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El País: Governo Bolsonaro ignora técnicos e diz que limpeza do óleo é suficiente para liberar praias
Após se reunir com representantes do setor turístico de Pernambuco, ministro do Turismo visita o Estado e anuncia 200 milhões de reais em linhas de crédito para empreendimentos afetados pela chegada do óleo no litoral
Em sua terceira crise ambiental do ano —rompimento da barragem de Brumadinho, aumento das queimadas na Amazônia e, agora, contaminação de petróleo no litoral do Nordeste—, o Governo Bolsonaro mais uma vez é questionado formalmente por procuradores federais e criticado por seguir ignorando os protocolos e o que dizem especialistas e Organizações Não-Governamentais a respeito dos problemas. Nesta sexta-feira, o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio (PSL), desembarcou em Pernambuco para se reunir com o setor turístico do litoral sul do Estado, onde estão praias como Carneiros, Porto de Galinhas, Maracaípe, Muro Alto. Chegou a molhar os pés nesta última e garantiu que as praias contaminadas pela mancha de petróleo e que depois foram limpas já estão aptas para banho. No total, 28 praias de Pernambuco foram atingidas. Segundo o Governo estadual, mais de 1.350 toneladas de piche foram retirados na última semana.
“Eu não entrei na água com óleo, entrei na água limpa, em uma praia limpa, com os turistas transitando pela praia e utilizando o mar. A gente sabe que existem as praias impactadas e que foram limpas e estão aptas para banho”, afirmou o ministro. Dirigindo-se à imprensa, pediu para que esse momento difícil seja vencido “com responsabilidade”, de forma a não passar o que ele considera ser informações equivocadas que podem afetar o turismo local. “Essas praias estão em total condição de receber os turistas e os banhistas. Mesmo as praias que foram impactadas existe a possibilidade do turismo e de sua utilização”, insistiu, em coletiva de imprensa ao lado do Secretário de Turismo de Pernambuco, Rodrigo Novaes, além de comandantes da Marinha e do Exército que estão coordenando as ações federais.
O mesmo otimismo do ministro não pode ser encontrado nas declarações dos especialistas que vêm se pronunciando sobre o tema. Na última quarta-feira, por exemplo, o oceanógrafo Moacyr Araújo, vice-reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirmou que pessoas devem evitar entrar nas áreas atingidas pelo óleo e consumir pescados e frutos do mar até que seja identificado o nível de contaminação. Para isso, outros dois oceanógrafos da UFPE foram chamados pelo Governo estadual, liderado por Paulo Câmara (PSB), para averiguar o nível de contaminação das águas. Os resultados ainda devem demorar algumas semanas. “Muitas vezes a gente não vê o óleo, mas ele deixou um ‘legado’ para trás. Estamos aqui para identificar os compostos pois alguns têm potencial tóxico muito alto”, explicou a oceanógrafa Eliete Zanardi.
O petróleo é um combustível fóssil que possui mais de 200 hidrocarbonetos. O benzeno, por ser cancerígeno, é considerado o mais tóxico de todos. Ainda que o piche que chega às praias seja retirado, esses componentes químicos podem continuar circulando pela corrente marítima sem que ninguém perceba a olho nu. "O cenário otimista é que algumas dessas áreas não tenha a presença do benzeno, mesmo as que tiveram algum contato com o óleo", explicou o geógrafo e geocientista Tiago Marinho ao EL PAÍS. "O pessimista é a contaminação por benzeno. O ser humano não pode tomar banho se houver 0,7 mg por litro de água. A praia ficaria então imprópria para banho e para a pesca". Somente o processo investigação poderá definir o nível de contaminação de cada praia afetada —e se os danos ambientais no litoral no Nordeste ameaçam se estender para o turismo e a pesca, pilares fundamentais da economia local.
Nem o ministro do Turismo nem o Secretário de Turismo levam essas investigações em conta. Questionados pelos jornalistas em que laudos técnicos se baseavam para dizer que as praias estavam próprias para o banho, não souberam responder. Limitaram-se a dizer que o Ministério da Saúde e a Secretaria Estadual de Saúde disseram o mesmo. De fato, a possibilidade de intoxicação de banhistas também foi minimizada pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Nesta quinta, foi questionado se as praias afetadas deveriam ser interditada, ao menos temporariamente. “Não, porque a toxicidade é insignificante, é mínima. Na composição, o que seria [mais tóxico] é o benzeno, mas é mínimo”, afirmou, sem apresentar qualquer tipo de laudo técnico. Além disso, atribuiu a intoxicação de alguns voluntários não ao petróleo, mas sim ao uso de substâncias para retirá-lo da pele. “A gente tem visto as pessoas procurarem unidades de saúde, mas eles informam que retiraram aquele óleo que gruda com benzina, com gasolina, com querosene, colocaram substâncias ainda mais abrasivas, mais tóxicas do que a própria substância”
O turismo é importante especialmente no litoral de Pernambuco. A praia de Porto de Galinhas, que não chegou a ser afetada, é a mais visitada do estado, com 1,2 milhão de visitantes em 2018, segundo dados da Porto Convention. Donos de pousadas e representantes do trade turístico da região garantem que não houve um movimento massivo de cancelamento de reservas, mas temem os impactos da tragédia ambiental. Após se reunir com o ministro do Turismo na quarta-feira, em Brasília, representantes conseguiram o compromisso de mais ações informativas e de publicidade do turismo local. Também estão encomendando suas próprias análises de qualidade da água. EL PAÍS teve acesso a laudos já prontos, mas que se referiam apenas a presença de coliformes fecais e de óleo na água. Ficou pendente a análise sobre a presença de hidrocarbonetos, que também será encomendada.
Além disso, Álvaro Antônio anunciou nesta sexta a liberação de 200 milhões de reais em linhas de crédito para pequenos e médios empreendimentos que se viram afetados pela chegada do óleo no litoral pernambucano. Nessa mesma linha, o secretário estadual Rodrigo Novaes prometeu 9 milhões de reais em propagandas sobre o turismo local a partir de novembro. Quer manter a meta de 1,2 milhão de visitantes para Porto de Galinhas. Mesmo sem os laudos técnicos em mãos.
Também neste mês, o MPF (Ministério Público Federal) entrou com uma ação contra a União por omissão no desastre das manchas de óleo no Nordeste. A Procuradoria pedia que governo colocasse em ação o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Água. O Ministério Público junto ao TCU pediu a abertura de uma investigação para apurar as ações do governo no combate às manchas de óleo que atingem inúmeras praias do Nordeste
Eliane Brum: Lula livre, sim, mas sem fraudar a história
O PT não contribuirá com a criação de um futuro melhor se seu maior líder seguir insistindo em apagar a memória de Belo Monte
Luiz Inácio Lula da Silva, preso há mais de um ano, deve ser libertado. E isso provavelmente acontecerá, de um modo ou outro. Lula deve ser libertado porque o processo que o colocou na cadeia está povoado por abusos do poder judiciário e despovoado de provas. Como já escrevi neste espaço, a prisão de Lula não mostrou que até os poderosos são presos no Brasil, mas sim que até os poderosos podem ter seus direitos violados no Brasil. O que cada um acha sobre a culpa ou inocência de Lula não importa, o que importa são provas e o cumprimento do rito legal. É isso que nos protege a todos, é isso o que também separa a democracia da ditadura. É fundamental, porém, fazer uma distinção. Como qualquer brasileiro, Lula tem direito à justiça. Mas Lula não tem direito aos seus próprios fatos.
Mais perto da possível libertação, Lula já iniciou sua campanha num país dilacerado por ódios que seu partido também ajudou a produzir. Já anuncia o desejo de viajar pelo Brasil. É uma vontade legítima. Inclusive porque era ele o candidato em primeiro lugar nas pesquisas para a eleição de 2018 e foi impedido pelo judiciário, que decidiu mudar de forma arbitrária os rumos do país. O PT não deve nem pode ser riscado do mapa eleitoral e do debate político do Brasil, como querem alguns grupos. Quem decide se o partido pode representá-los são os eleitores.
O problema que se anuncia é a tentativa de recuperar o espaço perdido pelo partido apagando as contradições do PT no poder. E, principalmente, tentando remover – ou pelo menos contornar – a pedra no meio do caminho chamada Belo Monte. Não vai dar para apagar Belo Monte. Esta pedra é grande demais.
Belo Monte não é um erro, mas o que os povos do Xingu chamam, e isso desde o governo Lula, de “um crime contra a humanidade”. É também o que o Ministério Público Federal chama de “etnocídio”. E, mais recentemente, também de “ecocídio” e de “genocídio”. É ainda onde se desenha aquela que pode se tornar a maior tragédia da Amazônia brasileira: a morte da Volta Grande do Xingu, onde vivem os povos Juruna e Arara, além de ribeirinhos, pela administração predatória da água por Belo Monte.
O autoritarismo destrói um país. Por todos os motivos óbvios. E também porque interrompe o debate público, assim como os movimentos em curso. Em cotidiano de exceção, como já vive o Brasil, as diferenças entre os projetos políticos são borradas em nome do objetivo maior, o de impedir a completa destruição da democracia. O processo de aprimoramento das instituições e de melhoria da sociedade é suspenso e toda a energia é consumida no gesto de bloquear a acelerada corrosão dos direitos.
O Brasil é um presente constantemente interrompido para que as elites econômicas e políticas (e às vezes também intelectuais) possam manter – ou recolocar – o passado. Em geral, o fazem aliando-se aos novos atores que nada querem mudar, apenas ter acesso ao restrito grupo dos que detêm os privilégios de classe, de raça e de gênero. Entre os novos atores deste momento estão, por exemplo, as lideranças evangélicas fundamentalistas.
O autoritarismo mata a potência de uma geração, obrigando-a apenas a reagir
A constante interrupção leva à perda de toda a energia de uma geração de brasileiros na criação do futuro. Barra também o protagonismo de grupos historicamente silenciados que tinham passado a disputar o presente, caso dos negros nos últimos anos. É assim que se mata a potência de um país. Obrigando as pessoas a esgotar suas forças no gesto de fazer barreira para perder menos, sem espaço para criar gestos para avançar mais. É o que o Brasil e outros países governados por déspotas eleitos vivem hoje.
Se o PT foi violentamente atingido pelas manobras autoritárias de forças com as quais fez alianças no passado e pode voltar a fazer nas próximas eleições, como setores do MDB, é também evidente que a truculência do bolsonarismo no poder abriu uma possibilidade para, mais uma vez, o partido operar para apagar suas digitais em crimes cometidos durante os 13 anos no poder. Pessoas que estiveram em governos do PT ou os apoiaram ativamente, nos últimos anos tiveram que encarar a dura realidade de um partido que se corrompeu. Mais recentemente, porém, parecem ter retornado ao estado de autoilusão: os abusos cometidos pelo judiciário na prisão de Lula deu um forte motivo para voltar a se sentirem no lado certo da história e promover o esquecimento dos atos arbitrários do PT. Mais uma vez se ouve de parte da esquerda que não é hora de criticar o PT. Nunca foi hora, como sabemos.
É da essência do maniqueísmo apagar as complexidades. Num país polarizado, o maniqueísmo serve aos dois polos. Ou é todo o mal, ou é todo o bem. A adesão à política pela fé, na qual os eleitores se comportam como crentes, mesmo quando ateus, atinge todo o espectro ideológico do Brasil. Da direita a esquerda.
A fragilidade da democracia brasileira é causada, em grande parte, pela impunidade dos crimes dos agentes de Estado na ditadura. Deste apagamento da memória nasceu uma democracia com alma deformada. Um dos principais objetivos dos grupos no poder, em especial o dos generais, é apagar suas digitais das violências cometidas durante o regime militar (1964-1985). Jair Bolsonaro tem se esforçado para torcer os fatos e reformular o passado ao seu gosto, convertendo torturadores em heróis e violências de Estado em atos de heroísmo. Em geral, governos autoritários investem no apagamento da história como primeiro ato, colocando no lugar sua mitologia. Os estados totalitários do século 20 são aulas completas sobre essa falsificação. É por compreender a extensão dessa violência que parcelas da sociedade brasileira têm se mobilizado para impedir a destruição da história da ditadura.
Já deveríamos ter compreendido o gravíssimo equívoco representado por compactuar com apagamentos em nome de oportunismos, ou, se preferirem palavras mais palatáveis, do pragmatismo político, da estratégia eleitoral, de governabilidades ou como queiram chamar. Já deveríamos ter aprendido que omissões e silenciamentos nos levam a lugares ainda mais sombrios. Deveríamos, mas tudo indica que não.
É triste um país em que os homens públicos querem ser “mitos” – e não homens públicos
Nas entrevistas que Lula tem dado para preparar sua possível saída da prisão, ele deixa claro que seguirá apostando no fortalecimento do próprio mito, inflado agora por uma injustiça. Tem dito a aliados que pretende rodar o Brasil e assumir o papel de “fio condutor da pacificação nacional”. A “pacificação”, palavra que também foi usada por Michel Temer (MDB) no início de seu governo, é palavra recorrente na história do Brasil. Como já testemunhamos, ela tem servido para apagar assimetrias, desigualdades raciais e iniquidades. É a proposta de conciliação sem justiça social. Uma das tragédias do Brasil é a obsessão por “mitos” quando o que precisamos tanto é de um homem ou uma mulher imbuído de espírito público suficiente para colocar o país acima de suas ambições pessoais.
Quando Lula deixar a prisão, estará num Brasil diferente. Com a crise climática se agravando em curso acelerado, a Amazônia vem ganhando rapidamente a centralidade que sempre deveria ter ocupado. Sem floresta em pé – e por floresta se compreende não só árvores, mas todas as vidas, porque tudo ali funciona de forma conectada – não há possibilidade de enfrentar o superaquecimento global. Neste contexto, a desastrosa política dos governos do PT para a Amazônia ficarão mais – e não menos evidentes. Esta política é marcada especialmente por grandes “monumentos à insanidade”, como costuma dizer Antonia Melo, a maior liderança popular do Médio Xingu: as hidrelétricas de Belo Monte, no rio Xingu, Santo Antonio e Jirau, no rio Madeira, e Teles Pires, no rio de mesmo nome.
Belo Monte, o símbolo maior desta política que violou sistematicamente os direitos dos povos da floresta, está programada para ser concluída neste ano. As consequências de sua construção apenas começaram. O pior ainda pode estar por vir, caso o Ministério Público Federal não consiga impedir que a Norte Energia S.A, a empresa concessionária, execute uma administração da água que poderá condenar a Volta Grande do Xingu, onde vivem os povos Juruna e Arara, à morte. Outros povos da região atingida por Belo Monte, os Parakanã, Araweté e Assurini, de recente contato, publicaram um documento em 22 de outubro “exigindo a suspensão da liberação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e um pedido formal de desculpas pelos problemas já causados às etnias”.
Como Lula trata Belo Monte, uma obra que nem a ditadura conseguiu construir devido à resistência dos movimentos sociais e dos povos do Xingu, mas o PT sim, porque traiu seus aliados? Em entrevista à BBC Brasil, no final de agosto, Lula declarou: “Tenho orgulho de ter feito Belo Monte”. E, em outro ponto: “Não tente culpar a Dilma pelo que está ocorrendo em Belo Monte hoje. Cada um de nós é responsável pelo período que governou o país”. Em outubro, numa entrevista ao UOL, Lula afirmou aos jornalistas Flávio Costa e Leonardo Sakamoto: “Eu não sei o que vou fazer quando eu sair daqui, mas eu tinha vontade de voltar ao Xingu, a Belo Monte, eu não conheci Belo Monte. Eu fui lá fazer um debate, mostrar que seria um bem para o desenvolvimento. Se você tem, depois de anos, a informação de que a coisa está desandando lá em Altamira, eu disse isso numa entrevista, é preciso ver o que está acontecendo agora. Se estas pessoas estão cumprindo o acordo feito em 2009, se as pessoas estão cumprindo todas as determinações. Então o que proponho para você é que poderia, até para me ajudar, a procurar os ministros que fizeram o acordo na época e pedir a eles irem junto com você para lá para saber o que não está sendo cumprido”.
Sério. Lula disse isso mesmo. Não há menção de que tenha ficado ao menos levemente ruborizado.
