dado um respaldo inédito a um grupo de garimpeiros, que se reuniram com ministros como Ricardo Salles e Onyx Lorenzoni e pediram a liberação do garimpo em territórios indígenas. Para permitir esta atividade, o presidente terá que regulamentar um artigo da Constituição, que exige uma "lei ordinária que fixe as condições específicas para exploração mineral e de recursos hídricos" nesses territórios. Essa legislação não foi criada desde a promulgação da Constituição, por isso o garimpo nessas áreas é ilegal.
Na ONU, Bolsonaro disse apoiar a preservação da Amazônia e ter tolerância zero contra o crime ambiental, embora venha desidratando a fiscalização na região. Reclamou que ONGs teimam em tratar e manter indígenas como "verdadeiros homens das cavernas" e reclamou que apenas 8% das terras brasileiras sejam usadas para a agricultura. “Os povos indígenas são, historicamente, vítimas do Estado brasileiro porque, através das instituições que representam e exercem os poderes político, administrativo, jurídico e legislativo, ele atua, quase sempre, tendo como referência interesses marcadamente econômicos", avalia Dom Roque Paloschi, presidente do Cimi e arcebispo de Porto Velho, no relatório do Cimi.
El País: Democratas lançam processo de impeachment contra Trump
O presidente dos EUA anunciou horas antes seu desejo de tornar pública a polêmica conversa telefônica mantida com o presidente da Ucrânia
Até o momento, os democratas relutaram em lançar um impeachment contra o presidente porque consideravam o assunto muito divisivo. Mas depois do último escândalo político que colocou Trump em destaque — a conversa telefônica em que o presidente dos EUA supostamente coagiu o presidente ucraniano a investigar o filho do ex-vice-presidente Joe Biden — Pelosi teria se encontrado com congressistas democratas moderados que acreditam que o presidente foi capaz de atravessar uma fronteira intransitável se usasse seu poder para pressionar um líder estrangeiro com o objetivo final de prejudicar um rival político.
Tune in as I speak live from the U.S. Capitol. https://twitter.com/i/broadcasts/1RDxlNbbejOGL …
Speaker Pelosi Delivers Statement Following House Democratic Caucus Meeting
Nancy Pelosi @SpeakerPelosi
“Para manter e defender a Constituição, o Congresso deve determinar se o presidente estava disposto a usar seu poder e reter recursos de assistência para convencer um país estrangeiro a ajudá-lo nas próximas eleições”, diz o artigo dos congressistas Gil Cisneros, Jason Crow, Chrissy Houlahan, Elaine Luria, Mikie Sherrill, Elissa Slotkin e Abigail Spanberger, todos eles em seu primeiro mandato no Capitólio dos EUA.
“Entregamos nossas vidas ao serviço e à segurança do país”, dizem os congressistas, enfatizando que não são políticos profissionais, mas oriundos de setores como o Exército, o Departamento de Defesa ou a espionagem. “Agora, nos unimos para manter esse juramento [de defender o país] diante do terreno desconhecido em que entramos e das alegações feitas contra o presidente Trump”, escrevem os sete representantes.
O impeachment, uma operação complexa e com resultados políticos nem sempre bons para quem os promove, tem sido motivo de debate para os democratas. Hoje esse processo já é realidade e, embora não implique necessariamente que eles acabem votando para acusar o presidente, a investigação em si marcará o que resta da presidência e levará a campanha eleitoral de 2020 da Casa Branca para uma nova fase.
Enquanto tudo isto acontecia, Trump insistia em definir a última crise de sua Administração como uma nova “caça às bruxas”. “É ridículo”, disse o mandatário ao ser perguntando sobre o caso ao chegar à sede das Nações Unidas antes de fazer seu discurso na Assembleia Geral. “Continuo liderando as pesquisas e eles não têm ideia de como me parar”, insistiu Trump, apesar do fato de os candidatos democratas estarem à frente dele na maioria dos casos. “A única maneira que lhes ocorre para me parar é com o impeachment”, concluiu. Após o anúncio do processo de impeachment, no qual´é baseado o rito brasileiro, Trump tuitou para dizer que sofre "assédio presidencial" e que "eles [os democratas] nem sequer viram a transcrição da ligação [com o presidente ucraniano]".
O presidente norte-americano também publicou um vídeo que dá a entender que os democratas estariam obcecados por iniciar um processo de impeachment para evitar seu segundo mandato. em outro tuíte, Trump diz que o secretário de Estado, Mike Pompeo, já recebeu permissão do Governo da Ucrânia para divulgar a transcrição da controversa ligação.
O ponto do dia no Congresso sobre a nova trama de possível corrupção política que prejudica o presidente, um país estrangeiro e um adversário político da atual Casa Branca, discorreu sobre a já polêmica ajuda econômica de Washington a Kiev. Trump teria usado essa ajuda como moeda de troca para tentar que Volodimir Zelenski investigasse Hunter Biden por seu papel na principal empresa privada de gás da Ucrânia, a Burisma.
Trump admitiu ter “congelado” os recursos para a Ucrânia antes de telefonar para Zelenski em 25 de julho, chamada que está na origem dessa nova trama e que foi tornada pública de forma anônima por um delator. O que Trump esclareceu durante a manhã é que decidiu bloquear a ajuda de milhões de dólares porque considerava injusto que os EUA contribuíssem com recursos e outros países da órbita europeia, como França e Alemanha, não o fizessem. “Por que só os Estados Unidos estão colocando dinheiro?”, perguntou Trump evitando o assunto, embora tenha informado que o dinheiro finalmente chegou ao seu destino.
A trama cresce e o drama terá um ato central nesta quinta-feira, prazo final dado por Pelosi ao diretor nacional de Inteligência em funções, Joseph Maguire, para que entregue os detalhes da denúncia feita pelo delator sobre o telefonema de Trump ao presidente ucraniano. De acordo com a lei, qualquer assunto definido como de “máxima urgência” deve ser compartilhado com o Congresso. E este o é.
A ligação de Trump a Zelenski desencadeou um verdadeiro terremoto político em Washington. Primeiro, fez com que um funcionário não identificado registrasse uma queixa interna à espionagem norte-americana em 12 de agosto, ao considerar seu conteúdo preocupante. E desde então o escândalo cresceu até atingir o ponto máximo de pedido de impeachment ao presidente.
Apenas dois processos de impeachment foram concluídos na história americana, o do presidente Andrew Johnson em 1868 e o de Bill Clinton em 1998, mas nenhum prosperou. Richard Nixon renunciou devido ao caso Watergate, antes de o processo iniciado na Câmara dos Deputados florescer. Os processos de Johnson e Clinton foram adiante na Câmara baixa e ficaram cara a cara com o Senado. Isso pode acontecer agora. Desde novembro, os democratas têm a maioria necessária na Câmara dos Deputados para promover um processo de impeachment, mas dificilmente prosperará com o Senado de uma maioria ainda republicana, pois exige o apoio de dois terços dos senadores.
Eliane Brum: O grito de uma geração
Greta Thunberg e os milhões de jovens ativistas que ocuparam – e seguirão ocupando – as ruas do planeta, também no Brasil, representam a primeira grande adaptação à emergência climática
“Nossa casa está em chamas. Eu quero que vocês entrem em pânico.” Quando Greta Thunberg diz frases como essas aos adultos, ela está anunciando a maior inflexão histórica já produzida por uma geração. Pela primeira vez na trajetória humana os filhotes estão cuidando do mundo que os espécimes adultos destruíram – e seguem destruindo. Esta é uma inversão no funcionamento não só da nossa, mas de qualquer espécie. A mudança responde a uma enormidade. A emergência climática é a maior ameaça já vivida pela humanidade em toda a sua história. Quando ouvimos o grito de Greta e dos milhões de jovens inspirados por ela, um grito que ressoa em diferentes línguas e geografias, é esta a ordem de grandeza do que testemunhamos. Escutar é imperativo.
Em poucos meses, Greta tornou-se uma das pessoas mais influentes do planeta. Tinha 15 anos quando deixou de comparecer às aulas e se sentou diante do parlamento sueco, em agosto de 2018: “Estou fazendo isso porque vocês, adultos, estão cagando para o meu futuro”. De que adianta ir à escola se não vai ter amanhã? A pergunta, que para muitos soava insolente, era justa. Mais do que justa, expressava uma lucidez que a sociedade não esperava de crianças e adolescentes. Logo, Greta não estava mais só.
O movimento Fridays for Future passou a levar toda semana dezenas de milhares de estudantes às ruas, numa greve escolar pelo clima. Em março de 2019, a primeira greve global levou 1,5 milhão de adolescentes às ruas do mundo. Em 20 de setembro, mais de quatro milhões deixaram as escolas para gritar pela emergência climática, em uma das maiores manifestações globais da história. Hoje há milhões de Gretas, da Amazônia a Austrália, da Sibéria a Nova York.
De repente, crianças e adolescentes perceberam que seu mundo era governado por adultos como Donald Trump (e Recep Erdogan, Viktor Orbán, Rodrigo Duterte...). Para piorar o cenário global, o Brasil, país que abriga 60% da Amazônia, floresta estratégica para a regulação do clima do planeta, passou a ser comandado pelo populista de extrema direita Jair Bolsonaro, um homem que defende que o aquecimento global é um “complô marxista”.
