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Eliane Brum: Um Cristo amazônico... e mulher?

Por que um encontro de católicos assusta Bolsonaro, os generais e os destruidores da floresta

Dizem que Deus tem senso de humor. Para alguns, um senso de humor bastante estranho. Talvez isso explique como num mundo povoado por déspotas de direita —Donald TrumpJair Bolsonaro, Viktor Orbán, Recep Erdogan, Rodrigo Duterte etc— e de esquerda —Daniel Ortega e Nicolás Maduro—, aquele que desponta como o mais importante defensor da democracia, da igualdade e da diversidade seja justamente o representante de uma instituição paquidérmica e com um passado bastante tenebroso. Papa Francisco é puro alento para quem testemunha o autoritarismo se alastrar pelo mundo. Em especial quando faz um discurso como o da abertura do Sínodo da Amazônia, no domingo de 6 de outubro: “Deus nos preserve da ganância dos novos colonialismos. O fogo ateado por interesses que destroem, como o que devastou recentemente a Amazônia, não é o do Evangelho. O fogo de Deus [...] alimenta-se com a partilha, não com os lucros. [..] O fogo devorador alastra quando se quer fazer triunfar apenas as próprias ideias, formar o próprio grupo, queimar as diferenças para homogeneizar tudo e todos”. O recado é claro como água benta. Expressa também o anseio de que o Sínodo da Amazônia seja “histórico” e marque um reposicionamento da Igreja Católica, o que tem assustado desde bispos e fiéis ultraconservadores até o antipresidente Jair Bolsonaro (PSL), seus generais, grileiros e exploradores da Amazônia.

Fazia muito tempo que uma reunião da Igreja Católica não recebia tanta atenção. Tanta que até nos interiores de Mato Grosso do Sul surgiram outdoors: “Por Igrejas Sem Partido: Não ao Sínodo da Amazônia”, numa paródia com o projeto ideológico “Escola Sem Partido”, que busca censurar conteúdos e professores nas escolas. Bolsonaro e seus generais colaboraram bastante para aumentar as expectativas referentes ao Sínodo, ao considerarem o encontro uma ameaça à soberania nacional, admitirem que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) está monitorando a reunião e forçar a diplomacia brasileira a passar o vexame de pedir para o governo participar – e ouvir um “não” como resposta.

O Sínodo da Amazônia foi idealizado quando a ideia de Bolsonaro ser presidente do Brasil era só uma piada ruim. Sua concepção surgiu tanto do conhecimento do Papa Francisco sobre o papel da maior floresta tropical do mundo na emergência climática quanto da percepção dos bispos da região da acelerada destruição do bioma e de seus povos. No Brasil, a devastação e as políticas contra as populações da floresta já tinham avançado nos governos de Dilma Rousseff (PT) e se acelerado com Michel Temer (MDB). Com Bolsonaro, têm alcançado níveis de tragédia. O aumento dos alertas de desmatamento e dos incêndios em 2019 colocaram o planeta em estado de alarme, gerando uma crise internacional e dando um significado ainda maior para o Sínodo.

Por obra e graça do Papa, a Amazônia estará no noticiário até pelo menos 27 de outubro, quando a reunião que reúne 185 bispos, 57 deles brasileiros, além de especialistas e convidados, será encerrada com um documento que irá balizar e sustentar a atuação da Igreja Católica na região. Embora a Amazônia se espalhe por nove países, é o Brasil que abriga 60% da floresta e é o Brasil que tem um governante cujo principal projeto é abrir a floresta para a exploração predatória, gerando uma crise internacional após outra.

Em seu discurso na abertura da Organização das Nações Unidas, Bolsonaro chegou a atacar Raoni, um dos maiores líderes indígenas do país, indicado para o Nobel da Paz, assim como negar as chamas que o mundo inteiro testemunhou por imagens. O pânico que a irresponsabilidade violenta de Bolsonaro tem provocado multiplicou a atenção do planeta para o Sínodo e emprestou ao Papa Francisco luzes ainda mais celestiais em meio às trevas do autoritarismo.

O Papa compreendeu cedo que o desafio é o clima, mas enfrenta o desafio de empurrar uma instituição pesada e lenta para a vanguarda

O documento “Instrumentum Laboris”, elaborado para orientar os debates do Sínodo a partir da consulta a mais de 80 mil pessoas na Amazônia, defende exatamente o oposto do que é a política do governo brasileiro para a floresta. E reivindica um outro tipo de desenvolvimento, colocando a Amazônia no centro e os povos da floresta como protagonistas. Enquanto o Bolsonaro quer assimilar os indígenas para mudar a Constituição e abrir as terras hoje públicas e protegidas para terras para exploração e lucros privados, o Sínodo propõe um Cristo com “face amazônica”. Um dos principais caminhos seria a "interculturação", uma ideia de que a Igreja deve se abrir para os conhecimentos dos povos indígenas e ser mudada por estas outras experiências de ser e de apreender o mundo. Uma espécie de multiculturalismo ao modo do Vaticano.

A ideia da Amazônia como “Casa Comum”, propagada pelo Papa Francisco, é compartilhada pela juventude que protagoniza os grandes protestos pelo clima, inspirada pela adolescente Greta Thunberg. A ativista alertou que “Nossa casa está em chamas”, referindo-se à emergência climática vivida pelo planeta, muito antes de o presidente francês Emmanuel Macron usar uma frase similar para referir-se aos incêndios da Amazônia, o que provocou ataques de Bolsonaro que viu na afirmação uma “ameaça à soberania”. O documento que resultará de 21 dias de debates deverá ser levado em dezembro à Cúpula do Clima, no Chile, esta que Bolsonaro não quis que acontecesse no Brasil.

O Papa está afinado com sua época e compreendeu antes da maioria das pessoas públicas do mundo que o grande desafio é o clima. Para isso precisa escolher desafinar dos déspotas que se alastram como peste e, ao mesmo tempo, empurrar uma Igreja que se move muito lentamente para um papel de vanguarda. O Papa parece ter entendido que o tempo mudou. Em todos os sentidos. Se sua Igreja entendeu é o que veremos.

Os idealizadores do Sínodo da Amazônia têm a ambição de que a reunião possa significar um marco histórico para o reposicionamento da Igreja Católica, um novo momento de “opção pelos pobres” a partir da Amazônia e da crise climática. Também o Papa propõe um deslocamento da Amazônia para o centro, lugar que ela obrigatoriamente ocupa, mas que não é nem compreendido nem reconhecido por governantes e também por parcelas da população.

Ordenar homens casados e dar oficialmente mais poder às mulheres estão entre as estratégias em debate para enfrentar a perda de fiéis para os evangélicos

O Sínodo tem ainda o desafio de solucionar problemas bem urgentes da própria Igreja Católica na região amazônica, como a crescente e acelerada perda de fieis para as igrejas evangélicas, em especial as neopentecostais. Segundo pesquisa do Datafolha, a região é a única em que há o mesmo número de católicos e de evangélicos no Brasil. No restante do país, os católicos ainda são maioria, mas diminuindo a cada pesquisa. No Xingu, por exemplo, há 800 comunidades e apenas 30 padres, a maioria com mais de 65 anos e dificuldades para se deslocar numa região difícil. Entre os temas mais espinhosos do Sínodo está a possibilidade de abrir espaço para a ordenação de homens casados, com “uma vida cristã exemplar”, o que tornaria possível que indígenas pudessem se tornar essa figura inédita. Se isso acontecer, a Igreja Católica pode mudar a correlação de forças com os evangélicos e aumentar sua presença desde dentro, o que é uma mudança enorme para quem acompanha a trajetória desta instituição de dois milênios.

A Igreja Católica também tem sofrido grande pressão para reconhecer a importância das mulheres, abrindo mais espaço formal para elas, como a possibilidade de presidir a eucaristia. O protagonismo das mulheres é um fato na Amazônia brasileira, onde elas já lideram uma parcela significativa dos movimentos sociais e das comunidades. As freiras costumam estar muito mais presentes e inseridas no cotidiano e nas lutas que os padres. É raro encontrar um movimento de emancipação que não tenha uma freira ocupando um lugar chave. Lacrar os olhos para a realidade explícita, recusando às mulheres a necessária resposta oficial, é uma estupidez que tem custado caro à Igreja Católica. Uma estupidez, porém, que é abraçada com adoração pelos católicos ultraconservadores, como se pode perceber pela sua reação carregada de rancor às propostas de inovação do Sínodo. Estes dias de outubro no Vaticano podem mostrar que pode ser mais fácil conferir feições amazônicas a Cristo do que dar a ele um rosto de mulher.

O Sínodo da Amazônia pretende – e vai – afetar muito mais do que o mundo católico. Para nos ajudar a compreender o que está em debate, entrevistei o padre argentino Augusto Zampini-Davies, hoje diretor de Desenvolvimento e Fé do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, no Vaticano. Um dos especialistas que elaborou o “Instrumentum Laboris”, documento que deu as diretrizes e conduz os debates no Sínodo, aos 50 aos ele é também um dos mais influentes teólogos que representam e difundem o pensamento do papado de Francisco. Formado em Direito, filho de tradicional família argentina, antes de ser padre e se tornar um PhD em Teologia, trabalhou com bancos e multinacionais, o que teria dado a ele o conhecimento profundo de como negociam os que hoje com frequência combate. Segundo a imprensa italiana, recebeu “o chamado para mudar” numa viagem com a namorada. E mudou.

Augusto Zampini

Augusto ZampiniREPRODUÇÃO TWITTER

A entrevista foi feita por Skype dias antes do início do Sínodo da Amazônia. Ela mostra por que o Papa Francisco usou 13 vezes a palavra “fogo” em seu discurso de abertura.

Pergunta. O Sínodo fala sobre “Novos caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral". Isso implica uma autocrítica da Igreja Católica sobre a sua atuação na Amazônia?

Resposta. Não necessariamente. Implica que os caminhos atuais, ou os antigos, não alcançam responder à realidade atual. Nunca havíamos vivido uma escala de exploração e de destruição de populações indígenas e de ecologia integral como a que vivemos hoje. Necessitamos novos caminhos, primeiro, para responder a essa realidade nova. Não se pode responder a um problema novo com uma solução antiga. A Igreja também vai evoluindo, vai mudando. Alguns contextos, inclusive dentro da Igreja, têm que ser revisados.

P. Mas, no passado, a igreja foi uma grande destruidora de culturas indígenas e da floresta...

“A Igreja não quer estar ao lado dos opressores e dos neocolonizadores”

R. Exato. O ser humano sempre mudou o meio ambiente, não? Mas é certo que na época da colonização, os colonizadores, os que vinham em nome de imperadores católicos, vinham com uma ideia de colonizar e de explorar. Por sorte que havia missionários católicos também que tratavam de frear isso. O certo é que agora temos uma oportunidade histórica de esclarecer que a Igreja está do lado do pobre, do lado dos oprimidos, do lado do cuidado, do lado da criação. E essa é uma oportunidade histórica. Não só para sanar feridas passadas, mas também para marcar um rumo em direção ao futuro. Não queremos estar ao lado dos opressores e dos neocolonizadores.

P. Neocolonizadores?

R. Podemos dizer opressores ou neocolonizadores, que é o nome dado àqueles que defendem um determinado modelo que oprime as pessoas ou destrói o planeta. O que acontece hoje em dia é que algumas opressões são um pouco mais sutis. Assim, muita gente acredita que não seriam opressores, porque supostamente estariam promovendo um determinado modelo de agroindústria, o que traria benefícios para o país. Nós dizemos: isso é exploração. Isso é uma exploração que está destruindo a Amazônia e que está destruindo esses povos.

P. Quando o senhor se refere a neocolonizadores, está se referindo, por exemplo, aos ruralistas no Brasil?

R. Estou me referindo à exploração, ao desmatamento irracional em nome da agroindústria. O que ocorreu com os incêndios na floresta é um exemplo. Estamos nos referindo à exploração da mineração, a ilegal, mas também a legal, que às vezes é legal apenas porque tem autorização, mas está invadindo territórios indígenas. E estamos nos referindo à indústria do petróleo. Estamos nos referindo aos que contaminam a floresta, os rios, e estamos nos referindo também aos grandes megaprojetos, os que se dizem a favor do desenvolvimento latino-americano, mas que estão destruindo o coração da América Latina e o coração do mundo.

P. Quando se fala em novos caminhos para a Igreja, de que forma isso atinge as mulheres da Igreja que estão atuando na floresta? Quem acompanha o cotidiano na Amazônia percebe claramente que as freiras têm muito mais presença e protagonismo, pelo menos na Amazônia brasileira, do que os padres. Mas elas não têm o mesmo reconhecimento, não podem fazer o que os padres fazem, o que é uma limitação que tem afetado a Igreja. Tanto que a grande mártir deste século é uma freira, a missionária americana Dorothy Stang, que foi assassinada a tiros em Anapu, no Pará, em 2005, por defender projetos de desenvolvimento sustentável de pequenos agricultores.

“As mulheres dizem: “Nós não queremos ser cidadãs de segunda classe dentro da Igreja”

R. Na realidade, não temos muitos padres na Amazônia. E as comunidades necessitam líderes. E há comunidades na Amazônia que são matriarcados, cujas líderes são mulheres. E há outras comunidades onde, ainda que não sejam matriarcados, as mulheres têm uma participação importante. Isso surgiu no processo de consulta, que durou mais de um ano e meio. Fizemos mais de 350 assembleias locais e foram consultadas mais de 80 mil pessoas. O tema da mulher saiu com força neste processo, porque as mulheres dizem: “Bom, nós somos protagonistas ativas e queremos mais protagonismo. E não queremos ser cidadãs de segunda dentro da igreja”. Além disso, as mulheres têm muito o que aportar. Elas mantêm relação com a vida e o cuidado e também a concepção de uma economia mais circular, que flui e que inclui. Elas nos disseram que têm muito o que aportar e que querem que a Igreja revise os ministérios e também as funções que as mulheres têm dentro da Igreja.

P. E qual é a perspectiva de que uma mudança real neste sentido aconteça a partir do Sínodo?

R. Bom... O certo é que as mulheres já têm uma influência real nas comunidades da Amazônia.

P. Mas não têm o reconhecimento formal, da Igreja, em termos de igualdade, certo?

R. Algum reconhecimento, sim. O que precisa ser discutido é se as mulheres podem assumir outras funções dentro da Igreja para poder contribuir com a evangelização e, sobretudo, para contribuir com esta Igreja que quer promover caminhos de ecologia integral. Elas querem ter mais protagonismo e liderança. Agora, como os padres sinodais vão responder a esse pedido, teremos que esperar para ver.

P. Hoje, grande parte das lideranças dos movimentos sociais e dos povos da floresta são mulheres. E não só na Amazônia. Em todos os lugares e também no ativismo climático, com adolescentes como Greta Thunberg, Anuna de Wever, Adélaïde Charlier e Luisa Neubauer...

R. Por isso é importante. Se a Igreja quer se preparar frente a essa nova realidade ecológica, o papel das mulheres está comprovado. Ou seja, como a Igreja vai ler este sinal dos tempos para poder propor caminhos que realmente sejam caminhos de mudança? De uma cultura de destruição a uma cultura de cuidado. De uma cultura de individualismo a uma cultura comunitária, que é o que Jesus nos ensinou. E as mulheres têm uma chave, hoje em dia, sobretudo na Amazônia, muito, muito importante para aportar. E os padres sinodais terão que dar lugar para ver como poderão no futuro canalizar esse aporte de uma maneira mais contundente.