Lula pode começar seu programa de estudos sobre Belo Monte lendo as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal
Caso sua saída da prisão ainda demore um pouco, Lula pode organizar um programa de estudos para se aprofundar sobre as violações ocorridas na construção de Belo Monte durante os governos do PT. Pode começar pelo próprio leilão, arquitetado por ele com a ajuda do amigo e ex-ministro da ditadura Delfim Netto. Ganhou o consórcio formado às pressas, para simular uma disputa, com pequenas empreiteiras sem nenhuma experiência em projetos deste porte. Em seguida, as grandes empreiteiras – as que preferiram não disputar (Odebrecht e Camargo Correa) e a que disputou e perdeu (Andrade Gutierrez) – formaram o Consórcio Construtor Belo Monte. As pequenas também migrariam para este consórcio na sequência. É na construção que está os lucros – e também a propina. Esta parte da história está sendo investigada e documentada pela Operação Lava Jato.
Em seguida, Lula pode ler as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal denunciando todas as violações ocorridas para materializar Belo Monte no Xingu, algumas delas durante o seu próprio governo. Pode seguir seu plano de estudos lendo o livro “A expulsão de ribeirinhos em Belo Monte”, organizado e publicado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Em 449 páginas, cientistas e pesquisadores de diferentes áreas documentam as atrocidades cometidas e as consequências que vão desde a ameaça de extinção de espécies à destruição da saúde mental das pessoas que foram expulsas de suas terras, ilhas e casas.
Terminado este livro, o presidente que materializou Belo Monte pode aprofundar seu conhecimento sobre o próprio governo e o de sua sucessora, Dilma Rousseff, estudando o Dossiê produzido pelo Instituto Socioambiental, no qual estão narrados como os povos indígenas foram corrompidos pela Norte Energia SA com uma “espécie de mesada de 30 mil reais em mercadorias”, fazendo com que mesmo indígenas de recente contato passassem a comer salgadinhos e refrigerantes em vez de alimentos da sua roça e peixes do rio. Poderá ler inclusive documentos com timbre do Ministério de Saúde do governo de Dilma Rousseff que dizem o seguinte:
“A partir de setembro de 2010 [último ano do governo Lula], com a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, os indígenas passaram a receber cestas de alimentos, composta por alimentos não perecíveis e industrializados. Com isso os indígenas deixaram de fazer suas roças, de plantar e produzir seus próprios alimentos. Porém, em setembro de 2012 [primeiro mandato de Dilma Rousseff], tal ‘benefício’ foi cortado, os indígenas ficaram sem o fornecimento de alimentos e já não tinham mais roças para colher o que comer, o que levou ao aumento do número de casos de crianças com Peso Baixo ou Peso Muito Baixo Para a Idade, chegando a 97 casos ou 14,3%”.
Em outro ponto do documento, o aumento dos casos de “doença diarreica aguda” em 2010 é relacionado à atuação da Norte Energia nas aldeias:
“Em 2010 registramos um aumento considerável, já que numa população de 557 crianças menores de 5 anos ocorreram 878 casos, o equivalente a 157% dessa população ou 1.576,3 para cada 1.000 crianças. (…) Mudanças nos hábitos alimentares com a introdução de alimentos industrializados oriundos de recursos financeiros das condicionantes para construção da hidrelétrica de Belo Monte é outro fator contribuinte para o alto índice existente”.
A desnutrição infantil nas aldeias da região, conforme dados do dossiê, aumentou 127% entre 2010 e 2012. Um quarto das crianças estava então desnutrida. No mesmo período, ainda segundo o dossiê, o atendimento de saúde a indígenas cresceu 2.000% (dois mil por cento) nas cidades do raio de impacto de Belo Monte. A situação é tão aterradora que, em 2014 [ano da eleição de Dilma para o segundo mandato], técnicos da Funai recomendaram a aquisição de cestas básicas para enfrentar a vulnerabilidade alimentar das comunidades. Dito de outro modo: cestas básicas para impedir que indígenas, que antes de Belo Monte tinham autonomia alimentar, morressem de fome ou de doenças causadas pelo consumo repentino e indiscriminado de produtos industrializados, assim como pela interrupção do plantio, pesca e coleta de alimentos, causado pelo ingresso dos mesmo produtos.
Os índices de exploração ilegal de madeira dispararam na área de influência da obra. Na Terra Indígena Cachoeira Seca, uma das afetadas pela usina, foram extraídos 200.000 metros cúbicos de madeira só em 2014 [governo de Dilma Rousseff]. Essa quantidade é suficiente para encher mais de 13.000 caminhões madeireiros. Em 2013, a TI Cachoeira Seca foi a mais desmatada do Brasil. (leia mais aqui).
Uma indígena do povo Araweté disse então ao antropólogo Guilherme Heurich: “As mercadorias são a contrapartida de nossa morte futura”.
Onde estava a Funai naquele momento? Ah, sim. Tinha sido convenientemente enfraquecida na região pelo governo do PT, com fechamento de postos justamente quando era mais necessária.
Na construção de Belo Monte, os governos do PT converteram povos da floresta em pobres urbanos e enviaram a Força Nacional para reprimir greves de trabalhadores
Como Lula está preocupado com a obra que impôs aos povos de Altamira e do Xingu, ele também pode ler os testemunhos dos ribeirinhos constrangidos a assinar com o dedo papéis que não eram capazes de ler, papéis que os condenavam a perder tudo. Quando milhares foram submetidos à “remoção compulsória”, não havia nenhuma assistência jurídica disponível para a população atingida, parte dela analfabeta.
Lula pode ainda refletir sobre como os governos do Partido dos Trabalhadores colocaram a Força Nacional para reprimir as greves dos... trabalhadores. Neste caso, os operários da usina e também as manifestações dos atingidos. Quem sabe Lula siga adiante e investigue como foi possível que a Agência Brasileira de Investigação (Abin) tenha infiltrado, em 2013, um espião no movimento social Xingu Vivo Para Sempre. E, se tiver fôlego, pode rememorar a acidentada evolução das licenças de Belo Monte no Ibama durante os governos do PT, com algumas demissões escandalosas de presidentes que se negaram a assinar permissões inaceitáveis.
A obra é vasta. É impossível se aprofundar na destruição promovida pela “grande obra do PAC” sem acompanhar a explosão da violência urbana provocada por Belo Monte, que transformou Altamira na cidade mais violenta da Amazônia. Assim como a conexão desta violência com o segundo massacre carcerário da história do Brasil, ocorrido em julho deste ano, em que 58 pessoas foram decapitadas ou queimadas vivas, e outras quatro foram executadas no percurso da transferência. É essencial conhecer os efeitos de uma rotina de balas e de mortes sobre as crianças dos “Reassentamentos Urbanos Coletivos”, os bairros construídos pela Norte Energia para empilhar os expulsos por Belo Monte. Há mais, muito mais. Dá para ocupar anos de prisão com horrores.
E então, talvez, Lula possa compreender a frase dita por Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu, em 2012: “Lula e Dilma passarão para a história como predadores da Amazônia”.
A exploração predatória da Amazônia não é ruptura, é continuidade
O Brasil recente pode ser contado por rupturas. Mas pode ser contado também por pelo menos uma continuidade: a exploração predatória da Amazônia como política de Estado. Esta era a política dos governos da ditadura militar. E seguiu sendo a política dos governos da democracia, apesar dos direitos dos povos indígenas garantidos pela Constituição de 1988. Há semelhanças entre a política para a Amazônia desenvolvida pela ditadura e a política para a Amazônia implementada pelos governos do PT – de Lula, acelerada a partir da saída de Marina Silva do governo, a Dilma.
Com Bolsonaro, a exploração predatória atingiu níveis incomparáveis. Em velocidade inédita, ela é executada pela estratégia de desproteção da floresta e pela recusa à obrigação constitucional de demarcar as terras indígenas. O bolsonarismo tenta desfazer inclusive o que foi feito de positivo pelos governos anteriores. O resultado já pode ser visto antes mesmo do final do primeiro ano de governo, com a explosão do desmatamento e dos incêndios que assombraram o mundo.
Sobre a Amazônia, parece não haver polarização. Estão todos afinados. Dilma inaugurou Belo Monte explodindo de orgulho pouco antes do impeachment, Bolsonaro prometeu abrilhantar a cerimônia em que será ligada a última turbina, os militares de antes e os de agora invocam a fake news da ameaça à soberania nacional para seguir explorando a floresta e, apenas algumas semanas atrás, Lula declarou-se orgulhoso do que os moradores do Xingu chamam de Belo Monstro.
A Lava Jato tem muitos significados. Sempre critiquei seus flagrantes abusos, assim como o comportamento inaceitável do então juiz Sergio Moro. Ele e o procurador Deltan Dallagnol são os maiores inimigos da Lava Jato. Por conta de sua falta de limites e da sua vaidade continental, comprometeram também o trabalho dos procuradores sérios da Lava Jato, que desnudaram como funcionava o esquema de corrupção entre partidos e empreiteiras no país e botaram na cadeia milionários que até então tinham a impunidade como direito de classe. Entre os trabalhos sérios em curso está o desvendamento do esquema de corrupção que garantiu a construção de Belo Monte contra todas as violências visíveis a olho nu. Esta violação do Estado de direito é definida por Thais Santi, procuradora federal em Altamira, de “o mundo do tudo é possível”.
Lula ironiza quem pede a ele e ao PT autocrítica. Acha que não deve nenhuma explicação a quem o colocou no poder pelo voto acreditando no discurso da ética feito pelo partido desde a sua formação. Devemos entender então que o projeto que se mostrou em toda a sua imensa destruição em Belo Monte segue sendo a proposta do partido para a Amazônia. Se Lula almeja se alçar a “pacificador” do Brasil, deve ter uma frase em mente: “Se a paz não for para todos, não será para ninguém”.
Não haverá paz na Amazônia sem justiça. Não permitiremos o apagamento da memória. Não esqueceremos. E não deixaremos esquecer.
*|Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum
El País: Eduardo Bolsonaro desiste de tentar embaixada dos EUA e finca bandeira no PSL
Integrantes do partido repetem mantra pouco crível, o da separação entre o presidente e sua prole, enquanto Joice Hasselmann ameaça denunciar clã na CPI das 'Fake News'
Quando prestou concurso público para escrivão da Polícia Federal, o então bacharel em direito Eduardo Bolsonaro passou por um teste de aptidão física no qual era obrigado a correr pelo menos 2.350 metros em 12 minutos. Nessa terça-feira, deputado em segundo mandato e recém-empossado como líder do PSL na Câmara dos Deputados, o filho 03 do presidente da República, Jair Bolsonaro, parecia estar fazendo novamente o teste. Vestindo terno, gravata e sapatos social, correu 300 metros em cerca de 40 segundos, uma marca digna do concurso. Cercado por seus seguranças, ele fugia de um grupo de jornalistas que queria questioná-lo sobre a confusão de seu partido que já dura duas semanas.
A estranha fuga de Eduardo em um espaço público foi registrada pelo site Congresso em Foco. Após notar que estava dando munição aos seus inimigos internos, como o líder deposto Delegado Waldir (PSL-GO), e amplificando a bagunça peesselista – que já teve áudios vazados, suspensões de parlamentares, xingamentos pela imprensa e pelas redes sociais – Eduardo decidiu atender aos jornalistas. Disse que, se ele optar por seguir na liderança do PSL, excluirá sua indicação para a embaixada do Brasil nos Estados Unidos. Eduardo falou que esse era o momento de apaziguar a legenda. Não mais se alongou.
Já no fim da noite, voltou a se manifestar. Dessa vez, na tribuna da Câmara, onde anunciou que desistiu de ser embaixador em Washington. Por sete minutos, leu um texto no qual justificava que precisava ficar no Brasil para ajudar a manter viva a onda conservadora que o elegeu como o deputado federal mais votado do país, assim como seu pai. "Faço questão de vir aqui na tribuna, local de trabalho confiado a mim por 1.843.735 eleitores fazer um comunicado que vai decepcionar os que torciam para a minha ida para os Estados Unidos, achando que assim eu ficaria distante da vida política no Brasil", disse.
Na tribuna, Eduardo decretou o seu dia do "fico" — que também pode ser lido como uma saída honrosa para não ter de enfrentar um revés no Senado para a aprovação posto nos EUA, algo visto como cada vez mais remoto, por causa da falta de base do Governo e, agora, por causa do quiprocó no PSL. Reclamou de ter sido vítima de chacota por ter trabalhado em restaurantes nos Estados Unidos. Opositores e militantes das redes sociais o chamavam de "embaixapeiro", por ter declarado que já havia trabalhado em lanchonetes dos EUA. "Este que aqui vos fala, filho de um militar do Exército brasileiro e deputado federal, que foi zombado por ter tido aos 20 anos de idade um trabalho honesto em restaurantes nos estados americanos do Maine e do Colorado, diz que fica no Brasil para defender os princípios conservadores. Para fazer do tsunami que foi a eleição de 2018 uma onda permanente".
Longo caminho
No PSL, a paz, no entanto, está distante de ocorrer. Em reunião extraordinária da cúpula do PSL, o presidente da legenda, Luciano Bivar, decidiu abrir um processo de suspensão de 19 deputados. Entre eles, Eduardo Bolsonaro e o líder do Governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO). O argumento é infidelidade partidária. Os casos serão analisados pelo Conselho de Ética do partido.
O processo só não caminhou porque o grupo de bolsonaristas, que faz oposição a ala pró-Bivar, conseguiu uma liminar no Supremo Tribunal Federal para paralisar o caso. Nesse meio tempo, os apoiadores de Bivar e de Waldir ainda tentam coletar assinaturas para destituir Eduardo da liderança. Antes disso, o presidente da sigla já havia destituído os presidentes dos diretórios regionais do Rio de Janeiro (Flávio Bolsonaro), de São Paulo (Eduardo Bolsonaro) e do Distrito Federal (Bia Kicis).
“Eu não criei esse clima de implosão, quem criou foi o presidente da República. É um tsunami que ele criou. Cabe a ele tentar cessar. Nesse momento ainda existe uma grande divisão, como água e óleo”, reclamou o deposto Waldir. Enquanto o ex-líder falava com jornalistas, ouvia piadas, convites e provocações de deputados que passavam por um dos corredores da Câmara. “Vem pro MDB, Waldir. Aqui cabe todo mundo”, disse um dos parlamentares. “Sai daqui seu traíra. O líder é o Eduardo”, gritou um assessor de um bolsonarista.
Em viagem oficial de 12 dias pela Ásia, o presidente Jair Bolsonaro levou a crise junto com ele. Quando questionado na segunda-feira sobre a confusão de seu partido, disse: “O bem vai vencer o mal”. É algo semelhante ao que ele dizia em sua campanha eleitoral. Mas, naquela época, o que ele considerava o mal eram os petistas e outros políticos de esquerda. Agora, são alguns de seus aliados, que se elegeram sob o seu guarda-chuva, são os “malvados”.
Na terça-feira, após uma reunião com o ministro da Economia, Paulo Guedes, o presidente da Câmara, deu de ombros à briga do PSL. “Se eles vão continuar disputando a liderança ou não esse é um problema do PSL. Vim aqui também com o objetivo de deixar claro que nós continuamos com a nossa agenda de modernizar a Câmara, de modernizar o Estado brasileiro, fazer esse país voltar a crescer e reduzir desigualdades”, disse.
Apesar dos ânimos exaltados, na prática, o racha peesselista ainda não trouxe resultados negativos para o Governo. Ao longo das últimas duas semanas, alguns dos membros do grupo pró-Bivar disseram que não são obrigados a votar conforme a orientação governista. Na primeira votação no plenário, todos os 46 deputados do PSL que estavam presentes na sessão seguiram a orientação da nova liderança. Sete deputados estavam ausentes. Ou seja, a onda de traição interna que resultou também na deposição da deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) da liderança do Governo no Congresso, ainda não chegou ao plenário. Alvo de achaques na Internet, Joice mira suas acusações para o deputado Eduardo Bolsonaro e seus irmãos, a quem acusa de liderar uma "milícia virtual" com apoio de assessores. Questionada se falaria contra seus correligionários na CPMI das Fake News, ela respondeu no Programa Roda Viva, da TV Cultura: "Estou disposta". Ao UOL, depois, afirmou que também levaria seus relatos à Comissão de Ética da Câmara.