Se estes são os adultos na sala de comando do mundo em que você vive e vai viver, e se você é mentalmente saudável, basta uma inteligência média para entrar em pânico de imediato. Então você olha para dentro da sua casa, esta feita de paredes, e percebe que seus pais estão ocupados com urgências mais comezinhas, como pagar as contas do mês, ou tentando concluir se o celular mais avançado é da Apple ou da Samsung.
Crianças e adolescentes da Geração Greta perceberam o óbvio. A casa está queimando – a Amazônia em chamas no mês de agosto levou essa imagem à literalidade – e seus pais e governantes tocam a vida como se nada estivesse acontecendo. Ao contrário, no momento em que o planeta mais precisa de políticas públicas e de alianças globais pelo clima, os adultos se mostram estúpidos o suficiente para eleger representantes do nacionalismo mais abjeto, que negam o superaquecimento global em nome de interesses imediatos.
Ao constatar que os adultos abdicaram de ser adultos, adolescentes como Greta assumiram a tarefa de tomar conta do mundo. É isso que Greta afirmou na Cúpula do Clima na Polônia, em dezembro: “Como nossos líderes comportam-se como crianças, nós teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo atrás”. Ao mesmo tempo, as jovens lideranças climáticas são espertas o suficiente para compreender que não basta voluntarismo, é preciso ocupar espaço político e travar o debate com os adultos que detêm o poder de fazer as políticas públicas. Esta também é outra novidade da geração climática: são crianças e são adolescentes, mas não são ingênuos.
A cada intervenção pública, Greta Thunberg tem demonstrado a lucidez que – por oportunismo, mais do que por incompetência – tem faltado no mundo dos adultos. Como ao afirmar à seleta plateia bilionária do Fórum Econômico de Davos, em janeiro: “Algumas pessoas, algumas empresas, alguns tomadores de decisão em particular, sabem exatamente que valores inestimáveis têm sacrificado para continuar a ganhar quantias inimagináveis de dinheiro. E eu acho que muitos de vocês aqui hoje pertencem a esse grupo de pessoas”.
É fascinante tentar compreender quais serão os efeitos dessa inversão radical no que é ser adulto e no que é ser uma criança. Não uma inversão evolutiva, que levou séculos ou milênios para ser consumada, mas um corte brutal. A geração imediatamente anterior a de Greta é justamente a geração mais consumista e mimada dos países ricos ou da parcela rica dos países pobres. Aqueles que hoje estão na faixa dos 30 e poucos anos, 40 anos são aqueles criados no imperativo do consumo e da satisfação imediata, muitos se recusam a se tornar adultos porque isso significa aceitar limites. Formados na lógica capitalista de que liberdade é poder tudo, que se dar todos os prazeres é seu direito básico, acreditam que o planeta cabe no seu umbigo.
E então adolescentes de tranças enfiam o dedo na sua cara e dizem: “Cresça!”. Estes adolescentes de cara redonda, alguns com espinhas, condenam o grande objeto de consumo do século 20, o carro, e também o avião. Eles pedalam e usam transporte público. Condenam a indústria dos combustíveis fósseis, e as corporações colocam seus lobistas a disseminar notícias falsas contra eles. Condenam o consumo de carne e não só a indústria, mas também a constelação de chefs estrelados se sente em risco. Dizem que é melhor não comprar roupas e outros objetos, mas sim trocar e reciclar, e colocam a indústria da moda em xeque. E fazem isso rápido, porque a velocidade também mudou.
A Geração Greta propõe ainda uma mudança radical na experiência do tempo. Por um lado, não há mais tempo. Segundo os cientistas, há pouco mais de uma década para tomar as medidas capazes de conter o superaquecimento global e manter o aumento da temperatura no limite de 1,5 graus Celsius. Se este limite for superado, maravilhas como os corais desaparecerão do planeta e milhões serão condenados à miséria e à fome – para além do contingente que já sofre privações extremas.
O que está em jogo hoje é se a Terra será muito em breve um planeta ruim ou francamente hostil para a espécie humana. Os jovens ativistas climáticos sabem que há enorme diferença entre o ruim e o hostil. Mas, como convencer os adultos e os tomadores de decisão, se eles parecem vivem como se não houvesse amanhã e, por assim viverem, talvez não exista mesmo amanhã? Como convencer aqueles que esgotam os recursos em nome do gozo imediato que o amanhã está logo ali e será ruim para todos, ainda que muito pior para os que menos contribuíram para o esgotamento do planeta?
A Geração Greta propõe responder à emergência climática com uma vivência diferente do tempo e do espaço. “Fiquem no chão”, é o que dizem aos adultos, ao afirmarem que o uso dos aviões deve ser restrito a urgências reais. Para dar o exemplo, Greta viajou num barco à vela da Europa aos Estados Unidos, para participar da Cúpula da ONU. Outras lideranças europeias da juventude climática, como as belgas Anuna de Wever e Adélaïde Charlier, acompanhadas por duas dezenas de jovens ativistas, iniciarão no início de outubro uma travessia que durará semanas, velejando rumo ao Chile, para participar da Cúpula do Clima.
A imagem é forte. Em vez de colonizar a América Latina com essa versão contemporânea das caravelas, as adolescentes defendem com seu gesto a descolonização da Europa (e dos Estados Unidos) e das mentes que vivem para consumir também o tempo. Entre um país e outro, já não pode mais ser um pulo. Há que se viver a jornada e compreender a distância com o corpo. Há que se produzir localmente e consumir localmente. Sem venenos nem transgênicos. O supérfluo não é mais o necessário, como a publicidade infiltrou nas mentes nas últimas décadas. Não é uma escolha, apontam. O tempo das escolhas entre o bom e o melhor acabou. É isso ou a catástrofe será ainda maior.
Basta que cada um olhe para sua própria rotina, neste exato momento, para compreender o tamanho da ferida narcísica que a Geração Greta está abrindo no corpo de seus pais e irmão mais velhos. A reação truculenta, que se verifica tanto à extrema direita como à extrema esquerda contra as ativistas adolescentes, com um número crescente de ataques e de disseminação de Fake News, era previsível. O grito desta geração atinge os interesses de poderosas corporações transnacionais e demanda mudanças de hábitos a pessoas que sempre se consideraram em dia com a pauta ambiental, achando que bastava reciclar seu lixo para ser uma “pessoa do bem”.
Adultos costumam dizer às garotas do clima: “Vocês me dão esperança”. E Greta e outras líderes respondem: “Não quero sua esperança. Eu não tenho esperança. Quero seu pânico, quero que você sinta o medo que eu sinto todos os dias”. Não é força de expressão. Bem informadas, elas sabem que, com os governantes que aí estão, a contagem regressiva está contra a humanidade e contra todas as espécies que o modo de vida capitalista arrasta em sua lógica de consumo. É provável que o planeta aqueça a 3, 4 e até 5 graus.
A não ser que a população global faça um levante. O que também testemunhamos é a mais vital adaptação humana à emergência climática: uma geração que prescinde da esperança exatamente para ser capaz de romper a paralisia e lutar. Abrir mão da esperança, mas não da alegria de lutar junt@s, é a potência da Geração Greta.
A novíssima geração de ativistas do clima reflete o momento histórico e antecipa o futuro. Há meninos, claro. Mas basta olhar para os movimentos para perceber que as principais líderes são mulheres. Ainda que o rosto de boneca de souvenir de Greta seja a face desta geração, em cada país há líderes com discurso inspirador e atuação forte. Além do protagonismo feminino, cada uma destas mulheres carrega para a luta particularidades importantes. Greta anuncia sua condição de Asperger. Não como uma doença, bem entendido. Mas como uma diferença, um “superpoder” cujo foco e capacidade de concentração têm sido determinantes para a luta climática. A belga Anuna de Wever declara-se “fluida de gênero”. E defende que essa condição lhe permite buscar outras maneiras de ser e de estar este mundo, sem agarrar-se aos dogmas impostos por aquilo que se costuma chamar de “normalidade”. Essas líderes levam à luta pelo planeta a possibilidade de enxergar as diferenças como uma força, um ativo positivo diante dos desafios da emergência climática.