P. Parece que elas não estão pedindo licença...

R. E não é só o problema das mulheres, o problema também é que não há padres. A Igreja terá que buscar caminhos para que possamos ter líderes da comunidade que não sejam os clássicos padres que temos agora, porque eles não estão lá.

P. Como equacionar a emergência representada pelo colapso climático e pela destruição acelerada da Amazônia com a famosa lentidão, para tomar decisões e reconhecer erros, que caracteriza a Igreja Católica?

R. É verdade que a Igreja é lenta, mas nós somos também uma das instituições mais avançadas deste momento na defesa da Amazônia. Quando recentemente todo mundo estava falando dos incêndios na Amazônia, e abrindo os olhos, para nós essa preocupação já estava colocada há anos. Muita gente acredita que o Papa convocou o Sínodo pelos incêndios. Mas faz dois anos que estamos preparando o Sínodo. Os incêndios ocorrem todos os anos, e cada vez é pior. Agora, captaram a atenção da mídia pela magnitude. Mas isso vem acontecendo há anos. Assim como a contaminação dos rios por mercúrio, pela atividade de mineração. Eu estive há pouco com um líder indígena cuja mulher tem câncer devido ao mercúrio da água. E ela não pode se curar com suas medicinas tradicionais, precisa se curar com medicinas que estão baseadas justamente em plantas da Amazônia, mas quem hoje produz os medicamentos é um laboratório. Isso é uma injustiça e isto vem ocorrendo faz tempo. Assim como há anos existem governos permitindo atividades que exploram a Amazônia e que não a cuidam. Nesse sentido, a Igreja está antecipando-se um pouquinho aos problemas, e, por uma vez, acredito que estamos na vanguarda, não?

P. Por isso a preocupação de alguns governos como o de Jair Bolsonaro com o Sínodo?

R. Talvez tenha muita gente preocupada com o Sínodo porque justamente o Sínodo não é uma convocatória sobre o Papa ou sobre os bispos nem sobre alguns especialistas, mas um encontro que tem a autoridade moral de ter consultado mais de 80 mil pessoas. Tem um peso grande. Não podem dizer: “Ah, isso disse o Papa!”. Sim, disse o Papa porque o Papa está fazendo eco do clamor das pessoas. O problema da ecologia integral é urgente. Não podemos esperar 10 anos para responder a um tema urgente. E estamos aproveitando este momento para nos renovarmos, aprendendo com os povos indígenas, isso que chamamos de “interculturação”. As comunidades católicas têm muito o que aportar, mas também temos muito o que aprender. Precisamos "interculturar" para promover uma cultura do cuidado em toda a Amazônia. É verdade que a Igreja também é um pouquinho lenta, mas, bom, às vezes também dá passos firmes, não? Às vezes, quando se vai muito rápido, depois não se pode prosseguir. Esperemos que não sejamos tão lentos desta vez.

“Não podemos esperar 10 anos para responder a um tema urgente como a destruição da Amazônia”

P. Que tipo de ações podem sair desse Sínodo?

R. O Sínodo trata sobre o documento que se chama "Instrumentum Laboris", que está online. Por exemplo, o tema da exploração mineral, da exploração petrolífera, da exploração madeireira, da soja... Como vamos ajudar para que isso não seja exploração? Outro tema é o modelo de desenvolvimento. Os países fazem isso, e me refiro a todos os países, não só ao Brasil. Porque isso ocorre no Brasil de Bolsonaro e também na Venezuela de Maduro, não? Todos os países exploram a Amazônia em nome do "nós queremos desenvolver". E isso é o que queremos mudar. Que a ideia de desenvolvimento não seja um desenvolvimento destrutivo. Por exemplo: propostas para que a comunidade internacional também reconheça a importância da Amazônia para o mundo, e que se criem instrumentos financeiros para que os países possam cuidar dela. Outro tema que vai ser tratado é o direito à água. Na Amazônia, a vida é dada pela água, pelos rios, que agora estão contaminados. Como vamos fazer para que isso não ocorra mais e para que os que contaminaram paguem e limpem? E também para que, no modelo de business plan, se entenda que não dá para contaminar porque é muito caro. Outro tema é como a Igreja vai se posicionar frente às migrações e aos deslocamentos internos. Na Amazônia a maioria vive em urbes, em grandes urbes. E nas grandes urbes acontece o de sempre, não? Tráfico de pessoas, narcotráfico, perda de identidade, alcoolismo, perda de trabalho. O que vamos fazer diante disso? E como a Igreja vai se posicionar frente aos governos? Profetismo significa denunciar, mas também propor.

P. Profetismo?

R. A voz profética, sim. Só denúncia não é profetismo. O profeta denuncia, mas propõe. Isso está mal, mas o que podemos fazer? E também os novos caminhos da interculturação. Isso é muito importante, porque, como dissestes antes, tínhamos um conceito de impor nossa própria cultura, não? Bom, agora nós vamos nos interculturar.

P. E o que significa "interculturar" neste contexto?

R. Esse foi um grito que saiu em quase todas as consultas. Esse movimento de interculturalidade, que é trazer a mensagem de Jesus, mas aprender também com as sabedorias ancestrais dos povos. E dessa interculturalidade promover uma comunidade rica em espírito, que possa cuidar do território e da população.

P. E como essa "interculturação" funcionaria na prática? Como é que um representante da Igreja Católica chega num povo indígena, que tem outra língua e outra linguagem, e que vive numa outra linguagem, que tem a sua própria vivência do que os brancos ocidentais chamam espiritualidade, e eles chamam inclusive de outra coisa ou nem chamam. Como pode a Igreja dialogar sem que isso seja uma violência?

R. Em milhares de comunidades há alguns indígenas que são cristãos, não necessariamente católicos, mas o Cristianismo já está em parte das comunidades, não? E as que não são têm muita afinidade, também, com o Cristianismo, e isso muito graças ao Papa Francisco. Mas a interculturação é mais para a Igreja do que para os outros. Temos que aprender com os povos indígenas, aprender sobre a sua relação com a natureza que, às vezes, nós perdemos. Como essa relação com a natureza pode ser incorporada no ensino do catequismo, nas práticas litúrgicas, nas celebrações.

P. Isso significa que a Igreja mudaria com o aporte de outros pensamentos e modos de pensar, de outras maneiras de se relacionar com a natureza e com o humano?

R. Sim, e melhoraríamos, ou deveríamos melhorar. Uma chave para entender o Sínodo é a palavra "conversão". Mudar. Uma Igreja que sai para as periferias, que está aberta ao diálogo, que não impõe. É uma conversão à ecologia integral, uma conversão de que temos que mudar o modo que compramos, assim como o modo que descartamos. Temos que mudar inclusive o modo como utilizamos os materiais de nossos templos, o modo como consumimos, o modo como viajamos. Uma igreja sinodal que caminha junto a outros, e que vai encontrando novos caminhos para melhorar o modo de se relacionar com os demais, consigo mesma, com a natureza e com Deus. Nós não nos juntamos para falar o que já sabemos. Isso sabemos, está bem. Nos juntamos para discutir quais são os novos caminhos. Novos caminhos são novos, não são velhos. E isso significa conversão. Significa mudar. Ou seja, não é só dizer aos demais o que tem que mudar. A Igreja também quer mudar.

“Os melhores aliados para a mudança que precisa acontecer na Igreja e no mundo são os povos indígenas”

P. E no que é mais urgente mudar no que se relaciona à Amazônia?

R. Temos que começar a aplicar essa ideia de ecologia integral em todas as nossas atividades. Como gerar alianças para esse cuidado da Casa Comum e esse coração da Casa Comum que é a Amazônia? Isso é transversal. Não só a Igreja precisa mudar, mas o mundo inteiro precisa mudar. Queremos predicar com o exemplo, queremos promover também uma mudança nossa. Na Amazônia, contamos com a vantagem de que os melhores aliados para essa mudança são as populações indígenas. Então, isso é novo. Encontrar novos caminhos de ecologia integral com as populações indígenas... Só isso já é novo e uma mudança enorme. Queremos uma mudança radical para uma ecologia integral. Esperamos que isso tenha um efeito dominó para regiões fora da Amazônia. Queremos conseguir fazer isso desde a Amazônia, com essa ideia de que a Amazônia é uma periferia, e agora a periferia vai ao centro. E vai ao centro também da Igreja. E deste centro vamos sair para outras regiões.

P. Nunca houve um interesse tão grande no Brasil por um Sínodo... A que o senhor atribui?

“A Amazônia tem um efeito direto sobre o planeta, então todos têm o direito de opinar. E quem mais têm direito de opinar são os povos indígenas”

R. A Amazônia é como se fosse um coração do planeta. O Papa Francisco costuma dizer que tudo o que acontece na Amazônia acontece no mundo. A Amazônia é destruída para manter um determinado estilo de vida. Os nove países amazônicos têm que mudar seu modelo de exploração destrutiva por um modelo mais harmônico. E, bom, ninguém tem a receita. Por que tanto interesse? Porque isso está no centro da agenda de todos os países amazônicos, está no centro da agenda das Nações Unidas, está no centro do que vai ocorrer nos próximos 10 anos. Isso alimenta também o conflito político interno do Brasil neste momento, e por isso desperta interesse. Outro interesse muito importante é que aqui estamos falando de muito dinheiro. De muito dinheiro mesmo. Tem gente que ganha muito dinheiro com a exploração da Amazônia e por isso não vai querer mudar. Não estamos falando de uma questão acadêmica. É uma conversão importante que vai custar dinheiro. E então a oposição vai ser grande. Tudo isso gera muito interesse, e sobretudo agora, com o lamentável acontecimento dos incêndios.

P. O governo brasileiro já manifestou várias vezes sua preocupação com o Sínodo. Tanto Bolsonaro quanto os generais Augusto Heleno, Villas Bôas, referem-se a questões de soberania, a uma ação política de esquerda do Vaticano. O governo admitiu inclusive que a Abin está monitorando o Sínodo. Como o Vaticano analisa essas preocupações e ações?

R. Nós esclarecemos ao governo Bolsonaro. Isto não é contra a soberania, ao contrário. Primeiro, que o Sínodo é um Sínodo da Igreja, não é um Sínodo de Governo. E, segundo, que não é um Sínodo da Amazônia brasileira. É um Sínodo de toda a Amazônia. E é um Sínodo, sim, que vai tratar de um modelo de desenvolvimento que vai contra a ecologia integral. Então, o que está em discussão é esse modelo de desenvolvimento, e não a soberania. As Forças Armadas brasileiras têm um papel importante porque elas estão presentes na Amazônia. Nós não temos problema com isso. O tema é estar presente para quê? Se estão presentes para cuidar da Amazônia, para que os direitos humanos dos indígenas sejam respeitados, para que as leis sejam respeitadas, para que não se contamine os rios e para que quem contamine tenha que pagar.... Se isso é soberania, vai ter nosso apoio. Assim, não têm nada a temer. Agora, se o que entendem por soberania é “eu estou aí com a força para deixar que meus amigos façam o que querem”, bom, isso não é soberania. O que dissemos aos militares brasileiros é que não se preocupem, porque ninguém vai discutir a soberania brasileira sobre a Amazônia. O que estamos discutindo é que toda a Amazônia, e não só a brasileira, tem um efeito direto no que ocorre com o planeta. Então as pessoas têm direito a opinar. E os que mais têm direito a opinar são os habitantes da Amazônia. E estes são os que escutamos. E eles estão nos dizendo que temos que discutir tudo isso.

P. Como é ser visto como inimigo?

R. Os governos podem ver como uma aliança, mais do que como um inimigo. O mais importante é mudar o modelo de desenvolvimento, de forma a cumprir os objetivos de desenvolvimento sustentável que todos os países assinaram. Agora, se a política é não respeitar os objetivos de desenvolvimento sustentável, se a política é conceber o desenvolvimento só como uma questão material e não cultural nem espiritual nem do bem viver, se este desenvolvimento é só uma questão de explorar a natureza para ter mais ganhos, bom, então, sim, alguém pode tomar o Sínodo como uma ameaça. A Igreja já vem dizendo desde o final dos anos 1960 que desenvolvimento não é isso. Desenvolvimento é desenvolvimento integral, que engloba todas as pessoas e que engloba a natureza. Se nós desenvolvemos causando iniquidade e desigualdade, isso não é desenvolvimento, isso não é progresso. No Brasil, se usa muito a palavra progresso, não? Bem, isso não é progresso. Progresso é progredir com as pessoas, é progredir com a natureza. É isso que todos esses movimentos juvenis estão dizendo: “Que tipo de mundo vão nos deixar?”. Tem que mudar urgente esse modelo. Estamos tentando implementar essa ideia de bem viver, essa ideia de crescer e de aproveitar junto com outros, não à custa de outros, e não à custa da destruição da floresta e de seus povos.

P. Este é o caso do atual governo brasileiro?

“Não importa se é Bolsonaro, Maduro ou Morales. Se há um modelo de desenvolvimento que está destruindo o planeta, como poderíamos ficar calados?”

R. O que dissemos ao governo brasileiro é: a soberania não é nenhum problema. Ou seja, os militares podem ficar tranquilos. E sobretudo os militares brasileiros, que se gabam de não ser corruptos. Se eles querem impor um cuidado sobre a Amazônia, para cumprir as leis, não têm razão para se preocupar.

P. Todos os textos que eu li sobre o Sínodo defendem uma política oposta a do governo Bolsonaro. Por exemplo, a demarcação das terras indígenas. É um governo que interrompeu qualquer demarcação de terra indígena e quer inclusive rever as que já foram demarcadas. Então, claramente há um embate de visões sobre a Amazônia e sobre desenvolvimento.

R. Mas todas essas propostas não foram feitas pensando em Bolsonaro. Essas propostas foram feitas pensando nas pessoas que pedem, que necessitam. Todas essas discussões foram e são matéria de foros internacionais, não? Não é uma invenção do Sínodo.

P. Sim, mas acontece que, nesse momento, o Sínodo diz uma coisa e o governo do Brasil diz outra...

“Quem é o inimigo da pátria? O que fala em favor do povo de um território ou o que não quer escutar o povo de um território?”

R. A Igreja é uma igreja também profética, não? Isso não é contra Bolsonaro. A Igreja quer propor um modelo de desenvolvimento que respeite a ecologia integral e quer ter uma voz profética frente à destruição do outro. Se tem um modelo de desenvolvimento que está destruindo o planeta, como não vamos falar? Se este modelo de desenvolvimento está afetando todas as pessoas, toda a população? Se está afetando todas as futuras gerações? Como não vamos falar? Temos que ficar calados? Não importa se é Bolsonaro ou se é Evo Morales ou se é Maduro. O que importa é proteger as populações indígenas e o território. E, protegendo-o, propor um modelo de desenvolvimento que seja realmente sustentável e harmônico, e que a Amazônia possa exercer sua missão. Do contrário, todos seremos afetados.

P. Os bispos da Amazônia fizeram uma carta onde eles dizem que estão sendo tratados como “inimigos da pátria” e estão sendo criminalizados pelo governo Bolsonaro. Como o senhor analisa essa afirmação?

R. Essa é a tática para caçar as vozes proféticas. Em vez de discutir o tema, se ataca as pessoas. Eles não são nenhum inimigo da pátria, são amigos da pátria. Queria que existissem mais bispos como os da Amazônia. São um exemplo de pastores. E não são inimigos de ninguém. Mas, se o que estão dizendo dói a um determinado partido político, ou a um governo, o que tem que discutir é o tema. Por que os bispos estão dizendo isso? Porque eles estão fazendo eco das vozes indígenas, das vozes da terra. E isso não é ser inimigo da pátria. Ao contrário. Agora, quem é o inimigo da pátria? O que fala em favor do povo de um território ou o que não quer escutar o povo de um território?