“O PSL vai passar por esse momento de crise, separando o joio do trigo”, disse o líder do partido no Senado, Major Olímpio Gomes. Ele é um dos que defendem a expulsão dos filhos do presidente da legenda, mas torce para que o próprio Jair Bolsonaro fique. É um mantra que muitos repetem, mas que não parece crível: a separação do presidente da prole politica que ele cuidadosamente construiu ou mesmo que os filhos ajam sem endosso do pai. “Os filhos atrapalham em tudo o Governo”. Ao que parece, a novela que envolve desentendimentos públicos e fugas da imprensa no único partido que se declara como membro da base governista está longe de terminar.
Sérgio Haddad: A prisão de Paulo Freire, “subsversor dos menos favorecidos”, na ditadura
Educador brasileiro foi preso por mais de 70 dias durante o regime militar sob a justificativa de doutrinação marxista. Leia trecho do livro 'O Educador', de Sérgio Haddad
Quando os militares tomaram o poder em 1º de abril de 1964, depondo o então presidente João Goulart, Paulo Freire vivia com a família em Brasília, a serviço do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Envolvido com o trabalho de formação de professores em Goiânia, era sua assistente, Carmita Andrade, quem o mantinha informado sobre a intensa movimentação política na capital. Apenas dois dias antes, Carmita havia sugerido que ele voltasse a Brasília de imediato, porque as tensões pareciam se agravar decisivamente. Retornado às pressas, Paulo se surpreendeu ao procurar Júlio Furquim Sambaqui e ser convidado a acompanhar a leitura de uma conferência que o ministro daria dali a alguns dias. O chefe queria sua opinião. Incrédulo com a ingenuidade de Sambaqui, Paulo o alertou para o que lhe parecia um quadro de grave instabilidade institucional — e para a improbabilidade de ocorrer qualquer nova atividade do governo que representavam. No dia seguinte, os militares se instalariam no poder.
O ambiente político tornou-se tenso, com notícias desencontradas de todos os lados: haveria resistência da população? O Governo deposto conseguiria reagir ao golpe de Estado? Diante do clima de insegurança e da incerteza sobre seu futuro no ministério, Paulo pediu à mãe que levasse os filhos dele para Recife, onde mantinha uma casa. Providências tomadas, ele e a esposa, Elza, permaneceram em Brasília, levando uma vida reservada na casa de amigos. Queriam ser notados o mínimo possível.
Com lançamento previsto para 13 de maio, o Programa Nacional de Alfabetização seria extinto em 14 de abril, treze dias depois do golpe militar. O novo Governo aproveitou a ocasião para fazer duras acusações ao trabalho que Paulo e sua equipe vinham desenvolvendo; apontaram o material didático produzido como contrário aos interesses da nação e acusaram seus autores de querer implantar o comunismo no país. Acabava ali o sonho de lançar 60.870 Círculos de Cultura para alfabetizar 1,8 milhão de pessoas ainda em 1964, 8,9% do total na faixa de quinze a 45 anos que não sabiam ler nem escrever. A preocupação maior de Paulo era agora com o imponderável, um futuro incerto e perigoso para ele e sua família diante de tais acusações e do clima de perseguição política que se instalara.
Ao extinguir o Programa Nacional de Alfabetização, os militares respondiam às pressões de parcela conservadora da sociedade brasileira que atacava e desqualificava o trabalho de Paulo Freire. As denúncias passaram a ser instrumento de luta dos partidos políticos que apoiavam o golpe contra as siglas ligadas ao ex-presidente João Goulart. Paulo viu sua situação se tornar cada vez mais complicada.
Condenação do método
Na Câmara dos Deputados, políticos conservadores se revezavam na condenação permanente de seu método de alfabetização. Em 18 de abril, o deputado Emival Caiado, do partido conservador União Democrática Nacional (UDN), denunciou Mauro Borges, então governador de Goiás e aliado do ex-presidente Jango, de implantar o comunismo no Estado: “O método comunizante do sr. Paulo Freire teve entusiástica acolhida do Governo goiano. O sr. Mauro Borges deu total e completa cobertura a órgãos estudantis dominados por comunistas”. Caiado concluiu, aos brados: “Não creio que em nenhum outro Estado o comunismo tenha se infiltrado tanto!”.
Intensamente debatido como uma questão social das mais relevantes, o analfabetismo exigia dos militares uma resposta rápida, algo concreto que pudesse ser contraposto ao que vinha sendo feito nos anos anteriores. Em 15 de maio, os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo repercutiram a proposta apresentada pela vereadora paulistana Dulce Salles Cunha Braga ao novo ministro da educação, Flávio Suplicy de Lacerda. Figura ativa na articulação do golpe, a advogada e professora afirmava poder erradicar o analfabetismo no Brasil em apenas oito meses. Denominado “Alfabetização para massas”, seu método teria se mostrado bastante eficiente ao ser aplicado a partir de veiculação na rádio Record, no estado de São Paulo. Dulce propunha, com base nessa experiência, uma cartilha a ser distribuída pelo MEC, com apoio radiofônico do pro- grama A voz do Brasil, a fim de alcançar todo o território nacional. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, uma nova versão da cartilha já estaria pronta para divulgação imediata, com leituras retiradas do “ideário democrático, numa espécie de réplica ao modelo comunizante do método Paulo Freire”. O ministro Suplicy de Lacerda respondeu que analisaria a proposta com atenção e que logo se manifestaria.
Ao mesmo tempo, também o debate sobre o voto do analfabeto voltou à tona nos meses que se seguiram ao golpe militar. Em um país que historicamente proibia o voto aos iletrados, o Programa Nacional de Alfabetização representava uma ameaça aos redutos políticos cativos nas eleições seguintes. Em Sergipe, por exemplo, o Programa permitiria acrescer 80 mil eleitores aos 90 mil já existentes. Da mesma forma, em Recife, a iniciativa praticamente dobraria a quantidade de eleitores, elevando de 800 mil para 1,3 milhão o número de títulos. Projetados no cenário nacional, os exemplos demonstravam como o método do professor Paulo Freire, que propunha alfabetizar um iletrado em 40 horas, poderia alterar a correlação das forças políticas.
Como o programa de alfabetização, a questão do voto dos analfabetos também estava em debate e exigia uma resposta do novo governo. O marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro militar a assumir a presidência depois do golpe, encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta de mudança tímida, que estendia o voto aos iletrados apenas nas eleições municipais — e de maneira facultativa. Ainda assim, a proposição foi derrotada, em parte pelo pouco empenho da bancada governista, fazendo crer que a medida era mero jogo de cena.
Intensiva propaganda comunista
Em sua edição de 30 de junho de 1964, o jornal O Estado de S. Paulo publicou um artigo de Antônio Bernardes de Oliveira, médico, professor universitário e membro da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, intitulado “O voto do analfabeto, um desserviço à Nação”. O autor argumentava que tal possibilidade “só pode interessar ao demagogo e ao oportunista sem escrúpulos; não corresponde a nenhuma aspiração nacional; anula e avilta o voto consciencioso e de qualidade; compromete o regime; afasta as elites legítimas; reduz o papel dos partidos; convida ao suborno; nivela por baixo”. Sobre o método de Paulo Freire, em sua opinião adotado pelo governo deposto apenas para ampliar o colégio eleitoral, Bernardes de Oliveira dizia não passar de “uma manobra para alcançar dois escopos, uma intensiva propaganda comunista e a eclosão de uma invencível força eleitoral de índole facciosa onde a demagogia teria as portas abertas”.
Em Brasília, Paulo assistia a tudo com discrição. Elza já havia voltado para Recife para ficar junto aos cinco filhos do casal — Madalena, a mais velha, com dezoito anos, seguida por Cristina, Fátima, Joaquim e o caçula Lutgardes, então com cinco anos. Através de um intermediário com contatos entre os militares, Paulo sondou o então chefe do Gabinete Militar, o general Ernesto Geisel, e o general Antônio Carlos Muricy, comandante da 7ª Região Militar, se haveria algum impedimento para que deixasse Brasília e se juntasse à família. Quando soube que não, embarcou imediatamente para Pernambuco.
Chegando em Recife, tratou de retomar suas atividades acadêmicas e seus escritos, que havia deixado de lado com a mudança para Brasília. Paulo conquistara alta visibilidade a partir de 1963, quando encampou uma experiência de alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte, trabalho desenvolvido com a equipe do Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade de Recife. Ali, 300 jovens e adultos participaram de seu processo de alfabetização em 40 horas. Amplamente propagandeados pelo governo estadual, os bons resultados levaram João Goulart a se deslocar de Brasília até o interior potiguar para participar do encerramento do curso. Com o sucesso e a repercussão da iniciativa, Paulo foi convidado pelo Ministério da Educação e Cultura a estender o trabalho para todo o país. Aceitou a proposta e se mudou com a família para Brasília. Em junho de 1963, começou a trabalhar na formação de futuros coordenadores dos núcleos de alfabetização, que seriam implantados em praticamente todas as capitais. Só no estado da Guanabara, cerca de 6 mil pessoas se inscreveram naquela ampla mobilização nacional pela educação, que seria interrompida pelos militares em abril do ano seguinte.
De volta a Recife, Paulo se apresentou voluntariamente à Secretaria de Segurança Pública e constatou que não havia qua quer ordem de prisão contra ele. Foi informado, no entanto, de que poderia ser chamado para depor a qualquer momento.
Intimidação durante a ditadura
O clima de intimidação era geral. As universidades e demais instituições de ensino público seriam afetadas diretamente pelos Atos Institucionais, que davam poder aos militares a partir de comissões de investigação instauradas para averiguar opositores, cassar mandatos políticos, destituir de cargos e retirar o direito ao voto. Com o objetivo declarado de voltar a integrar os alunos “na sua tarefa precípua de estudar e os professores na sua missão de ensinar”, as medidas estabeleciam um rígido controle sobre o universo estudantil com a pretensão de coibir os crescentes protestos e manifestações.
Atendendo às orientações impostas pelo Ato Institucional nº1, de 9 de abril de 1964, João Alfredo, reitor da Universidade de Recife, em que Paulo trabalhava, convocou uma reunião do Conselho Universitário para o dia 27 de abril. Decidiu-se instalar uma comissão de professores para apurar responsabilidades de docentes e servidores na “prática de crime contra o Estado e seu patrimônio, a ordem política e social, ou atos de guerra revolucionária”, conforme rezava a portaria. Essa co- missão deveria abrir rapidamente sindicâncias e analisar documentos a fim de elaborar relatórios para o reitor.
Paulo foi interrogado sobre sua atuação na universidade. A comissão solicitou que os esclarecimentos necessários à sua defesa lhe fossem passados por escrito. Os dias seguintes foram dedicados a produzir um documento descritivo de seu trabalho, em resposta às dezoito perguntas encaminhadas a ele. Paulo aproveitou para tecer considerações pessoais, indignado com a evolução dos fatos na instituição de ensino e no país. O documento seria entregue no dia 25 de maio. Ao esclarecer que atuava no SEC desde sua implantação, em 1962, Paulo chamava a atenção para o fato de ser amigo do reitor, a quem tinha o dever de lealdade: “Aprendi com meu pai e com minha Igreja que a lealdade, a coragem e a honradez, a retidão não podem ser desprezadas pelo homem, sob pena de se desprezar a si mesmo, e deixar de já ser homem”. O documento respondia às perguntas enumerando as atividades realizadas nos dois anos anteriores. Paulo mencionou que havia sido convidado pelo então ministro Paulo de Tarso para coordenar um programa nacional de educação para adultos, e não simplesmente de alfabetização. E que entendia o convite como honroso não só para ele, mas também para a universidade. Por isso havia exigido que o trabalho ocorresse por meio do SEC, em convênio do ministério com a Universidade de Recife, na qual continuaria com suas pesquisas regulares.
Atividades consideradas subversivas
Em relação às críticas da imprensa recifense sobre suas atividades, tachadas de subversivas ou propagadoras de ideias contrárias ao regime democrático, respondeu que não só tinha conhecimento do que se dizia na cidade “mas também em todo o Brasil e que a leitura dessas críticas lhe servira para fazer um verdadeiro curso de como se pode, por ignorância, má-fé, ou outras coisas quaisquer, distorcer o pensamento dos homens”. Em contrapartida, destacou a valorização e o apoio ao trabalho do SEC em artigos e depoimentos de nomes como o do sociólogo Gilberto Freyre e do professor Walter Costa Porto. Paulo fez referência também à Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, em Brasília, onde estivera para dar uma conferência que, seguida de debate, gerou muitos elogios ao seu trabalho. Todas essas pessoas, observou, não eram comunistas nem estavam interessadas em comunizar o país — e justamente por isso apoiavam o que estava sendo feito. Escreveu que não podia deixar de rir quando o acusavam de “lavador de cérebros”, pois a essência da sua teoria pedagógica era alérgica a regimes totalitários: “Nego, pois, a vera- cidade das acusações assacadas contra o SEC, anteontem, on- tem e hoje. Nego que o SEC […] exerça atividades subversivas ou contrárias ao regime democrático. Horroriza-me o assanhamento destas acusações”.
Em suas considerações finais, Paulo faria uma defesa intransigente da alfabetização de adultos. Escreveria: "Há até quem diga que não adianta alfabetizarmos esses 36 milhões de brasileiros porque talvez 'papagaio velho não aprende a ler'. Como se estas legiões de analfabetos não constituíssem, para nós, seus irmãos letrados, uma prova de nosso desamor. De nossa incúria. De nosso fracasso. Nunca pretendemos ser os donos da alfabetização nacional. Há analfabetos demais. […] Se tudo o que dissemos em nossa defesa pessoal e na defesa do SEC a ninguém convencer, paciência. Salvem-se, porém, os analfabetos".
Entregue o documento, Paulo ficou à espera do parecer da comissão e de como o Ministério da Educação e Cultura reagiria frente ao declarado. Cerca de três semanas depois, em 16 de junho, dia do aniversário de Elza, estava em casa trabalhando na reescrita para publicação de sua tese Educação e atualidade brasileira quando dois agentes bateram à sua porta e pediram para que os acompanhasse. Sem imaginar o que viria, vestiu-se, tomou um café, despediu-se da esposa e seguiu com os policiais. No trajeto, passaram pela Secretaria de Segurança Pública, pela polícia e de lá seguiram para o quartel do 4º Exército. Apresentado ao capitão de plantão, foi fichado e detido — sem nenhuma peça de roupa ou objeto de higiene pessoal, nenhum livro para acompanhá-lo. Paulo não tinha imaginado que de fato pudesse ser preso.
Duas semanas depois, em 1º de julho, prestou novo depoimento sobre suas “atividades subversivas antes e durante o movimento de 1º de abril, assim como suas ligações com pessoas e grupos de agitadores nacionais e internacionais”, agora em inquérito policial militar chefiado pelo tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima. Duro nos interrogatórios, em 2014 Ibiapina Lima foi apontado no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, junto a outros 376 agentes do Estado, por violação dos direitos humanos e crimes cometidos durante o regime militar.
O tenente-coronel iniciou o interrogatório pela formação e pelas atividades profissionais de Paulo; questionou-o em seguida sobre inúmeros autores e seus métodos pedagógicos: Dalton, Montessori, Mackinder, Decroly, Kilpatrick, Peter- sen, Cousinet, Laubach, Alfredina de Paiva e Souza, sintético, analítico-sintético… Surpreso, Paulo respondeu sobre aqueles que conhecia, afirmou que, em sua maioria, eram integrantes de uma pedagogia moderna, defensora de uma educação ativa na qual o educando pudesse superar a passividade característica da escola antiga e assumir uma posição participante em seu aprendizado.
Na sequência viriam perguntas para testar seu conhecimento específico sobre os autores e métodos apresentados, os resultados que produziram, onde foram aplicados. Depois, sobre sua avaliação dos sistemas de ensino adotados pelo Exército dos Estados Unidos e do Brasil a partir de 1941. Em seguida, Paulo foi questionado sobre a diferença entre sua visão pedagógica e a perspectiva de cada um dos outros educadores citados. E, finalmente, sobre o seu método de aprendizado — destinava-se apenas à alfabetização ou ao ensino de maneira geral?
Em relação ao último questionamento, Paulo se deteve mais pacientemente, explicando com didatismo para Ibiapina Lima que sua principal preocupação era educar, e não só alfabetizar. Esclareceu que era um método baseado no diálogo, que abordava situações da vida cotidiana e pretendia fazer com que os alunos se tornassem pessoas ativas a partir das discussões sobre o contexto em que viviam. Descreveu os procedimentos para a escolha das palavras, o modo como elas eram decompostas em sílabas que depois se juntavam em outras combinações para construir novas palavras. Para concluir, disse que todo seu trabalho educativo se fundava no absoluto respeito ao ser humano e que o importante era educar, não doutrinar.
Nesse momento do inquérito, tendo ouvido Paulo com atenção, Ibiapina Lima tornou-se mais agressivo; perguntou como ele poderia se considerar um educador se demonstrava desconhecer parte dos teóricos citados. Paulo argumentou que não lhe cabia julgar a si próprio e que não tinha nada a acrescentar sobre os demais autores.
O tenente-coronel então fez referência à duração do método de alfabetização de Paulo Freire, questionou o porquê das 40 horas — rapidez tão alardeada pelos meios de comunicação. A busca por uma solução ágil, respondeu Paulo, era necessária porque o problema era muito grave, e argumentou que a alfabetização deveria ser aprofundada em fases subsequentes. Quanto à originalidade de seu trabalho, afirmou que não tinha pretensões de ser original, mas de dar sua contribuição ao combate do analfabetismo.
Ibiapina Lima então questionou Paulo sobre seu suposto envolvimento com o comunismo ou com regimes totalitários, comparando seu método àqueles utilizados por Hitler, Mussolini, Stalin e Perón. Quis saber também sua opinião a respeito de Cuba, da União Soviética e da China. E o que pensava sobre Brizola, Miguel Arraes, Luís Carlos Prestes, Francisco Julião e Gregório Bezerra. Em uma guerra entre o Brasil e um país comunista ou socialista, de que lado Paulo estaria? Paulo se defendeu de todas as perguntas. Constrangido pelas circunstâncias, repudiou o comunismo, expressou-se como apoiador das reformas do marechal Castello Branco, mostrou-se satisfeito com sua liderança, negou vontade de deixar o país e, por fim, colocou-se na condição de cristão que valorizava o ser humano e que se orientava pela doutrina da fé. Depois de horas de tensão e afrontamento, pôde enfim voltar para a cela. Dois dias depois, em 3 de julho, foi solto.
Prisão
Por pouco tempo, entretanto. Paulo voltou a ser preso já no dia seguinte. Sem maiores explicações, foi levado para o Quartel de Obuses, no bairro de Jatobá, na vizinha Olinda. Foi encarcerado em uma das solitárias do piso inferior, onde ficava a prisão dos sargentos e tenentes. A cela era pequena, as paredes, ásperas; havia apenas uma cama e altura justa para que Paulo ficasse em pé. Poucos dias depois, foi transferido para a enfermaria dos oficiais, no andar de cima, para onde eram encaminhados os presos com curso superior.
Ali passaria a maior parte de seu segundo encarceramento, convivendo com outros detidos como Clodomir Santos de Morais, ativista político ligado ao Partido Comunista e às Ligas Camponesas, Pelópidas Silveira, o prefeito deposto de Recife, o advogado Joaquim Ferreira e Plínio Soares, ex-funcionário da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), entre outros políticos e lideranças sociais.
Para passar o tempo, além de conversar e contar casos, jogavam xadrez e faziam palavras-cruzadas. Paulo também se dedicou intensamente à leitura. Caiu-lhe nas mãos o clássico Grande sertão: veredas. Incomodado com a linguagem de Guimarães Rosa, desistiu do livro e comentou com Clodomir sua dificuldade com o estilo, o palavreado, o tom regional do romance. Surpreso, o companheiro explicou as circunstâncias que levaram aquela região entre o rio São Francisco e Goiás a manter uma espécie de dialeto próprio, o mesmo falado até então por sua mãe e alguns parentes que moravam ali. “Se você quiser, eu, com toda a satisfação, vou tratar de traduzi-lo”, propôs Clodomir, disposto a fazer anotações sobre as expressões idiomáticas no próprio livro. Paulo aceitou de imediato.
Em clima de camaradagem, o tempo se arrastava no andar de cima do Quartel de Obuses. Um dia, um jovem tenente se aproximou da cela de Paulo: “Professor, vim conversar com o senhor porque agora nós vamos receber um grupo de recrutas e, entre eles, há uma quantidade enorme de analfabetos. Por que o senhor não aproveita sua passagem por aqui e ajuda a gente a alfabetizar esses rapazes?”. Ao que Paulo respondeu, surpreso com a ingenuidade do rapaz: “Mas meu querido tenente, estou preso exatamente por causa disso! Está havendo uma irracionalidade enorme no país hoje, e se o senhor falar nessa história de que vai convidar o Paulo Freire para alfabetizar os recrutas, o senhor vai para a cadeia também. Não dá!”.
Somados os dois períodos de encarceramento, em Recife e em Olinda, Paulo ficou preso por mais de setenta dias. Fez um acordo com a mulher para que os dois filhos mais novos não o visitassem na prisão. Para eles o pai estava viajando. Durante todo esse tempo, Elza desdobrou-se como pôde para cuidar da família e atenuar o sofrimento do marido na prisão. Uma de suas estratégias era entregar regularmente uma panela da comida de casa, sempre que possível em quantidade suficiente para alimentar não só os companheiros de cela, mas também os outros presos. A justa distribuição era garantida com a colaboração dos carcereiros ainda não submetidos aos rigores do golpe.
A vontade de Paulo era permanecer no Brasil, mas as circunstâncias não ajudavam. Desde que fora solto pela última vez, estava obrigado a comparecer regularmente a instâncias do Exército para registrar suas atividades. Em um desses encontros, ele seria convocado para um novo inquérito, desta vez no Rio de Janeiro. A essa altura, Elza já alentava a possibilidade de sair do país para preservar a integridade física e mental do marido — e da família.
Exílio na Bolívia
Quando chegou no Rio, atendendo a uma nova intimação militar, Paulo se rendeu ao apelo feito por vários de seus amigos, entre eles o professor de literatura e líder católico Alceu Amoroso Lima, conhecido também como Tristão de Ataíde, e buscou exílio na embaixada da Bolívia. Antes disso, tentara sem sucesso a representação diplomática do Chile, que recusara seu pedido. Muitos colegas também tentaram encontrar formas de acolhê-lo no exterior, caso de Ivan Illich, educador austríaco radicado no México, que conhecera Paulo em uma visita ao Recife. Mas nada havia dado certo até então.
Enquanto esperava pela autorização para viajar a La Paz, Paulo foi informado de que um representante do Ministério da Educação da Bolívia, que estava no Rio para um congresso de educadores latino-americanos, gostaria de se reunir com ele na embaixada. O colega boliviano propôs que Paulo trabalhasse em seu país como assessor de educação, em particular no ensino de adultos. O convite foi aceito na hora.
Em 28 de setembro, Ibiapina Lima expediu um mandado de prisão para Paulo Freire, baseado nos seguintes argumentos: o educador estaria implicado em subversão nos meios intelectuais e de alfabetização; seu método não tinha qualquer originalidade e a velocidade era inferior a de outros modelos; a experiência de Angicos era por si só um atestado de subversão na medida em que mais politizava do que alfabetizava; seria um mistificador, suposto criador de um método e sem pejo de negar que desconhece tudo o que há a respeito; seria um aliciador sistemático do marxismo; refugiou-se em embaixada estrangeira depois de viajar para o Rio de Janeiro para atender a um inquérito, utilizando passagens compradas pelo governo.
Enquanto a viagem ao exterior não se arranjava, Elza e os filhos, por segurança, passaram a viver inicialmente na casa de Zé de Melo, seu irmão. Depois se mudaram de Recife para a casa de Stela, irmã de Paulo, em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, para poderem visitá-lo com maior frequência. Nesse período, também esteve na embaixada o advogado Odilon Ribeiro Coutinho, seu colega e amigo dos tempos em que frequentaram juntos a Faculdade de Direito. Além de um pacote de livros, Odilon entregou a ele alguns dólares para serem usados em sua chegada à Bolívia, dada a sua dificuldade para acessar recursos financeiros. Parte do dinheiro ele daria a Elza para ajudar nas despesas da família. Sem passaporte, porque nunca havia deixado o país, Paulo embarcou para La Paz apenas com sua carteira de identidade, enfiada por Elza em seu bolso no último instante.
Em 18 de outubro, alguns dias após Paulo ter partido para o exílio, Ibiapina Lima divulgou o relatório final do inquérito sobre o educador, no qual o acusava de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos. Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização dos mesmos”. Para Ibiapina Lima, Paulo não tinha criado método algum e sua fama viria da propaganda feita por agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um criptocomunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, acusava. Para o militar,
Paulo era um fugitivo: "Recebeu um chamado para depor no Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, e ali chegando fugiu sem considerar que a Nação forneceu passagem de avião, confiando que um dos seus intelectuais não seria um relapso e um fujão. Após viajar, […] asilou-se na embaixada da Bolívia, negando-se a depor e caracterizando, desta forma, toda a sua culpabilidade criminosa de que era um dos chefes. Assim, confirmou as acusações que pesavam sobre ele: assumiu por conta própria toda a responsabilidade por ter fugido. Quem não teme não se esconde".
Sérgio Haddad é doutor em história de filosofia da educação pela Universidade de São Paulo (USP). Este extrato é parte de seu livro "O educador: um perfil de Paulo Freire", publicado pela editora Todavia em 2019.
El País: Com reforma da Previdência aprovada, Guedes mira salário de servidor público
Senado aprova texto-base e vota agora destaques do texto. Futuro pacote de medidas do Governo inclui redução de jornada e mudança remuneração no serviço público. Reforma tributária fica para 2020
O Senado acaba de aprovar o texto-base da reforma da Previdência, uma das principais promessas de mudança liberal do Governo Bolsonaro, que estabelece pela primeira vez uma idade mínima para aposentadoria (65 anos para homens e 62, para mulheres). Mas enquanto o texto só espera a votação dos destaques e a promulgação em sessão conjunta do Congresso, o Governo de Jair Bolsonaro já começa a se empenhar na aprovação de ao menos duas novas medidas econômicas ainda neste ano: a reforma administrativa, que deve ser enviada nas próximas semanas ao Congresso Nacional, e o pacto federativo, que pretende delimitar os direitos e deveres de cada ente federativo, principalmente com relação aos tributos. Por outro lado, já está claro entre técnicos do Ministério da Economia, que o Governo não enviará sua proposta de reforma tributária neste ano. Só o fará em 2020.
Antes das próximas batalhas, Bolsonaro celebra a vitória. "Antes mesmo da Nova Previdência, já caminhamos para a marca de um milhão de novos empregos. Mesmo sem o Pacote Anti-Crime, já reduzimos em 22% os homicídios e em 12% os estupros. Com o encaminhamento dessas medidas, iremos ainda mais longe. Estamos apenas começando", publicou o presidente em seu perfil no Twitter. Ao celebrar a aprovação da reforma da Previdência em segundo turno no Senado, Bolsonaro, que está em viagem pela Ásia, deu "parabéns ao povo brasileiro". "Essa vitória, que abre o caminho para nosso país decolar de vez, é de todos vocês! O Brasil é nosso! GRANDE DIA!".
A reforma administrativa a ser apresentada pela equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, pretende aproximar o salário dos servidores públicos com os que têm função equivalente na iniciativa privada. Desde que assumiu o ministério, em janeiro deste ano, Guedes se queixa dos altos salários do funcionalismo público. Uma das bases para justificar sua percepção, é em um estudo do Banco Mundial lançado no início do mês, no qual mostra que, de maneira geral, o servidor público federal no Brasil custa quase duas vezes a mais para o seu empregador do que um trabalhador da iniciativa privada em atividade econômica similar.
Uma questão que chegou a ser estudada, mas ainda não está claro se será apresentada ou não, é o fim da estabilidade do servidor público. Pelas regras atuais, depois de um período de experiência, dificilmente um funcionário federal no Brasil perde seu emprego. Uma demissão depende de longos processos de apuração internos e que geralmente só ocorrem se o funcionário cometeu algum delito civil ou criminal, por exemplo, desviou dinheiro público ou se envolveu em atos de corrupção. O Governo estuda maneiras de fazer com que esses servidores sejam obrigados a cumprir metas, assim como em algumas empresas privadas. Caso não as cumpram, seriam demitidos. Esse tema específico deve sofrer forte oposição no Congresso Nacional, onde o lobby dos servidores é intenso junto a deputados e senadores.
Com relação ao pacto federativo, o assunto já vem sendo debatido timidamente na Câmara e no Senado. Mas, até o momento, não teve uma participação efetiva do Governo. O pacto federativo é um pacote de projetos de lei que incluem desde a redefinição de qual imposto vai para qual órgão (União, Estado ou município) até sobre de quem é a responsabilidade pela segurança pública. Ou seja, envolve a maior parte dos ministérios de Bolsonaro.
Na área econômica, o foco será na distribuição dos recursos do megaleilão do petróleo previsto para ocorrer no início de novembro e que pretende arrecadar ao menos 100 bilhões de reais. Há ainda um projeto que pretende ampliar de 2024 para 2028 o prazo para o pagamento dos precatórios e outro que autoriza o poder público a vender recebíveis a instituições financeiras privadas por um valor menor, é o que foi batizado de securitização das dívidas. Esses três projetos ou foram aprovados em apenas uma das duas casas legislativas ou ainda estão em fase inicial de discussões.
Em outra frente, o Governo ainda pretende enviar duas propostas de emendas constitucionais. Uma que altera a “regra de ouro”, a norma que proíbe o governo de fazer mais dívidas para pagar despesas correntes. E outra que tem como finalidade facilitar o remanejamento do Orçamento por meio da desvinculação de recursos, da desindexação da obrigação de conceder reajustes salariais e da desobrigação de pagar as despesas que são pagas atualmente.
Essas duas propostas já enfrentarão dificuldades em seu nascedouro. Na Câmara, por exemplo, o presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Felipe Francischini (PSL-PR), disse que não foi procurado para tratar do assunto. E afirmou que não o colocará em votação enquanto não houver qualquer negociação.
Sua queixa é que a Câmara já estuda desde ano passado uma proposta que trata especificamente da “regra de ouro”. Ele se refere à proposta de emenda constitucional 438 de 2018, que cria gatilhos para ajustar as contas públicas, como a redução de salários de servidores e consequente menor carga horária de trabalho. “O Governo deu um tiro no pé. Atropelou o Parlamento e fez um acordo para votar seu projeto que ainda nem foi enviado, sem ouvir todas as partes”, afirmou Francischini.
Nesta semana, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), reuniu-se com o ministro Paulo Guedes e disse que pretende dar prioridade à PEC da regra de ouro. Pelo acordo firmado com o Governo, dois textos diferentes tramitarão no Congresso. Um no Senado e outro na Câmara. Quando e se um deles for aprovado, deve acabar sendo incorporado ao outro, o que agilizaria o processo de discussão.
El País: Eduardo Bolsonaro vence um ‘round’ na guerra do PSL
Deputado fica com a liderança do partido. Crise pode se tornar oportunidade para enterrar, temporária ou definitivamente, planos do Planalto de enviá-lo a Washington
Mesmo tendo nascido e crescido em uma das cidades mais bonitas do mundo, meca de casais de turistas apaixonados, o deputado brasileiro Eduardo Bolsonaro escolheu pedir a mão de sua namorada bem longe do Rio de Janeiro. O terceiro dos filhos do presidente —conhecido como Bolsonaro 03— transformou o que costuma ser um ato íntimo em um assunto político em dezembro, dias antes da posse de seu pai. Nada incomum nesses tempos da política espetáculo e menos ainda em um clã que deve em boa medida seu inesperado sucesso político ao ativismo nas redes sociais. No palco, com o olhar voltado a uma mulher do público que participava da Cúpula Conservadora das Américas organizada por ele mesmo, Bolsonaro filho perguntou: “Heloisa Wolf, aceita oficialmente se casar comigo?”. E se ajoelhou. Ela respondeu com um eloquente "siiiim" e aparente surpresa. Antes da cena, que acabou com aliança, beijo e aplausos, o à época recém-eleito deputado havia prometido em um discurso “extinguir a esquerda” do Brasil. Aconteceu longe do Rio, em Foz do Iguaçu, ao lado das cataratas.
Desde que seu pai chegou ao poder, esse formado em Direito e policial de profissão foi ganhando espaço em relação aos seus irmãos. Bem loiros quando crianças, cresceram em um bairro de classe média no Rio, estudaram em colégios particulares. Eduardo, surfista, aprendeu inglês. Reeleito deputado em outubro como o parlamentar mais votado na história do Brasil (1,8 milhão), tem grande influência na política exterior e cresceu na nacional até se transformar rapidamente no herdeiro político da dinastia que o capitão reformado forjou com os três filhos de seu primeiro casamento.
Ainda que o interesse de Bolsonaro 03 pelas Relações Exteriores tenha sido nulo no último mandato, agora preside a comissão de Relações Exteriores na Câmara dos Deputados, com ternos bem cortados, olhos claros e uma barba bem aparada que contrasta com as entradas no cabelo, suas posições políticas não diferem das de seu progenitor: pulso firme com o crime; a esquerda é um inimigo a se derrotar, defesa da família, abertura econômica...
No dia de julho em que completou 35 anos recebeu um desses presentes que somente um pai presidente poderia dar: o cargo de embaixador do Brasil em Washington. Se o assunto dependesse somente da autorização dos EUA, estava feito porque o presidente Donald Trump o considera, como deixou claro com vários gestos públicos como convidá-lo a acompanhar seu pai no Salão Oval, deixando de fora o ministro das Relações Exteriores. O problema é que o Senado brasileiro deveria ratificá-lo e nesses meses os bolsonaristas não conseguiram garantir os votos necessários para evitar um fiasco.
A liderança do PSL no caminho
Foi aí que na semana passada explodiu uma dessas crises vertiginosas tão frequentes na política brasileira. O Partido Social Liberal, com o qual o presidente Bolsonaro disputou as eleições —uma dessas siglas que no Brasil são chamadas de aluguel—, está prestes a se romper. A crise parece ter se transformado em uma oportunidade para enterrar, temporária ou definitivamente, os planos de enviar Eduardo a Washington. O presidente lutou com todas armas disponíveis para colocá-lo na liderança do PSL na Câmara. Sofreu uma derrota na semana passada, mas acabou saindo vitorioso nesta segunda.
Para Guilherme Casarões, especialista em Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, acabou vencendo uma espécie de plano C para o filho do presidente. “O plano A era, até então, que ele fosse a Washington; o plano B era que Ernesto Araújo (atual ministro das Relações Exteriores, diplomata) fosse a Washington e Eduardo o substituísse no ministério; o plano C seria que se transformasse no líder do partido na Câmara, com controle sobre o grupo parlamentar”.
Não é sem custos essa escolha do deputado. Ser embaixador em Washington lhe daria “uma aura de homem de Estado”, afirma Casarões. O analista diz que o deputado “logo percebeu que as Relações Exteriores são um dos assuntos em que não existe oposição, não se considera relevante, e entendeu que era mais fácil construir aí uma reputação”. Bagagem para quem sabe suceder ao patriarca nas eleições de 2022 ou 2026...
Foi um projeto para qual Eduardo investiu. Recebeu aulas de embaixadores, estudou Relações Internacionais e com o olhar em Washington, mas sem descuidar das muitas outras frentes enquanto seus irmãos murcham politicamente. Flávio, 38 anos, senador, se mantém discreto após começar a ser investigado por corrupção, um assunto muito sensível porque foi uma das bandeiras que levaram seu pai à Presidência. Carlos, 36 anos, vereador pelo Rio de Janeiro, terminou agora uma licença de um mês sem salário. Fez a solicitação no dia seguinte à publicação no Twitter: “Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos”.
Eduardo também adota o discurso revisionista de seu pai sobre a ditadura. Mas, principalmente, adora as armas, passatempo que compartilha com sua esposa. Ela pratica tiro esportivo; ele se casou com um alfinete de gravata no formato de uma pistola e posou com uma arma real na cartucheira durante uma visita a seu pai hospitalizado. O casal adotou uma cachorra vira-latas de uma favela do Rio que foi batizada como Beretta em homenagem ao fabricante italiano de pistolas. Com 36.000 seguidores, Beretta Bolsonaro é, como seus donos, uma estrela do Instagram.
El País: Quiprocó do PSL: milhões, trapaças e tuítes fumegantes
Comando da legenda suspende cinco deputados e afasta filhos do presidente de diretórios do Rio e de São Paulo. Disputa da sigla que revolucionou direita chegará à Justiça
Quando, há dez dias, Jair Bolsonaro pediu para um militante do PSL esquecer o “queimado” presidente da legenda, Luciano Bivar, ele acendeu o fósforo em um caminho de pólvora que aparentemente só tem um destino, um barril prestes a explodir. De lá para cá, já houve vazamentos de gravações clandestinas envolvendo reuniões parlamentares e chamadas telefônicas de Bolsonaro, xingamentos de toda sorte (um deles chamou o presidente de "vagabundo", outro falou que uma parlamentar é "falsa"), tentativas e deposições de líderes do partido e do Governo, além de muito bate-boca pela imprensa e pelas redes sociais. Por fim, as movimentações dos últimos dias demonstraram que o partido está longe de um consenso e ressaltaram que há duas alas bem identificadas no momento, os bolsonaristas e os pró-Bivar.
O primeiro grupo sofreu seguidas derrotas: viu cinco deputados serem suspensos e se deparou com a perda do comando de dois dos maiores diretórios regionais, o de São Paulo e o do Rio de Janeiro, que tinham como presidentes o deputado Eduardo Bolsonaro e o senador Flávio Bolsonaro, dois herdeiros presidenciais.
O segundo grupo, por sua vez, alterou a composição da Executiva Nacional e, com vistas à convenção nacional que será realizada no fim de novembro, aumentou os poderes de Bivar, fundador e dirigente máximo da sigla há 25 anos. A ideia é manter o decano no poder. Para isso, aumentaram de 101 para 153 os representantes da Executiva, são eles quem elegem o comando partidário. E a maioria dos novos 52 membros são ligados a Bivar. O dirigente é investigado pelo esquema de candidaturas fictícias de mulheres em Pernambuco e foi alvo de um mandado de busca e apreensão cumprido pela Polícia Federal na última segunda-feira.
O pano de fundo da guerra interna peesselista são 737 milhões de reais pelos próximos quatro anos de fundos partidário e eleitoral, comandos de diretórios municipais e estaduais com vistas às eleições de 2020 e cargos de representação no Congresso Nacional. Nenhum dos lados admite isso oficialmente, mas nas reuniões internas é parte do que causa discórdia. Na prática, todos se dizem apoiadores do presidente e que querem uma conciliação. Os pró-Bivar afirmam que esperam uma sinalização de paz, mas avisam que quem quiser sair do partido terá o seu mandato solicitado junto à Justiça eleitoral.
“Não tem acordo. O partido que possibilitou eles se elegerem. Se agora querem cuspir no prato do partido, que pulem do 17º andar”, afirmou o líder da legenda na Câmara, Delegado Waldir, em referência ao número da legenda nas urnas, 17. Acusou ainda Bolsonaro de tentar comprar apoio com cargos e controle partidário para ficar com o a liderança da sigla. Ao longo da semana, Waldir disse em reuniões internas que iria “implodir” Bolsonaro e o chamou de “vagabundo”.
Já os bolsonaristas pedem uma “depuração” no PSL, com a abertura das contas e a substituição de Bivar do comando da legenda. “A ala leal ao Presidente Bolsonaro continuará lutando por transparência e democracia no partido”, disse a bolsonarista Carla Zambelli em seu Twitter.
Outro efeito prático desse racha foi a destituição da deputada Joice Hasselmann (SP) da liderança do Governo no Congresso. Joice assinou uma lista em apoio a Waldir e, depois de destituída, criticou Eduardo Bolsonaro e disse que tudo o que ele consegue é por causa do apoio dado por seu pai. “Eu assinei a lista do Waldir porque eu dei a minha palavra. Eu não vou sacrificar a minha palavra e a minha honra por conta de dois meses na liderança, botando um menino na liderança que não consegue nada sozinho”, afirmou após participar de uma reunião na sede do PSL, em Brasília. A parlamentar diz que agora está livre para se dedicar ao seu mandato e à pré-candidatura para a Prefeitura de São Paulo.
Em resposta, Eduardo publicou uma foto em sua conta no Twitter na qual aparece uma imagem de Joice em uma nota de 3 reais. O intuito era mostrar que a deputada era falsa, já que essa cédula não existe.
Tamanho do partido
O PSL tem a segunda maior bancada da Câmara, com 53 parlamentares, um a menos que o PT. Só passou a ter alguma relevância no Legislativo após a eleição do ano passado, quando se aproveitou da onda Bolsonaro e elegeu representantes em todas as regiões do país. Antes, tinha apenas um deputado. Foi uma ascensão meteórica, uma revolução partidária na redemocratização com a criação de um novo partido à direita, que agora começa a ruir.
Nesta semana, estimulados pelo presidente da República, os bolsonaristas do PSL tentaram emplacar o deputado Eduardo Bolsonaro (SP) – o filho 03 – como líder da legenda em substituição a Delegado Waldir (GO). Em duas relações apresentaras na Câmara não conseguiram as assinaturas mínimas necessárias para destituir o deputado goiano, que produziu uma nova lista, com mais apoios que o de seus “inimigos íntimos”, e se manteve no cargo.
Na sexta-feira, quando tentaram articular uma terceira lista para retirar Waldir, nova derrota. Antes que eles protocolassem o documento na Câmara, a Executiva nacional do partido decidiu suspender cinco deputados federais das atividades partidárias. Ou seja, nada dos que eles apresentassem em nome da legenda seria válido. Não poderiam representar o partido em comissões, reuniões temáticas, participar de eleições internas ou assinar listas para troca de líderes.
Os suspensos, todos bolsonaristas, foram: Carlos Jordy (RJ), Carla Zambelli (SP), Bibo Nunes (RS), Alê Silva (MG) e Filipe Barros (PR). “Isso é uma perseguição. Eles não estão punindo os 20 parlamentares, apenas os que eles consideram que são os pivôs do que eles consideram uma afronta ao partido”, queixou-se Jordy.
Os próximos capítulos e Congresso
A briga entre o único partido fiel ao Governo nas votações no Congresso e o próprio presidente está distante de terminar. Na próxima semana, deve chegar à Justiça. Os parlamentares suspensos devem recorrer ao Judiciário para evitarem suas punições. Enquanto que o presidente da República e o presidente da legenda se cercam de ex-ministros do Tribunal Superior Eleitoral para futuras atuações nesta seara.
Bolsonaro recorreu ao advogado Admar Gonzaga para buscar uma maneira de proteger os deputados que o acompanharem em uma eventual migração para outra legenda sem serem punidos pela lei eleitoral. Enquanto que Bivar buscou o advogado Henrique Neves, para se informar de como ele deve agir em caso de desfiliação em massa. Quer saber, por exemplo, se deve requisitar os mandatos de quem saiu da legenda e se é possível evitar a perda de parte dos fundos partidários e eleitoral, que se baseiam no tamanho da bancada eleita no último pleito.
O quiprocó — palavra usada, por enquanto, no sentido brasileiro, como sinônimo de confusão, e não no norte-americano, de toma-lá-dá-cá— também abre uma pergunta maior sobre a já precária relação do Planalto com o Congresso. A disputa vai afetar a votação de projetos importantes para o mercado financeiro? A consultoria de risco político Eurasia disse nesta semana que espera mais atrasos nas votações (a Previdência do Senado está prevista para a próxima semana) do que perda de apoio para os projetos.
El País: Às vésperas do afastamento de Dilma, Lava Jato rejeitou delação que prenderia Temer em 2019
Conversas no Telegram mostram que procuradoria não viu interesse público nas acusações contra então vice em 2016. “Você acha que o Supremo ia me autorizar?", se defende Janot
Duas semanas antes de Michel Temer assumir a presidência interinamente devido ao afastamento de Dilma Rousseff pelo processo de impeachment na Câmara em 17 abril de 2016, a Operação Lava Jato recebeu um "anexo-bomba" de uma delação premiada que, se aceito, poderia ter mudado os rumos da história recente do país. Conversas entre procuradores da Lava Jato no Telegram, obtidas pelo The Intercept e analisadas em conjunto com o EL PAÍS, permitem rastrear o momento exato em que a procuradoria teve em mãos informações que poderiam levar a uma investigação do então vice-presidente por suspeita de corrupção. Na época, porém, os procuradores consideraram que as declarações não atendiam ao "interesse público" e não aceitaram a proposta de delação. Mas, três anos depois, essa mesma delação foi utilizada pela Lava Jato para uma ação penal contra Temer e para pedir a prisão preventiva dele, já na condição de ex-presidente.
A delação, rejeitada em abril 2016 com anuência do Procuradoria Geral, mas que deu suporte à prisão de Temer em março de 2019, foi feita pelo empresário José Antunes Sobrinho, sócio da construtora Engevix, que relatou um pagamento de propina para Temer. As conversas no chat “Acordos Engevix” no Telegram mostram que os procuradores de Curitiba, Rio e Brasília receberam a proposta de Antunes em 4 de abril de 2016. O menção a Temer, que viria a ser batizada de “anexo-bomba” mais tarde, dizia que Antunes fez um pagamento de 1 milhão de reais para atender a interesses de Temer, como compensação por um contrato na usina nuclear Angra 3, da estatal de energia Eletronuclear.
O pagamento, segundo Antunes, foi entregue a um amigo do ex-presidente, o coronel João Baptista Lima Filho, o coronel Lima. O dinheiro não saiu direto dos cofres da Engevix para Temer, mas de uma companhia prestadora de serviço do Aeroporto de Brasília, que era controlado pela Engevix. A empresa em questão era a Alúmi. O relato não convenceu os procuradores.
No dia seguinte, 5 de abril de 2016, eles comunicaram aos advogados de Antunes que as negociações da delação estavam encerradas. “Pessoal de BSB e Lauro, o Antunes apresentou, neste momento, mais 2 anexos. Eles estão forçando a barra aqui. Informo que a opinião de CWB é contrária ao acordo”, afirmou o procurador Athayde Ribeiro, da força-tarefa de Curitiba no dia 5 de abril de 2016. Em resposta, o procurador Lauro Coelho, da então incipiente força-tarefa do Rio de Janeiro, respondeu apenas: “Ciente do teor”.
No exato dia em que procuradores do Paraná receberam o documento da delação contra Temer, em 2016, o então advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, fazia a defesa de Dilma Rousseff na comissão do impeachment da Câmara dos Deputados. Marcelo Odebrecht já havia sido condenado pela Lava Jato e o ex-presidente Lula também fora alvo de um mandado de condução coercitiva. Temer, por sua vez, era apontado como um dos articuladores do impeachment. Neste cenário, a acusação contra ele não era um evento trivial. Naquele ano, a Lava Jato fechou pelo menos 108 acordos de delação, segundo a planilha Colaboração_Todos (19.12.2017) compartilhada no Telegram pelos procuradores. Isso sem contar os acordos de leniência com empresas.
Imagem do "anexo-bomba" da delação de José Antunes Sobrinho, sócio da Engevix, de 2016
Era um momento peculiar, o auge da operação, como relata o ex-procurador-geral Rodrigo Janot em suas memórias recém lançadas Nada mais que Tudo. “Eu só não diria que éramos mais populares que Jesus Cristo porque não quero cometer o mesmo erro de um dos Beatles, que ousou tocar em um mito religioso, sem se dar conta do peso da religião”, escreveu Janot, no livro. “O fato é que nós, procuradores, juízes e policiais, experimentávamos uma popularidade nunca vista antes no meio jurídico”, acrescentou.
Em 21 de junho de 2017, e com Temer já no poder e enfrentando problemas com Janot, o procurador Athayde Ribeiro disse nas conversas de Telegram que a menção ao então vice feita um ano antes era um “anexo-bomba”. Àquela altura, Temer já era presidente oficial desde agosto de 2016, quando o Senado confirmou o impeachment de Dilma. “Leo, so rememorando q Rj, PR e BSB ja haviam negado acordos pra Engevix e executivos. Os anexos da epoca nao se mostraram interessantes; e tb pq nao se mostraram confiaveis, tentando jogar c "anexos bomba" aos 45 do segundo tempo, tentando nos intimidar c a Veja e por n ter apresentado provas de corroboracao”, disse o procurador Athayde Ribeiro ao procurador Leonardo Cardoso de Freitas no Telegram —a grafia original usada nos chats foi preservada. A menção à Veja parece remeter, na verdade, a uma reportagem da revista Época (semanal que concorre com a Veja) que publicou em abril de 2016 as revelações que Antunes tinha em sua proposta de delação.
Do "não" documentado à volta por cima em 2018
Diante da postura de procuradores da Lava Jato de Curitiba, Brasília e do Rio de Janeiro de rejeitar insistentemente o acordo de delação premiada com Antunes em 2016, seus advogados protocolaram ainda naquele ano uma petição no Ministério Público Federal no Paraná para reiterar que o empreiteiro continuava interessado no acordo. Em resumo, os advogados de Antunes pediram que, caso a proposta fosse rejeitada definitivamente, os procuradores assumissem por escrito que essa recusa partiu deles e prometessem que eles não usariam as informações em nenhuma investigação contra o empreiteiro.
Em 24 de junho de 2016, o procurador Paulo Galvão compartilhou com os colegas o texto da certidão que foi entregue aos advogados. “Cumpre, preliminarmente, certificar que as negociações para eventual acordo de colaboração premiada com o réu José Antunes Sobrinho foram formalmente encerradas, consoante informado aos causídicos em reunião realizada em 5 de abril de 2016, na sede da Polícia Federal de Curitiba”, diz um trecho da certidão, que alegou genericamente “ausência de interesse público na continuidade das negociações”.
A delação de Antunes acabou retomada e homologada em 2018 por um caminho tortuoso. Temer foi delatado numa operação de enorme apelo midiático pelo empresário Joesley Batista, sócio da JBS, em maio de 2017, quando vieram à tona as conversas gravadas por Joesley em que Temer disse “tem que manter isso, viu?” depois de o empresário relatar que estava com as “pendências zeradas” com o ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB), ex-presidente da Câmara e aliado de Temer que deflagrou o processo de impeachment contra Dilma.
Nessa conversa gravada, Temer também recomendou a Joesley que procurasse o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures, para resolver problemas da JBS no governo. Após combinações com o empresário, Rocha Loures recebeu uma mala de propina de 500 mil reais, que, segundo Joesley e investigações da Lava Jato, eram destinados a Temer. Essa mala de dinheiro motivou a primeira ação penal apresentada contra Temer A ação penal acabou tendo a tramitação suspensa pela Câmara dos Deputados em agosto de 2017.
As conversas de Rocha Loures com representantes da JBS, no entanto, também levantaram suspeitas sobre outro assunto, de que uma nova lei para a gestão de portos brasileiros, sancionada por Temer em 2017, visava uma troca de propinas de empresas do setor portuário. Foi então que a delação da Engevix ganhou uma nova chance num inquérito sobre portos, que investigou, ao longo de 2017 e 2018, a atuação de Temer na sanção dessa nova lei do setor. A PF argumentou que o coronel Lima tinha recolhido propinas para Temer de empresas do setor portuário, da JBS e também no caso da Engevix. Antunes finalmente assinou acordo de colaboração com a Polícia Federal —e não com os procuradores diretamente— em junho de 2018, quando faltavam seis meses para Temer deixar o poder.
O inquérito dos portos motivou uma ação penal contra Temer. Quando ele deixou o Planalto e perdeu a prerrogativa de foro privilegiado, o caso da Engevix e da Eletronuclear foi distribuído para o juiz Marcelo Bretas e a força-tarefa da Lava Jato no Rio. No fim de fevereiro de 2019, já sob o Governo de Jair Bolsonaro, Antunes prestou novo depoimento a procuradores do Rio, como parte de sua delação homologada pelo ministro Roberto Barroso. Repetiu a versão apresentada em abril de 2016 da propina de 1 milhão de reais a Temer, por intermédio do coronel Lima, em troca de contrato na Eletronuclear. Acrescentou que as negociatas também envolveram seu ex-ministro Wellington Moreira Franco e o empresário Rodrigo Castro Neves (ex-sócio do ex-senador Eunício Oliveira).
Um mês depois desse depoimento, Temer foi preso preventivamente com base nesse relato e nas investigações complementares sobre como funcionou um esquema de corrupção da Eletronuclear. Já tinham vindo à tona os comprovantes bancários e e-mails envolvendo o pagamento delatado por Antunes – e os procuradores, então, foram atrás e conseguiram o depoimento espontâneo do empresário Marcelo Castanho, diretor da Alúmi, que fez o repasse de 1 milhão de reais para o coronel Lima. Para prender Temer, os procuradores também argumentaram que o ex-presidente era acusado em ações penais de ter sido beneficiário de propinas e que era investigado em outros inquéritos por corrupção. Temer ficou menos de uma semana na cadeia e hoje responde em liberdade ao processo.
Sem consistência, segundo Janot
Em entrevista ao EL PAÍS, o ex-procurador-geral Rodrigo Janot defende sua decisão, em 2016, de rejeitar a delação de Antunes. Ele diz avaliar que não conseguiria apoio no Supremo Tribunal Federal para abrir uma investigação contra Temer com base no relato. “Você acha que o Supremo ia me autorizar a investigar o vice-presidente da República com algo que não era consistente?”, afirmou. Pelo cargo que ocupava, Janot foi o último responsável por rejeitar a delação da Engevix em 2016. O ex-procurador-geral reconhece que sabia da menção ao então vice-presidente na proposta de delação de Antunes, e que era “informado o tempo todo sobre a delação da Engevix”. Porém, desqualificou o delator como fonte crível, embora o empreiteiro tenha sido considerado fidedigno pela Polícia Federal, em 2018, pela ex-procuradora-geral Raquel Dodge e por procuradores do Rio em 2019.
Janot argumenta que Antunes "titubeava o tempo todo" e que o caso Engevix foi “sem importância”. "Não era acordo relevante para a gente. Tanto foi que quando teve algo concreto, [Temer] caiu. Caiu não, mas foi processado duas vezes”, disse, sem especificar o que seria “algo concreto”.
Em seu livro, Janot afirmou, de maneira errônea, que a prisão do ex-presidente foi motivada pelo caso da mala de dinheiro da JBS entregue ao ex-deputado Rocha Loures (MDB). Mas Temer, na verdade, foi preso por ordem do juiz Bretas, a pedido da força-tarefa da Lava Jato no Rio, pelo pagamento de propina da Engevix e pelas investigações do esquema de corrupção na Eletronuclear. Ao EL PAÍS, Janot admitiu que a informação em seu livro, sobre o motivo da prisão de Temer, foi um erro e que será corrigido.
Questionada sobre a razão de a delação envolvendo Temer não despertar o "interesse público" em 2016, a força-tarefa do Paraná disse que “houve consenso entre mais de 20 procuradores” a respeito". A procuradoria não respondeu por que procuradores do Rio de Janeiro usaram a mesma delação em 2019 para prender Temer. “Relatos de colaboradores avaliados como inconsistentes, incompletos ou desprovidos de provas podem ser recusados”, afirmou o MPF do Paraná em nota enviada ao EL PAÍS. Afirmaram ainda que "as forças-tarefas participam das negociações e opinam, mas a palavra final é do procurador-geral.”
Procurado, o advogado Antonio Figueiredo Basto, que atende Antunes, também afirmou que não pode comentar sobre como se deu a negociação da delação de seu cliente, pois o caso está sob sigilo. Os procuradores do Rio não quiseram comentar o assunto.
Michel Temer é réu em seis processos criminais. Ele foi absolvido sumariamente nesta semana, sem julgamento, em um desses processos, por obstrução de Justiça, justamente o que analisava isoladamente se o ex-presidente causou embaraço à Justiça quando falou “tem que manter isso” ao empresário Joesley Batista. A assessoria de Temer também foi questionada a respeito do conteúdo desta reportagem, mas até a publicação não havia respondido.
A ÍNTEGRA A RESPOSTA DA FORÇA-TAREFA DA LAVA JATO
"Na Lava Jato, a negociação de acordos de colaboração que envolvem fatos de diversas jurisdições e implicam agentes com foro privilegiado é feita por procuradores da República designados pelo procurador-geral que integram o Grupo de Trabalho vinculado ao seu gabinete, além de membros das diferentes forças-tarefas, todos com ampla experiência no assunto. As forças-tarefas participam das negociações e opinam, mas a palavra final é do procurador-geral. Em relação ao caso que é objeto de questionamento, houve consenso entre mais de 20 procuradores no sentido de que o acordo não atendia o interesse público. Relatos de colaboradores avaliados como inconsistentes, incompletos ou desprovidos de provas podem ser recusados. Eles podem ainda ser reavaliados em nova negociação de acordo, se o colaborador trouxer provas e informações complementares ou o desenvolvimento das investigações resulte na descoberta de novas evidências capazes de dar subsistência aos relatos. Em relação à notícia de pagamento a advogados de colaboradores, não comentamos sobre investigações em curso. O El País prejudica o direito de resposta ao omitir da força-tarefa o material que diz usar nas reportagens. Esse material é oriundo de um crime e tem sido usado fora de contexto e com edições para fazer falsas acusações contra a Lava Jato."
"CONCORRÊNCIA" DE DELAÇÕES QUE NÃO DARIA EM NADA
Além do empresário José Antunes Sobrinho, sócio da construtora Engevix, seu sócio Gerson Almada também competiu para denunciar Temer. Ambos passaram a negociar os acordos depois de serem presos. No Telegram, as conversas entre os procuradores mostram que os sócios apresentaram diversos anexos ao longo de meses. Almada, por exemplo, começou entregando uma proposta com oito anexos, cada um com supostos crimes cometidos por alguma pessoa ou grupo político. Ao longo da negociação, foi expondo mais as cartas de que dispunha, e terminou por entregar 30 anexos para a força-tarefa.
Foi, inclusive, Almada quem envolveu pela primeira vez, em 29 de março de 2016, o nome de Temer em supostos crimes. Porém, quando isso ocorreu, o arquivo de texto de sua proposta de delação, compartilhada no Telegram, não trouxe detalhes. Prometia apenas que posteriormente daria mais informações. Almada se limitou a dizer que manteve uma reunião com Michel Temer, “no escritório deste, para tratar de interesses da Engevix em áreas diversas da Petrobras” e que narraria "a participação do coronel Lima nos fatos".
Na época, os procuradores comemoraram a competição. "Viva a livre concorrencia!", escreveu Andrey Mendonça no chat Acordos Engevix, em 30 de março de 2016, após informação de que Antunes entregaria uma nova versão dos anexos. Cinco dias depois da primeira menção a Temer, em 4 de abril de 2016, Antunes revelaria os detalhes envolvendo o ex-presidente. Sua proposta de delação foi entregue à força-tarefa de Curitiba quando faltavam apenas duas semanas para Eduardo Cunha comandar na Câmara dos Deputados a sessão que afastaria Dilma Rousseff da presidência. O relato de Antunes poderia tumultuar a vida de Temer, mas acabou na gaveta e não atrapalhou nada.
El País: Voto de Rosa Weber no STF pode definir destino de Lula e quase 5.000 presos
Cercado de pressão e sob alarme de bolsonaristas, julgamento no Supremo começa nesta quinta-feira com previsão de duração de até três sessões. No primeiro dia a expectativa é que apenas o relator e advogados se manifestem
O Supremo Tribunal Federal começa a julgar nesta quinta-feira se um condenado em segunda instância deve ou não começar a cumprir sua pena em regime fechado. O defecho pode resultar na soltura de 4.895 detentos, um grupo no qual estariam 16 presos que foram sentenciados na Operação Lava Jato, inclusive o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-ministro José Dirceu e o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares. Desde 2009, essa será a sexta vez que os ministros tratam do tema. Será a primeira, no entanto, em que debaterão o mérito da questão, ou seja, a decisão de agora servirá de baliza para todo o sistema judicial. O novo debate em torno da questão acontece num momento de fragilidade da Lava Jato, que já colheu reveses na corte e sofre o desgaste das revelações das mensagens privadas de seus integrantes obtidas pelo The Intercept.
Como tudo que envolve a Lava Jato —e Lula especialmente—, o novo julgamento acirra ainda mais os ânimos no país. Para tentar suavizar a pressão, o presidente do Supremo, Antonio Dias Toffoli, que usou seu poder para recolocar o tema na agenda, já antecipou que o julgamento não terá desfecho nesta terça. Ainda assim, integrantes da base bolsonarista mostraram alarme, e até tom de intimidação, nas redes sociais. O ex-comandante do Exército, o general da reserva Eduardo Villas Bôas, que no ano passado já havia praticamente cobrado do Supremo que mantivesse Lula atrás das grades um dia antes do julgamento de um habeas corpus, nesta terça-feira se manifestou de novo pelo Twitter. “É preciso manter a energia que nos move em direção à paz social, sob pena de que o povo venha a cair outra vez no desalento e na eventual convulsão social", disse numa mensagem em que instou as instituições a seguir no combate à corrupção.
Ainda que os magistrados possam mudar de posicionamento, o voto decisivo para a questão deverá ser o da ministra Rosa Weber. Dos últimos cinco julgamentos que envolveram o assunto, ela participou de três. Em dois deles, ocorridos em fevereiro e outubro de 2016, declarou-se contrária à execução da pena em segunda instância. No outro, em abril de 2018, quando analisou um habeas corpus impetrado pela defesa de Lula, mudou de lado. Afirmou que, na ocasião, estava seguindo a jurisprudência até então definida pelo STF e, portanto, passou a ser favorável ao cumprimento da pena. Assim, formou-se uma nova maioria. Na ocasião, Lula foi impedido de deixar a prisão pela votação de 6 a 5. Agora, o que os 11 ministros decidirem será a nova jurisprudência. Ou seja, Weber não deverá mais usar o argumento explicitado anteriormente (o da maioria formada), já que esse seria um novo julgamento.
Entre os demais ministros da Corte, os outros votos estão mais ou menos claros. Celso de Mello, Marco Aurélio Melo e Ricardo Lewandowski sempre se declararam contra o cumprimento de pena após condenação em segunda instância. Cármen Lúcia, Luiz Fux, Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes, são a favor. Enquanto que Dias Toffolli e Gilmar Mendes, já foram favoráveis ao cumprimento da pena, mas nas suas últimas manifestações demonstraram uma mudança de postura e acabaram votando contra a execução da pena em segunda instância.
Aparentemente, haveria somente duas possíveis decisões: a de permitir o cumprimento da pena após condenação por órgão colegiado ou a de deixar livre todos os que ainda possuem recursos pendentes na Justiça. Mas, nos bastidores de Brasília, Dias Toffoli fez circular uma terceira possibilidade, que seria uma espécie de modulação, ainda que esse não seja o seu nome técnico. Ele entende que é possível decidir que a prisão poderá ocorrer a partir de condenação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o que seria uma espécie de terceira instância. Essa proposta ainda não foi oficialmente apresentada. Deverá ser apenas na próxima semana, quando os ministros passarão, de fato, a apresentar os seus votos.
Há uma espécie de acordo entre os 11 ministros de que nenhum deles pedirá vista do processo. Como o julgamento tem detalhes que impactam em um grande número de detentos, além dos da Lava Jato, a expectativa é que ele dure três sessões. A desta quinta-feira, dia 16, e as dos dias 23 e 24 de outubro.
A mobilização
Além da disputa política, que pode resultar na libertação de Lula, que ainda é o principal líder da esquerda brasileira, o tema está causando uma celeuma entre juízes, membros do Ministério Público e advogados. A questão não é menor. Os contrários à prisão após condenação em segunda instância dizem que ela fere o princípio de presunção de inocência: se o sistema brasileiro foi imaginado com quatro instâncias, que o réu tenha direito a recorrer a todas elas antes de já começar a pena. Os que são a favor, dizem que o sistema tem excessos de recursos, uma raridade no mundo, e que isso só contribui para impunidade dos mais ricos têm como recorrer no caro e lento processo legal brasileiro.
Os defensores públicos decidiram debater o assunto de maneira oficial, por isso entidades como o Instituto de Defesa ao Direito de Defesa, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais ou o Instituto dos Advogados Brasileiras se juntaram aos processos por meio do amicus curiae — quando uma pessoa ou entidade é considerada implicada num julgamento e têm direito a expor sua visão. Do outro lado, institutos que representam a parte da acusação ou os julgadores, acabaram se manifestando por meio de notas ou declarações à imprensa.
Nesta semana, após Toffoli anunciar a pauta de julgamentos para a quinta-feira, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), se manifestou afirmando que, se o tribunal derrubar o entendimento que mantém desde 2016, haverá um retrocesso. “A eventual reversão desse entendimento implicaria evidente retrocesso jurídico, dificultando a repressão a crimes, favorecendo a prescrição de delitos graves, gerando impunidade.”
Outro que se manifestou foi o Fórum Nacional de Juízes Criminais (Fonajuc). Em nota, a entidade disse que o Brasil corre o risco de se transformar no “único país de todos os Estados-membros das Nações Unidas a não permitir a prisão após condenação em primeira ou segunda instâncias, acarretando graves consequências para a sociedade brasileira”. No documento divulgado à imprensa, os magistrados acabaram usando um número exagerado, ao dizer que 164.000 presos poderiam ser soltos com uma eventual decisão contrária à prisão em segunda instância. O fórum acabou sendo levado ao erro porque em uma decisão recente o próprio presidente do STF, Dias Toffoli, citou dados equivocados. Segundo ele 190.000 presos poderiam ser libertados.
Nesta quarta-feira, contudo, Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ressaltou que, como as ADCs tratam de prisões cautelares, estariam nesse universo, “apenas 4.895” presos que foram condenados por Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça.
Para tentar responder a uma eventual derrota, a base lavajatista e antilulista no Congresso começa a se mover. Na Câmara dos Deputados, a primeira reação à movimentação no STF foi feita pelo presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Felipe Francischini (PSL-PR). Ele pautou para esta semana a análise de uma proposta de emenda constitucional que autoriza o cumprimento da pena após condenação judicial em segunda instância. Apesar da tentativa de obstrução por parte dos partidos de oposição, como PT e PSOL, o relatório acabou sendo lido e deve ser votado em até duas semanas.
Mesmo tentando acelerar a votação na CCJ, a tendência é que a PEC, de autoria do deputado Alex Manente (Cidadania-SP), a previsão é que sua votação seja concluída na Câmara até o fim do ano. Se aprovada, ainda segue para o Senado. Ou seja, não se tornaria lei em um curto espaço de tempo.
UMA FILA IMENSA PARA FALAR NA TRIBUNA DA CORTE
A previsão é que entre 13 e 16 advogados apresentem suas defesas. Em julgamento estão três ADCs apresentadas pela Ordem dos Advogados do Brasil e pelos partidos PCdoB e Patriotas (o antigo PEN). Todas querem que seja declarado constitucional o texto do artigo 283 do Código de Processo Penal. Ele diz o seguinte: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
O elevado número de advogados para se manifestar se deve ao fato de que além dos três defensores dos autores, há 13 amicus curiae, que são entidades que se juntaram aos processos como interessadas no julgamento. Cada uma delas também tem o direito de se manifestar. Nesse grupo estão ONGs, como a Conectas Direitos Humanos, Defensorias Públicas da União e de diversos Estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, assim como associações e institutos que representam advogados.Nesta semana, parte desses defensores que se manifestarão fazia as contas de como será o voto de determinado ministro. Também combinavam o que cada um iria falar na tribuna do Supremo.
El País: A operação dos irmãos Bolsonaro para blindar Carlos e assessor do Planalto na CPI das ‘fake news’
Parlamentares filhos do presidente reforçam presença do PSL em comissão, mas temem derrota que pode expor estrategistas digitais do Planalto
De um vereador do Rio de Janeiro e herdeiro presidencial, o vereador Carlos Bolsonaro, a uma pré-candidata democrata à Presidência dos Estados Unidos, Elizabeth Warren. De aliados diretos de Jair Bolsonaro (PSL), como o assessor internacional Filipe Martins e o secretário de Comunicação, Fábio Wajngarten, à ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News iniciou seus trabalhos há pouco mais de um mês e demonstra que será palco de intenso embate político. De um lado, estão deputados ligados a Bolsonaro, incluindo os dois filhos do presidente no Congresso, que tentam travar a apuração por meio do PSL —tudo isso em meio à guerra interna do partido. De outro, petistas e seus aliados que querem causar o máximo de constrangimento ao Palácio do Planalto.
“A CPMI está em um momento de inflexão sobre se ela se realizará ou não. O PSL não quer viabilizar a comissão. Parece que o partido tem medo desse tipo de investigação”, afirmou a relatora do colegiado, a deputada Lídice da Mata (PSB-BA). Até agora, nas quatro sessões em que funcionou, o PSL obstruiu os trabalhos. Na sequência, houve uma sessão cancelada e não há previsão de quando outra reunião ocorrerá.
O PSL tem 8 das 32 posições na CPMI. Uma vaga a mais que PT e MDB, individualmente. A preocupação dos governistas é pela tendência de derrota. No caso das convocatórias, que tornam obrigatória o depoimento ante a comissão, é necessária a maioria simples do colegiado. Até o momento, 107 requerimentos de convocação, que são obrigatórios, e convites, que são voluntários, foram aprovados. Outros 96 ainda dependem de aprovação. Os últimos requerimentos que chamaram atenção são um que tenta convocar Filipe Martins e outro que quer chamar a senadora Warren.
No caso de Martins, a ideia do autor do requerimento de convocação, o deputado Rui Falcão (PT-SP), é tentar provar que ele é um dos principais membros de "uma milícia" que atua nas redes sociais a favor de Bolsonaro. O petista se embasou em uma reportagem da revista Crusoé. Em resposta pela sua conta no Twitter, o assessor presidencial afirmou que há uma tentativa de criminalizar Bolsonaro e seus defensores, ainda conclamou os apoiadores do Governo a irem pro confronto. “Vamos pro pau!”
Os opositores também ameaçam chamar o vereador Carlos Bolsonaro (PSL-RJ), que é o responsável pelas redes sociais de seu pai. Enquanto que os governistas já apresentaram requerimentos para que Dilma Rousseff e alguns de seus antigos assessores também deponham. Já a tentativa de convocar Warren tem impacto mais simbólico. A iniciativa é da relatora da CPI, Lídice da Mata, que deseja que a democrata explique qual é a sua proposta para desmembrar as gigantes de tecnologia (Facebook, Google, YouTube...), que ela entende serem prejudiciais à concorrência. A senadora americana publicou recentemente uma propaganda falsa no Facebook para provar que a política de publicidade deles favorece a difusão de fake news.
Filhos de Bolsonaro na CPI das 'Fake News'
Para ajudar na blindagem do Governo, os dois filhos do presidente com assentos no parlamento foram convocados pelo PSL para a CPMI. Acostumado a operar apenas nos bastidores, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) foi o primeiro a compor o grupo. Enquanto que o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) assumiu uma das vagas nesta terça-feira. Ambos querem evitar, principalmente a convocação do irmão vereador. Ele foi o estrategista da eleição presidencial de seu pai no ano passado. “Todos os atores envolvidos no processo eleitoral de 2018. Como o próprio presidente Bolsonaro diz que o Carlos foi o artífice da rede social dele, ele pode ser convocado”, avisou o presidente do colegiado, o senador Ângelo Coronel (PSD-BA).
Se, de um lado o PSL quer se defender, do outro, os opositores querem aproveitar o espaço para expor as feridas de uma frágil base governista e, quem sabe, trazer da CPI um processo judicial/eleitoral contra o presidente —a investigação pelo uso irregular do WhatsApp na campanha, com o envio de mensagens em massa confirmado pelo aplicativo, anda a passos lentos no TSE (Tribunal Superior Eleitoral). “Eles não querem que a gente chegue em investigações que vão mostrar o submundo desse processo de propagação de ódio e fake news”, afirmou o senador Humberto Costa (PT-PE).
Uma das parlamentares que tenta impedir o debate no colegiado, a deputada Carolina de Toni (PSL-SC), chamou o colegiado de CPI da Censura. “Está um circo armado para se montar um tribunal de exceção aqui para ser contra o presidente”, afirmou. Enquanto outra, Bia Kicis (PSL-DF) afirma que o desfecho dela pode ser “lamentável para a sociedade brasileira”.
Quem oficialmente não é nem de um lado nem de outro, diz estar assustado com a paralisação dos trabalhos e as seguidas tentativas de obstrução. “Fiquei absolutamente preocupado com o clima que está instalado na comissão, de disputa. Eu acho que investigar um tema como esse é de interesse de todos”, disse Elmar Nascimento, líder do DEM na Câmara.
Também deverão ser interrogados pelos parlamentares representantes do WhatsApp, do Telegram, do Facebook, Google, YouTube, Instagram e do site The Intercept, este responsável pela divulgação das notícias contrárias à Operação Lava Jato que ficaram batizadas de Vaza Jato. A previsão é que os trabalhos sejam retomados a partir da próxima semana. Para isso, contudo, será necessário haver um acordo entre as lideranças partidárias para que a CPMI passe a funcionar normalmente.
Vladimir Safatle: Falta uma oposição real no Brasil, que imponha outra agenda no debate público
Produzir sua própria oposição, definir as modalidades de sua própria resistência é a forma mesma de um “poder perfeito
Uma das mais astutas peças da engenharia política colocada em operação pela ditadura militar consistiu na produção de sua própria oposição. Dificilmente encontraremos uma ditadura que, logo ao ser implementada, não anulou toda a oposição, mas na verdade criou seu próprio partido de oposição. Ou seja, o MDB é um produto da ditadura, talvez seu produto mais impressionante. O que demonstrava como, desde o início, tratava-se de uma ditadura que não se via como uma operação de intervenção cirúrgica, mas como um movimento de reformulação profunda da vida nacional feito para durar mesmo depois do seu fim.
Produzir sua própria oposição, definir as modalidades de sua própria resistência é a forma mesma de um “poder perfeito”. Pois o poder se exerce não exatamente quando definimos as normas a serem seguidas. Ele se exerce principalmente quando definimos as margens, quando organizamos as posições e as formas de resistência que os descontentes poderão ocupar. Um poder perfeito é aquele que é, ao mesmo tempo, a norma e a resistência.
Assim, ao definir as condição de sua própria oposição, ou seja, ao construir o próprio ator que a sucederia depois de seu término, a ditadura brasileira encontrou uma maneira de fazer, da Nova República, apenas a ocasião de seu próprio desdobramento. Como se disse várias vezes antes, o MDB era sobretudo um modelo de paralisia, uma forma de travar as lutas e dinâmicas de conflitos sociais próprios à realidade brasileira. Esta paralisia acabou por levar a Nova República ao colapso e, ironia maior da história, ao restabelecimento de novos representantes do setor mais violento da ditadura militar.
Um processo similar está em curso atualmente, a saber, as forças em torno do governo, ou que um dia giraram em torno do governo, estão a construir sua própria oposição. Neste sentido, é digno de nota a maneira com que o espaço da oposição é atualmente ocupado, principalmente, por antigos aliados, por apoiadores ocasionais ou ainda por atores de espectros políticos próximos àquele assumido pelo governo. Isto é parte fundamental de uma operação de restrição e gestão do horizonte de debate nacional. Não por acaso, o discurso oposicionista começa a se configurar como um discurso de crítica à política ambiental, às “derrapadas” do governo, a sua “insensibilidade” para com setores historicamente violentados, mas que sempre termina por lembrar: “embora tudo isto ocorra, sua política econômica é boa”. Como se estivéssemos a ver a gestação de novos candidatos a gerentes de uma política econômica aparentemente consensual, a despeito de seus resultados catastróficos. Assim, da mesmo forma como em Aristóteles a atualidade é a situação atual mais a soma de seus possíveis, constrói-se paulatinamente horizonte dos possíveis deste atual governo.
Como a outra face necessária dessa moeda, vemos desenhar-se no Brasil um tipo de movimento que parece querer repetir o que se passou na Itália nas últimas décadas. Desde o fim da Segunda Guerra, a Itália despontou como um país de esquerda em ebulição. O maior partido comunista da Europa, movimentos autonomistas extremamente dinâmicos e contestadores, movimentos sociais múltiplos. No entanto, não há sequer sombra disto atualmente. Simplesmente não há mais esquerda italiana. O que aconteceu?
Se quisermos fazer a arqueologia de Bolsonaro chegaremos necessariamente a Silvio Berlusconi, certamente o primeiro da série de líderes populares de extrema-direita que dão o tom da política mundial. Quando Berlusconi emergiu, todo o resto do espectro político foi paulatinamente se configurando em enormes “frentes de resistência”. Ou seja, a política se resumiu a Berlusconi e as resistências a ele. Essas grandes frentes, no entanto, quando conseguiam desalojá-lo não eram capazes de realmente governar. Pois não havia nada que os uniam a não ser a recusa a Berlusconi. Principalmente, tais frentes tendiam a anular as forças de esquerda no interior de dinâmicas gerenciais de poder. Sem espaço para impor suas dinâmicas de ruptura, a esquerda era convocada à responsabilidade de sustentar governos com a paralisia das coalizões heteróclitas. Assim, no interior desta dinâmica de frente ampla, todos se enfraqueceram, pois a única força política real era Berlusconi. A única força política real, que pregava a ruptura, estava fora da frente. Todo o resto era a expressão da ordem, de uma ordem que ninguém queria mais. O resultado final demonstrou-se absolutamente inefetivo. Quando Berlusconi enfim caiu em definitivo, seu lugar foi ocupado não por atores dessa frente ampla, mas por alguém ainda pior que ele, alguém cujas simpatias fascistas eram ainda mais evidentes, a saber, Matteo Salvini. Mesmo fora do governo depois de uma manobra desastrada, Salvini permanece o político mais popular da Itália, prestes a retornar ao poder na próxima eleição.
Isto apenas demonstra como, em política, resistir é perder. Resistir é apenas confessar que não é você quem controla a agenda política, quem tem a força de produzir a agenda. Você simplesmente responde negativamente a uma agenda decidida por outro. A política de frente ampla, de todos contra Bolsonaro será impotente diante de uma “oposição consentida” que está a ser gestada atualmente e que visa garantir a proliferação de atores dispostos a perpetuar as políticas do atual governo, apenas com diferentes graus de temperatura e pressão.
Neste ponto fica claro o que falta a uma oposição real no Brasil. Falta-lhe a capacidade de impor no debate público os tópicos de outra agenda. Quando a finada Margareth Thatcher estabeleceu seu braço de ferro contra os mineiros britânicos em greve, ela durante meses repetia o mantra: “Não há alternativa”. O que sempre foi a estratégia clássica do autoritarismo neoliberal, a saber, querer vender a ideia de que o “remédio amargo” é o único remédio (diga-se de passagem, amargo apenas para alguns, pois há sempre os que lucram muito com o amargor de outros). Mas mostrar a existência de alternativas, impor outra agenda, não pode em absoluto significar tentar reeditar o que já foi tentado.
Por exemplo, em seus últimos trabalhos, o economista Thomas Piketty mostrou aquilo que muitos críticos da política econômica do governos petistas já perceberam: que não houve política de combate à desigualdade realmente eficiente. Seus estudos mostram como a participação, na renda total, dos 1% mais ricos cresceu no período do antigo governo e que o crescimento da renda das classes mais pobres foi, na verdade, feita em detrimento da faixa entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos, ou seja, em detrimento da classe média. Já havíamos percebido a ineficácia da política em questão quando ficou claro que tudo o que ela havia conseguido produzir fora levar o índice Gini (que mede a desigualdade) aos patamares do início dos anos sessenta. Agora, fica claro em números como ela foi também uma política de preservação e crescimento dos ganhos da elite rentista brasileira, devido à ausência de qualquer reforma fiscal que de fato transferisse a conta para os setores mais ricos da sociedade. Tirar as consequências das ilusões de “todos ganhando” que alimentou as políticas anteriores é condição necessária para que possa aparecer uma oposição que faz minimente jus ao seu nome. Há um longo debate a ser feito que, infelizmente, continuamos a nos recusar a fazer enquanto “resistimos”.
El País: Audácia de invasores na Amazônia divide territórios e mantém rotina de assassinatos na floresta
Pará lidera onda de destruição da mata, onde homicídios fazem parte do dia a dia de cidades como Altamira. Agricultores são ameaçados por grileiros e indígenas assistem a madeireiros desmatarem suas terras sem reação do poder público
A destruição da Amazônia segue a pleno vapor, apesar dos holofotes nacionais e internacionais em torno do tema, incluindo os do Vaticano, que promove até o fim do mês um encontro sobre o bioma. As áreas com alerta de destruição já somam 7.853,91 quilômetros quadrados, 92% a mais que no mesmo período do ano passado, segundo dados do Deter, o sistema de alertas diário do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Em setembro, 1.447 quilômetros quadrados foram destruídos, 96% a mais em relação ao mesmo mês de 2018, ainda segundo o Deter. Em junho, o aumento foi de 90%; em julho, 278%; em agosto, 222%. Ainda que o ritmo do aumento dos alertas tenha diminuído em setembro, 2019 já registrou mais desmatamento que os três anos anteriores, mesmo faltando mais de dois meses e meio para o fim do ano.
Os maiores índices de desmatamento estão no Pará, que abriga imensas áreas de reservas naturais e indígenas cobiçadas por grileiros, garimpeiros e madeireiros. Uma dessas áreas na mira é o território dos Arara, conhecidos por serem guerreiros. Suas terras estão na bacia do rio Xingu e abrangem mais de 274.000 hectares da Amazônia e quatro municípios. Demarcadas em 1991, até hoje invasores colocam em xeque a sobrevivência da selva e dos próprios indígenas que nela habitam. Em fevereiro de 2018, quatro famílias dessa etnia deixaram a aldeia Laranjal, uma das cinco instaladas no interior da floresta, para se estabelecerem na fronteira do território com a rodovia Transamazônica. O cacique Turu, que levou consigo sua esposa, duas enteadas e seus pais, tinha um único objetivo: tentar coibir, até agora sem armas, apenas com sua presença, a ação de invasores que roubam madeiras valiosas. Quase todas as noites saem com caminhões carregados com jatobá, ipê, massaranduba ou angelim. "Já fizemos denúncias, mas até agora não tomaram providências", acusa o homem, de 37 anos.
A terra indígena dos Arara faz fronteira com 35 quilômetros da Transamazônica, entre os municípios de Uruará e Medicilândia – a cidade tem esse nome em homenagem ao ditador Emílio Garrastazu Médici, que governou o país de 1969 a 74. Da rodovia é possível ver dezenas de ramais na mata por onde entram e saem os caminhões e máquinas que, pouco a pouco, vão carcomendo o interior da floresta. "É triste", repete Turu a cada minuto, enquanto pisa nas marcas de pneu e pacotes de cigarro, o rastro dos invasores. Por fora, a mata parece intacta. Dentro há pedaços de tronco e árvores caídas por todas as partes. Muita destruição já foi feita. "É indignante ver que estão roubando algo que é nosso e não poder fazer nada. Nós sobrevivemos da mata, da caça de macacos, jabutis... A nossa briga é para que os brancos não desmatem tudo", explica o cacique, que já trabalhou em fazendas e, agora, pretende plantar cacau na floresta para ter uma fonte de renda. Para isso, precisa de segurança.
Viajar pela rodovia Transamazônica significa viajar no tempo. Enormes trechos permanecem com terra batida e esburacados desde que a ditadura militar decidiu abrir essa imensa rodovia transversal para o unir o Brasil de leste a oeste e colonizar a Amazônia. Pequenas motos ocupadas por até cinco pessoas — adultos e crianças — sem capacetes trafegam pela noite amazonense de faróis desligados em um acostamento que sequer existe. Enormes caminhões levantam a poeira da estrada. O perigo é constante. A impressão que se tem é que tanto a autopista como a população estão abandonadas há 50 anos. Uma constatação que não deixa de ser verdadeira: nessa região do Pará, o Estado peca por sua ausência e os conflitos por terra, ouro e madeira são sangrentos. Povos indígenas como os Arara estão entre os grupos mais vulneráveis. Além da própria floresta amazônica, que vai sendo destruída por serras elétricas e incêndios.
A tensão aumentou desde a eleição de Jair Bolsonaro. O atual presidente brasileiro vem dizendo desde a época da campanha eleitoral ser contra a demarcação de terras indígenas e promete liberar atividades econômicas, sobretudo mineração, nos territórios protegidos pelo Estado brasileiro. De acordo com a Rede Xingu +, formada por aldeias e comunidades da região do Xingu, somente no mês de julho 5.895 hectares de terras indígenas foram desmatadas, um aumento de 213% com relação a junho deste ano e 436% a mais que em julho de 2018. "Assim que o presidente ganhou, entraram nas terras e fizeram uma bagunça", recorda Turu. Os madeireiros já ameaçaram matar um de seus primos. Armados, muitas vezes disparam para o alto para assustar. A audácia desses invasores vem aumentando: da Transamazônica é possível ver estacas de madeira recém colocadas para dividir o território e ocupá-lo de vez.
Saindo da aldeia de Turu e seguindo 270 quilômetros pela Transamazônica está o município de Anapu. O centro urbano em si é pequeno, pobre e pacato. Em uma tarde de domingo de agosto há poucas almas vivas transitando pelas ruas, que abrigam casas humildes e pessoas que trabalham nos comércios ou fazendas da região. Em uma dessas vias está, quase escondido, um enorme depósito da prefeitura com imensas toras de madeiras, todas elas apreendidas pelo IBAMA duas semanas antes em uma das comunidades agricultores assentados pelo INCRA em Anapu. São muitas, centenas. Empilhadas uma sobre a outra, é preciso um breve exercício de escalada para caminhar sobre elas. Naquele mesmo domingo, a Polícia Civil havia encontrado três homens mortos perto de um trator. Pela característica do veículo, tudo indicava que trabalhavam com extração ilegal de madeira, mas as causas da morte ou a identidade dos rapazes não foram esclarecidas. As fotos dos cadáveres ensanguentados perto do veículo rodavam os celulares da população. Era apenas mais um dia normal em Anapu. O Pará se mantém como o quarto estado mais violento do país, com 54,5 mortes por 100.000 habitantes, contra 9,5 de São Paulo, segundo dados de 2018 divulgados recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O município, vizinho a Altamira, abriga grandes propriedades de terra e é palco dos mais sangrentos conflitos dessa região do Xingu. Foi lá que a irmã Dorothy Stang, missionária norte-americana da Igreja Católica, desenvolveu os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), comunidades que abrigam centenas de famílias de agricultores que buscam conciliar o cultivo com a preservação da floresta. No início dos anos 2000, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) chancelou a criação dos assentamentos, contrariando os interesses de grandes fazendeiros. A líder religiosa acabou assassinada em 12 de fevereiro de 2005.
As suspeitas recaem para um consórcio maior de latifundiários. O então prefeito de Anapu, Luiz dos Reis Carvalho, e o fazendeiro Laudelino Délio Fernandes — assassinado no ano passado — chegaram a ser apontados como mandantes, mas a participação de ambos nunca foi provada. No final, dois fazendeiros próximos a ele — um deles se escondeu na casa de Délio depois da execução — foram condenados pela execução a tiros de Stang, que tinha 73 anos na época e militava na Comissão Pastoral da Terra (CPT). "Continuamos seu trabalho. Mas, desde sua morte, outras 17 pessoas foram assassinadas na região defendendo suas terras, que são públicas, da União", conta o padre José Amaro Lopes de Sousa, sucessor de Dorothy na CPT de Anapu. Os grandes proprietários da região nunca aceitaram a criação dos PDS, que abarcam áreas que eles dizem ser suas. A família Fernandes, que desembarcou em Altamira no final dos anos 70, adquiriu terras da União ocupadas por colonos que tinham uma espécie de título provisório, o qual deveria ser efetivado caso as terras se tornassem produtivas. Uma prática comum dos grileiros da época era vender essas terras improdutivas no momento em que o Governo retomava a posse dos terrenos. Os imbróglios judiciais com a União permanecem até hoje.
Desde que o INCRA decidiu assentar famílias nessas terras que a União considera que são suas, entre elas as de Délio Fernandes e seus irmãos, os conflito agrários se acirraram e os assentamentos vêm sofrendo invasões. As famílias vivem sob constante ameaça. Algo que parece ser tendência em todo o Pará, líder em assassinatos ligados a conflitos por terra: cerca de 20 pessoas morreram desde 2015, ainda segundo a CPT. Irmão de Délio, o todo-poderoso Silvério Fernandes, fazendeiro e pecuarista da região — ele diz que a família tem quatro propriedades que somam 12.000 hectares —, acusa a irmã Dorothy e o padre Amaro de estimular invasões ilegais. O sacerdote passou mais de 90 dias preso na penitenciária de Altamira, denunciado pelo fazendeiro por delitos como associação criminosa, ameaça, esbulho possessório (crime contra a propriedade), extorsão, lavagem de dinheiro, entre outros. Foi solto no final de junho e, desde então, reside na vizinha Altamira à espera da conclusão dos processos penais — uma das denúncias, de assédio sexual, já foi arquivada pelo Ministério Público.
Afastado de Anapu, diz ser vítima de uma perseguição política e judicial patrocinada por Silvério Fernandes — que preside dois sindicatos de produtores, foi vice-prefeito de Altamira por oito anos e tentou se eleger deputado estadual em 2018 — e outros latifundiários. "Quem grilou a região de Anapu foram eles, que venderam essa terra onde Dorothy foi morta. Eles vão pegando terras e vendendo. Precisam provar na Justiça que essas terras da União são deles mesmo", acusa o padre. No fim dos anos 90, Silvério e Délio Fernandes foram investigados no caso Sudam, esquema de desvios milionários do organismo responsável por apoiar o desenvolvimento Amazônia. Além disso, a família foi condenada por crimes ambientais que somam quase 30 milhões de reais em multas.
A grilagem à qual o sacerdote se refere é uma das principais atividades ilegais da região de Altamira e seus arredores. Mais de 80% dos produtores e agricultores não possuem os títulos definitivos de suas terras, algo que os próprios sindicatos do setor reconhecem, devido à falta de uma regulamentação fundiária que se arrasta desde que o regime militar começou a colonizar a região. Muitas compras de terra pública estão emperradas na Justiça. Os especialistas explicam que esse limbo legal estimula as invasões e vendas ilegais de terra. Um processo perverso, geralmente patrocinado por endinheirados e executado por trabalhadores pobres que buscam sua sobrevivência, que consiste em invadir áreas de conservação, territórios indígenas, comunidades tradicionais ou assentamentos de pequenos agricultores; desmatar grandes áreas de selva amazônica; incendiar os escombros da floresta; e, por fim, plantar capim e colocar cabeças de gado no lugar. O território passa a ter novos donos. E, com a expectativa de que um dia a situação seja regularizada pelo poder público, como vem sinalizando o Governo Bolsonaro, poderá ser vendido a um preço alto. A especulação imobiliária é, junto com a pecuária e o cacau, um dos principais negócios da região do Xingu.
O casal Edinaldo e Zelma Silva Campos, de 57 e 50 anos, respectivamente, contam estar sofrendo ameaças de grileiros e milícias armadas que há anos invadiram a comunidade onde vivem. "Homens armados encapuzados já invadiram barracos e colocaram famílias para fora. Somos todos ameaçados de morte", conta o homem, indignado com o grupo de cinco grileiros que "roubam madeira, jogam capim e vendem e revendem a terra" do local. Por ser o presidente da associação que reúne as 150 famílias — cerca de 750 pessoas — que tradicionalmente ocupam o lugar, diz ser alvo das ameaças mais graves. A última delas foi a de sequestrar o único filho do casal, de 15 anos. "Eles acham que só assim vão parar nossa luta", afirma a mulher.
Edinaldo pertence a uma família tradicional. Conta que seus pais e avós, que viviam da borracha e da pesca, migraram no começo dos anos de 1970, junto com outras sete famílias, para um território entre os rios Bacajaí e Xingu, no município de Senador José Porfírio. "É uma terra muito boa e muito fértil, com muita água, muita madeira, muito ouro, muita diversidade florestal... E muito cobiçada", explica. Devido à pressão de invasores, formou no começo dos anos 2000, depois que deixou o Exército, a associação de famílias. O Estado do Pará, dono daquele território de 28.000 hectares, reconheceu então que a ocupação e posse daquelas pessoas no lugar era legítima.
Tudo indicava que, ao final de todo o processo burocrático, concederia um título de propriedade coletivo aos associados e seus futuros herdeiros. "Foi a solução que encontramos para vivermos em paz. Mas ainda não nos deram o título", afirma o Edinaldo, enquanto mostra dezenas de documentos públicos e Boletins de Ocorrência que provam seu relato. Acredita que pressões políticas nos organismos públicos vêm impedindo a regularização final do lugar. Enquanto isso não acontece, a pressão da grilagem aumenta. "Eles já derrubaram 6.000 hectares, segundo os dados de 2018. Das 150 famílias, restaram 40 espremidas no cantinho. A maioria foi mandada embora. Estão aqui na cidade esperando para voltar", conta o homem, que vive em Altamira e não pisa em sua comunidade há seis meses.
Seu objetivo final é implantar um ambicioso projeto agroextrativista, desenvolver a agricultura familiar e formar uma cooperativa para conseguir crédito junto a bancos e vender os produtos ali desenvolvidos. Tudo isso conservando a floresta sob a promessa de seguir uma exploração sustentável. "A luta está emperrada por causa de uma morosidade tremenda do poder público. A cada verão a pressão aumenta e exaure o recurso natural para fazer dinheiro fácil. Podemos organizar pesquisas e viabilizar descobertas para a humanidade no território, que pode acabar virando um grande deserto com toda essa pressão", argumenta Zelma. "Esse projeto é minha vida. Já foram na minha casa me oferecer dinheiro, mas eu quero a terra. Temos que acreditar, mas não é fácil", encerra o marido.
É POSSÍVEL UM MODELO MAIS SUSTENTÁVEL?
Marcelo Salazar coordena o Instituto Socioambiental (ISA) em Altamira, uma ONG que promove o desenvolvimento de uma nova economia na região. Apesar de trabalhar principalmente com comunidades indígenas e extrativistas, fala da importância de que médios e grandes agricultores estejam envolvidos. "Há grandes fazendeiros que não apostam na predação a qualquer custo ou na especulação imobiliária. Muitos vêm investindo em consórcios florestais numa linha de diversificação da produção, conciliando com a preservação da floresta", explica. Ele cita o cacau como exemplo. Seu crescente cultivo fez com que a região de Altamira superasse Ilhéus, na Bahia, como produtora. "E as pessoas estão descobrindo que não precisava ter desmatado para plantar cacau. O produto mais valorizado é o cacau sombreado, plantado no meio da floresta. Os produtores mais modernos vão nessa direção, fazendo intervenções cirúrgicas na mata".
O grande problema, acrescenta, é a necessidade de mais tecnologia e canais de comercialização. "São coisas que faltam muito na região. Não necessariamente é algo caro, mas precisa de um ambiente favorável a isso. Seria o papel do Governo, algo que buscamos desempenhar aqui".
Mesmo tentando criar um ambiente de promoção de negócios da floresta, Salazar afirma que há obstáculos como a legislação e a grande quantidade de isenções e incentivos econômicos para a pecuária e a monocultura. "Os compradores estão distantes, então é preciso trazer incentivos para atrair indústrias cosméticas, alimentícias, da borracha, farmacêuticas...", afirma. Com a usina de Belo Monte veio a promessa de uma nova economia na região. "Mas a obra acabou reforçando o que já existia", opina Salazar. Mesmo quem trabalha no agronegócio tem dificuldades de se modernizar na região de Altamira. "Na Amazônia, apenas 13% das terras desmatadas possuem alta produtividade, incluindo as cidades amazônicas. O resto é área de baixa produtividade ou abandonada. É estarrecedor. Cai o discurso de que é preciso desmatar para produzir. É o velho discurso de quem, na verdade, quer ganhar dinheiro com a especulação, o grande mercado da região".