Neste mundo de muros, arames farpados e fronteiras armadas, a insubordinação maior da mensagem desta geração é o apelo para que sejamos capazes de fazer uma comunidade global e lutarmos pela nossa casa comum. É a sua recusa de se dobrar à ordem de Trump, Bolsonaro e outros déspotas eleitos. O melhor que podemos fazer, nós, adultos imperfeitos e aquém dos desafios deste momento histórico, é nos colocarmos radicalmente ao seu lado.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
El País: Bolsonaro abre Assembleia Geral da ONU, agitada por novo escândalo de Trump
Um mapa das tensões na reunião em Nova York, marcada pela ameaça de desaceleração econômica e pelo incerto conflito no Oriente Médio
A ameaçadora sombra de uma desaceleração econômica, a guerra comercial, o aquecimento global, o incerto conflito no Oriente Médio, a tensão na Venezuela, o Brexit... Diversas crises marcam a agenda da Assembleia Geral da ONU que começa nesta terça em Nova York. Aos assuntos mais evidentes se somam inesperados pontos de interesse, como uma reunião entre os líderes norte-americano e ucraniano, onde se buscarão chaves do enésimo escândalo interno Trump. A primeira jornada, com discursos de Bolsonaro, Trump, do egípcio Abdel Fatah al Sisi e do turco Recep Tayyip Erdogan, será uma oportunidade de comprovar que a polarizadora e populista figura do presidente do país anfitrião fez escola. Estes são alguns dos assuntos a não perder de vista em uma semana frenética:
O polêmico presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que não foi convidado para a cúpula do clima desta segunda-feira por flertar com o ceticismo ambiental, será o primeiro dos chefes de Estado a se dirigir ao mundo na Assembleia Geral da ONU. Um privilégio que não é resultado da ordem alfabética (encabeçada pelo Afeganistão e fechada pelo Zimbábue), de sua popularidade, do peso político ou econômico de seu país, mas da tradição. Abrirá esta 74ª sessão, como fazem os mandatários brasileiros desde 1955.
Um porta-voz do Itamaraty, o Ministério das Relações Exteriores, explica a origem dessa tradição não escrita que persiste desde a Guerra Fria: “Conta-se que, ao buscar um país disposto a falar diante das superpotências para evitar o conflito entre os Estados Unidos e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas para a abertura da sessão, o Brasil aceitou ser o primeiro entre os oradores”.
Bolsonaro chega a Nova York ainda se recuperando da quarta intervenção cirúrgica em pouco mais de um ano devido ao atentado que sofreu na campanha e convertido em um dos mandatários mais criticados por seus tiques autoritários, sua nostalgia da ditadura e sua política ambiental. Ao lado dele, haverá cerca de 150 chefes de Estado. O brasileiro reduziu ao mínimo sua agenda, ainda pendente da inclusão de um almoço com Donald Trump.
Especialistas em relações internacionais apontam outro possível motivo dessa cortesia em relação ao Brasil. Foi um prêmio de consolação das grandes potências para o gigante latino-americano, que deixaram fora do Conselho de Segurança em 1948. Por isso, o Brasil forjou anos atrás uma aliança com a Índia, o Japão e a Alemanha, pela qual ainda reclamam uma reforma do clube dos cinco com direito a veto (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido), com o argumento de que não representa a profunda mudança de forças sofrida pelo mundo nessas sete décadas. Os quatro países continuam batalhando pela ampliação do Conselho de Segurança e ter o poder de vetar resoluções.
O representante dos Estados Unidos, como país anfitrião, será o segundo orador. Dois mandatários pouco defensores de organismos multilaterais como a ONU e céticos com a crise climática abrirão as intervenções. Bolsonaro, que disse que iria à ONU mesmo que fosse de cadeira de rodas, tentará reduzir o tom sobre sua briga de galos com Macron em agosto, quando os incêndios na Amazônia alertaram o mundo. Quer “falar de patriotismo, de soberania, do que o Brasil representa para o mundo, de que é um país cujo povo é bem recebido em todo o mundo”.
Ucrânia. Uma nova frente interna para Trump
Em todas as frentes será crucial a postura de Trump, um líder que se caracteriza precisamente por seu desdém pelos organismos multilaterais. Falará com a Assembleia nesta terça-feira, em seu primeiro discurso internacional desde a demissão do falcão John Bolton do cargo de assessor de Segurança Nacional. Espera-se, segundo anteciparam fontes do Governo, que defenda a soberania e independência dos países da ONU, que defenda a proteção das liberdades religiosas e que apresente os Estados Unidos como “uma alternativa positiva ao autoritarismo”. Mas todos os olhos estarão voltados para sua reunião de quarta-feira com o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, em meio à crise desatada pela revelação de que Trump o pressionou a investigar negócios naquele país do filho do ex-vice-presidente Joe Biden, favorito democrata a enfrentá-lo nas urnas em 2020. O presidente afirmou no domingo que considera que suas conversas com Zelenski foram “absolutamente perfeitas”, mas os democratas veem novamente uma tentativa de Trump de procurar a ajuda de um país estrangeiro para sua reeleição.
Irã. A incógnita de Rohani
Depois de três anos de mandato marcados pelo mantra “A América em primeiro lugar”, Trump tratará de convencer os céticos líderes mundiais a construírem uma coalizão contra o Irã, a quem os EUA acusam pelo ataque com drones a instalações petrolíferas da Arábia Saudita em 14 de setembro. Aquela ação, definida pelo secretário de Estado Mike Pompeo como “um ato de guerra”, praticamente eliminou a possibilidade de uma reunião bilateral de Trump com o presidente Hasan Rohani, uma iniciativa na qual vinha se empenhando sobretudo o francês Emmanuel Macron. Mas com Trump nunca se sabe, pois já no domingo ele disse que “nunca nada está completamente fora da mesa”. O que parece claro é que a delegação norte-americana apresentará a seus aliados as provas sobre as quais sustenta sua acusação, e que Teerã nega. E Rohani, que fala na quarta-feira, provavelmente aproveitará para acusar os Estados Unidos de iniciarem o conflito ao se retirarem do acordo nuclear assinado em 2015 e reinstaurarem as sanções que destroem sua economia.
Reino Unido. Improváveis avanços no Brexit
O britânico Boris Johnson vai a sua primeira Assembleia Geral como primeiro-ministro em meio a uma profunda crise interna: a apenas um mês da data marcada para que seu país deixe a União Europeia, ainda sem um acordo à vista para isso, com o Parlamento fechado e pendente de que o Tribunal Supremo se pronuncie sobre Johnson extrapolou suas funções ao suspendê-lo (a decisão, na verdade, o apanhará em Nova York). O primeiro-ministro se reunirá com o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, e com outros líderes dos 27 países restantes na UE, como Macron, a alemã Angela Merkel e o irlandês Leo Varadkar. Será a primeira oportunidade para que os líderes europeus lhe solicitem pessoalmente detalhes sobre o plano, anunciado por Londres na semana passada, de uma possível solução para salvar o acordo de saída, resolvendo o complicado assunto da necessidade de evitar uma fronteira física na ilha da Irlanda.
Mas, à margem do ceticismo dos líderes europeus ante qualquer jogada do novo primeiro-ministro, o próprio Johnson advertiu, antes de embarcar para Nova York, que não considera muito provável que sua viagem proporcione um desbloqueio no enlameado Brexit. “Eu alertaria a todos contra a ideia de achar que este será o momento”, disse o líder tory aos jornalistas. “Não estou ficando pessimista. Vamos tentar, mas há trabalho por fazer”, acrescentou.
Venezuela. Dez meses de Guaidó como presidente interino
Quase dez meses transcorreram desde o surgimento de Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela, como é reconhecido por mais de 50 Governos de todo o mundo. Não obstante, aos olhos da ONU, Nicolás Maduro continua sendo o mandatário venezuelano. Uma prova disso é que, salvo uma surpresa de última hora, quem falará na Assembleia Geral representando o país caribenho será o chanceler Jorge Arreaza.
Enquanto isso, os representantes de Guaidó prepararam uma ofensiva diplomática para tentar recuperar o impulso perdido ao longo dos meses. À frente da delegação de Guaidó se encontra Julio Borges, encarregado das relações exteriores. Borges, exilado em Bogotá, será acompanhado de outros deputados próximos a Guaidó que deixaram a Venezuela com medo de serem detidos, como é o caso de Miguel Pizarro, nomeado neste fim de semana como interlocutor da oposição ao chavismo na ONU, e José Andrés Mejía, assim como o embaixador designado, Carlos Vecchio. A delegação de Guaidó manterá uma série de encontros com representantes diplomáticos, como o chanceler espanhol, Josep Borrell, futuro chefe da diplomacia europeia, aos quais pretende insistir para que intensifiquem a pressão contra o Governo de Maduro.
América Latina. O desafio migratório
Um dos grandes ausentes na Assembleia será o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, que não sai de seu país há quase dois anos e delegou a diplomacia ao chanceler Marcelo Ebrard. É uma ausência significativa, porque seria uma inédita intervenção do primeiro presidente esquerdista do México no plenário da ONU —e ainda mais quando o México enfrenta o maiúsculo desafio de lutar com Donald Trump no tema migratório.
O México se tornou uma espécie de muro com o qual os Estados Unidos freiam a passagem de migrantes centro-americanos para o seu território. O Governo de López Obrador, por sua vez, pretende desenvolver uma espécie de Plano Marshall para a América Central. Ebrard se empenhará a fundo nesta semana em obter todos os apoios possíveis —diplomáticos, mas sobretudo econômicos.
El País: Censura, um efeito cascata que corrói a arte no Brasil de Bolsonaro
Discurso contra financiamento público de obras com temática de gênero, cortes de recursos e polêmicos cancelamentos de espetáculos alimentam o receio de intervenção em meio à classe artística
Faltavam cinco minutos para a entrada do público que assistiria à apresentação das 18h do espetáculo teatral Abrazo, na Caixa Cultural do Recife, quando a companhia Clowns de Shakespeare foi avisada de que a sessão estava cancelada. A peça, que aborda temas como repressão e censura, foi banida pela instituição sem qualquer diálogo. Montada em 2014 na onda da efeméride dos 50 anos do golpe militar brasileiro, o espetáculo já havia circulado por cerca de 20 Estados nos últimos cinco anos. A apresentação cancelada seria a segunda daquele mesmo dia, 7 de setembro. Clowns de Shakespeare havia fechado um contrato com a Caixa para fazer uma temporada de oito apresentações da peça no Recife e em Curitiba, pelas quais receberia 220.000 reais. O mesmo edital também previa rodas de conversa e uma oficina.