P. Vocês foram procurados pelo governo brasileiro?

R. Sim, o governo enviou uns diplomatas ao Vaticano para conversar. As pessoas que vieram eram muito profissionais.

P. E o que que eles queriam?

“A pobreza é um tema de poder  — e de falta de poder”

R. Um enviado de Bolsonaro veio nos visitar para conversar sobre o Sínodo, para ver a possibilidade de participação. Nós lhes explicamos que não poderiam participar porque era um Sínodo da Igreja, não um Sínodo político. Explicamos que tudo o que vai ser tratado no Sínodo vai estar em um documento. Não há segredos.

P. Vocês foram procurados pelos governos de outros países amazônicos? Ou só pelo Brasil?

R. Recebemos algumas perguntas de outros governos, mas por escrito. De forma direta, só pelo Brasil.

P. Há uma visão que marca a Igreja Católica e que aparece nos documentos e manifestações sobre o Sínodo que é a “opção pelos pobres”. No caso da Amazônia, os povos da floresta são tratados nos documentos como pobres. Mas minha experiência é de que os povos da floresta não se veem como pobres. Eles não estão nessa equação de pobres e ricos. Quando precisam se colocar, eles se colocam como ricos, não como pobres. Isso não é um equívoco da Igreja no modo de olhar?

R. Nós sabemos disso. E foi motivo de discussão. Mas a opção pelos pobres não é no sentido de pobres ou ricos. A opção pelos pobres é um conceito teológico que vem da Bíblia. Pobre não é só aquele que não tem dinheiro. Pobre é o que pode ser explorado. Também pode ser pobre espiritualmente. Ou pode ser o vulnerável. Não podemos dizer que Jesus era pobre, ou Maria. Mas, bom, eram pobres em comparação com os poderosos. É um tema de poder, e de falta de poder. Esta é uma opção por todos os que estão na periferia, por todos os que estão empobrecidos no sentido amplo. No Brasil, particularmente, há muita discussão. Mas, quando dizemos "opção pelos pobres", esta é uma opção por todos os que têm uma desvantagem, como aquele que tem menos poder que outro. Portanto, requer um cuidado especial, porque senão os outros os comem. E é o que acontece com as comunidades indígenas, não só na Amazônia, mas em todo o mundo neste momento. As grandes companhias, os governos podem destroçar as comunidades indígenas. Além disso, a opção pelos pobres é uma resposta. Nem toda a população da Amazônia é indígena. E nem toda a população indígena vive na floresta. Muitos vivem nas cidades. E, nas cidades, normalmente os que migraram sofrem exploração e falta de trabalho. Então é isso também a opção pelos pobres. Então, quando se diz "opção pelos pobres" é uma opção pelos que não têm poder.

P. Mas o entendimento do que é ser pobre e do que é ser rico é um entendimento muito forte e muito imediato —e com grandes efeitos políticos. Então, quando os povos da floresta se contrapõem a essa lógica dizendo sobre si mesmos que são ricos, porque têm a floresta para se alimentar, pra fazer sua casa, porque têm a sua cultura e o seu lazer, tratá-los como pobres não seria algo quase colonialista, porque impõe sua própria lógica sobre o outro? Não seria aculturar —e não interculturar?

R. Não, isso vem de um conceito nosso, um conceito de nossa fé. É um conceito que ganhou relevância em muitas partes do mundo e em quase todas as partes do mundo este conceito de pobreza se entende. O Brasil, em particular, é um dos poucos países onde o termo "opção pelos pobres" teve uma certa oposição. Mas isso não significa que não se possa usar como conceito teológico. O que estamos dizendo é que os territórios dos indígenas estão sendo destroçados, e que há um grito, um clamor pela defesa. Então, estão em desvantagem. Quando nós lemos a opção pelos pobres, todos nos incluímos.

P. A Teologia da Libertação, as comunidades eclesiais de base significavam uma opção pelos pobres. E me parece que essa opção faz sentido em várias questões. Porém, o que os povos da floresta estão tentando evitar é justamente serem convertidos em pobres nas periferias das cidades. Na floresta, eles são ricos. Na periferia urbana, eles são convertidos em pobres. Ao responder que são ricos a quem os chama de pobres, como faz o próprio Bolsonaro com o objetivo de abrir a floresta para a exploração predatória, defendem-se justamente de quem os considera pobres por não viver segundo o conceito ocidental capitalista de riqueza. O que quero dizer é que, quando os povos da floresta entram nesta equação, esses conceitos se complicam. É a esta realidade que me refiro.

R. Sim, mas se eu estou doente, não sou pobre, mesmo se for rico? E se eu estou preso, mesmo sendo rico não me torno pobre? Jesus disse...

P. Acho que Jesus não conhecia a floresta amazônica...

“Se não mudarmos a forma de tratar a Amazônia, não haverá salvação”

R. Sim, mas Jesus foi o que saiu às periferias. Os leprosos não necessariamente eram pobres porque não tinham bens materiais. Eram pobres porque estavam excluídos da sociedade. Os povos da Amazônia estão excluídos de um modelo. E, pior, um modelo que quer destruí-los. O pobre é um conceito amplo, mas é um conceito que nós aplicamos a todos, não só aos da floresta.

P. A ideia de fazer um Sínodo sobre a Amazônia também vem de uma preocupação de que os evangélicos, especialmente os neopentecostais, estão crescendo muito no Brasil. Hoje, algumas das principais lideranças na Amazônia são evangélicas...

R. Sim, pois se não há há pastores, não há padres e não há igreja, não há celebrações, não há missa... Bom, e os evangélicos, sim. Pessoas vieram e disseram: “Vejam, eu continuo sendo católico, mas não há padre, não há missa, e aqui tenho todos os domingos uma celebração (evangélica) cheia de vida, cheia de gente. Então eu vou”. Então, claro que é uma preocupação. E também é uma preocupação a relação com os evangélicos, como melhorar o diálogo com os pastores e com as comunidades.

P. O Papa falou em 2013 que a Amazônia é como um teste decisivo, é "um banco de provas para a Igreja e a sociedade". O que significa isso?

R. Todo o mundo está vivendo o problema da crise ecológica. E todo mundo está vivendo esta necessidade de conversão, de relação melhor consigo mesmo, com o outro, com a natureza e com Deus. Todos vivemos. Mas nem todos nos damos conta. Como respondemos à Amazônia é um banco de provas de como vamos responder ao mundo. E o mesmo com as mudanças de conversão. Porque se nós não mudarmos a maneira como estamos tratando a Amazônia... À custa de destruir o planeta... Isso é também um banco de provas. Se isso não mudar, não há salvação. Mas se na Amazônia houver mudanças, isso vai ser um banco de provas que poderemos aplicar ou replicar ou coordenar em outras regiões.

P. O senhor acha que o Sínodo poderá influenciar os debates e decisões da Cúpula do Clima, no Chile, aumentando a discussão e a pressão para discutir soluções para a Amazônia? Este é um dos objetivos?

“Ter uma Igreja com rosto amazônico é trazer a periferia ao centro”

R. Eu acredito que sim, porque há muito interesse no Sínodo. Há muita abertura de vários países, incluindo os organizadores da COP-25, para que possamos contribuir com os resultados do Sínodo, que seguramente serão riquíssimos para todos, e não só para a Igreja.

P. Como o Sínodo pode impactar positivamente em situações emergenciais como a que está acontecendo agora, na Volta Grande do Xingu, no Pará? Além da destruição do ecossistema e de espécies endêmicas, povos indígenas e ribeirinhos desta área estão em alto risco de perder seu modo de vida, por causa do controle e da administração predatória da água pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte. O Ministério Público Federal considera que está em curso um ecocídio e também um genocídio. Belo Monte, aliás, é uma das principais produtoras de violência e de destruição naquela região. Como o Sínodo pode impactar realidades urgentes como esta?

R. Não acredito que o Sínodo vá atuar em realidades urgentes como essa. O que o Sínodo faz é recolher testemunhos do que acontece e discutir linhas de ação, caminhos. Depois, são as pessoas do local que vão implementar estes caminhos, mas com o apoio de uma decisão do Papa com todos os bispos. Já será, então, uma decisão da Igreja, o que dá mais peso para poder fazer o que é necessário fazer. O Sínodo vai discutir as grandes linhas de ação para que depois os agentes de todos os países que estão sofrendo possam responder com mais força.

P. O que significa afirmar uma “Igreja com rosto amazônico”?

R. A palavra "Sínodo" é caminhar... Caminhar juntos. E uma igreja sinodal é uma igreja que caminha com outros. Eu gosto muito dessa imagem. Caminha com outros para melhorar o mundo, para cuidar do mundo. E, depois, uma igreja com "rosto amazônico". Muita gente se escandaliza: “Isso significa que temos que pintar os rostos?”. Não, isso é uma ideia de trazer a periferia ao centro. Agora temos rosto amazônico, porque eles (os indígenas) estão em risco, porque é essa riqueza que queremos proteger. Não está mal que emprestemos o rosto amazônico, assim como em representações culturais, muitas vezes, se desenha um rosto muito europeu, de um Jesus ou uma Virgem Maria. Assim, não está mal, agora, pensar em uma igreja com um rosto amazônico por um momento, não? Para que, desde a Amazônia, possamos encontrar esses novos caminhos. Essas duas imagens, a de caminhar junto com outros e a de um rosto amazônico, me enchem de esperança.

P. Como um dos articuladores do Sínodo, o que deixa o senhor mais entusiasmado? Quais são as potências deste encontro que lhe dão mais alegria?

R. Para começar, eu nunca vi tanta esperança. Há muita gente com grandes esperanças. Eu tive que ler quase todas as consultas e isso foi uma lufada de ar fresco, isso foi... espetacular. Porque, mais além do que escutar os gritos e as dores da Amazônia, com essa consulta foi possível descobrir também a riqueza. Há uma vida aí que nos enche de esperança, que nos enche de entusiasmo, e isso é o que nos dá energia para protegê-la. E também essa possibilidade de mudança. Porque vamos discutir quais são os novos caminhos. E isso me entusiasma como perito, como especialista, como sacerdote, como católico, como ser humano. Que nós possamos aportar algo ao mundo através da fé e da Igreja, nas comunidades, para o cuidado da Casa Comum, para uma ecologia integral. Se pudermos fazer isso, vai ser um momento histórico da Igreja. E isso me enche de entusiasmo e de orgulho. Queremos um caminho de cuidado e não de destruição, queremos caminhos de integração e não de expulsão, queremos que o progresso seja verdadeiramente para viver melhor, e não para destruir as futuras gerações. Estamos realmente colocando-nos ao lado do oprimido e tecendo uma rede para dizer: isso, assim, não pode ser.

* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de RuínasColuna Prestes - o Avesso da LendaA Vida Que Ninguém vêO Olho da RuaA Menina QuebradaMeus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


El País: Servidor federal custa duas vezes mais que um trabalhador privado, aponta Banco Mundial

Levantamento do órgão constatou que até 2030 cerca de 40% dos funcionários públicos deverão se aposentar no país

Um servidor público federal no Brasil custa quase duas vezes a mais para o seu empregador, a União, do que um trabalhador da iniciativa privada em atividade econômica similar. Essa é uma das conclusões de um detalhado estudo elaborado pelo Banco Mundial que analisou a gestão de pessoas e a folha de pagamentos no setor público brasileiro. O levantamento será lançado nesta quarta-feira, em Brasília. Os pesquisadores destrincharam os dados de 22 bases do Governo e de Estados nas quais pode-se analisar a renda de cada trabalhador, os reajustes concedidos ao longo da última década, as gratificações por desempenho, entre outros. Por ano, todos os 11,5 milhões de servidores públicos brasileiros custam 725 bilhões de reais. Isso equivale a 20 vezes o valor gasto com o Bolsa Família e representa 10% do produto interno bruto.

Conforme o estudo, de maneira geral, os servidores públicos das três esferas (municipal, estadual e federal) recebem 19% a mais do que seu equivalente na iniciativa privada. Não é um dado que se diferencie do resto do mundo. A média mundial é de 21%. A distorção se dá, contudo, quando se analisa os servidores separadamente. Os federais têm prêmios salariais 96% maior do que os trabalhadores privados. Os estaduais, 36%. Enquanto que os municipais não ganham mais do que a média dos particulares. “Para além do prêmio salarial, o servidor público brasileiro dispõe de estabilidade, de forma que o risco de demissão é muito baixo uma vez sendo admitido”, destaca o relatório. De maneira geral, contudo, a maioria dos servidores públicos federais têm vencimentos inferior a 10.000 reais. São 56%, conforme a pesquisa.

O levantamento acaba indo na mesma linha do discurso da equipe econômica do ministro Paulo Guedes, que defende um enxugamento da máquina do Estado, inclusive com a realocação de servidores e a diminuição do número deles.Nas últimas semanas, circulou em Brasília a informação de que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), estaria discutindo com o presidente Jair Bolsonaro o fim da estabilidade do funcionalismo público, algo que é refutado por grande parte das entidades de representação laboral. Ambos negaram que haja esse debate.

Por outro lado, o levantamento do Banco Mundial contrasta com levantamentos feitos pelas entidades de classe, que defendem a reposição do quadro de trabalhadores que se aposentaram. Algo que não está no planejamento do Governo.

Elaborado a pedido do Governo federal, o documento serve como uma maneira de demonstrar a importância de se fazer uma profunda reforma administrativa no poder público, segundo o coordenador do estudo, Daniel Ortega. Uma das informações que também embasa essa opinião dele é a de que até o fim do Governo Bolsonaro, em 2022, cerca de 26% dos servidores da ativa vão se aposentar. Para 2030, esse índice atinge 40%. “É um bom momento para se realizar reformas”, afirmou Ortega.

Hoje, a máquina pública federal tem 300 carreiras diferentes. “A diminuição do número de carreiras tornando-as mais transversais e com atributos mais generalistas proporcionaria mais flexibilidade à administração pública”. A proposta do banco é que se flexibilize parte delas movendo servidores de um órgão para o outro sem a necessidade da realização de novos concursos públicos. Um exemplo citado pelos pesquisadores é a criação de uma carreira técnica de nível médio, que substituiria a carreiras técnicas diferentes para educação, saúde e segurança. A avaliação é que vez que esses servidores se ocupam de tarefas administrativas e acabam exercendo atividades semelhantes.

Outra sugestão é a de que se estabeleçam critérios mais claros e restritos de progressão na carreira. Os dados mostram que, em algumas carreiras, em apenas uma década se chega ao seu topo. É o caso, principalmente, das carreiras jurídicas, em que um servidor começa ganhando mais de 20.000 reais mensais e rapidamente chegam perto do teto do funcionalismo público – 39.000 reais. Alguns exemplos. Um médico leva 28 anos para chegar ao maior patamar da carreira. Um professor de ensino superior e um funcionário do ministério da Defesa, 25. Enquanto que juízes, promotores e procuradores, levam 10 anos.

Um outro dado que mostra essa distorção na progressão é o que analisa a porcentagem de funcionários de determinados órgãos que já chegaram ao topo. 98% dos servidores da Defesa estão nesse último degrau. Entre os da área judiciária, são 78,2%. Os menores índices estão entre os professores de ensino superior (2,9%), os funcionários de agências reguladoras (3,3%) e os médicos que trabalham em universidades (4%).

Estados

Quando se depararam com os dados estaduais, as conclusões não foram tão distintas. Os pesquisadores também constataram que há um gap entre o setor público e privado formal, um crescimento da folha de ativos em decorrência do aumento do salário médio dos trabalhadores, alta dispersão salarial causada por gratificações e reajustes salariais dados de forma célere mediante pressão de categorias. Constataram também que reduzir as taxas de reposição de servidores tem um limite e não resolve o problema fiscal. Comparando o período entre 2003 e 2017 constata-se que o número de servidores estaduais cresceu 0,5%, mas o salário médio aumentou 78,1%.

Nesse cenário, o país registrou sete estados em calamidade financeira e 12 que extrapolaram o limite de gastos com pessoal delimitado pela lei de responsabilidade fiscal, que é de 60% da receita corrente liquida. O resultado é que nos últimos anos, 20 das 27 unidades da federação atrasaram em algum momento os pagamentos de seus servidores ativos e terceirizados.

Para tentar mudar esse panorama, os Estados têm de cortar, em média, 2% ao ano suas despesas com servidores ativos e inativos para voltar a atingir o limite da LRF até 2022. Os que têm o maior desafio são Minas Gerais, que teria de cortar 5,4%, Mato Grosso do Sul, 4,8%, e Rio Grande do Norte, 3,6%.


El País: Brasil acelera programa para distribuir venezuelanos por seu território

Quase 15.000 migrantes foram enviados a 250 cidades de todo o país para aliviar a tensão na empobrecida região onde fica a única passagem fronteiriça

O português com sotaque espanhol da Venezuela chegou à grande capital da Amazônia. É facilmente reconhecível entre aqueles que oferecem garrafas de água na praça principal de Manaus, sob um calor que só diminui de madrugada, e entre os garçons de restaurantes e sorveterias. Mas o espanhol é ouvido principalmente em torno da rodoviária, onde a venezuelana Andreina Márquez, de 40 anos, e várias dezenas de compatriotas assavam alguns peixes para comer. O crescente desembarque de imigrantes venezuelanos em Manaus é, em parte, fruto dos esforços das autoridades brasileiras para distribuí-los por seu território e aliviar as tensões ao norte da capital amazonense, na região onde fica a única passagem fronteiriça entre os dois países. Quase 15.000 pessoas foram distribuídas entre 250 municípios de praticamente todos os Estados.

“Deus tem algo preparado para nós, mas antes temos de passar por esta prova”, afirma Márquez, conformada. Entrou, como todos, pela passagem de Pacaraima, um povoado remoto que vivia do comércio fronteiriço e que a cada dia vê 200 pessoas chegarem do outro lado da fronteira precisando das coisas mais básicas. Colômbia e Brasil mantêm as portas abertas, já Peru, Chile e Equador estão impondo restrições.

Embora o Brasil seja um país enorme criado por escravos e imigrantes, com 200 milhões de habitantes e muita terra despovoada, o desembarque de 180.000 venezuelanos desde 2016 tem significado um notável transtorno em Pacaraima e na vizinha Boa Vista, um pouco maior, mas também pobre. Esses lugares não estão acostumados a tantos forasteiros. O Governo federal prevê que o êxodo venezuelano continuará e poderá até aumentar, e tomou medidas. Assim nasceu o programa de interiorização, que é um programa de realocação semelhante aos administrados pela ONU, mas em escala nacional.

Niusarete Lima, assessora do Ministério da Cidadania, que coordena todos os ministérios, entidades do Estado e da sociedade civil, explica como funciona esse programa, do qual participam o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e a Organização Internacional das Migrações: depois que os migrantes recebem sua documentação e, com isso, acesso a todos os serviços públicos, as autoridades selecionam os mais vulneráveis −“uma mulher sozinha com filhos ou uma pessoa de idade sempre terá preferência sobre um homem jovem”− e negociam com os serviços sociais municipais e estaduais, assim como com empresas, para encontrar um destino para eles. Não é fácil, porque a demanda supera a oferta, explica Lima, que trabalha desde o início neste programa de interiorização, que o presidente Jair Bolsonaro herdou de seu antecessor. Destaca-se uma cidade do interior, Dourados: com mais de 1.000 acolhidos para trabalhar na indústria, ela só fica atrás de São Paulo.

Como o Brasil tem mais de 6.000 municípios, “se cada um acolhesse uma família, nem se notaria”, ressalta Lima, enquanto tenta envolver mais municípios para satisfazer as necessidades atuais (e quem sabe futuras). Porque alguns saem, mas outros chegam. Cerca de 7.000 migrantes estão instalados em albergues de Boa Vista e Pacaraima, uma operação que conta com a participação do Exército. Dois dos refúgios são específicos para os indígenas Warao, com os quais começou o êxodo para o Brasil. “Precisamos ter canais [para distribuí-los] se a situação se agravar”, diz a assessora. Por isso, além de promover a tradicional reunificação com parentes já instalados em outras cidades, o programa iniciou a reunificação social, com amigos assentados, além de identificar empresários que procuram empregados e facilitar entrevistas de trabalho com migrantes por videoconferência. O objetivo é reduzir a concentração de venezuelanos na fronteira, incentivá-los a se dispersar e dar-lhes um empurrãozinho para que, em cerca de três meses, possam cuidar de si mesmos.

O espanhol Jesus López Fernández de Bobadilla, de 78 anos, mede a situação na vizinha Venezuela pelo número de migrantes que chegam ao seu café fraternal, onde oferece comida até 1.500 pessoas por dia, com um reforço de ovo cozido, arroz-doce e fruta para as crianças, conta por telefone de Pacaraima, onde é o responsável pelos cuidados da Igreja católica para com os venezuelanos. O enorme cansaço dos moradores locais com a situação, os roubos constantes e alguns políticos locais buscando votos com um discurso xenófobo deixam Fernández muito preocupado. Assim como a lentidão com que caminha a interiorização dos migrantes: “Eles chegam a passo de cavalo e saem a passo de tartaruga”. Enquanto isso, os temores persistem.

Pouco a pouco, o Governo vai transferindo venezuelanos para Manaus. Mas alguns percorrem os cem quilômetros até mesmo a pé, acreditando que na grande cidade será mais fácil encontrar trabalho. A venezuelana Márquez não encontrou. Ela conta que alguns dias é chamada para fazer serviços de limpeza. Mas nada mais. Diz que come o que as Igrejas locais dão aos necessitados. Com ajuda de um irmão, conseguiu enviar sua filha para São Paulo, enquanto espera que seu filho chegue com suas netas —ela lhe enviou o dinheiro para as passagens. Sabe que um árduo futuro os aguarda, mas ressalta que sempre será melhor do que ficar na Venezuela: “Quero que venham, mesmo que seja para que não passem fome”.


El País: Eleições para o Conselho Tutelar tornam-se o novo campo de batalha do Brasil polarizado

Pleito deste domingo coloca católicos e evangélicos em disputa para ocupar organismo de apoio a políticas sobre juventude. Veja como participar da votação que é aberta a todos os eleitores do país

A particularidade de 2019 é que a polarização da disputa eleitoral do ano passado se repete, agora com o componente religioso ainda mais forte. Como o voto é facultativo, organizações e sobretudo igrejas se esforçam para engajar eleitores no dia da votação. Os assentos nos conselhos — cada um deve possuir cinco membros — estão sendo ferozmente disputados por católicos e evangélicos, que desejam influenciar nas políticas voltadas para crianças e adolescentes, conforme relatou a BBC Brasil. Temas como ideologia de gênero e sexualidade nas escolas permeiam as redes sociais, onde os candidatos nem sempre abordam questões que estão relacionadas a atuação dos conselheiros. Para que fique claro, entre as atribuições do Conselho Tutelar estão:

A disputa entre católicos e evangélicos foi abraçada publicamente pelas instituições religiosas. A Arquidiocese de São Paulo, por exemplo, vem publicando várias notas incentivando a participação dos católicos nos conselhos tutelares. Na última, publicada no dia 4 de outubro no jornal O São Paulo, Sueli Camargo, que é coordenadora arquidiocesana da Pastoral do Menor, afirmou: "Quando nos ausentamos, deixamos espaço aberto para outras denominações religiosas, como os evangélicos, que estão presentes não só nos conselhos, mas em diversos campos da política e nem sempre estão preparados para ocupar esses cargos. É importante retomarmos essa participação enquanto Igreja, com o objetivo de promover a vida e garantir os direitos".

Já a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, dono da TV Record, publicou em seu portal no dia 15 de setembro um texto intitulado Conselho Tutelar: é nosso dever participar. Nele, exortava seus fiéis a votar em candidatos religiosos: "É importante ter pessoas com valores e princípios e que, acima de tudo, tenham compromisso com Deus".

Os evangélicos vêm tomando o espaço da Igreja Católica nas últimas décadas, o que ajuda a explicar a disputa entre os dois grupos nos Conselhos Tutelares — apesar de compartilharem visões similares sobre assuntos comportamentais. Hoje, evangélicos representam 30% dos 200 milhões de brasileiros, algo que se reflete no crescimento da bancada evangélica na Câmara dos Deputados. Após assumir, o presidente Jair Bolsonaro nomeou a pastora Damares Alves para o Ministério da Família dos Direitos Humanos, prometeu nomear um ministro do Supremo "terrivelmente evangélico" e foi a estrela principal da Marcha de Jesus em junho deste ano, entre outros acenos ao eleitorado evangélico, que foi importante para impulsionar sua candidatura. Em meio a essa disputa, eleitores laicos que sequer sabiam que podiam votar para os Conselhos Tutelares começaram a se mobilizar nas redes, espalhando listas com candidatos igualmente laicos e progressistas.

Onde e como votar

Cada cidade brasileira possui ao menos um Conselho Tutelar, composto por cinco membros eleitos. Os municípios podem definir o número de conselhos de acordo com seu tamanho e demanda. São Paulo, a localidade mais populosa do país, possui 52 conselhos tutelares com um total de 260 integrantes.

As eleições de domingo acontecerão de 8h às 17h. Cada município organiza o seu próprio pleito e cria regras próprias. As informações sobre os locais de votação devem ser buscadas nas prefeituras, nas secretarias municipais que tratam dos direitos de crianças e adolescentes, na Justiça Eleitoral e nas próprias sedes dos conselhos. São Paulo, por exemplo, concentrou todas as informações no site da Secretaria de Direitos Humanos e criou uma plataforma para que os eleitores consultem seu local de votação, a partir das informações contidas no título de eleitor. No Rio de Janeiro, as informações estão no site do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Os locais podem ser consultados nesta tabela.

Os interessados em votar precisam ter mais de 16 anos e estar regularizado com a Justiça Eleitoral, além de cadastrados nos tribunais regionais eleitorais até 14 de junho deste ano. O voto não é obrigatório. Caso decida exercer seu direito, o eleitor deverá apresentar título de eleitor e documento de identidade original com foto, ou o aplicativo e-título, da Justiça Eleitoral. Cada eleitor pode votar em até cinco candidatos para o conselho mais próximo de sua residência.

Um total de 30.000 conselheiros deverão ser eleitos nos 5.956 conselhos em funcionamento em todo o território nacional: 1.885 no Nordeste, 1.830 no Sudeste, 1.234 no Sul, 527 no Centro-Oeste e 480 no Norte, segundo o cadastro do Ministério da Mulher, da Família e dos direitos Humanos.

Os salários dos conselheiros devem ser definidos pelas Câmaras de Vereadores — são de aproximadamente 1.500 reais, segundo dados do antigo Ministério do Trabalho. Para ser candidato basta ter reconhecida a idoneidade moral, ter mais de 21 anos e residir na cidade que vai atuar. Há prefeituras que aplicam provas de redação, português e matemática antes da votação, com o objetivo de pré-selecionar os candidatos. Outras administrações exigem experiência na área de serviços sociais, tempo mínimo de moradia na cidade ou escolaridade mínima.


El País: A Amazônia testa a abertura da Igreja

Sínodo que começa no domingo continuará sem o direito ao voto feminino, mas debaterá a ordenação de homens casados

O germe deste sínodo surgiu há quase dois anos em Puerto Maldonado, no Peru, quando o Papa viajou a esse país e ao Chile. A Amazônia se encontra hoje, de forma completamente imprevista naquela época, no centro do debate político, social e ambiental do mundo. Mas o interesse de Francisco pela ecologia marca todo o seu Pontificado e já tomou corpo teológico através da encíclica Laudato Si. Uma reivindicação do ambientalismo integral que foi recordada nesta quinta-feira pelo cardeal e secretário do sínodo, Lorenzo Baldiseri: “Uma ecologia que não trate as questões só olhando para o meio ambiente, mas também que compreenda a dimensão humana e social. Uma ecologia que tenha presente a essência do homem”.

O sínodo, para o qual 80.000 pessoas se fizeram ouvir, fornecendo as informações preliminares, discutirá sobre uma zona geográfica que abrange sete nações. A proposta, entretanto, incomoda especialmente o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que o considera uma ingerência na soberania nacional. “Respeitamos a soberania do Brasil. Mas a Igreja também está na Amazônia”, advertiu o cardeal Cláudio Hummes, presidente da Rede Eclesiástica Pan-Amazônica (REPAM) e participante do encontro.

A participação da mulher, com 35 convidadas, aumenta: duas convidadas especiais, quatro especialistas (duas são religiosas) e 29 auditoras, sendo 18 freiras. Mas nenhuma delas terá influência sobre os 185 “padres sinodais” que poderão votar o documento final. Esse foi um dos temas fundamentais de uma reunião convocada pela organização Voices of Faith que ocorreu no mesmo momento em que três cardeais apresentavam o sínodo da Amazônia. A freira sueca Madeleine Fredell criticou em um discurso contundente que “ocorram na Igreja abusos de todo tipo, sexuais, econômicos, de poder” e também “de silenciamento das mulheres”. “Não nos permitem compartilhar nossas interpretações da fé, somos silenciadas (...). Não suplicamos poder, o poder sempre corrompe, só pedimos para sermos respeitadas.”

A apresentação do Sínodo, entretanto, só confirmou que a onda se aproxima para uma Igreja que ainda se considera impermeável a determinadas mudanças sociais. Baldiseri salientou que desta vez quadruplicou o número de mulheres participantes do encontro. Mas foi incapaz de dar uma explicação convincente, além de citar as normas estabelecidas, para o fato de elas continuarem sendo irrelevantes na hora de tomar decisões. “O sínodo é um organismo, não um direito divino. Então é preciso se ater à norma estabelecida. Um código de direito canônico assinado pelo Papa.” É assim, nada mais.

Os atritos internos, numa Igreja atualmente cindida pelas investidas do setor ultraconservador, chegarão ao sínodo através do debate sobre a ordenação de homens casados e com famílias, como forma de paliar a falta de vocações em lugares remotos do mundo (esses padres são conhecidos como viri probati).

A discussão, ninguém mais esconde, já está sobre a mesa. Embora afete apenas colateralmente o tema do celibato. Baldiseri engoliu em seco algumas vezes nesta quinta quando foi recordado que figuras de peso como o cardeal Gerhard Müller, ex-prefeito para a Doutrina da Fé da Santa Sé, tinham tachado de herege o tratamento dado ao assunto. “Não é um documento pontifício”, desculpou-se, em referência ao instrumento de trabalho sobre o qual se debaterá, levando-se em conta que “o celibato é um dom da Igreja”. A Amazônia, entretanto, servirá como laboratório para uma série de debates por tanto tempo postergados e de consequências ainda imprevisíveis.