Naquela tarde, após a primeira apresentação, o grupo realizou com o público o bate papo acordado. Respondeu a perguntas que iam de questões técnicas relacionadas à obra a reflexões sobre a atual conjuntura brasileira. "Conversamos sobre o golpe [se refere ao impeachment da ex-presidenta Dilma], sobre um Governo eleito pelo voto, mas que opera no território do preconceito. Debatemos questões políticas, mas foi um bate papo corriqueiro", conta o diretor artístico do grupo, Fernando Yamamoto. Alguns dias depois, a companhia foi informada de que o contrato estava cancelado. Nenhuma das sete apresentações previstas poderiam acontecer. O motivo, segundo a Caixa: o grupo havia infringido uma cláusula do contrato, que proibia que se falasse de forma negativa dos patrocinadores.
A Companhia Dos à Deux afirma que se viu "obrigada a excluir o espetáculo do projeto". Como não havia tempo hábil e recursos logísticos para a substituição, os dois lados decidiram que apenas Aux Pieds de la Lettre seria levado aos palcos e que um workshop e uma roda de conversa compensariam a retirada da segunda obra. Após o acordo, a companhia foi avisada de que o contrato só poderia ser assinado quando houvesse aprovação do superintendente da instituição. A Caixa Econômica Federal é dirigida por Pedro Guimarães, presente na equipe do presidente Jair Bolsonaro desde o período de transição de Governo.
As duas companhias de teatro que tiveram suas obras questionadas afirmam que em algum momento do diálogo envolvendo o edital houve a participação de superiores do banco. Em nota, a Caixa Cultural, que reforçou seu o apoio cultural em todas as temáticas e o investimento de 17 milhões de reais em 150 projetos somente no edital que contemplou as duas companhias, disse que o processo de seleção do programa "envolve etapas de avaliação por consultores externos com reconhecimento no meio cultural e por empregados da Caixa Cultural, os quais são empregados de carreira do banco e seguem as mesmas políticas e diretrizes da instituição."
O temor da censura velada
As suspensões e cancelamentos de espetáculos teatrais nas últimas semanas têm servido de combustível para alimentar um temor de instalação de uma censura velada em um contexto já turbulento para a cultura brasileira. O setor, que já vinha sofrendo sucessivos cortes de recursos nas gestões anteriores, contabiliza expressivas perdas no Governo Bolsonaro. O presidente extinguiu o Ministério da Cultura. Recentemente, incluiu na esteira de cortes orçamentários em distintas áreas o cancelamento de um edital de fomento de séries LGBT para TV pública e de programas de apoio à ida de realizadores brasileiros a festivais internacionais de cinema. O ultradireitista, que costuma ser incisivo nas declarações contra o que chama de "ideologia de gênero" e em defesa da ditadura militar, chegou a ameaçar extinguir a Agência Nacional de Cinema (Ancine) no último mês de julho, caso não pudesse filtrar as obras a serem financiadas pelo órgão público.
Entre produtores, instaurou-se um alerta de que esses cortes pudessem estar sendo utilizados indiretamente para evitar obras que vão de encontro às ideias conservadoras do presidente, ainda que sem uma determinação expressa dele. A questão ganhou tanta relevância que a censura foi tema de audiência pública na Câmara dos Deputados, na última quarta-feira. Produtores culturais acreditam que as declarações do presidente vêm repercutindo na ponta da cadeia cultural brasileira.
Quando o edital para séries LGBT foi cancelado, Bolsonaro comemorou o corte em uma live no Facebook. Citou especificamente o projeto Afronte, dirigido por Bruno Victor e Marcus Mesquita. A série previa cinco episódios sobre jovens negros e gays do Distrito Federal. "Confesso que não dá para entender. Então, mais um filme aí que foi para o saco”, afirmou o presidente. Bruno Victor diz não saber como Bolsonaro teve acesso ao seu projeto, já que a Ancine não havia divulgado a lista de selecionados oficialmente. "Foi uma censura ao vivo", analisa.
Impasse na Justiça
O caso da Clowns de Shakespeare foi parar na Justiça, onde a companhia tenta reverter a rescisão contratual. Na decisão comunicada ao grupo de Yamamoto, a Caixa afirmou que o teor da roda de conversa havia infringido o inciso VII da Cláusula Quarta do contrato, que determina o dever do grupo contratado em “zelar pela boa imagem dos patrocinadores, não fazendo referências públicas de caráter negativo ou pejorativo”. A instituição apenas disse ao grupo que tinha provas em vídeo, sem detalhar quais declarações haviam sido interpretadas como negativas ou pejorativas. Instado pelo Ministério Público Federal, a Caixa enviou um ofício no qual reproduz parte do diálogo entre o público e os atores. O documento aponta que os atores dizem ao público ter sofrido resistência ao apresentar o projeto do espetáculo para um edital "bem recentemente". "A gente sofre pedidos muitos específicos de vídeo do espetáculo, das projeções... coisa que nunca foi solicitado assim, questões do material de espetáculos ser muito analisado", comentou uma atriz do espetáculo, segundo o ofício da Caixa.
O grupo alega que não teve a oportunidade de se defender e que a decisão foi unilateral. Na última quarta-feira, o MPF recomendou à Caixa Cultural que retomasse o contrato sob o argumento de que a Constituição garante a livre manifestação do pensamento e que o cancelamento abrupto do contrato não deu ao grupo o direito de se defender. O órgão determinou um prazo de cinco dias para que a instituição responda se vai ou não acatar a decisão, sob o risco de sofrer outras providências administrativas. A Caixa confirmou ao EL PAÍS ter recebido a notificação e diz que responderá dentro do prazo legal.
Os advogados Rodrigo Salinas, Kátia Catalano e Ana Carolina Capozzi —que trabalham em um escritório especializado na área cultural— afirmam ser comum em contratos de patrocínio cláusulas que impedem o patrocinado de ofender a imagem ou a marca do patrocinador, incluindo a atuação empresarial do Estado. Em casos de editais de fomento direto e leis de incentivo à cultura, onde a Administração Pública não é patrocinadora do projeto, essa cláusula seria ilegal. Como a Caixa é uma entidade da Administração Pública Indireta, os advogados entendem que a apuração de eventual quebra de contrato dependeria de um processo administrativo prévio, com a possibilidade de defesa pelo patrocinado antes da aplicação de qualquer sanção.
Questionada pelo EL PAÍS sobre a retirada da peça Gritos de sua programação, a Caixa se limitou a dizer que selecionou o espetáculo Aux Pieds de la Lettre dentre todo o repertório do grupo. A instituição também não comentou sobre a repercussão de que houve censura no caso dos dois grupos de teatro. "A gente está no meio dessas perguntas todas. Não estamos acusando a Caixa de ter retirado o espetáculo, estamos questionando o que determina qual obra pode ou não ser mostrada. A Caixa Cultural foi parceira para que este projeto se realizasse. E tem um trabalho cultural importante neste deserto de recursos que estamos passando", afirma Artur Luanda Ribeiro, ator e um dos diretores da Companhia Dos à Deux. Diante da repercussão do caso na imprensa e nas redes sociais, a companhia divulgou uma nota na qual afirma não ter feito nenhuma postagem referente à execução do projeto na Caixa Cultural de Brasília. Ressalta ainda não ter enfrentado qualquer intransigência dos funcionários da instituição.
Juan Arias: A estéril e mórbida impaciência do clã Bolsonaro
Há que se respeitar o que já foi conquistado
Às vezes, o Presidente Bolsonaro e seus filhos me lembram uma síndrome que um psiquiatra descobriu em uma criança. O pequeno não suportava esperar que um botão de rosa abrisse naturalmente suas pétalas para mostrar toda a sua beleza. De raiva, destruía o botão com suas mãos antes de dar-lhe tempo para abrir. Imagino que um dia se curaria daquela loucura, pois do contrário acabaria por destruir a si mesmo como despedaçava a rosa a qual não dava tempo de nascer.
Se alguma coisa um dia diferenciará o lulismo e o dilmismo do recém-nascido “bolsonarismo”, é que esse nasceu contra a natureza, sem respeitar o tempo de gestação. O bolsonarismo, além disso, não só é constituído de um líder, como sobre ele recai a força e a fraqueza de todo um clã familiar.
Hoje o Brasil e sua forma de Governo se parecem mais com uma dinastia imperial e uma família real, do que com uma democracia representativa. Não existe somente um presidente que organiza e cuida da nação, e sim um grupo familiar aguerrido, em cujas mãos se movimenta, querendo ou não, ainda que sabemos que quer, o ex-capitão do Exército, Jair Bolsonaro.