El País: STF estende suspense sobre decisão final que afeta Lava Jato

Magistrados acordaram fixar tese sobre manifestações de réus e delatores nos processos, mas sessão é interrompida e não será retomada nesta quinta-feira

Supremo Tribunal Federal resolveu estender o suspense a respeito de uma decisão crucial para a Operação Lava Jato. O presidente da corte, Antonio Dias Toffoli, interrompeu a sessão prometendo retomar os trabalhos nesta quinta-feira para estabelecer o alcance do entendimento da corte de que os réus têm direito de ser ouvidos na fase final do processo após a manifestação de quem os delata —algo com potencial de afetar até 90% das condenações da Lava Jato, entre elas ao menos uma envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No entanto, o desfecho desta nova novela do Supremo terá de esperar ainda mais. No fim da noite, a assessoria do tribunal confirmou a informação que circulava na imprensa de que o julgamento seria adiado.

Mais uma vez, se fez presente um dos maiores poderes do Supremo, o de ditar discricionariamente a pauta, quer seja pela prerrogativa de Toffoli de ditar a agenda ou dos demais integrantes de paralisar qualquer sessão com um pedido de mais tempo de análise, o chamado "pedido de vistas". De acordo com o site Jota, o motivo oficial do adiamento é a ausência de um dos ministros. Seja como for, o tribunal como um todo ganha tempo diante de uma de suas decisões mais impopulares nos últimos anos, a de possivelmente anular dezenas de sentenças da Lava Jato.
O debate ficou paralisado nos seguintes termos: os ministros decidiram que fixariam uma “tese de orientação judiciária” acerca do tema, ou seja, formulariam uma orientação aos demais magistrados nos casos futuros e decidir os efeitos nas sentenças do passado. A sessão em Brasília começou pelo julgamento do caso original que suscitou a discussão, o do ex-gerente Márcio de Almeida Ferreira, condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro na Lava Jato. Acabou com o placar de 6 a 5 a favor dele. Os ministros entenderam que Ferreira foi prejudicado porque o juiz determinou que ele apresentasse suas alegações finais antes dos delatores que o acusaram de participar de um esquema que desviou 37 milhões de reais da petroleira estatal. Daí, os ministros começaram a debater se o resultado deveria ou não ter repercussão em casos semelhantes: 8 dos 11 concordaram que era necessário estabelecer a “tese de orientação judiciária”, um instrumento proposto pelo presidente do Supremo, Antonio Dias Toffoli.
Só quem votou contrariamente a essa solução foram: Alexandre de Moraes, Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandovski. Cada um com um entendimento diferente. Moraes entendeu que o que deveria ser votado era uma súmula vinculante, que obrigaria os demais magistrados a seguirem a decisão do Supremo. Lewandovski diz que o termo usado por Toffoli está equivocado, que ele deveria requerer uma modulação —proposta que depende de oito e não apenas seis votos para ser aprovada—. “Ainda que se chame um gato de cachorro, ele não deixará de miar”, ironizou. Já Marco Aurélio entendeu que, ao se criar uma tese, ignora-se os casos individuais.

Tese e efeitos sobre Lula

Toffoli pretende criar um marco legal que dificulte a apresentação de recursos às instâncias superiores e quer padronizar a ação de magistrados, uma espécie de efeito limitador para o abalo dana Lava Jato. A apresentada pelo presidente do Supremo tem dois tópicos: 1) Em todos os procedimentos penais é direito do acusado delatado apresentar as alegações finais após o acusado que tenha celebrado acordo de delação premiado devidamente homologado; 2) Para os processos já sentenciados é necessária a demonstração do prejuízo, que deverá ser aferido no caso concreto pelas instâncias competentes. Neste segundo tópico, ele quer que só tenha acesso à segunda ou terceira instâncias caso tenha reclamado já na primeira instância.Em caso de aprovação dessa tese, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não seria beneficiado por ela no caso pelo qual está preso, o do tríplex do Guarujá. Condenado em duas instâncias pelo crime de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, esse processo de Lula não teve delator.

O petista ainda responde a outros dois processos em Curitiba, nos casos envolvendo a doação do terreno do Instituto Lula e o do sítio de Atibaia —neste último, pelo qual já foi condenado em primeira instância, houve os delatores da Odebrecht.A ideia de delimitar os efeitos da decisão e minimizar os efeitos sobre a Lava Jato foi criticada no Twitter por Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da USP. "O STF reconheceu violação a contraditório, ampla defesa e devido processo legal. Dizer que a decisão só aproveita a quem pediu desde o primeiro grau é incompatível com a natureza da nulidade reconhecida, que apontou violação grave à Constituição", afirmou.Ao longo de quase quatro horas de julgamento, foi o ministro Gilmar Mendes quem protagonizou o momento mais tenso no STF, ao discursar sobre a Operação Lava Jato e as mensagens de procuradores publicadas pelo The Intercept em parceria com outros jornais, entre eles o EL PAÍS.
Em referência ao ex-juiz Sergio Moro e ao procurador Deltan Dallagnol, Gilmar afirmou que os processos da Lava Jato foram conduzidos por “gangsters” que usavam prisões provisórias “como instrumento de tortura”.“Quem defende tortura não pode ter assento na Corte Constitucional. O Brasil viveu uma era de trevas no que diz respeito ao processo penal”, acrescentou o ministro. Diante de seus colegas, chegou ler algumas das mensagens que citam os magistrados do Supremo: "Aha uhu o Fachin é nosso", "In Fux We Trust", Cármen Lúcia é “frouxa”, todas citadas por procuradores em diálogos no aplicativo Telegram que acabaram vazados pelo The Intercept. Após o discurso de Gilmar, o ministro Marco Aurélio questionou: “Presidente, o que estamos julgando?”.Marco Aurélio tem sido um dos principais críticos da corte com relação à mudança de conduta na análise dos casos da Lava Jato. “A guinada não inspira confiança. Ao contrário, gera o descrédito sendo a história impiedosa. Passa transparecer a ideia de um movimento para dar o dito pelo não dito em termos de responsabilidade penal, com o famoso jeitinho brasileiro. E o que é pior, não em benefício dos menos afortunados, mas dos tubarões da República”.
Pelos votos das últimas duas sessões, a tendência é que a tese de Toffoli seja aprovada. No mês passado, quando o STF começou a mudar de posição, os procuradores da República informaram que poderiam ser anuladas “32 sentenças, envolvendo 143 dentre 162 réus condenados pela operação Lava Jato". “Não houve tempo para precisar quantos seriam beneficiados, contudo, se o entendimento for restringido para réus que expressamente pediram para apresentar alegações finais em momento subsequente àquele dos colaboradores. Esta última análise está sendo realizada”, completaram em nota. O caso em análise era o do ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil, Aldemir Bendine. Ele foi beneficiado por uma decisão da 2ª Turma do Supremo que devolveu seu caso à fase de alegações finais porque ele não teve o direito de se manifestar após os delatores.

Assim contamos a sessão do STF nesta quarta-feira, em tempo real:

Adere a

El País: Os impactos da reforma da Previdência na desigualdade, segundo economistas de esquerda

Em reta final, Senado aprova texto que altera aposentadoria dos setores público e privado. Pontos complicados, como inclusão de Estados e municípios, serão tratado em PEC paralela

Senado Federal aprovou nesta terça-feira em primeiro turno a reforma da Previdência. Por 56 votos a 19, os senadores referendaram um Projeto de Emenda a Constituição (PEC) que prevê uma série de mudanças no sistema de aposentadorias e de pensões do setor público e privado. O relatório do senador Tasso Jereissati (PSDB) manteve o conteúdo principal aprovado por deputados no início de agosto para garantir sua promulgação imediatamente depois da votação em segundo turno na Casa. A condição para a aprovação do texto-base foi a criação da chamada PEC Paralela, que abriga pontos divergentes que saíram da PEC principal.

Seja como for, uma das mais ambiciosas reformas prometida por Jair Bolsonaro e ansiadas pelos investidores do mercado financeiro está a apenas uma votação — prevista para acontecer até 15 de outubro — para virar lei. O texto aprovado nesta terça tem uma modificação relevante a respeito às pensões: ao contrário do que determinou a Câmara, uma viúva não poderá receber menos de um salário mínimo, hoje em 998 reais. Com isso, a economia aos cofres públicos será de 876 bilhões de reais em dez anos, ao invés dos mais de 1 trilhão que o Governo de Jair Bolsonaro previa ao enviar a proposta original ao Parlamento.

A oposição ao Planalto passou meses fazendo campanha contra a reforma e acusando as mudanças de prejudicarem preferencialmente os mais pobres. Até que ponto têm razão em suas críticas? Para entender o quadro, o EL PAÍS conversou com quatro economistas do campo progressista que estão engajados no debate sobre o projeto da reforma da Previdência: Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda do Governo Dilma Rousseff e professor da FGV e da UnB; Marcelo Medeiros, especialista em desigualdade e pesquisador do IPEA; Nelson Marconi, coordenador do programa de Governo de Ciro Gomes e professor da FGV; e Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Unicamp.

Os quatro possuem opiniões distintas sobre a reforma e fazem diferentes graus de críticas a ela. Mas coincidem em dizer que os pontos considerados mais problemáticos foram retirados e os direitos mais básicos foram mantidos. As mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e na aposentadoria rural foram deixados de lado, enquanto que permaneceu o piso de um salário mínimo de aposentadoria. Isso significa que tanto os trabalhadores rurais como aqueles trabalhadores urbanos que ganham um salário mínimo — 63% de todos os aposentados do regime geral — foram preservados. De mais problemático, do ponto de vista da distribuição dos sacrifícios, está a concessão feita a categorias como policiais federais, por exemplo. Também está pendente a reforma para os militares.

Além disso, as mudanças nas regras do abono salarial, um 14º salário pago pelo Estado a trabalhadores que recebem até dois salários mínimos, foram deixadas de lado pelos senadores. Já o plano de implementar um regime de capitalização, em que cada trabalhador passa a ter uma conta individual, foi retirado do texto-base ainda na Câmara. Por fim, o tempo de contribuição mínimo para se aposentar continua sendo de 15 anos, tanto para mulheres como para homens — no caso destes últimos, os que entram no sistema agora terão que contribuir um mínimo de 20 anos. Apesar da campanha contrária de parlamentares à esquerda, os economistas consultados também concordam com a extinção da aposentadoria por tempo de contribuição, mantendo apenas o regime de idade mínima — os dois modelos coexistem atualmente.

Como pano de fundo está a explosão do gasto do Governo Federal com aposentadorias do INSS, servidores federais e militares. Dos mais de 767 bilhões de reais previstos em despesas previdenciárias em 2019, mais de 300 bilhões são recursos do Tesouro Nacional — o chamado déficit — enquanto o restante é proveniente da contribuição de trabalhadores e empregadores. Em 2008, esse déficit era de 77 bilhões. O envelhecimento da população somado à antigos privilégios do funcionalismo estão entre os fatores que causaram a explosão das despesas, coincidindo nos últimos anos com a crise econômica, desemprego e queda na arrecadação.

Quem mais contribui para a economia gerada

As lideranças da esquerda vêm argumentando que de cada 100 reais de sacrifício, ou seja, que saem do bolso dos contribuintes, mais de 80 reais serão cobrados de quem ganha até 2.000 reais. As principais queixas dizem respeito às mudanças aplicadas ao regime geral do INSS, responsável pelo benefício dado ao setor privado —isto é, a imensa maioria da população.

Entre as alterações que atingem a maior faixa de trabalhadores estão o fim da aposentadoria por tempo de contribuição e o estabelecimento de uma idade mínima para todos, de 65 anos para homens e 62 para mulheres; a mudança na base de cálculo da aposentadoria, que passa a considerar todos os salários ao invés dos 80% maiores, como acontece hoje; e a necessidade de que mulheres contribuam por 35 anos e homens 40 para que consigam aposentadoria integral, cinco anos a mais que atualmente, afetando aqueles que ganham entre 1,5 e 2 salários mínimos.

A afirmação de lideranças progressistas de que o grosso da economia virá dos trabalhadores que ganham até dois salários mínimos pode ser considerada uma meia verdade. "Qualquer economia grande que você queira fazer vai ter que afetar a massa das pessoas de renda mais baixa. É a massa dos beneficiários", explica Medeiros. Barbosa segue na mesma linha: "No agregado a maior economia vem do regime geral do INSS porque é o maior programa. Mas o correto é medir o impacto per capita da reforma. Quando você olha para o impacto em cada pessoa, então a maior economia é no setor público", afirma. Segundo os cálculos feitos pelo economista Carlos Góes e publicados na Folha de S. Paulo, aposentados com até dois salários mínimos contribuirão, cada um, com 11.519 reais ao longo de 10 anos para a economia gerada com a reforma da previdência. Já os aposentados do setor público contribuirão com 75.694 reais.

Contudo, Marconi chama atenção para o fato de que, mesmo o ajuste per capita sendo maior para quem ganha mais, qualquer impacto na renda de quem ganha menos é muito mais sentido. Isto é, o real que o mais pobre economiza impacta mais a sua vida que o real economizado pelo mais rico. "Está correto colocar idade mínima e manter o tempo de contribuição mínimo em 15 anos. O problema é que você já não vai receber o valor da aposentadoria integral com esse tempo mínimo, mas sim 60%. E a base de cálculo da aposentadoria também muda e passa a considerar todas as remunerações", explica. Outros economistas que se especializaram na questão previdenciária vêm apontando, contudo, que a imensa maioria das aposentadorias integrais já correspondem a um salário mínimo, que é o valor do piso do INSS. Marconi rebate: "Ainda assim há um número considerável de pessoas que ganham acima disso. Só em 2017, 290.000 pessoas se aposentaram ganhando entre 1 e 2 salários".

O resultado, explicam tanto Marconi como Medeiros, é que mais pessoas passarão a ganhar o piso de um salário mínimo. "O custo mais alto é para quem está ganhando acima de 1,5 salários. Para essas pessoas a perda vai ser mais forte", afirma Medeiros. A afirmação parece coincidir com os cálculos publicados por Góes: se a economia per capita gerada com quem ganha até dois salários é consideravelmente menor, a poupança com aqueles que ganham logo acima disso, isto é, mais de dois salários mínimos, salta para 60.463 reais por pessoa.

Idade mínima e tempo de contribuição

Aumentará então a desigualdade social? "Quando a renda é muito concentrada, você vai combater a desigualdade mudando os benefícios dos mais ricos, coisa que não é muito assunto da previdência", explica Medeiros. "A pergunta que deve ser feita é: em que medida essa reforma vai ser paga por gente de renda mais baixa? Nesse sentido, a reforma possui aspectos progressivos e outros regressivos", aponta. Entre os pontos que ele considera igualitário estão a manutenção do piso de um salário mínimo e a implementação da idade mínima, fortemente combatida pela esquerda, de 65 anos para homens e 62 para mulheres. Hoje, apenas os que possuem salários mais altos e emprego estável ao longo da vida conseguem se aposentar com mais de 30 anos de contribuição e idade indefinida, enquanto os mais pobres — a maioria dos beneficiários do INSS — já se aposentam por idade.

Entre outras mudanças consideradas progressivas estão as alíquotas de contribuição previdenciária. Os servidores públicos contratados através de concurso público até 2012 deverão pagar, antes e depois da aposentadoria, alíquotas que variam de 7,5% a 22%, ao invés dos atuais 11% para todas as faixas salariais. Já no regime geral as alíquotas vão variar de 7,5% a 14%, ao invés dos atuais 8% a 11%. "As alíquotas progressivas são boa notícia, mas são menos progressivas do que parecem. Isso porque as alíquotas mais altas pagas à Previdência implicam descontos mais altos no Imposto de Renda, que é calculado sobre a renda bruta menos as contribuições previdenciárias", explica Medeiros. "Acaba que o Imposto de Renda passa a financiar uma parte da Previdência".

Nelson Barbosa acredita que a reforma avança no caminho correto e corrige várias distorções. Mas ele acredita que outras estão sendo criadas. Uma delas tem a ver com o tempo de contribuição. De acordo com as novas regras aprovadas pela Câmara, os trabalhadores que atingirem a idade mínima e se aposentarem com o mínimo de 15 anos de contribuição receberão 60% da média de suas remunerações ao longo da vida. Para conseguir o valor integral, isto é, os 100% da média de salários que ganhou ao longo da vida, será preciso trabalhar o mínimo de 35 (mulheres) e 40 anos (homens). "A nova regra diz que você ganha 2% por cada ano adicional de trabalho. Por essa regra os homens chegariam com 100% aos 35 anos, não 40. Faltou uma negociação mais sofisticada, porque você está considerando 15 anos para o acesso à aposentadoria e 20 anos para o cálculo. Isso vai gerar contestação judicial lá na frente". O economista também defende um sistema de bônus para as pessoas que queiram e possam trabalhar mais. "O tempo para receber o valor integral deve permanecer em 35 anos. Depois disso, você ganharia um adicional. Isso estimula as pessoas que podem e querem trabalhar 37 ou 40 anos".

O que a esquerda poderia ter proposto

Além de todas as questões expostas, a esquerda poderia ter proposto alternativas à reforma apresentada? Marconi defende o projeto apresentado por Ciro Gomes no ano passado, baseado em três pilares: uma renda mínima universal de um salário mínimo para idosos; um sistema solidário de repartição, como o que funciona hoje, com uma idade mínima a ser reajustada automaticamente de tempos em tempos e um teto do INSS pouco menor – entre 4.500 e 5.000 reais –; e um sistema de capitalização público bancado por trabalhadores e empregadores. “Tem também a questão da acumulação de aposentadorias em cargos, colocaríamos um limite para isso. E reveríamos isenções para o Simples Nacional, ruralistas...”, afirma.

Já Barbosa considera que a esquerda errou em combater a idade mínima. Ele também defendia as mudanças no abono salarial, muito impopulares. O Senado acabou mantendo o benefício para pessoas que ganham até 2.000 reais, ao invés do teto de 1.364,43 reais aprovado anteriormente pelos deputados. "É um benefício criado na época da ditadura, quando o salário mínimo valia bem menos e ainda não havia seguro desemprego, BPC ou Bolsa Família. É preferível usar parte desse dinheiro do abono para criar novos empregos. O problema é que existe uma desconfiança e nada garante que o Governo usaria para isso", argumenta.

Assim, "ao invés de defender uma realidade que não existe mais", o campo progressista deveria abrir novos caminhos e inserir novos temas no debate. Um deles diz respeito a uma renda mínima universal para idosos. Ao chegar a determinada idade, todos teriam direito a ganhar um benefício mínimo, que deveria ser enquadrado como assistência social. Apesar da complexidade e dos limites fiscais atuais, Barbosa acredita se tratar de uma solução permanente e que resolveria de uma vez qualquer debate sobre o BPC e aposentadoria rural. "Mas então significa que vou dar um benefício para o Lemann [bilionário dono da Ambev]? Não. Se uma pessoa de alta renda tem acesso a esse benefício, a gente compensa pelo Imposto de Renda, que deve ser mais progressivo. No mundo da inteligência artificial, um sistema integrado de controle e coordenação dos benefícios está ao alcance do governo", explica. Outra possibilidade, acrescenta, seria estender esse benefício para crianças de zero a 15 anos, nos moldes da proposta de Tabata Amaral e Filipe Rigoni.

Para que a reforma fosse mais progressiva, Marcelo Medeiros sugere alterar a estrutura de desconto no valor da aposentadoria. “Com a reforma, ela é basicamente linear. Todo mundo se aposenta com 60% do salário e depois adiciona 2% por ano a mais contribuindo. Mas essa estrutura é regressiva porque aqueles que contribuirão mais tempo são também aqueles que possuem renda mais alta. Então, na prática, eles não vão chegar a perder todos os 40% do salário”, explica. Uma possibilidade é que as alíquotas fossem diferenciadas, ou seja, de acordo com o que cada um venha a receber de aposentadoria e com um desconto menor sobre o primeiro salário mínimo, segundo explica. “Mas teria que ver se é viável. Não fiz os cálculos e não sei quanto custaria”, admite.

Já Fagnani recorda que o regime geral passou por alterações nos últimos anos que desestimulam a aposentadoria precoce. Apesar de também ser a favor de uma idade mínima obrigatória para todos, diz que os problemas do setor privado são mais pontuais e que os principais já foram equacionados. Também lembra que Governo Lula realizou uma reforma do setor público em 2003 que soluciona seus problemas fiscais em longo prazo. Mais crítico à reforma enviada pelo Governo Bolsonaro, o professor da Unicamp acaba de lançar o livro Previdência: o debate desonesto. "O pessoal trata a Previdência como uma entidade única, um sistema único. São realidades e especificidades muito marcadas. Você não pode usar o argumento do sujeito que entrou no serviço público em 1980 e se aposentou com paridade e integralidade para fazer uma reforma que visa a combater privilégios em que a maior economia vem do regime geral". Ele é a favor de tratar cada problema e distorção separadamente, ao invés de colocar tudo em um grande pacote de reforma. "Isso é algo intencionalmente feito para confundir", argumenta.

Distorções e o que ficou de lado

Entre os aspectos mais negativos e regressivos da reforma, Medeiros, Barbosa e Marconi apontam para os benefícios aprovados para policiais federais e rodoviários. As regras mais brandas para essas categorias foram patrocinadas pelo Governo Bolsonaro durante a votação dos destaques na Câmara, mas contou também com o apoio dos deputados da esquerda. "Eles tem rendas mais altas, vão poder se aposentar muito mais cedo e isso tem um custo bastante alto", afirma Medeiros.

Além disso, os quatro economistas concordam em que as maiores fontes de despesas estão na Previdência dos militares. O Governo enviou a reforma separadamente junto com a reestruturação da carreira. Na prática, pouco será economizado com eles. "O problema é que estão reformando o que já vinha sendo reformado nos últimos anos, mas estão deixando de fora o que nunca foi reformado. Do ponto de vista dos privilégios, o problema dos militares é muito maior", afirma Fagnani.

O professor da Unicamp defende, além disso, um empenho maior do Governo Federal para reformar os sistemas de pensão públicos dos Estados e municípios. Suas despesas previdenciárias crescem acima da média, mas ficaram de fora da reforma. O senado voltou a incluí-los na PEC paralela. Caso não seja aprovada, deverão se adequar por conta própria. "Alguns se adequaram às normas de 2003 e outros não. Há questões de paridade e integralidade que são um escândalo", afirma.

E como atacar o atual desequilíbrio fiscal? Além de reformas pontuais na Previdência que admite fazer, Fagnani levanta dois temas nos quais a esquerda costuma sempre insistir: uma reforma tributária progressiva que atinja as rendas mais altas e o fim dos benefícios fiscais dados a empresas. Significa atacar o problema não só pela via da despesa, mas sobretudo pela via da arrecadação. "É como se a solução tivesse que sair do andar de baixo sempre, não do de cima".


El País: Gilmar Mendes atende Flávio Bolsonaro e reforça veto à investigação do escândalo Queiroz

Ministro acatou o argumento da defesa de que a investigação seguiu, mesmo depois de Toffoli bloquear o uso de informações obtidas pelo Coaf sem autorização judicial

Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), o primogênito do clã Bolsonaro, conseguiu mais uma vitória estratégica no Supremo Tribunal Federal (STF). Em decisão da última sexta-feira, que veio à tona nesta segunda, o ministro Gilmar Mendes acatou o pedido do senador carioca e paralisou as investigações contra ele pelo chamado caso Queiroz, que corre na Justiça do Rio. Na sentença, que reforçou o veto às investigações contra o filho do presidente, Mendes reafirma que estão paralisadas as diligências relativas ao caso, que apura a movimentação milionária do ex-assessor da família Bolsonaro captada no ano passado pelo Coaf (Conselho de Controle Atividades Financeiras), e as suspeitas de lavagem de dinheiro do próprio senador.

A decisão de Mendes acata o argumento da defesa de Flávio, que afirma que os investigadores do caso, no Rio, estariam descumprindo uma decisão do presidente da Corte, Antonio Dias Toffoli, tomada em julho. Nessa decisão, Toffoli, também seguindo pedido da defesa do senador, suspendeu todos os inquéritos que usam dados sigilosos de órgãos de controle, entre eles o Coaf, sem autorização judicial. Os advogados do filho do presidente da República afirmam que o sigilo dele já havia sido quebrado antes mesmo de qualquer decisão judicial. E que mesmo com a decisão anterior de Toffoli as investigações contra ele prosseguiram.

Em sua decisão publicada nesta segunda, Mendes afirmou que os fatos "são graves". Ele paralisou o inquérito até que a decisão liminar de Toffoli seja julgada pelo pleno da Corte, em 21 de novembro. E também determinou ao Conselho Nacional do Ministério Público que apure a "responsabilidade funcional" dos membros do Ministério Público do Rio de Janeiro no compartilhamento de dados do Coaf com os promotores do caso. "Ao invés de solicitar autorização judicial para a quebra dos sigilos fiscais e bancários, o Parquet estadual requereu diretamente ao Coaf, por email, informações sigilosas, sem a devida autorização judicial, de modo a nitidamente ultrapassar as balizas objetivas determinadas na decisão [de Toffoli]", destacou ele, no despacho.

A investigação que envolve Flávio começou em dezembro passado com o objetivo de apurar movimentações financeiras de seu ex-assessor Fabrício Queiroz. O Coaf havia identificado uma movimentação suspeita de 1,2 milhão de reais na conta de Queiroz, que trabalhou até 15 de outubro de 2018 no gabinete de Flávio, que era, então, deputado estadual no Rio. Ao abrir a investigação, o Ministério Público Federal havia pedido ao Coaf um pente fino em todas as contas de funcionários e ex-trabalhadores da Assembleia com transações financeiras suspeitas, o que levou dez deputados estaduais à prisão em novembro. Documentos apontam que Flávio também recebeu em sua conta um total de 48 depósitos, todos no valor de 2.000 reais, somando 96.000 no total, que ele afirma que se referem à parcelas da venda de um imóvel.

Nos últimos dias, Flávio, que diminuiu seu protagonismo público desde o início das investigações, voltou aos holofotes, diante de críticas da própria base que elegeu seu pai. Ele se posicionou contrariamente à abertura da CPI da Lava Toga, defendida por lavajatistas, que pretendem apurar supostas irregularidades nas decisões dos ministros do Supremo.


El País: Pobreza na Argentina sobe oito pontos em um ano e atinge 35,4% da população

Dado se refere ao primeiro semestre e ainda não inclui o recente aumento da inflação no país, que chegou a 60% ao ano. Ele aponta que há 15 milhões de pessoas a mais na pobreza agora que em 2018

A pobreza chega a níveis devastadores na Argentina. 35,4% da população, 8,1 pontos a mais do que há um ano, e 25,4% dos lares não podem pagar uma alimentação básica. São mais de 15 milhões de pessoas. O dado, publicado na segunda-feira pelo Instituto Nacional de Estatística, se refere ao primeiro semestre do ano, de modo que não inclui a desvalorização de 12 de agosto e o aumento subsequente da inflação a 60% anual. Isso significa que a situação, agora, deve ser ainda pior. O cálculo é que até o final do ano a pobreza afetará 37% da população.

O novo índice de pobreza é, talvez, a pior notícia recebida por Mauricio Macri em seus quatro anos como presidente. Pior do que o recurso ao FMI, o “default” parcial, a recessão e o fracasso da luta contra a inflação. Chegou ao cargo pedindo aos argentinos que o julgassem pelo sucesso ou fracasso na luta contra a pobreza, e os números não admitem discussão. Herdou de Cristina Kirchner uma pobreza de 29%, de acordo com estimativas da Universidade Católica (o kirchnerismo interrompeu as medições oficiais) e a deixará em mais de 35% ao próximo presidente, que provavelmente não será ele, e sim o peronista Alberto Fernández. Os técnicos calculam que no final do ano, quando o novo mandato começar, o número estará por volta de 37%.

“Ainda que esse número doa, é preciso olhá-lo de frente, como fizemos todos os anos”, disse Macri sobre o dado da pobreza. Pediu “consenso” para combater o empobrecimento da população e frisou que sua política sempre foi de medir a pobreza, “não escondê-la”, em referência à presidenta anterior.

Os dados do Instituto Nacional de Estatística também revelam que 7,7% dos argentinos são indigentes, e que 50% dos menores de idade, um em cada dois, vivem na pobreza. Os alimentos básicos encareceram, entre junho de 2018 e junho de 2019, 58,3%, enquanto os salários e aposentadorias foram reajustados somente em 35%. Essa defasagem explica que um número crescente de pessoas não possa pagar a comida. Também incidem o maior desemprego, a transformação de empregos regulares em informais e a deterioração dos benefícios sociais.

Além de “olhar de frente” para o aumento da pobreza, Mauricio Macri precisa “olhar de frente” para as eleições, em 27 de outubro, nas quais, se as tendências mostradas pelas primárias de 11 de agosto se confirmarem, se arrisca a sofrer uma ampla derrota. O presidente enviou, através de sua conta no Twitter, uma mensagem aos argentinos em que anunciava que iria “mudar o que fosse preciso mudar” para aliviar a situação do país. “Sei que está irritado, com raiva”, escreveu. Depois afirmou que disse a verdade à população, que combateu o tráfico de drogas e que melhorou a infraestrutura, e prometeu que o futuro da economia será “melhor”.

O presidente multiplica sua atividade para melhorar suas perspectivas eleitorais. Sua reeleição é muito difícil, mas o essencial ao macrismo, agora, é que a coalizão que governou durante os últimos quatro anos mantenha uma presença relevante no futuro Parlamento. Macri disse na segunda-feira que aliviaria o desemprego (10,6% da população em idade de trabalho) suprimindo impostos às pequenas empresas. Mas também publicou um decreto que, modificando o sistema de cálculo, reduzia substancialmente as indenizações por acidente de trabalho, incapacidade definitiva e morte. Os sindicatos consideram que a medida significaria um empobrecimento posterior dos assalariados e começaram a preparar a apresentação de um recurso de inconstitucionalidade contra o decreto.


El País: As batalhas (e derrotas) que a Lava Jato deve enfrentar no STF até o fim do ano

Força-tarefa vive semana de revezes, mas processos envolvendo a operação ainda estão longe do fim. Supremo deve julgar casos que tratam da condenação após segunda instância e pedido de suspeição de Sergio Moro nos próximos dois meses

Ministro do STF responsável por um pedido de vista desde dezembro do ano passado, Gilmar Mendes deve levar o caso da suspeição de Moro à segunda turma em novembro. Dois ministros do Supremo (Cármen Lúcia e Edson Fachin) Já votaram contra o pedido de suspeição feito pela defesa de Lula.