Às vezes chega a parecer que os que tomam as últimas decisões são seus descendentes, seus três filhos: Carlos, o vereador, Eduardo, o deputado federal, e Flávio, o senador. E é possível que também, ainda que em silêncio, sua própria esposa, Michelle, mesmo sendo notório que Bolsonaro não acredita muito na inteligência e competência das mulheres. Já defendeu que devem ganhar menos do que os homens.
Estamos, por isso, diante de uma maneira atípica de governar que mal começou seu percurso, e já se revela atropelando, impaciente, intolerante, de disse e não disse, de volta atrás de afirmações graves. Tudo isso é duplamente perigoso porque acaba sendo paralisante. Bolsonaro e a forma de governo que seu clã tenta impor, convencidos como estão e como verbalizou em público há pouco Carlos, o filho mais arrojado do clã, é que “a transformação que o Brasil quer não acontecerá por vias democráticas”. Por quais então?
A afirmação, a mais grave publicada até hoje desde os tempos da ditadura militar, foi longamente examinada, julgada e condenada pelas forças democráticas do país. É preciso, entretanto, insistir nisso, porque o Brasil, de acordo com os analistas nacionais e internacionais, está vivendo um de seus momentos mais incertos política e economicamente em décadas. Sua ainda frágil democracia pode se desfazer, atropelada pelos cavalos da pressa.
É uma época em que se quer negar a própria essência do brasileiro, que não é cultor da pressa, do atropelo, e sim do ritmo lento da natureza que o envolve e forjou sua identidade. Chamei o bolsonarismo que está nascendo e já assusta fora de suas fronteiras de estéril porque nunca a impaciência foi mestra da construção de um povo. O bolsonarismo que se tenta impor a esse país, que possui problemas graves que nunca foram totalmente resolvidos, não é um laboratório de reconstrução social, espiritual e cultural de um povo em que os marginalizados, que sempre foram a maioria, deveriam ter pressa em sair de seu inferno.
E, triste paradoxo, é justamente a impaciência dos que chegaram hoje ao poder, a que pode exasperar ainda mais profundamente a dor atávica dos excluídos do banquete dos privilegiados que se transformaram em donos do país. E nomeei de mórbida essa impaciência bolsonariana, porque de acordo com o dicionário se trata de algo “que se sente atraído obsessivamente pelo desagradável, o cruel, o proibido e exibe uma obsessão doentia pela morte”.
E isso porque a pressa e a impaciência atropelam qualquer possibilidade de devolver riqueza e dignidade aos que dessas coisas foram excluídos à força. Se o Brasil não precisava de algo, herança do lulismo e do dilmismo com suas luzes e suas sombras, é o galope de um cavalo desgovernado que destrói tudo o que encontra em seu caminho.
O bolsonarismo e seu clã um dia serão vistos como a experiência mais desastrosa que o Brasil poderia ter quando o mundo inteiro ameaça destruir as conquistas de civilização e liberdades que com tanta dor e às vezes sangue foram conquistadas.
Essa impaciência estéril de Bolsonaro é tão grande e perigosa que ainda não sabemos a que veio além de seu programa de discriminar os diferentes e colocar em julgamento os valores democráticos. E o presidente já está praticamente empenhado de corpo e alma em disputar as eleições de 2022, contradizendo suas promessas de campanha de que acabaria com a reeleição em um país no qual sempre os mesmos parecem governar.
O que parece identificar o bolsonarismo do militar reformado é a pressa em ver, em expressão sua nos Estados Unidos, recém-eleito, em “desconstruir” o país mais do que ajudar a melhorá-lo com a ajuda de todos. Parece interessar-se mais pelos escombros que vai criando em seu afã demolidor dos princípios do respeito às diferenças de pensamento, de credo e de maneira de viver, do que melhorar o já construído e devolver a justiça negada aos que nunca puderam se sentar à mesa dos satisfeitos.
A impaciência de Bolsonaro, seu desejo de querer criar um país à imagem de sua pressa e de sua paciência iconoclasta, parece um reflexo do simbolismo das armas que ele tanto ama e cuja imagem delas disparando sempre foi o sinal trágico dos gestos de suas mãos.
Sim, as armas têm pressa, são impacientes. Quanto mais rápidas e certeiras melhor, porque sua missão é matar, destruir, mais do que salvar. Rápidas, como gosta o governador do Rio, Wilson Witzel, quando diz que o policial deve disparar “na cabecinha”. E essa pressa da pólvora parece ter contagiado o atual Presidente desse império que é o Brasil, berço de milhares de experiências de vida e de superação mais do que de morte. De morte já bastam os índices anuais de 60.000 homicídios, as mulheres mortas e estupradas todos os dias pelos homens. Os brasileiros querem hoje que alguém lhes fale mais de vida do que de morte, de esperança do que de intemperanças.
Toda experiência política engendrada no caldo de cultura da impaciência e da destruição, é contra a natureza que só se descompõe quando é sobrecarregada pela pressa. Tudo o que nasce em nosso planeta leva a marca da paciência, da reflexão, do saber esperar e escutar as leis que o regem desde o início do Universo.
O exemplo de que o melhor que nasce no mundo precisa respeitar o tempo de gestação é a vida. A nossa e a de toda a natureza. Tudo precisa de um tempo para crescer e amadurecer. O ser humano poderia ser concebido e nascer imediatamente. Não é assim. O feto vai sendo gestado em silêncio e na espera. E assim é tudo, nascemos chorando, como ainda sentindo o peso do inacabado.
Essa reflexão me fez lembrar de uma de minhas experiências mais difíceis como jornalista e entrevistador na Itália. Foi com o à época famoso diretor e criador de um estilo novo de cinema, Federico Fellini, autor de obras imortais como Roma e A Doce Vida. O gênio era tímido como um adolescente. E não gostava de ser entrevistado. Chegava a dizer que ele “não existia”, que havia sido criado pelos jornalistas. Uma manhã, entretanto, acabou combinando comigo uma entrevista “rápida”, me disse.
Já me desmontou na primeira pergunta. Eu queria saber como ele tinha as ideias dos títulos de seus filmes. Ele, para sentir-se mais seguro, sempre usava um cachecol de lã, fosse inverno ou verão e com um chapéu de feltro. E durante a entrevista tinha diante de seus olhos folhas de papel em branco nas quais, para se distrair e não olhar o entrevistador, rabiscava. Fellini me contaria depois que seu primeiro amor havia sido desenhar quadrinhos.
Minha pergunta lhe pareceu boba. Demorou a responder. Após alguns segundos de reflexão me disse que não há milagres nas coisas que fazemos. Que tudo tem seu tempo e seu ritmo. Eu começo, afirmou, a trabalhar em um filme, as ideias vão surgindo, vou transformando-as em imagens e como acontece no milagre de um parto, o título vai se formando em minha mente, crescendo até que nasça sozinho.
É a diferença entre a pressa da impaciência mórbida e a sabedoria lenta da natureza, que não atropela, que sabe esperar até estar madura. Foi uma experiência que nunca esqueci e que hoje, com minha vivência, me confirma que tudo o que é filho da pressa inútil e dos atropelos e violências é infecundo e mortal.
Sou crítico ao bolsonarismo como já o fui com alguns outros ismos dos quais sofri pessoalmente e que costumam ser fruto mais do populismo e da pressa estéril do que da sabedoria que sabe usar mais a paciência do que o atropelo das armas.
Se o Brasil, como dizem, precisa ressuscitar de sua letargia e dos atropelos sofridos no passado, isso só será possível, mais do que destruindo, começando por respeitar o já conquistado, às vezes, com tanta dor e tantos tropeços. Sem pressas estéreis e mórbidas. E sem atalhos mortais.
El País: Estudantes lideram protesto global contra mudança climática às vésperas da cúpula da ONU
Milhões de pessoas saem às ruas para reivindicar medidas eficazes em defesa do meio ambiente, em manifestações em várias cidades do mundo. Greve desta sexta-feira culmina com uma manifestação em Nova York encabeçada pela ativista Greta Thunberg
Menos discursos e mais ação para deter o aquecimento global. Se nos últimos dias a ONU reiterou esta mensagem aos líderes mundiais que se reunirão na próxima segunda-feira na Cúpula do Clima em Nova York, nesta sexta centenas de milhares de estudantes gritarão o mesmo nas ruas. Dezenas de milhares já fizeram isso na Austrália e outros países do Pacífico, no início de uma mobilização escolar global para exigir medidas urgentes contra a catástrofe ambiental. De Sydney a São Paulo, passando por Berlim, Bruxelas, Washington e a Cidade do México, os alunos fecharão seus cadernos e participarão dos protestos, que devem ser gigantescos em cidades como Nova York, onde se espera a presença de mais de um milhão de pessoas. À frente desta marcha estará a ativista sueca Greta Thunberg, de 16 anos, impulsionadora do movimento Fridays for Future (“sextas-feiras pelo futuro”). Ao todo, estão programados mais de 5.000 atos em 156 países ao longo da semana, que terá seu auge na próxima sexta-feira, dia 27, em uma greve climática mundial, desta vez com a participação não só de estudantes, mas também de milhares de entidades da sociedade civil.
“Deixem de negar que a Terra está morrendo”, dizia um cartaz levado por um estudante no protesto de Sydney, enquanto as redes sociais mostram estudantes reunidos nas capitais de vários Estados australianos e também em localidades menores do interior, como Alice Springs. “Não começamos isso, mas estamos tentando combater”, dizia outro cartaz na manifestação de Sydney.
Nos protestos desta sexta-feira, inspirados por Greta Thunberg, os estudantes falam a uma só voz sobre os efeitos da mudança climática no planeta, que não são coisa do futuro, mas sim do presente.
O Acordo de Paris, selado em 2015 para conter o aumento de temperatura em dois graus Celsius —e na medida do possível deixá-lo em 1,5— com respeito aos níveis pré-industriais, não impediu que as emissões e as temperaturas tenham atingido níveis recordes recentemente, e que fenômenos meteorológicos extremos, como o furacão Dorian, sejam cada vez mais frequentes. “É preciso fazer as pessoas entenderem que há uma emergência climática hoje, que o problema da mudança climática é de hoje, que a saúde pública está ameaçada hoje, que o mar está subindo hoje, que as temperaturas já estão provocando problemas muito graves”, enfatizava nesta semana o secretário-geral da ONU, António Guterres, em uma entrevista ao Covering Climate Now, um consórcio global de mais de 250 meios de comunicação (inclusive o EL PAÍS) voltado para fortalecer a cobertura informativa sobre a luta contra a mudança climática, que tem seu próximo capítulo na cúpula da ONU na segunda-feira. Nesse dia, a organização reunirá os líderes mundiais para pressioná-los a apresentar planos mais exigentes para a redução das emissões, que permitam cumprir com a meta de Paris. Este processo continuará na cúpula climática de dezembro em Santiago (Chile).
Enquanto a ONU exige mais ambição dos Governos para combater a crise climática, a ser traduzida a medidas concretas que demoram para chegar —pois do contrário, as emissões de gases do efeito estufa, ao invés de se reduzirem em 45%, aumentarão 10%—, os jovens abraçaram a causa defendida por Greta Thunberg e estão mostrando o caminho. E há quem não esteja gostando. O ministro das Finanças da Austrália, Mathias Cormann, afirmou nesta quinta-feira ao Parlamento que os estudantes não deveriam participar do movimento de protesto. “Os estudantes precisam ir para a escola”, afirmou. Não é o que acham as autoridades de Nova York, que facilitaram a mobilização desta sexta-feira: 1,1 milhão de alunos de escolas públicas têm autorização para faltar às aulas. Também o secretário-geral da Anistia Internacional, Kumi Naidoo, dirigiu uma carta a 30.000 colégios do mundo pedindo a seus responsáveis que permitam aos alunos participarem das mobilizações desta semana.
A campanha está a caminho de se tornar a maior mobilização climática da história, e o Fridays for Future, a organização que canalizou os protestos ambientais dos estudantes em todo o mundo, já conta com uma lista de mais de 5.225 eventos em 156 países entre 20 e 27 de setembro, e outros se somam a cada dia. Os adultos se unirão aos jovens e, de fato, a plataforma 350.org estima que mais de 73 sindicatos, 820 organizações e 2.500 empresas já manifestaram seu apoio às greves.
CANOAS E ESCUDOS NAS ILHAS SALOMÃO
Os países insulares do Pacífico, os mais vulneráveis ao aumento do nível das águas por causa do aquecimento global, também participaram do protesto.
Os escolares das Ilhas Salomão, alguns armados com escudos e bandeiras, e outros em canoas, congregaram-se perto do mar para pedir ações contra a emergência climática.
Enquanto isso, estudantes de Kiribati (um país insular a nordeste da Austrália) faziam coro, com o punho erguido: “Não estamos nos afogando, estamos lutando”.
El País: Delação de Léo Pinheiro sacode política no Chile, Bolívia e Peru
Ex-presidente da OAS menciona pagamentos ilegais a dezenas de políticos, incluindo Bachelet, Evo Morales e Ollanta Humala. Delação foi homologada pelo STF após ficar meses parada na PGR
Num momento de escrutínio público da Operação Lava Jato no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) homologou um novo acordo de delação com informações que já agitam o mundo político na América Latina. Depois de ficar meses parado nas mãos da Procuradoria Geral da República, o depoimento do empreiteiro José Adelmário Pinheiro Filho, o Leo Pinheiro, ex-presidente global do grupo OAS, traz informações sobre seus negócios nos tempos do governo do ex-presidente Lula, e menciona ao menos três líderes da América Latina, entre eles Evo Morales, Michelle Bachelet e Ollanta Humala.
A homologação é a última etapa jurídica antes que seus relatos possam ser utilizados para respaldar investigações e processos judiciais. Pinheiro, que está prestes a ganhar prisão domiciliar, teve sua delação assinada no fim de 2018, mas ficou estacionada meses, sem nenhuma explicação, no gabinete da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que só a enviou para homologação no começo de setembro, quando faltavam duas semanas para que deixasse o cargo.
Alguns relatos de Pinheiro já tinham vazado extraoficialmente no noticiário e parte dessas versões já eram analisadas em processos judiciais no Brasil e em outros países. Mas só na semana passada boa parte dos crimes que ele diz ter praticado entraram oficialmente na mira da Justiça. A Folha e o Intercept anteciparam alguns trechos da delação nesta segunda. O EL PAÍS também teve acesso a uma proposta de delação premiada de Pinheiro, que estava disponível em conversas, de junho de 2017 no Telegram, enviadas ao site The Intercept. Cada possível crime abordado por Pinheiro em sua proposta de delação foi detalhado em depoimentos gravados em vídeo a procuradores antes de serem homologados pela Justiça.
Do rol de políticos acusados por ele, que inclui governadores, senadores e deputados brasileiros, o único presidente da América Latina que ainda está no poder é o boliviano Evo Morales. O EL PAÍS confirmou que na delação homologada pelo STF Morales e outros ex-presidentes latino-americanos foram mencionados, conforme a proposta de delação vista pela reportagem. Todas as informações se cruzam com supostos pedidos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, enquanto ainda era presidente do Brasil.
Segundo Pinheiro, Lula lhe pediu para que assumisse uma obra de trecho da rodovia Tarija-Potosí na Bolívia que estava com problemas e era de responsabilidade de outra empreiteira brasileira, a Queiroz Galvão, para evitar um desgaste diplomático entre os países. Pinheiro diz ter explicado que esse projeto era inviável economicamente, mas diz ter ouvido de Lula que Morales “estaria disposto a compensar economicamente a empresa” com outro contrato para que assumisse a obra problemática. O empreiteiro diz ainda que Lula prometeu a liberação de um financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) se a OAS assumisse o projeto.
Por um acordo de Lula e Morales, diz Pinheiro, a Bolívia retirou sanções impostas contra a Queiroz Galvão e autorizou que a OAS assumisse as obras da estrada Tarija-Potosí. Pinheiro cita, ainda, como compensação o fato da empreiteira ter conquistado a construção de estrada em Villa Tunari. No entanto, a OAS acabou perdendo o contrato, segundo Pinheiro, devido a conflitos sociais na região e à demora na liberação de recursos do BNDES.
O assunto repercutiu no cenário político boliviano, com a oposição a Morales cobrando investigações sobre os fatos. O ministro das Comunicações, Manuel Canelas, no entanto, rebateu as menções, exigindo “provas” das acusações, segundo o jornal boliviano La Razón. O embaixador boliviano no Brasil, José Kinn, disse também ao La Razón que se Pinheiro efetivamente firmou a delação com essas informações sobre Morales, são “declarações no marco de um acordo judicial de delação sobre algo que nunca existiu. Que o presidente Morales tenha atuado, a pedido de Lula, para entregar uma obra sem licitação” à OAS.
Pinheiro também mencionou Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile (exerceu dois mandatos, entre 2006-2010 e entre 2014-2018), como beneficiária de pagamentos da empreiteira. De acordo com Pinheiro, a OAS temia perder a obra da construção da Ponte Chacao, em consórcio com a coreana Hyundai, caso Bachelet ganhasse a eleição de 2013. Pinheiro disse ter pedido ajuda a Lula, que respondeu que falaria com o ex-presidente Ricardo Lagos e/ou Bachelet, para que a OAS não fosse prejudicada.
Pouco depois disso, Pinheiro diz ter recebido de Lula um pedido de dinheiro para a campanha de Bachelet. O primeiro pagamento, relatou o ex-presidente da OAS, só foi feito em 6 de junho de 2014, quando Bachelet já tinha reassumido a presidência. Pinheiro disse que foram pagos 101,6 milhões de pesos chilenos, repassados por contrato fictício com a empresa Martelli y Associados, que pertencia ao chileno Nicolás Martelli Montes. Bachelet, que hoje ocupa o posto de alta comissária para Direitos Humanos na ONU, rechaçou a versão de Pinheiro com quem diz nunca ter tido vínculo e considerou estranho ele ter falado sobre o assunto em uma delação que vem à tona agora. “Há um ex-presidente, Lula, que diz que isto é falso, e há o ex-presidente Lagos que diz nunca ter falado de dinheiro com Lula. Estamos em um nível de especulação... e eu não farei novas especulações”, disse Bachelet em entrevista a uma televisão do Chile. Uma procuradora chilena, Ximena Chong, chegou a viajar ao Brasil no ano passado para ouvir Pinheiro sobre as acusações que já haviam vazado, mas este preferiu não falar.