A ideia dos defensores é pedir a anulação da condenação do ex-presidente sob o argumento de que Moro não era um juiz imparcial, já que meses após condenar o petista aceitou se tornar ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, um de seus principais adversários políticos. O advogado de Lula, Cristiano Zanin Martins, diz que há uma “manifesta parcialidade de Moro”, que acabou sendo comprovada pelas mensagens difundidas pelo site The Intercept Brasil em parceria com outros meios de comunicação, entre eles o EL PAÍS, no caso conhecido como Vaza Jato. Nesse caso, além de Gilmar Mendes, ainda faltam votar os ministros Celso de Mello e Ricardo Lewandovski.

Já o caso das prisões em segunda instância depende de três ações declaratórias de constitucionalidade distintas que foram apresentadas pelos partidos Patriota e PCdoB e pela Ordem dos Advogados do Brasil. Todos relatados pelo ministro Marco Aurélio. O caso estava em pauta em abril deste ano. Mas antes de seu julgamento, a OAB pediu o adiamento da análise para que seu novo presidente, Felipe Santa Cruz, pudesse tomar pé da situação.

Em síntese, as ações pedem que todos os réus possam recorrer de suas sentenças em liberdade até trânsito em julgado de seu processo, ou seja, quando não couber mais recurso. Como medida alternativa, eles pleiteiam que, antes da prisão, seja aguardada a análise de recursos ao Superior Tribunal de Justiça, que é uma espécie de terceira instância judicial. Pelas regras de hoje, os condenados em segunda instância (que são órgãos colegiados) já podem cumprir suas penas detidos. No calendário informal do Supremo é esperado que esse caso entre na pauta de outubro. Mas o presidente da Corte, Dias Toffoli, tem sido zeloso em levar temas espinhosos ao plenário. Ele costuma dizer a seus aliados que não quer conturbar ainda mais o cenário político do país, que está rachado desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) em agosto de 2016.

Ao sabor dos ventos

Um servidor que há 12 anos acompanha o dia a dia do Supremo fez a seguinte análise sobre os próximos casos a serem julgados na Corte: “Se a votação ocorresse há alguns meses, saberíamos exatamente como cada um votaria. Diante do julgamento de quinta [que pode anular dezenas de casos da Lava Jato], já não podemos mais ter tanta certeza”.

Dois votos surpreenderam os observadores do judiciário nessa sessão citada pelo funcionário, o de Rosa Weber e o de Celso de Mello. Ela costuma se filiar às teses defendidas por Edson Fachin e Roberto Barroso. Na sessão de quinta-feira, 26 de setembro, Fachin e Barroso, foram derrotados no plenário ao votarem contra a anulação do processo de um ex-gerente da Petrobras que se queixava de ter tido seu direito de defesa cerceado ao não ter apresentado suas alegações finais após outro corréu que era delator. Já Mello é mais independente. Como decano, ele costuma servir de bússola para as interpretações do Supremo. Nos últimos casos emblemáticos, ele tem se unido mais aos magistrados que tem “derrotado” a Lava Jato do que aos que a defendem enfaticamente.

Cármen Lúcia é outra sob a qual pairam dúvidas. Assim como Rosa Weber, ela era do grupo de Fachin e Barroso. No caso de quinta e no julgamento do ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil, Aldemir Bendine, contudo, ela beneficiou os réus.

Primeira etapa

Os efeitos dos primeiros ataques à Lava Jato já começaram a ser sentidos. Desde que o Congresso derrubou 18 vetos do presidente Jair Bolsonaro ao texto aprovado pelo Legislativo juízes ao redor do país passaram a soltar criminosos. Um dos casos ocorreu em Garanhuns (Pernambuco) em que uma juíza disse que decidiu soltar 12 suspeitos de assassinatos, tráfico de drogas e armas por imposição da Lei de Abuso de Autoridade. A lei tornou crime manter alguém preso quando “manifestamente” cabível sua soltura ou cumprimento de medida cautelar.

A nova legislação sofreu forte oposição de entidades de promotores, juízes e procuradores da República, ligados à Lava Jato ou não. A Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público disse que recorrerá ao Supremo para declarar trechos da lei inconstitucional. Conforme a entidade, o projeto prejudica o “combate à impunidade, à criminalidade e a ilegalidades” no país.

Na próxima quarta-feira, 2 de outubro, o Supremo retomará também o julgamento da ação que já atingiu sua maioria pela anulação das condenações em que os réus delatados não puderam se manifestar no processo depois dos réus delatores, estes são os que fizeram acordos, apresentaram acusações para reduzirem suas penas.

Além disso, há ainda dúvidas sobre como atuará o novo procurador-geral da República, Augusto Aras. Na sua sabatina no Senado Federal nesta semana, quando foi aprovado para o cargo, ele defendeu a operação, mas teceu críticas ao “ativismo judiciário” advindo dela e de outras investigações nos últimos anos.


El País: STF reage a Janot usando controverso inquérito que investiga ‘fake news’

Um dia depois de o ex-procurador-geral da República revelar que pensou em matar o ministro Gilmar Mendes, Polícia Federal faz apreensão em sua casa. Mesmo processo já serviu para censurar revista e solicitar mensagens hackeadas

O que surgiu como uma aparente tentativa de promoção de um livro de memórias virou caso de polícia. Um dia depois de o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot revelar em entrevistas que pensou em matar o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, a Polícia Federal foi bater em sua casa e em seu escritório, ambos em Brasília. De acordo com o site jurídico Jota, foram apreendidos uma pistola, três pentes de munição, um celular e um tablet. O procedimento foi autorizado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, no escopo do controverso inquérito 4.781, aberto de ofício (por conta própria, sem a iniciativa do Ministério Público) — e que segue sob sigilo — a partir de iniciativa do presidente do Tribunal, Antonio Dias Toffoli, para investigar ataques e fake news contra a Corte Suprema.

Após a publicação das entrevistas em que Janot relatou que entrou armado no STF para atirar em Gilmar e, depois, se matar, o ministro do STF pediu a retirada do porte de arma de Janot. Moraes determinou não apenas a suspensão do porte de arma, mas uma ação de busca e apreensão, porque as declarações de Janot “sinalizam a necessidade da medida para verificar a eventual existência de planejamento de novos atos atentatórios ao ministro Gilmar Mendes e as próprias dependências do Supremo Tribunal Federal”, segundo trecho da decisão. O ministro enxergou "incitação ao crime" e também proibiu o ex-procurador-geral de "aproximar-se a menos de 200 metros de qualquer um dos ministros desta corte, bem como impedir seu acesso ao prédio sede e anexos deste tribunal".

Em abril, a então procuradora-geral da República Raquel Dodge pediu o fechamento do inquérito utilizado agora para reagir às declarações de Janot. Ao negar o pedido, Alexandre de Moraes explicou que "o objeto deste inquérito é claro e específico, consistente na investigação de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandidiffamandi ou injuriandi, que atinjam a honorabilidade institucional do Supremo Tribunal Federal e de seus membros, bem como a segurança destes e de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos ministros".

O escopo é amplo o bastante para embasar decisões bem distintas. Desde que foi aberto, em março deste ano, o inquérito 4.781 já foi usado para retirar uma reportagem da revista eletrônica Crusoé do ar e solicitar que as mensagens hackeadas de procuradores da Lava Jato fossem encaminhadas para o Supremo. A utilização do inquérito das fake news para agir contra Janot, agora, é uma forma de acelerar um processo de investigação que teria de passar, em situação normal, pelo Ministério Público. Como o ex-procurador se aposentou em abril deste ano, já não é mais membro do MPF e não tem, por isso, foro privilegiado para ser julgado pelo STF. O rito habitual para investigar qualquer pessoa comum seria acionar a procuradoria estadual e os promotores poderiam determinar, se fosse o caso, um processo de busca e apreensão, explica a advogada constitucionalista Vera Chemim.

A especialista afirma, entretanto, que embora o inquérito liderado pelo ministro Alexandre de Moraes tenha "ressalvas do ponto de vista constitucional", já que atribui ao STF funções que não cabem a ele, como a de investigação e a de acusação, o argumento utilizado por ele justificaria a ação contra Janot, porque visa saber se há o planejamento de um crime contra Gilmar. Ela afirma que a busca e apreensão também se justificam pelo artigo 240 do Código do Processo Penal, que fundamenta a ação no objetivo de "apreender armas e munições destinados a fim delituoso". Chemim ressalta, porém, que salvo haja algo contundente em relação a um possível planejamento, dificilmente o processo contra Janot prosperará. "Ele tem direito a ter porte de arma e não se pode incriminar o que se passa na cabeça de uma pessoa. Não tem muito onde chegar."

Janot volta a criticar STF

Janot, que permaneceu calado durante seu depoimento à Polícia, falou sobre a questão ao site Jota. “É um inquérito anômalo, para investigar fake news. A imputação é ofender a integridade corporal ou a saúde das autoridades mencionadas. O fato narrado no livro e nas entrevistas [seu desejo de matar Gilmar Mendes] não constitui crime, muito menos notícia fraudulenta", declarou, ao analisar o inquérito. "Não vejo vinculação entre o objetivo do inquérito e as medidas agora adotadas e não detenho mais prerrogativa de foro para ser investigado pelo STF. Mas confio na Justiça e que a verdade será restabelecida”, finalizou o ex-procurador-geral.

A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) condenou tanto as declarações de Janot sobre Gilmar Mendes quanto as ações de busca e apreensão na residência e no escritório do ex-procurador. "O STF não possui jurisdição sobre eventuais atos de Janot, não há contemporaneidade na suposta conduta e, o pior, a ordem foi emitida no âmbito de uma investigação inconstitucional", diz a associação em nota. Para a ANPR, "o Inquérito nº 4.781 afronta o Estado democrático de direito ao usurpar atribuição do Ministério Público, ao determinar apuração sem fato determinado, e ao violar a competência constitucional da Corte, o sistema acusatório e também o princípio do juiz natural".


Eliane Brum: Como vocês se atrevem?

Greta Thunberg e Ágatha Félix: as infâncias morrem junto com as democracias

De forma deliberada, com método, Jair Bolsonaro mostrou, na abertura da Assembleia Geral da ONU, que é capaz de tudo. A Amazônia queimou diante do mundo e o presidente contra o Brasil diz ao planeta: “Nossa Amazônia permanece praticamente intocada”. E sua mentira é traduzida para todas as línguas. Depois, ele cita um versículo da Bíblia: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Bolsonaro goza com poder dizer qualquer coisa num palanque global. É assim que ele defeca pela boca, sim, mas defeca sobre a ONU. Não está ali desqualificando a si mesmo, mas todos os outros obrigados a escutá-lo mentindo como quem respira. Não está ali demonstrando sua inépcia, mas sim tornando ineptos todos os princípios que a Organização das Nações Unidas representam. Abriu a reunião mais importante do ano defendendo uma ditadura que sequestrou, torturou e executou cidadãos em nome do Estado. Bolsonaro sabia o que fazia, faz e fez o que disse que faria, faz e fez o que foi eleito para fazer. O Brasil não tem poder atômico. É urgente compreender que o país tem, porém, o maior poder que já teve em sua história, que é o poder de destruir a Amazônia. É a maior floresta tropical do mundo que confere poder ao país que, de outro modo, seria periférico. Este é um grande poder em tempos de emergência climática, já que a floresta é essencial para a regulação do clima do planeta. E é isso que Bolsonaro está fazendo, ao cumprir, aceleradamente, a primeira etapa, que é a de desprotegê-la, enquanto prepara o terreno para a seguinte, que é abrir as áreas protegidas para exploração. Este é o alvo de seu ataque contra Raoni, líder indígena que tem percorrido a Europa para denunciar o projeto de extermínio, e também de sua afirmação de que não demarcará mais terras indígenas. Não há modo mais eficaz de desrespeitar uma casa do que dizer, dentro dela, em lugar de honra, que a despreza. Bolsonaro então alcança o clímax: afirma que as chamas que o mundo viu não existiram. A ONU, uma criatura parida pelo mundo do pós-guerra, representante das democracias liberais hoje em crise, não está preparada para lidar com os déspotas eleitos. Não foi Bolsonaro que passou vergonha, foi a ONU. Bolsonaro não tem vergonha.

Nem limites. Se as imagens da floresta em chamas não bastaram para Bolsonaro reconhecer sua dívida com a verdade, tentem imaginar até onde isso pode chegar. E pensem, porque é urgente pensar: como parar alguém que leva a mentira ao nível da perversão, quando as instituições brasileiras fracassam e fracassam e fracassam mais uma vez? O que Bolsonaro fez em 24 de setembro foi uma demonstração de força em nível global. Ele sabe para quem fala —e com quem fala.

Bolsonaro demonstrou na ONU que é um falsificador de passados, ao defender a ditadura assassina como salvadora e sua ascensão ao poder como uma vitória contra um socialismo que nunca houve no Brasil. E anunciou na ONU, ao mentir sobre a Amazônia, que será criador de um futuro hostil. É isso o que acontecerá se não for possível controlar o superaquecimento global. E, sem a floresta em pé, não será possível. O Brasil está nas mãos de um perverso. Mas não é só o Brasil, e sim o planeta que está ameaçado.

É o futuro e a infância que viverá no futuro que o antipresidente do Brasil ameaça. É de infância e futuro que quero tratar aqui. Mostrar como o conceito de infância vem sendo manipulado para destruir as crianças. Quero falar da sueca Greta Thunberg, de 16 anos, e da brasileira Ágatha Félix, de 8 anos. Uma acusou os adultos de hoje de terem roubado a infância da sua geração. A outra teve a infância exterminada à bala, possivelmente uma bala da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Pelas costas, na kombi, quando voltava para casa com a mãe, no Complexo do Alemão.

“Vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias”

Desde que despontou para o mundo, numa greve solitária em nome da emergência climática diante do parlamento sueco, em agosto de 2018, Greta Thunberg faz discursos memoráveis. Sua fala na Cúpula do Clima da ONU, em Nova York, onde chegou de barco à vela, foi a melhor. “Vocês vêm até nós, jovens, para pedir esperança. Como vocês se atrevem? Vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias. Como vocês se atrevem?”

E segue. “Isso é tão errado”, ela diz. “Eu não deveria estar aqui. Eu deveria estar na minha escola, do outro lado do oceano. E eu sou uma das [crianças, adolescentes] com sorte. Pessoas estão sofrendo, pessoas estão morrendo, ecossistemas inteiros estão em colapso, uma extinção em massa está em curso e tudo o que vocês são capazes de falar é de dinheiro e sobre contos de fadas de crescimento econômico eterno. Como vocês se atrevem?”

São muitas as infâncias. Qual é a de Greta?

Sim, Greta deveria estar na escola. Em vez disso, está liderando greves escolares pelo clima. E por que está? Porque a irresponsabilidade dos governantes e das gerações anteriores obrigou a sua geração a tentar salvar a vida de nossa espécie no planeta em processo de superaquecimento. Não apenas a vida dela, é importante sublinhar, mas a de todos, inclusive a dos adultos. Greta também acerta quando diz que ela é uma das crianças sortudas. Sim, porque Greta nasceu na Suécia, um dos países de melhor qualidade de vida, teve acesso às melhores oportunidades e à melhor educação, tem pais que compreenderam o Asperger como uma diferença —e não como uma deficiência ou doença— e que a escutaram e tiveram condições de apoiá-la quando ela compreendeu a dimensão da catástrofe climática em curso e desejou lutar.