Outro ex-presidente da América Latina citado por Pinheiro em seu acordo de delação é Ollanta Humala, presidente do Peru entre 2011 e 2016. Humala e sua mulher já foram presos por suspeitas de lavagem de dinheiro num caso envolvendo a empreiteira brasileira Odebrecht, investigado pela procuradoria daquele país. No caso da OAS, Pinheiro diz que foram gastos pela empreiteira cerca de 859.000 reais com uma empresa do publicitário brasileiro Valdemir Garreta, que atuou na campanha de Humala em 2011.Pinheiro disse também que custeou serviços de comunicação prestados por Garreta para Susana Villarán, então prefeita de Lima.
A defesa de Humala no Brasil rebateu as declarações de Pinheiro. "Essa alegação do Leo Pinheiro é mentirosa”, afirmou o advogado Leonardo Massud, que representa o ex-presidente peruano no Brasil. “Tenho conhecimento de que houve contrato com Valdemir Garreta pra fazer campanha, mas essa declaração [de que dinheiro da OAS custeou a campanha] não condiz com a realidade", acrescentou.
Garreta, por sua vez, fez acordo de delação premiada com o Ministério Público do Peru e o EL PAÍS apurou que ele deu a mesma versão de Pinheiro aos procuradores peruanos, de que recebeu pagamentos da OAS para custear a campanha de Humala. Em depoimento à Justiça Federal do Paraná nesta segunda-feira, Garreta confirmou também a versão de Pinheiro, de que recebeu dinheiro da empreiteira para a campanha de Humala. “Eu fiz uma campanha presidencial no Peru em 2011... o primeiro candidato que eu ajudei a eleger era um presidente de direita no Peru que se chama Ollanta Humala. Fizemos a campanha dele. A OAS financiou a nossa prestação de serviço. Ganhamos a eleição, criamos um prestígio profissional muito grande no Peru”, afirmou. Massud, no entanto, questiona o posicionamento de Garreta. “É bom destacar que na Operação Lava Jato, há vários casos em que pessoas dizem ter recebido dinheiro a um título [por alguma razão], mas receberam por outra razão ou mesmo ficaram com os recursos, dado que nessas operações havia pouco controle, pois muitas dessas ações eram feitas na base da confiança”, diz o advogado de Humala.
Triplex
O ex-presidente da OAS revelou fatos que considera serem criminosos, entre os quais as supostas negociações comprometedoras com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, incluindo a polêmica reserva e reforma de um apartamento triplex no Guarujá, no litoral paulista, pela qual ele mesmo já foi condenado com o ex-presidente. Pinheiro já havia falado a respeito do triplex, em juízo, ainda como testemunha no processo contra o Lula. Seu depoimento foi decisivo para determinar a prisão do ex-presidente, em 2018.
Quando começou a negociar seu acordo de delação premiada, em 2016, Pinheiro negava que a reforma do triplex tivesse sido uma forma de repasse de propina. Mas posteriormente em depoimento à Justiça assumiu que essa benfeitoria saiu da cota de propinas que o PT tinha direito por contratos da OAS com a Petrobras e, depois de condenado, Pinheiro manteve a mesma versão em sua proposta de delação premiada, de que a reforma e a reserva do apartamento eram propina.
A defesa de Lula já declarou que as alegações de Pinheiro são mentirosas e que são parte de uma perseguição política contra o ex-presidente. Em entrevista ao EL PAÍS, Lula citou a delação de Pinheiro. “O Leo [Pinheiro], que estava preso aqui [em Curitiba] e fez a denúncia contra mim, passou três anos dizendo uma coisa e depois mudou o discurso. Meu advogado perguntou o porquê disso e ele disse ‘meu advogado me orientou’”.
Reportagem do Intercept em conjunto com a Folha de S. Paulo, publicada em julho deste ano, também revela detalhes das conversas entre procuradores de Curitiba em que eles constatam que a delação, inicialmente, era “muito ruim”, uma vez que ele negava inicialmente que o triplex do Guarujá era fruto de propinas de corrupção. A sua versão mudou quase um ano depois, como mostraram as mensagens trocadas pela força-tarefa, e analisadas pela Folha/Intercept. Mas Pinheiro refuta que houve mudanças. Quando ainda estava preso em Curitiba, Pinheiro chegou a enviar uma carta para contestar a reportagem e assegurar que não mudou a versão de sua delação.
O acordo de Leo Pinheiro foi fechado pela PGR pelo fato dele mencionar políticos com foro privilegiado, que são julgados diretamente pela Suprema Corte. Mas, para além da demora em fechar o acordo e da suposta mudança de versões para acusar Lula, a delação ficou marcada por outro episódio. Seis procuradores chegaram a pedir demissão coletiva do gabinete de Dodge, porque discordaram do pedido da chefa, de arquivamento sumário de algumas acusações feitas por Pinheiro. Dentre elas, uma que envolvia, por exemplo, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. O STF acatou o pedido de Dodge e tirou esses trechos da delação.
Colaboraram Rocío Montes (Chile), Jacqueline Fowks (Peru) e Fernando Molina (Bolívia).
El País: O inédito respaldo do Planalto a garimpeiros de áreas protegidas na Amazônia
Um semana após bloquear a BR-163 no Pará, grupo que atua ilegalmente em floresta nacional é recebido por ministros. Em meio à crise na região, eles pressionam o Governo a proibir que o Ibama queime máquinas durante fiscalização
Representantes de garimpeiros, que atuam em exploração ilegal em áreas da floresta nacional do Crepori, no Pará, receberam um inédito respaldo do Governo Federal, ao se reunir com várias autoridades do primeiro escalão do Planalto. Entre elas estavam o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles. O grupo conseguiu o encontro em Brasília, realizado nesta segunda-feira, 16 de setembro, após bloquear, na semana passada, trecho paraense da rodovia BR-163. Protestavam contra a atuação de fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), do Instituto Chico Mendes (ICMbio) e agentes da Força Nacional. A ação dos fiscais, feita uma semana antes do bloqueio, terminou com a queima de retroescavadeiras e maquinários usados pelos invasores, uma prerrogativa legal que os agentes possuem. Os garimpeiros agora pressionam Salles para rever essa lei e punir os servidores.
"Nós precisamos, com urgência, no prazo de uma semana, apresentar ações que foram feitas de forma truculenta e arbitrária onde destruíram maquinários fora da lei. O ministro [Ricardo Salles] exigiu na mão para abrir sindicância contra os agentes [do IBAMA]", diz um homem em áudio de WhatsApp ao qual o EL PAÍS teve acesso. Identificado como Fernando Brandão, ele enviou a mensagem em um grupo do aplicativo usado pelos garimpeiros depois de ter sido recebido em Brasília junto com outros representantes.
A reunião com os garimpeiros foi confirmada pela a própria Casa Civil em nota publicada na segunda-feira, apesar de o encontro não constar na agenda oficial da pasta. Lorenzoni assegurou que a gestão Jair Bolsonaro (PSL) se compromete a buscar "uma solução estruturante e de longo prazo para as demandas trazidas pelos garimpeiros", afirma a nota, que ainda destaca uma frase do próprio ministro em que fala do respeito "ao setor produtivo" por parte do Governo: "Em duas semanas nos reuniremos novamente e apresentaremos nossas propostas de soluções para a questão da regularização fundiária e a exploração mineral em terras indígenas". A Casa Civil voltará a se reunir com os representantes no dia 2 de outubro.
A quantidade de autoridades que participaram dão o peso do encontro. Além de Salles e Lorenzoni, estiveram presentes os ministros da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos; da Secretaria Geral da Presidência, Jorge Oliveira; e do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno. Compareceram também o advogado-geral da União, André Mendonça, secretários das pastas de Minas e Energia, Infraestrutura e Agricultura, além dos presidentes do IBAMA, do INCRA e da FUNAI, parlamentares da região e o secretário da Casa Civil do Governo do Pará. "Outras pessoas que acompanham o assunto disseram que nunca houve tanto ministro para atender a gente numa reunião dessa", celebrava outro garimpeiros em áudio distribuído num grupo de WhatsApp. "Foi um feito muito grande o que nós fizemos com essa paralisação. Todos estão de parabéns".
O EL PAÍS enviou nesta terça-feira uma série de perguntas para os Ministérios da Casa Civil, do Meio Ambiente, de Minas e Energia, além do IBAMA. Até o fechamento desta edição somente Minas e Energia respondeu o e-mail, limitando-se a dizer que o titular da pasta, Bento Albuquerque, está em Viena em compromisso oficial. Também indicou que qualquer reunião de seus secretários deveria ser consultada na agenda oficial.
Aposta pelo garimpo em área protegida
Desde que o aumento do desmatamento e dos incêndios na Amazônia desatou uma crise nacional e internacional para o Governo Bolsonaro, especialistas e ambientalistas vêm alertando que a retórica do presidente vem encorajando a ação de grileiros e garimpeiros. O mandatário ultradireitista ganhou as eleições prometendo acabar com "a farra das multas do IBAMA" e legalizar atividades econômicas em terras indígenas e reservas ambientais. A gestão do ministro Salles vem se destacando pelo estrangulamento financeiro dos órgãos de fiscalização e críticas às políticas da pasta. No dia 21 de julho, em uma de suas várias manifestações sobre o tema, o presidente Bolsonaro prometeu que sua administração iria propor projetos para legalizar garimpos.
No grupo de WhatsApp, os garimpeiros discutem as promessas. "Marcaram uma nova audiência para o dia 2 [de outubro]. Até lá eles vão rever a lei sobre as queimadas de máquinas e sobre as APAS [Áreas de Proteção Ambiental], FLONAS [Florestas Nacionais] e reservas indígenas", disse outro garimpeiro num áudio obtido pelo EL PAÍS. "Até o dia 2 nós estamos calçados, entendeu? Não sei ainda se eles falaram alguma coisa de que não vão fazer nada até lá, mas é praticamente isso que foi acordado", acrescentou.
"Neste ano aumentou a pressão em áreas protegidas, porque estamos num momento deliberado em que o Governo dá sinais de que tolera esse tipo de coisa em unidades de conservação e terras indígenas", afirmou ao EL PAÍS o engenheiro Tasso Azevedo, coordenador da MapBiomas, ONG que trabalha com imagens de satélites detalhadas para identificar quais áreas foram desmatadas. "Desmatamento é função direta da expectativa de impunidade. Porque desmatar custa caro, não é barato. Dar o sinal de que vai legalizar invasões em áreas protegidas ao mesmo tempo que desmantela o IBAMA é a mesma coisa que dizer 'pode ir lá", acrescentou, em entrevista ao jornal na semana passada.
Enquanto convocavam a manifestação na BR-163, na semana passada, garimpeiros falavam entre si sobre as promessas de legalizar garimpos feitas pelo presidente, segundo áudios de WhatsApp obtidos pelo jornal Folha de S. Paulo. “Cadê você, Bolsonaro, que ia fazer alguma coisa e não era para botar fogo. Por que não levaram preso, para doar para alguma instituição. Essa é a ordem do nosso presidente, que nós votamos nele. Olha aí”, reclamou um garimpeiro em um dos áudios. Um colega chegou a sugerir que fiscais do IBAMA fossem presos dentro da floresta nacional durante a operação na semana anterior, que resultou na queima das máquinas usadas para devastar a floresta. "Bicho, eu acho que tinha que trancar essa saída dessas camionetes aí. E chamar a população e não deixar esses ‘fdp’ sair daí de dentro. Rapaz, isso aí não tem ordem do Governo para fazer isso aí, não. [...] O Governo é a favor da garimpagem, pô. Isso está fora da lei. Tem que prender esses vagabundos aí. A população da Moraes [de Almeida, vila de Itaituba], os garimpeiros da Moraes, tem quantos mil garimpeiros na Moraes? Um prejuízo desse aí. Junta todo mundo e tranca eles aí".
Em resposta aos protestos, Lorenzoni gravou um vídeo em que confirmava a reunião que aconteceu nesta segunda-feira e pedia para que os garimpeiros desbloqueassem a estrada. A BR-163 dá acesso a municípios como Novo Progresso, Itaituba e Trairão, que ficam nos arredores de importantes reservas ambientais. Um deles é o Parque Nacional do Jamanxim, um dos que mais sofrem com a desmatamento no país.
Para cumprir a promessa e liberar a mineração em territórios indígenas, Bolsonaro terá que propor a regulamentação de um artigo da Constituição que diz ser "necessária lei ordinária que fixe as condições específicas para exploração mineral e de recursos hídricos" nesses territórios. Como não foi regulamentado desde 1988, ano da promulgação da Carta Magna, a atividade permanece ilegal. A Carta também determina que "apenas os índios podem usufruir das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existente", além de deixar claro que "o aproveitamento dos seus recursos hídricos, aí incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, só pode ser efetivado com a autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra".
Pesquisa da consultoria Atlas Político divulgada pelo EL PAÍS mostrou que mais de 80% dos brasileiros se posicionam contra o garimpo e o desmatamento nas reservas ambientais e indígenas ou defendem a prisão dos grileiros que venham a ser responsabilizados pelos incêndios. Além disso, 67% concordam que a Amazônia vive uma crise ambiental. Mostraram-se divididos, porém, com relação ao papel do Governo Bolsonaro: 45,8% acreditam que o presidente é responsável pelo aumento do desmatamento, enquanto 47,5% discordam.
Entre 1º de junho e 7 de setembro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) alertou para o desmatamento de 12.269 quilômetros da Amazônia brasileira. Os municípios paraenses de Altamira, São Félix do Xingu e Novo Progresso estão em primeiro, segundo e quinto lugar, respectivamente, no ranking dos municípios com mais desflorestamento. Além disso, somente em agosto foram detectados 39.177 focos de queimadas na Amazônia brasileira, sendo 10.185 no Pará. No mesmo mês de 2018 o INPE registrou 15.001 incêndios na selva amazônica, dos quais 2.782 ocorreram no Pará. A disparada é mais que evidente. O Pará vem liderando durante os últimos 13 anos o desmatamento na Amazônia, segundo os dados anuais do INPE.
El País: Brasil só julgou 14 dos 300 assassinatos de ambientalistas da última década
ONG Human Rights Watch documenta a impunidade das máfias de madeireiros ilegais que impulsionam o desmatamento
Mesmo antes de Jair Bolsonaro virar presidente e levar à cúpula do poder seu discurso contra os ativistas que defendem a natureza, o Brasil já era o país mais perigoso do mundo para os ambientalistas (uma classificação em que foi superado pela Colômbia em 2018). São crimes que na imensa maioria dos casos não foram esclarecidos, nem sequer julgados. Dos 300 defensores da Amazônia brasileira assassinados na última década, só 14 casos acabaram diante de um tribunal, revela a organização não governamental Human Rights Watch (HRW) no relatório intitulado As Máfias da Floresta Tropical, divulgado nesta terça-feira.
Na semana passada, um funcionário do Instituto Brasileiro do Meio-Ambiente (Ibama) foi assassinado com dois tiros quando circulava de moto em São Luís, no Maranhão. Em março, Dilma Ferreira da Silva, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), foi assassinada na região de Tucuruí, no Pará. A força-tarefa da Polícia Civil confirmou que Silva, seu esposo e um amigo do casal foram assassinados a mando do grileiro Fernando Ferreira Rosa Filho, conhecido como “Fernandinho”. O mandante era vizinho do assentamento que os ativistas viviam e queria as famílias fora da área.
A ONG de defesa dos direitos humanos destaca o trabalho que essas pessoas realizam para a preservação da flora e da fauna, além de alertar às autoridades sobre uma área que abrange 60% do território brasileiro. É o caso de Olimpio Guajajara, que patrulha com 123 membros de sua comunidade um território equivalente ao triplo do município de São Paulo. A HRW detalha o enorme grau de impunidade dessas organizações criminais, que têm a capacidade logística de coordenar a extração, processamento e venda de madeira em grande escala na maior floresta tropical do mundo. O corte ilegal costuma ser o primeiro passo para depois dedicar a terra a cultivos ou pastagens. Por isso os madeireiros são os principais responsáveis pelo desmatamento ilegal, que disparou, segundo dados oficiais preliminares, desde que Bolsonaro chegou à presidência, em janeiro.
Quando o Brasil assinou o Acordo de Paris contra a Mudança Climática, também se comprometeu a acabar com o desmatamento ilegal, recorda a HRW. No entanto, o desmatamento vem aumentando desde 2012. A ONG acusa o atual presidente de ter, com seu discurso e suas ações, dado luz verde às quadrilhas implicadas no desmatamento ilegal. E acrescenta que, desse modo, Bolsonaro “põe os defensores da Amazônia e a própria Amazônia em grave perigo, além de solapar a capacidade do Brasil de cumprir seu compromisso de reduzir as emissões de gases de efeito estufa e contribuir para mitigar o aquecimento global”.
Como recorda a HRW, o mandatário minou a fiscalização das leis ambientais (as inspeções e as multas desabaram) e enfraqueceu as agências ambientais federais (o ministro do setor, Ricardo Salles, demitiu em apenas um dia a 21 dos 27 diretores regionais do Ibama).
A impunidade, de todo modo, vem de longe. Dos 28 assassinatos, quatro tentativas de homicídios e 40 casos de ameaças atribuídos a madeireiros ilegais desde 2015 e analisados detalhadamente pela HRW, só duas das mortes foram levadas a juízo. Embora admita que as investigações são frequentemente complexas por se tratar de crimes ocorridos em lugares muito remotos, o relatório também salienta que as polícias locais frequentemente demonstram um notável desinteresse em perseguir os suspeitos. “Ao não investigar as ameaças de morte, as autoridades estão renunciando ao seu dever de tratar de prevenir a violência dos grupos criminosos envolvidos no desmatamento ilegal, aumentando a probabilidade de que as ameaças sejam concretizadas.”
A ONG exigiu que o Ministério da Justiça elabore com o Ministério Público, as polícias e as agências ambientais um plano de ação para conter a violência e intimidação contra os ativistas e para desmantelar essas redes criminais. Também pede à Procuradoria Geral da República que faça desse assunto uma prioridade.