Greta chegou aos 15 anos, idade em que inicia seu movimento global, com os direitos da infância assegurados. É também por ter vivido num país com políticas públicas capazes de garantir direitos que Greta é capaz de enxergar que sua geração está ameaçada. Inteligente, ela percebe a urgência e a aponta. É por isso que afirma que é uma das crianças “sortudas”. A catástrofe climática já começou para as crianças de porções do mundo onde os direitos da infância jamais foram assegurados por políticas públicas.

Greta referia-se às catástrofes, às secas, às enchentes, aos êxodos, aos conflitos que já se iniciaram. Como o jornalista Jonathan Watts apontou no jornal britânico The Guardian, o que vivemos hoje —e viveremos com ainda mais intensidade— é um “apartheid climático”: os que menos colaboraram para o superaquecimento global, os países pobres e as parcelas pobres dos países ricos, são os que primeiro estão pagando, muitas vezes com a vida, pelas consequências da destruição do planeta pelo consumismo desmedido e pelo uso de combustíveis fósseis como petróleo e carvão. São outras infâncias as que estão pagando primeiro pela irresponsabilidade criminosa das gerações que hoje estão no comando. Alguns dizem que Greta teve uma infância privilegiada. Não é verdade. Greta teve uma infância com direitos assegurados —e direitos não são privilégios. Greta usa sua infância vivida num país que assegura os direitos da infância para denunciar a destruição do futuro de todas as infâncias —e denunciar que as infâncias sem direitos já estão sendo destruídas pela ação ou omissão, um tipo terrível de ação, dos adultos responsáveis por tomar medidas públicas para estancar o superaquecimento global.

Negar a voz das crianças é uma violência contra a infância

Também nisso Greta incomoda. Grupos e indivíduos têm colocado em movimento um processo de desqualificação da ativista que conseguiu o que os cientistas do clima tentaram por mais de três décadas sem sucesso: popularizar a emergência climática. Dizem então que Greta é “teleguiada” ou “explorada por seus pais”. Além de expressar sua própria crueldade, o que estes adultos estão dizendo?

Que crianças e adolescentes não têm voz. O silenciamento é uma forma de destruição da infância: dizer que uma criança ou adolescente não pode falar por si mesmo ou, se fala, não sabe o que diz ou está apenas reproduzindo o que seus pais ou outros adultos lhe mandaram dizer. Negar autonomia e capacidade para falar de sua própria experiência é uma violência contra as infâncias. Essa manipulação do que seria a infância —uma época da vida sem direito à voz própria— é de uma precariedade asquerosa.

Essa arma de desqualificação traveste-se de proteção da infância, o que a torna mais abjeta. Primeiro, acusavam Greta de parecer um “robô” quando falava em público. Em seu discurso antológico na Cúpula do Clima da ONU, em 23 de setembro, seu corpo miúdo estava afetado pela urgência e pela indignação. Bastou para adultos, estes mesmos que ela chama de infantilizados, desferirem comentários pretensamente preocupados com as expressões cristalizadas pelas câmeras, supostamente “alarmados” com o excesso de exposição da “pobre” menina “explorada”. Esses adultos saltitantes se acostumaram tanto a postar seus rostinhos sorridentes e photoshopados no “Face” e no “Insta” que se esqueceram da intensidade das expressões humanas.

Greta Thunberg discursa durante Conferência do Clima da ONU, no último dia 23 de setembro
Greta Thunberg discursa durante Conferência do Clima da ONU, no último dia 23 de setembroLUCAS JACKSON (REUTERS)

Até então, Greta era a menina “manipulada” com rostinho de boneca. Em seguida, a garota com o rosto afetado pelo sentimento de indignação, tornou-se a menina “explorada”. Greta não tem vontade própria em nenhum caso, como se vê. Usam então a imagem da infância para atacá-la, a infância como um rostinho bonito, incapaz de sentimentos humanos como indignação ou raiva. Usam uma infância de cartão postal para dizer que ela é uma criança perturbada. Infância só seria infância se servir ao gozo dos adultos, a imagem da criança feliz. Greta também não é perdoada por quebrar essa idealização. A infância feliz inventada por esta época é a infância amordaçada. Só há felicidade absoluta se as crianças forem proibidas de dizer o que sentem.

Chamam Greta de “doente mental” para associá-la aos preconceitos odiosos sofridos por essa parcela da população

É ainda pior do que isso, porém. Como Greta assume e declara ser Asperger, condição do espectro do autismo, começaram a associar fotos com seu rosto distorcido, propositalmente divulgadas, para associá-la aos preconceitos odiosos com a doença mental. Como se sabe, quem tem uma doença mental sofre da mesma violência, a de que não sabe o que diz e por isso não pode ser levado a sério. É onde a infância e a doença mental são colocadas no mesmo lugar simbólico, o de não poder falar. Ou o de falar e não poder ser escutado porque supostamente nem a criança nem a pessoa com doença metal sabem o que dizem. O objetivo de chamar Greta de “doente mental” é, de novo, o objetivo de silenciá-la. E, assim, silenciar o conteúdo do que ela diz. O que incomoda em Greta, como está claro, é este dedo que ela aponta para nós. E que aponta com muita justiça. Então, urgente não é o clima, a extinção em massa de espécies em curso. Urgente é desqualificar a adolescente que conseguiu o que parecia impossível: romper com a paralisia global diante da catástrofe climática.

Greta se afeta. E, por se afetar, inspirou milhões de crianças, adolescentes e também adultos a ocupar as ruas do mundo em nome da emergência climática. Sugiro a estes adultos da sala de jantar, estes “preocupados” com a “superexposição” de Greta, que se preocupem em levantar a bunda do sofá e se mexer. Não estamos mais em tempos de conversas educadas de salão. A Amazônia queimou mesmo, apesar do que o mentiroso patológico que governa o Brasil dizer o contrário.

Sério. Como se atrevem?

Se atrevem porque Greta ameaça interesses poderosos. Como os da indústria de petróleo no mundo, como no Brasil o agronegócio predatório e as corporações transnacionais de mineração que miram a Amazônia. A força do processo de desqualificação de Greta é proporcional à força da sua voz. É exatamente porque ela sabe o que diz e porque fez o mundo escutá-la que se tornou imperativo silenciá-la. Parte deste ataque é extremamente organizada e profissional. Outra parte vem daqueles indivíduos que buscam ganhar fama e seguidores, o que significa dinheiro, tornando-se porta-vozes da direita mais desprezível. Outra parte é levada adiante pelos idiotas inúteis de sempre, relinchando nas redes sociais.

Estas são as infâncias atacadas de Greta. Não é Greta, a adolescente, que é manipulada. São os conceitos de infância que estão sendo manipulados para silenciar sua voz e neutralizar a potência do conteúdo do que ela diz. Os conceitos de infância estão sendo usados contra a criança.

Determinadas crianças, em geral negras, são decodificadas na paisagem urbana como matáveis

A infância, porém, não é apenas uma. Há várias infâncias. É o que a psicanalista Ilana Katz apontou num programa da CPFL Cultura disponível na internet. Em determinadas condições as crianças não são vistas como crianças. Nos sinais vendendo balas ou fazendo malabares são pedintes. Quando são negras adotadas por pais brancos, como aconteceu no Shopping Higienópolis, em São Paulo, a segurança vem perguntar ao adulto se estão incomodando. São indesejáveis. Se são negras e estão sozinhas nos shoppings são retiradas pelos seguranças e detidas pela polícia porque são bandidas, como o fenômeno dos “Rolezinhos” mostrou. Se são negras e estão diante de lojas de grife, são retiradas porque “sujam” a vitrine, como ocorreu na Oscar Freire, a rua comercial mais rica da capital paulista. Determinadas crianças são decodificadas na paisagem urbana como restos. Determinadas crianças, em geral negras, são inclusive ameaçadoras para outras crianças, as “verdadeiras”, em geral brancas. E há que se proteger a sociedade delas, fechando todos os vidros e erguendo muros ao redor das escolas privadas e dos condomínios.

Essas são as infâncias as quais são negados os direitos legalmente assegurados à infância. Não são apenas silenciadas, são invisibilizadas como crianças, destituídas de si. Ser criança no Brasil, como bem apontou o jornalista Fausto Salvadori, num texto essencial publicado na Ponte Jornalismo, é uma questão de cor. Isso não significa, porém, que as crianças pobres e negras não tenham infância. Afirmar isso seria também uma violência contra elas. O que elas não têm são os direitos assegurados à infância. Negar a elas esses direitos garantidos por lei e por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário é crime de Estado. E o Estado deve ser responsabilizado por isso.

E então alcançamos Ágatha. Assassinada. A quinta criança morta no Rio de Janeiro por “bala perdida” apenas neste ano. Antes de uma bala silenciá-la aos 8 anos, uma bala possivelmente disparada por um policial militar, Ágatha teve, sim, infância. Atravessada pela dor, sua família se empenhou muito em mostrar que ela teve a melhor infância que poderiam lhe dar, que ela recebeu seus melhores esforços. “Minha neta faz balé, tem aula de inglês, tem aula de tudo. Ela é estudiosa”, disse o seu avô à imprensa. A violência contra ele contida nesta declaração é o reconhecimento introjetado de que existem infâncias mais matáveis do que a de Ágatha. E a violência contra ele é o reconhecimento de que mesmo com uma infância mais semelhante a das crianças brancas de classe média, “apesar de” ser negra e morar na favela, Ágatha foi tratada como uma das crianças que as balas encontram. Ágatha morreu contra todo os esforços da família de fazer dela uma criança não matável.

Ágatha teve, sim, infância. A importância dada a este fato está na foto escolhida para divulgação, a de uma Ágatha sorridente vestida numa fantasia de Mulher Maravilha. As crianças das favelas brincam, fantasiam, imaginam, fabulam. As favelas e periferias estão entre os lugares do Brasil onde há maior resistência pela imaginação, pela invenção e pela alegria. Não fosse essa enorme força de vida, haveria um suicídio coletivo, dada a violência que o Estado, as milícias compostas por agentes do Estado e o tráfico infligem no cotidiano da população.

O que falta às crianças das favelas e das periferias, como Ágatha, a maioria delas negra, como Ágatha, são os direitos assegurados por lei à infância. É a negação dos direitos que as coloca no lugar de restos, que as coloca no lugar dos matáveis. É a polícia, o braço armado do Estado, que explicita essa condição. Eles sabem quem são as crianças e quais as infâncias que devem ser protegidas. Ou alguém imagina que um policial atiraria contra um carro nos bairros nobres do Leblon ou de Ipanema, correndo o risco de atingir uma criança branca e rica? O policial reflete, ali, na ponta, a ideologia de quem governa, e governa para uma parcela da sociedade que determina quem pode viver. No momento atual, no Rio, o governador contra o Rio, Wilson Witzel. No Brasil, o presidente contra o Brasil, Jair Bolsonaro.

Familiares usam camiseta com a foto de Ágatha durante o seu funeral, no Rio
Familiares usam camiseta com a foto de Ágatha durante o seu funeral, no RioPILAR OLIVARES (REUTERS)

Quando parlamentares e o presidente defendem a redução da maioridade penal, é isso o que estão fazendo: escolhendo qual é a infância que pode ser encarcerada. Quando defendem a política falida de “guerra às drogas”, que só faz aumentar os lucros de muitos de seus financiadores, estão determinando quem são os matáveis. Quando o ministro contra a Justiça, Sergio Moro, envia para o Congresso um projeto que absolve policiais que matarem “sob violenta emoção”, está determinando quem são os matáveis.

A normalização de que há uma categoria de pessoas matáveis, e que no Brasil a maioria delas é negra, é expressada em declarações. “A polícia vai mirar na cabecinha.... e fogo”, já declarou Witzel, logo após ser eleito governador. “Muda essa política de atirar”, clamam os pais de Ágatha. “Parem de nos matar”, reivindicam os moradores das favelas. Como pode existir uma “política de atirar”? Como é necessário que pessoas tenham que pedir ao Estado que parem de matá-las? Que tipo de normalidade é essa?

Uma sociedade que permite ao Estado determinar que há crianças “matáveis” está muito perto do ponto de não retorno

Quando a sociedade permite ao Estado determinar que há crianças que podem morrer, infâncias as quais podem ser negados todos os direitos, está muito perto do ponto de não retorno. Se o Brasil não estivesse profundamente adoecido, teria parado por Ágatha. Nosso presidente não tem vergonha. Nós também não. Por isso ele é nosso presidente.

Mais uma vez é de Greta e das crianças e adolescentes que lutam pelo clima que vêm o exemplo. Ela e outros 15 jovens ativistas de diferentes países apresentaram nesta semana uma queixa no Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas. Denunciaram cinco países, entre eles o Brasil, por não fazerem o suficiente para impedir o superaquecimento global. A omissão —ou ação, no caso do Brasil de Bolsonaro— constitui uma violação dos direitos da infância, convenção assinada há 30 anos. Os jovens ativistas exigem que os países tomem medidas urgentes para proteger as crianças dos impactos devastadores da crise climática. “Os líderes mundiais não cumpriram suas promessas”, afirma Greta. “Eles prometeram proteger nossos direitos e não fizeram isso."

Como os adultos não se movem, as crianças e adolescentes estão exigindo dos líderes mundiais que assegurem e protejam os direitos de todas as infâncias. Elas entendem muito bem que é de direitos que se trata. E que é na proteção e na ampliação dos direitos que há alguma chance. Como no Brasil os adultos também parecem incapazes de se mover, talvez seja necessário que as próprias crianças e adolescentes denunciem que a política de Wilson Witzel, em nível estadual, e de Jair Bolsonaro, em nível federal, é genocida. Tragicamente, as crianças brasileiras que têm visto seus colegas de escola serem mortos, muitas vezes pela polícia, vão precisar compreender que não podem contar com os adultos para exigir a proteção de seus direitos. Terão que contar elas mesmas ao mundo que estão sendo executadas pelo Estado, porque há no Brasil uma infância que é matável. As crianças brasileiras estão sós.

A omissão diante da emergência climática arranca das crianças o direito fundamental de imaginar um futuro onde queiram viver

Greta Thuberg é tão atacada porque sua mensagem é poderosa —e perigosa para os que querem manter um contingente de matáveis. A emergência climática expõe e amplia as desigualdades sociais e raciais. Os mais pobres são atingidos primeiro. A emergência climática, porém, é uma enormidade sem precedentes também porque atinge a todos. Como explicam as crianças e adolescentes, “não há planeta B”. E, assim, todas as infâncias, inclusive as que têm acesso à maioria dos direitos, se tornam também matáveis e sem direitos, ao perder o direito mais fundamental de todos, que é o de imaginar um futuro onde se queira viver. A falta de políticas públicas globais para conter o superaquecimento global condena a totalidade das crianças a um futuro hostil. E já começa a mudar o conceito de infância que foi construído na modernidade.

Assumindo o protagonismo diante da omissão dos pais, o que Greta Thunberg e os jovens ativistas climáticos estão fazendo é tecer o comum na casa comum. Apontar a causa pela qual todo o planeta deve se unir. Nada mais perigoso para os déspotas eleitos e seus nacionalismos feitos para beneficiar não a nação, mas a própria família. “O futuro pertence aos patriotas, não aos globalistas”, diz Donald Trump. “Não estamos aqui para apagar nacionalidades e soberanias em nome de um ‘interesse global’ abstrato”, afirmou Bolsonaro.

O que Bolsonaro foi fazer na ONU foi justamente destruir a possibilidade do comum. E o comum é principalmente a Amazônia.

Estamos em guerra global pela vida da nossa espécie. Como vocês se atrevem a não ter lado?

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum