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El País: Bolsonarismo passa por teste no STF enquanto clã se cala sobre processos

Corte deve julgar se Coaf pode usar dados de cidadãos sem autorização judicial. Caso tem relação direta com apuração contra Flávio Bolsonaro

Um teste para o bolsonarismo raiz e para o próprio presidente está em vias de ocorrer. Neste domingo, apoiadores de Jair Bolsonaro prometem realizar uma manifestação em Brasília que tem como principal foco pedir o impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. No próximo dia 20, os 11 ministros do STF devem julgar se o antigo Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf), renomeado de Unidade de Inteligência Financeira (UIF), necessita de autorização judicial para obter informações de movimentações bancárias de investigados assim como de pessoas politicamente expostas – entre elas, algumas com mandatos públicos, ministros de Estado, membros do Ministério Público, do Judiciário. Nesse ínterim, em silêncio, está o clã Bolsonaro.

Acostumados a agir na ofensiva nas redes sociais, tanto o mandatário quanto seus três filhos políticos quase nada falam sobre as decisões judiciais do STF das últimas semanas, entre elas a que soltou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ou sobre as que estão por vir. O mais ativo no ambiente virtual e responsável por estimular as milícias digitais, o vereador Carlos Bolsonaro (o Zero Dois do clã bolsonarista), apagou suas contas no Twitter, no Instagram e no Facebook na última terça-feira, 12 de novembro.

Em entrevista ao site O Antagonista, o presidente Bolsonaro chegou a dizer que tinha uma espécie de pacto de não intromissão nos outros poderes. “O pacto é eu não interferir lá e eles não interferem aqui. Se bem que de vez em quando eles interferem no poder Executivo aqui, mas eu engulo o sapo”, afirmou o mandatário ao ser questionado sobre um suposto acordão com o Judiciário e o Legislativo.

A principal razão do silêncio do clã bolsonarista é que um dos que estão envolvidos nesse caso do Coaf é o ex-deputado estadual e hoje senador Flávio Bolsonaro. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro tem uma investigação aberta contra o Zero Um para apurar se ele recebia dinheiro irregular dos servidores de seu gabinete na Assembleia Legislativa, no esquema batizado de “rachadinha”. Os crimes investigados são: malversação de fundos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Essa apuração está paralisada desde julho, quando o presidente do STF, Dias Toffoli, acatou um pedido liminar feito pelos defensores do senador alegando que os dados do Coaf usados na investigação deveriam ser invalidados, por não terem sido obtidos após uma decisão judicial.

E aí está um possível contrassenso entre os anseios da rede bolsonarista e de seu principal líder. O ministro Gilmar Mendes já se queixou publicamente das investigações que envolvem o Coaf e, no mês passado, tomou uma decisão que beneficiou Flávio, reforçando a necessidade de se trancar a investigação que envolve o senador e seu antigo assessor Fabrício Queiroz, o suposto organizador da “rachadinha”. A tendência é que Gilmar vote de maneira a ajudar Flávio novamente. O clamor dos militantes por derrubá-lo é por causa, principalmente, de suas manifestações críticas à Operação Lava Jato e por seu voto que ajudou a invalidar a prisão após condenação judicial em segunda instância, o que acabou tirando Lula da cadeia após 580 dias preso em Curitiba.

O julgamento do próximo dia 20 iniciará do zero. Nenhum dos 11 ministros votou até o momento. O primeiro a fazê-lo será Toffoli, que é o relator do processo. E, por já ter se manifestado favoravelmente ao senador Flávio, a expectativa é que ele repita seu entendimento.

Mar de dados e veto da PGR

Nesta semana, Toffoli deu mais um sinal de que deve seguir na mesma toada. Reportagens do jornal Folha de S. Paulo revelaram que o presidente do STF determinou que o antigo Coaf e a Receita Federal fornecessem relatórios produzidos pelos órgãos com os dados das movimentações de todos que foram alvos de representação penal do fisco nos últimos três anos. O COAF forneceu uma senha de acesso a um sistema que possui informações de 600.000 pessoas físicas e jurídicas. E a Receita, prepara o envio dos documentos que envolvem 6.000 cidadãos e empresas. Vazamentos de dados dos dois órgãos mostram que entre as pessoas que teriam tido as contas investigadas estão familiares de Dias Toffoli e de Gilmar Mendes.

A decisão liminar do presidente do STF envolvendo órgãos como o COAF e a Receita faz parte de uma onda de perseguição contra os servidores de órgãos de dois dos principais organismos de controle do país, opinam agentes do fisco ouvidos pela reportagem. No mês passado, outro ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, já havia impedido que o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), tivesse acesso a dados dos funcionários da Receita que estivessem envolvidos na fiscalização das pessoas politicamente expostas.

Na sexta-feira, em meio ao feriado da proclamação da República, o procurador-geral da República, Augusto Aras, se manifestou contrário à decisão de Toffoli envolvendo a Receita e a UIF. Em um requerimento enviado ao Supremo, Aras pediu que a Corte revogue a decisão do ministro por entender que ela foi desproporcional, que ameaça o sistema de inteligência financeira do país e que pode afetar o livre exercício de direitos fundamentais dos mais de 600.000 alvos. Horas depois, Toffoli negou o pedido de Aras.

No mês passado, o principal órgão internacional de prevenção à lavagem de dinheiro, o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi), emitiu uma nota na qual expressa preocupações sobre a capacidade de se combater os delitos de colarinho branco caso prevaleça a decisão de Toffoli envolvendo o COAF. “Esta decisão provisória da Corte limita a habilidade das autoridades brasileiras de usar a inteligência financeira em investigações criminais, investigações de lavagem de dinheiro, de crimes financeiros, assim como de corrupção", afirmou o presidente do Gafi, Xiangmin Liu.


El País: Bolsonaro anuncia saída do PSL e seus planos de fundar sigla Aliança pelo Brasil

Presidente, que se uniu à legenda presidida por Luciano Bivar para concorrer à presidência, entrou em rota de colisão e deixa para trás investigação de escândalos ainda inconcluídas

O presidente Jair Bolsonaro anunciou nesta terça-feira para um grupo de deputados que deixará o PSL e criará uma nova legenda, em princípio batizada de Aliança pelo Brasil, o nome remete à Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que existiu entre 1965 e 1979 para dar sustentação à ditadura militar brasileira. A expectativa é que cerca de 30 dos 53 deputados federais do PSL, eleitos na onda conservadora das eleições de 2018, sigam o mandatário rumo à nova agremiação. Isso ocorreria apenas no ano que vem, quando se abre a janela eleitoral para a troca partidária sem a perda do mandato.

O primeiro parlamentar a se desligar do PSL foi o senador Flávio Bolsonaro. Com seu cargo é considerado majoritário, não proporcional, ele não corre risco de ser perder o seu mandato. Sem recorrer à Justiça, deputados e vereadores só podem mudar de legenda caso seja criada uma nova sigla ou se forem expulsos da atual.

O rompimento entre Bolsonaro e o PSL é o início do fim de uma confusão causada pelo próprio presidente, que há um mês disse a um militante que o atual dirigente máximo da legenda, Luciano Bivar, estaria “queimado”. O mandatário foi filmado criticando seu então aliado, que está sendo investigado por apresentar candidaturas falsas de mulheres no pleito de 2018. É o que ficou batizado como caso do “laranjal do PSL”, que transformou em réu o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antonio (PSL-MG).

Apesar da retórica a respeito de transparência, a entrada de Álvaro Antonio na nova sigla não está descartada. A informação é que não haveria impedimento porque ele ainda não foi condenado. “Por enquanto está no campo das hipóteses”, disse o líder do Governo o na Câmara, Major Vítor Hugo. Segundo o parlamentar, o objetivo é levar para o partido regras de transparência e compliance para evitar casos como o do próprio Antônio e de Bivar que são investigados por lançar candidaturas laranjas nas eleições de 2018.

Ambição, campanha digital e dinheiro do fundo partidário

Nos bastidores, os parlamentares bolsonaristas também trabalham para atrair representantes de outras legendas. Querem levar até 100 dos 513 deputados brasileiros. Miram principalmente políticos insatisfeitos do DEM, PL, PSDB e PRB. A dificuldade será convencê-los a migrar para um agrupamento de extrema direita. Enquanto isso, Bivar se movimenta para fundir o seu PSL com outra sigla. Os candidatos a receber os parlamentares peesselistas e, consecutivamente os recursos que eles levam consigo, são o DEM, o PSC e o PROS.

Os apoiadores do presidente pretendem coletar as 500.000 assinaturas necessárias para a criação de uma nova sigla de maneira digital, por meio de um aplicativo de celular semelhante aos que bancos usam para reconhecer seu usuário/cidadão usando a biometria. Mas também trabalham com a possibilidade de o Tribunal Superior Eleitoral rejeitar essa medida e se preparam para a coleta manual dos apoios. Questionada, a Corte informou que, atualmente, a legislação autoriza apenas a apresentação das assinaturas em papéis que precisam ser convalidadas por cartórios eleitorais. Porém, não se opôs a debater outras formas de coletas, desde que seja provocada. Os advogados de Bolsonaro pretendem entrar com um questionamento formal na corte nas próximas semanas.

Três participantes do encontro relataram ao EL PAÍS que a ideia é ver o partido criado até março, para poder participar das eleições municipais de 2020. Caso migrem para uma nova legenda, os parlamentares perderão os recursos dos fundos eleitoral e partidário a qual têm direito. Para o ano que vem a expectativa é que o PSL receba 310 milhões de reais dos dois fundos. A nova sigla iniciaria sem nenhum recurso público nem tempo de propaganda na rádio e TV. “Abrimos mão de qualquer dinheiro”, afirmou o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), um dos que se dispôs a acompanhar o presidente.

A questão financeira sempre foi um nó nesse confronto provocado por Bolsonaro. “Nós vamos sair, independentemente de fundo partidário. Não queremos briga com o PSL, ele ainda é o nosso partido”, afirmou Bia Kicis (PSL-DF), vice-líder do Governo no Congresso. No próximo dia 21, a Aliança pelo Brasil terá sua primeira convenção nacional, nela será apresentada seu estatuto e, provavelmente, eleita sua primeira diretoria. “Esperamos que o presidente Bolsonaro também seja o presidente do partido, mas ele não falou se quer ou não”, afirmou a deputada Kicis.

Apesar de os discursos dos bolsonaristas ser de pacificação, a ala que apoia Bivar possivelmente não dará trégua. O próximo campo de batalha interna deve ser a liderança da legenda na Câmara. Entre os apoiadores de Bivar, a expectativa é que o atual líder, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), entregue o cargo. “Há semanas, o Bolsonaro fala mal do PSL. Hoje, ele mostra que sua intenção sempre foi avacalhar o partido”, reclamou o deputado Júnior Bozzella (PSL-SP), porta-voz informal da legenda. E completou: “Quando o presidente de forma oficial, se manifesta, o justo é o Eduardo entregar essa liderança. Essa seria a atitude de um adulto. Mas os atos do Eduardo falam por si.”

Terceiro filho do presidente, Eduardo chegou à liderança depois de uma manobra do Palácio do Planalto que pressionou parte dos peesselistas a depor o então líder, Delegado Waldir (PSL-GO). Desde que assumiu a liderança, Eduardo não convocou nenhuma reunião de bancada e, de ofício, substituiu representantes da legenda em comissões, como a de Constituição e Justiça e a CPI das Fake News.


El País: Bolsonaro ironiza Evo Morales, mas teme efeitos da crise boliviana

Vazio político instaurado na Bolívia pode criar tensão na fronteira e fazer escalar instabilidade na região. País renegocia com vizinho estratégico acordo de importação de gás que expira em dezembro

O presidente Jair Bolsonaro ironizou a decisão de Evo Morales de deixar o país andino e se exilar no México, um dia depois de o boliviano renunciar ao poder: "Lá a esquerda tomou conta de novo. Tenho um bom país para ele: Cuba", afirmou o presidente em referência ao Governo mexican de Andrés Manuel López Obrador em frente ao Palácio do Alvorada. No domingo, o presidente brasileiro já tinha escrito uma mensagem irônica nas redes ao usar a expressão "grande dia", seguida de um sinal de joinha, pouco depois do anúncio de renúncia de Morales, que deixou o cargo por pressão do Exército e após dias de protestos intensos. O vice-presidente boliviano e os chefes das duas casas legislativas renunciaram também, deixando a sucessão presidencial em um limbo.

Apesar da comemoração da queda de um dos governos da ala da esquerda —alvo constante de ataques de Bolsonaro— para as redes e as as câmeras, nos bastidores a informação é que o tema preocupa o Planalto, já que a crise que mergulhou a Bolívia em um vazio político pode criar tensão na fronteira com o Brasil, fazer escalar o clima de instabilidade na região e, dependendo da duração e do desfecho, afetar a estratégica relação comercial entre os dois países, cujo principal eixo é um acordo de importação de gás pelo lado brasileiro (83% do gás que o Brasil importa vem da Bolívia, num cenário que os campos brasileiros só produzem pouco menos de 70% do que o país precisa). Por tudo isso, o melhor é que a situação se estabilize o quanto antes, segundo interlocutores.

Em entrevista ao jornal O Globo, Bolsonaro afirmou não considerar que Morales tenha sofrido um golpe. Para ele, as denúncias de fraudes nas eleições culminaram na renúncia do boliviano. "A palavra golpe é usada muito quando a esquerda perde, né?", disse. O presidente brasileiro explicou ainda que o sistema de votação atual "não serve" e que a Bolívia é um sinal para que o Brasil adote um sistema seguro. Em um tom um pouco mais cauteloso, Bolsonaro ressaltou que "não é bom acontecer esse tipo de movimento". "Eu sei que lá foi contra a esquerda, mas a gente não quer nem contra a esquerda nem contra a direita. A gente quer que, acabou, tem dúvida, vai lá e conta, abre a urna lá, o voto impresso e conta", disse.

Reunião na OEA e pragmatismo

Por enquanto, a tônica do Governo sobre a crise instaurada no país andino parece ser essa: observação atenta, mas sem maior envolvimento, à diferença de crises anteriores, quando o país era chamado a mediar o conflito diretamente. O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, disse que o Brasil apoiará uma "transição democrática e constitucional" e que a "narrativa de golpe só serve para incitar violência". O Itamaraty também afirmou que já tinha solicitado uma reunião antes mesmo da renúncia de Morales com a Organização dos Estados Americanos (OEA) para examinar as conclusões da auditoria realizada pelo órgão a respeito das eleições. Outros países, como a Colômbia do Governo conservador de Ivan Duque, se somaram ao pedido de uma reunião emergencial após a renúncia do boliviano. O encontro deve acontecer na sede em Washington nesta terça-feira.

"A posição do presidente é clara, mas o que importa do ponto vista político-diplomático são as ações do Brasil. E acho que o país não vai tomar nenhuma outra ação além de apoiar o relatório da OEA e pedir novas eleições", explica Rubens Barbosa, ex-embaixador brasileiro em Washington. Para Barbosa, o país deve se preocupar quanto a possíveis distúrbios na fronteira.

Em um dos limites dos dois países, em Corumbá, a 415 km de Campo Grande, a passagem está fechada há mais de 20 dias. Uma greve geral de manifestantes contrários ao ex-presidente é mantida no local. "Como é um país com uma fronteira importante e grande é sempre complicado. Acho que estão preocupados, mas a situação ainda não saiu do controle", diz Barbosa.

Outro receio quanto à crise instaurada na Bolívia é que ela afete de alguma maneira a relação comercial entre os dois países, principalmente no mercado de gás natural. Atualmente o Governo brasileiro tenta renegociar o contrato de importação do gás boliviano, por meio do Gasoduto Brasil-Bolívia, para diminuir o preço do combustível. Em tese, o contrato atual, que obriga a Petrobras a comprar uma cota mínima de produção boliviana expira em dezembro. Apesar de o Brasil ter diminuído sua fonte de dependência do produto do vizinho, ainda assim é de lá que vem mais de 80% do importante em gás natural. "Se a Bolívia parar de fornecer gás por um dia a gente para a Av. Paulista. A nossa indústria depende profundamente do gás natural que vem de lá", explica o professor de Política Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Lopes.

Para além das implicações econômicas, Lopes ressalta que o momento que atravessa o país andino é muito relevante para os rumos da política da América Latina. "Há dois campos medindo força na região. Antes da renúncia de Morales, os movimentos pareciam indicar que o campo da esquerda estava conseguindo recuperar terreno perdido e me refiro a Alberto Fernandez, na Argentina, e a libertação do ex-presidente Lula no Brasil. Tinha um clima favorável a esse campo da esquerda, mas essa onda foi interrompida no domingo", explica.

A situação da Bolívia virou uma espécie de totem do que é a situação institucional da América Latina, na opinião de Dawisson. "Quando as pessoas começam a ir frequentemente para rua é sinal que há um descolamento entre sociedade e política institucional, economia e política institucional, e eu acho que a questão institucional voltou para a pauta".

Apesar de formar parte do grupo de políticos de esquerda na América Latina, fortemente criticado pelo clã bolsonarista, o ex-mandatário boliviano mantinha uma boa relação pragmática com o presidente brasileiro e, em janeiro, compareceu à posse de Bolsonaro em Brasília. Antes, o boliviano já havia se aproximado de Michel Temer, mesmo tendo feito críticas ao impeachment.  "Evo Morales é famoso internacionalmente não apenas porque ficou 13 anos no poder, mas porque fez diplomacia presidencial como nenhum outro da região. Ele se encontrava com líderes tão diferentes como Bolsonaro e Maduro. Sua capacidade diplomática era invejável", ressalta Dawisson.

A relação com o presidente brasileiro só azedou durante a crise das queimadas na Amazônia, quando Bolsonaro atacou o país andino e afirmou que era na Bolívia, e não no Brasil, onde estavam se espalhando os incêndios florestais.

Na avaliação do professor da UFMG, ainda é cedo para fazer prognósticos sobre o futuro da Bolívia e sua relação com o Brasil. Mas sua maior aposta é de que a direita irá assumir o poder no pós-Evo Morales. "Algum candidato que tenha a simpatia das forças armadas deve assumir e Bolsonaro vai apoiar esse candidato", sugere.


El País: Evo Morales renuncia na Bolívia após militares cobrarem sua saída

O ex-presidente, escondido em uma zona de coca no centro do país, denuncia que a polícia quer detê-lo com uma ordem de prisão ilegal

presidente da Bolívia, Evo Morales, e o vice-presidente, Álvaro García Linera, renunciaram a seus cargos neste domingo encurralados pelo levante popular contra o Governo e abandonados pelas Forças Armadas, pela polícia e até por colaboradores mais próximos. O comandante do Exército, Williams Kaliman, tinha pedido sua renúncia horas antes: “Depois de analisar a situação conflituosa interna, sugerimos que o presidente do Estado renuncie a seu mandato presidencial, permitindo a pacificação e a manutenção da estabilidade pelo bem de nossa Bolívia”. O ex-presidente, escondido em uma zona de coca no centro do país, denunciou domingo à tarde que a polícia está tentando detê-lo com um mandado de prisão ilegal.

Bolívia se encontra em um vazio de poder, após a renúncia dos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados. O líder do protesto social, o líder dos comitês cívicos, Luis Fernando Camacho, pediu a formação de uma junta de Governo com o alto comando militar e policial.

"É minha obrigação como presidente indígena e de todos os bolivianos garantir a paz social", disse o presidente boliviano no início de sua mensagem de renúncia. "Renuncio para que [Carlos] Mesa e [Luis Fernando] Camacho não continuem a maltratar os familiares de nossos companheiros, não continuem atacando ministros e deputados, para que parem de maltratar os mais humildes”, disse Morales. “A luta não termina aqui. Os humildes, os patriotas, vamos continuar lutando pela igualdade e a paz. Espero que tenha entendido minha mensagem, Mesa e Camacho, não prejudiquem os pobres, não causem danos ao povo. Queremos a volta da paz social. Grupos oligárquicos conspiraram contra a democracia. Foi um golpe de Estado cívico e policial. Dói muito o que se passou”, explicou.

Por sua parte, o vice-presidente Álvaro García Linera fez um balanço das conquistas econômicas e sociais do Governo durante os quase 14 anos de mandato, antes de apresentar sua renúncia. “Erguemos a Bolívia. Em 20 de outubro quase a metade dos bolivianos votou em nós. Forças estranhas e obscuras, a partir desse momento, começaram a conspirar. Queimaram instituições e sedes sindicais. Formaram bandos paramilitares para intimidar os camponeses, ameaçaram nossos companheiros. Foi um golpe de Estado. Eu também renuncio. Sempre fui leal ao presidente, estou orgulhoso de ter sido o vice-presidente de um indígena e o acompanharei nos bons e nos maus momentos”, afirmou García Linera.

O presidente boliviano já havia cedido à pressão neste domingo e anunciado novas eleições, após 18 dias de protestos em que pediam a anulação das eleições de 20 de outubro, nas quais foi reeleito. Tudo depois que a Organização dos Estados Americanos (OEA) divulgou uma auditoria do processo eleitoral em que afirma que os procedimentos adequados não foram seguidos e houve "contundentes" irregularidades, motivo pelo qual exigia sua anulação. Seguindo a recomendação da OEA, Morales anunciou –em uma mensagem televisionada na madrugada deste domingo– sua intenção de "renovar todos os membros do Tribunal Supremo Eleitoral". O presidente insistiu que, com sua decisão, buscava "baixar toda a tensão" e "pacificar a Bolívia". Sem aparente sucesso. O Ministério Público anunciou neste domingo uma investigação contra os membros do Tribunal Eleitoral suspeitos de irregularidades. A presidente da instituição, María Eugenia Choque Quispe, apresentou sua demissão imediatamente depois.

A oposição, liderada pelo candidato e ex-presidente Carlos Mesa, queria que Morales e seu vice-presidente, Álvaro García Linera, garantissem que não participariam das novas eleições, bem como um acordo plural para eleger um Tribunal Eleitoral credível. Os responsáveis pelos protestos que convulsionam o país acreditam, além do mais, que a renovação do órgão eleitoral é insuficiente e querem a renovação de todos os poderes do Estado e a criação de uma "junta de governo” transitória, escolhido pelo povo sublevado, que se encarregue das novas eleições.

O destino de Morales estava por um fio. O Governo entrou em colapso, pressionado pelo assédio de movimentos insurgentes que atacam as casas dos líderes governistas. O ministro da Mineração, César Navarro, colaborador próximo do presidente, renunciou neste domingo depois que uma multidão incendiou sua casa em Potosí, que atualmente é a cidade mais radicalizada contra Morales. O mesmo aconteceu com o também potosino Víctor Borda, presidente da Câmara dos Deputados, que, com sua renúncia, disse querer proteger seu irmão que está sendo mantido refém pelos manifestantes. O ministro dos Hidrocarbonetos, Luis Alberto Sánchez, também anunciou sua renúncia neste domingo por meio de um anúncio no Twitter. Antes deles, haviam renunciado diplomatas, governadores, prefeitos, deputados e outros altos funcionários do Estado.

A Central Operária Boliviana, a associação de sindicatos urbanos, aliada ao partido no poder, em uma decisão digna de registro, também pediu a renúncia de Morales. Vários sindicatos de mineiros, afiliados à Central, estão atuando contra o presidente, seguindo os comitês cívicos de suas regiões. Na prática, Morales apenas conta com o apoio dos sindicatos de camponeses, que ainda bloqueiam as estradas que levam a La Paz, a capital administrativa.

Há dois dias a polícia está amotinada e nos quartéis. Juntaram-se desta maneira aos protestos contra um Governo que, consideram, "maltratou e marginalizou" os policiais – um fator-chave para conduzir a situação em favor dos rebeldes. Durante seu mandato, Morales removeu algumas atribuições da instituição policial, como a administração do sistema de identificação, e preferiu confiar nas Forças Armadas que, no entanto, não quiseram defendê-lo nesta crise.

O principal líder dos comitês cívicos que lideram os protestos, Luis Fernando Camacho, aguardava a chegada de numerosos grupos de opositores que viajam a La Paz para levar uma carta de renúncia preparada para Morales assinar e "ingressar" no palácio Governo. O presidente está em sua região, o Chapare, cercado por seus leais camponeses das plantações de coca.

Relatório da OEA

A verdade é que o relatório da OEA, embora preliminar, aponta inúmeras irregularidades. Entre outras coisas, no sistema de transmissão de resultados, que sofreu um apagão quando se previa um segundo turno das eleições, entre o presidente do país e seu rival Mesa. Após o blecaute, a contagem concedeu uma clara vantagem a Morales. Segundo a análise da OEA, os dados foram encaminhados para um servidor externo não previsto. A entidade também observou irregularidades na contagem.

Morales, que não mencionou o relatório da OEA em seu comparecimento em público, disse mais tarde, em entrevista à Rádio Pan-Americana, que o relatório era mais "político" do que técnico, em busca de dar ao país uma solução política. "Nunca pedi ajuda", disse ele, sobre a possibilidade de o Tribunal Eleitoral ter cometido fraude a seu pedido.

O presidente também afirmou que não iria renunciar, que tem mandato até 22 de janeiro de 2020 e que propor que ele saísse seria dar um "golpe de Estado". Não quis garantir que não participaria das novas eleições. “Não devemos falar sobre candidatos nem sucessão constitucional. Não vamos continuar convulsionando. Querem prejudicar a Bolívia. Vamos dialogar, vejamos quando e como faremos as eleições. Não vamos nos confrontar... ”, ele disse.


Eliane Brum: O presidente do Chile prefere governar uma colônia

Com a transferência da COP-25 para a matriz europeia, perdeu-se uma oportunidade histórica de conectar o debate climático com as preocupações da população

cancelamento da COP-25 no Chile e a transferência para a Espanha aponta o apartheid climático. Mostra também que alguns dos principais atores não compreendem as forças que estão em jogo. Não é uma questão apenas de milhões de dólares irem pelo ralo, de participantes enlouquecerem para mudar planos e passagens, da reorganização em tempo recorde de um evento gigantesco em outro continente. Trata-se de escolha política que denuncia o presente e compromete o futuro. Que a transferência da COP-25 seja da antiga colônia espanhola para a matriz europeia é altamente simbólico. O discurso oficial de que a COP continua sendo do Chile, mas em território espanhol, seria mais um detalhe saboroso caso se tratasse de uma obra de ficção. Não é.

O Chile vive o seu maior levante popular desde o fim da ditadura militar. Mesmo que não sejam assim nomeadas, insatisfação e desespero estão conectados com a emergência climática. O colapso do clima não é uma alegoria no horizonte distante, mas algo que já está fazendo vítimas e determinando migrações e insurreições pelo planeta. As desigualdades serão ainda mais ampliadas pelos impactos do superaquecimento global. Em vez de conectar os levantes com o debate climático, fazendo com o que é da Terra desça à terra e seja atravessado pelas questões prementes da população, o conservador Sebastián Piñera preferiu cancelar a COP. A final da Libertadores, claro, foi mantida — e só mais tarde transferida para Lima, no Peru.

Mais uma vez, uma oportunidade histórica é perdida. Os negociadores não querem sujar as mãos com as ruas da América Latina em diferentes tipos de convulsão. Preferem manter as negociações intermináveis em ambiente climatizado. A ironia aqui não é opcional. Querem mesmo controlar o clima do debate e não ser pressionado por aqueles que sofrem a falta de políticas públicas para enfrentamento do maior desafio da trajetória humana.

Quando o presidente chileno anunciou o cancelamento da COP, os movimentos sociais que organizam a Cumbre de los Pueblos, de 2 a 10 de dezembro, fizeram uma declaração de resistência: #NoHayCOPSiHayCumbre. Manterão no Chile o encontro que movimenta a sociedade civil. O evento só será cancelado se a maioria virar as costas para a América Latina e rumar para a Europa. Os organizadores sinalizam que, se temos alguma chance para enfrentar o colapso climático, é pelas bases. O presidente do Chile tratou o país como colônia. O povo declarou que o Chile é livre.

Parte da Europa tem posado de iluminista no debate climático, enquanto suas empresas disseminam agrotóxicos em outros continentes e suas mineradoras contaminam rios na Amazônia. O gesto “generoso” da Espanha de abrigar a COP busca reforçar a imagem de uma Europa “civilizada”. Não se pode esquecer, porém, que veio da Europa a destruição que hoje o mundo inteira paga. Se ainda existe floresta viva é graças aos povos indígenas que os colonizadores europeus tentaram exterminar e não conseguiram. O que os organizadores da COP-25 precisam compreender com urgência é que, sem descolonizar o pensamento, não haverá futuro. #SiHayCumbre.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum


El País: Lula provoca Bolsonaro e marca posição como seu maior rival

Ex-presidente usa discurso ácido para antagonizar com posições radicais do atual mandatário, mas enfrenta o rótulo de "criminoso" depois que saiu da prisão

O ex-presidente Lula da Silva voltou ao jogo político e já despertou suas bases ao mesmo tempo em que provocou reações de seus adversários. Em seu discurso, em São Bernardo do Campo, adoçou o coração de quem o segue com palavras de esperança de um país melhor, incluindo o aviso de que a esquerda vencerá a extrema direita em 2022. Trouxe também de volta os fantasmas que alimentam a narrativa do Governo Jair Bolsonaro e a massa de antipetistas do Brasil. Depois de acusar o presidente Bolsonaro de governar para os “milicianos do Rio de Janeiro”, e de chamar o ministro Sergio Moro de “canalha”, Lula mencionou os protestos de rua que o Chile vem enfrentando há duas semanas. Citou os chilenos como “exemplo” para “resistir” e “lutar”.

Foi a deixa para acusar o ex-presidente de estimular a violência. “Lula, em seu discurso, mostra quem é e o que deseja para o país. Incita a violência (cita povo do Chile como exemplo), agride várias instituições, ofende o Pres Rep e mostra seu total desconhecimento sobre carreira militar”, tuitou o general Augusto Heleno, ministro de Segurança Institucional, fazendo alusão também ao fato de Lula ter dito que Bolsonaro se aposentou cedo e agora tira direitos previdenciários com a reforma.

Claudio Couto, cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas, avalia que o discurso inflamado de Lula para o seu público é estratégico para polarizar com Bolsonaro e posicionar-se como sua principal oposição. “Não foi radical, foi um discurso forte que marca a distância com a extrema direita [de Bolsonaro]”, completa. O que vai definir o jogo eleitoral, no entanto, não são palavras ácidas ou dóceis do discurso. “É saber se ele vai procurar o Ciro Gomes ou não, se será articulador ou se vai se isolar”, completa o professor da FGV.

A esquerda no Brasil saiu fragmentada da eleição de 2018 após a fratura exposta com o PDT, hoje dominado por Ciro Gomes, que nunca visitou Lula na prisão e não perde uma oportunidade de alfinetá-lo. Baixar a guarda é um desafio diante de uma direita que também se dividiu depois de uma aliança pela eleição do presidente Jair Bolsonaro, mas que deu sinais neste sábado de quem também pode se reaproximar em nome de combater o petista que volta à arena política. “A esquerda nunca foi muito unida”, ressalva a cientista política Maria Hermínia Tavares, que não acredita numa radicalização de Lula e nem do PT. “Ele não foi radical nem nos discursos mais virulentos. O Lula é um político de negociação, e isso pode formar um campo amplo de oposição caso se estique até o ‘centrão’, ao MDB, porque ele já governou com essa gente”, opina. Mas, agora, o PT precisa juntar as forças primeiros, opina. “O partido estava preso em Curitiba e agora está solto”.

Couto concorda. “Hoje ele tem mais apoiadores do que detratores, embora também teremos uma mobilização forte dos bolsonaristas”. O professor entende que se Lula atuar como articulador da oposição, o discurso da esquerda se fortalece. “Ele só vai conseguir capitalizar essa vantagem se “brigar menos e conversar mais”. Ele tem a capacidade de atrair até lideranças do centro, como Renan Calheiros e Roberto Requião, mesmo que o partido deles tenha atuado pelo impeachment da Dilma”, opina.

Mas o petista tem contra si um rótulo pesado depois da prisão, ainda que seu processo seja objeto de questionamento na Justiça, com o recurso de suspeição do ex-juiz Sergio Moro (a ser votado ainda este mês, segundo o ministro Gilmar Mendes), que poderia anular seu processo. “Lula foi condenado e grande parte da população entende que ele é um criminoso. A maior parte do Brasil não comemorou sua saída e ele não tem mais o poder de levar tanta gente para a rua, apesar de sua oratória”, acredita Sergio Denicoli, diretor de big data da AP Exata. É um flanco que foi explorado por Bolsonaro e Moro neste sábado. O presidente se referiu a Lula como um “canalha, momentaneamente livre, mas cheio de culpa”. Moro tuitou hoje que não responderia  a “criminosos, presos ou soltos”, em referência aos ataques de Lula.

Se o recurso de suspeição do então juiz Moro, responsável pela sua prisão em primeira instância no caso do triplex, foi aceito pelo Supremo, teria poder para alterar seu status, avalia o jurista Marco Aurélio de Carvalho, que vê chances de o ex-presidente sair vitorioso no julgamento que pode ocorrer ainda este mês na Segunda Turma. “Ele pode se reabilitar politicamente, e todos os demais processos aos quais ele responde seriam contaminados pela suspeição de Moro”, diz ele. Nesse caso, Lula teria capacidade de regeneração política muito maior, avalia o professor Claudio Couto. “Se houver anulação do julgamento, o jogo muda totalmente de figura”.

Distração provocada

Couto acredita que o antagonismo entre Lula e Bolsonaro traz uma vantagem maior para o segundo. “O presidente opera o tempo todo sendo anti-PT. Lula fora da prisão lhe dá um discurso mais efetivo. Agora ele pode falar que a corrupção está vencendo e que o STF está cedendo à pressão dos condenados”, analisa. Os movimentos de rua da direita exploraram exatamente isso neste sábado, incentivando o apoio à PEC que rever a decisão do Supremo da semana passada sobre segunda instância que libertou Lula e outros desafetos deles, como o ex-ministro José Dirceu.

Para Bolsonaro, a volta de Lula ao cenário nacional ajuda a redirecionar o debate para um nível ideológico, “tirando o foco das dificuldades diárias que o seu Governo vem demonstrando ter”, avalia o analista Thiago de Aragão. “Isso também é o que o Lula quer, tirar o foco de Bolsonaro enquanto busca apoio dos [partidos] de centro para inibir cada vez mais a capacidade do presidente de formar uma aliança forte”, completa.

Essa cartada do presidente, porém, é limitada. Ele também tem seus esqueletos no armário jurídico, com o filho, o senador Flavio Bolsonaro, sendo investigado pelas movimentações financeiras suspeitas do ex-funcionário de seu gabinete, Fabricio Queiroz, o que ofuscou seu papel de defensor da luta anti-corrupção. Couto enxerga no fato de Sérgio Moro ser ministro do Governo um ponto a favor da postura lavajatista do presidente. “Se o Bolsonaro perdeu essa reputação íntegra, embora não tenha nenhuma trajetória histórica de político anticorrupção, ele pode retomá-la com a aliança de Moro”, opina. Hermínia Tavares não vê o presidente se beneficiando e nem se prejudicando com a soltura de Lula. “O fato pode criar um elo maior. Mas só para os que já estão do lado dele”. Vai ser um jogo de resistência para os dois campos até 2022.


El País: Livre, Lula acende esperança de reanimar uma combalida oposição

Ex-presidente discursa à militância e promete fazer nova caravana pelo Brasil com vistas às municipais de 2020. Petista cumpre promessa e bebe cachaça com militantes de vigília

Ainda não marcavam 13h, horário em que a Justiça Federal de Curitiba iniciaria os trabalhos do dia, e os advogados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já haviam protocolado por meios eletrônicos o alvará em que pediam a soltura imediata dele. A argumentação era simples: a decisão tomada no dia anterior pelo Supremo Tribunal Federal, de que apenas condenados já sem direito a recursos poderiam ser presos, beneficiava diretamente o líder petista. "Torna-se imperioso dar-se imediato cumprimento à decisão da Suprema Corte", ressaltavam. Do lado de fora da carceragem da Polícia Federal, onde desde 7 de abril de 2018 Lula cumpria sua condenação em segunda instância, uma multidão já se aglomerava desde cedo. Centenas de pessoas de diversas partes do país, petistas e militantes de esquerda —alguns acampados ali há 580 dias—, ansiavam pela promessa feita por Lula ainda no cárcere, em uma entrevista ao EL PAÍS e à Folha em abril. Na saída da prisão, afirmou ele, caminharia até a vigília que o saudou diariamente desde que foi preso e tomaria um gole de cachaça com seus fiéis apoiadores para brindar.

Ao lado de um palco montado ali mesmo na rua para o primeiro discurso do petista em liberdade, a espera já era organizada. Sentadas em cadeiras de plástico, a bancária Sandra Goes, 43 anos, e a funcionária de um supermercado, Lenir Riva, de 58, esperavam havia mais de duas horas a chegada de Lula da fila do gargarejo. Lenir queria uma selfie e já planejava até uma forma de chegar mais perto do ex-presidente. "Será que eu consigo pular essa grade?", brincava ela, apontando para a separação que isolava o palco. Já Sandra pretendia mesmo era escutar o discurso. "Quero muito ouvi-lo. A gente precisa dessa presença dele, do que ele tem a dizer para a militância sobre o que devemos fazer neste país para manter a esperança viva em um momento desses", explicava.

A saída de Lula do cárcere, onde ele entrou seis meses antes da eleição que alçou o ultradireitista Jair Bolsonaro (PSL) ao poder, representava para seus apoiadores não apenas a presença física de um líder, mas a expectativa de um rumo para um partido e para uma esquerda que nos últimos anos não conseguiu formar fortes lideranças capazes de renovação e que a menos de um ano das eleições municipais não conseguiu apontar claramente seus candidatos para as maiores prefeituras do país, a de São Paulo e a do Rio de Janeiro. Um PT que em pouco tempo viu crescer Bolsonaro, com um discurso radical de direita, apoio nas ruas e nas redes sociais antes visto apenas entre o próprio lulismo.  Estava ali, representada na figura de um Lula livre, a esperança de uma organização que o ex-presidente tentou manter a partir da cadeia por meio de recados por escrito e das visitas estratégicas que recebia. Foi de lá que ele decidiu, por exemplo, o momento de se retirar da disputa à Presidência —ainda que há muito já fosse claro que sua condenação em segunda instância o impediria de disputar—. Também foi dali que decidiu que Fernando Haddad seria seu substituto e de onde traçou uma estratégia minuciosa de campanha que quase foi vitoriosa —Haddad perdeu para Bolsonaro no segundo turno, mas o PT conseguiu, em meio à onda conservadora, eleger a maior bancada da Câmara.

Foi também daquele prédio que ele elaborou seu plano de agora, o de retomar outra vez a liderança nas ruas do país, em uma oposição frontal a Bolsonaro. Após um período com a família, ele pretende sair pelo Brasil em mais uma de suas caravanas. Quer reorganizar as bases. E, assim, dar início à campanha de 2022, que, como sempre, começa mesmo nos pleitos municipais de dois anos antes —eleger prefeitos é eleger palanques viáveis, algo extremamente necessário diante de um PSL que ganhou força política e dinheiro para campanha, ainda que esteja em crise com sua principal estrela, o próprio presidente Bolsonaro. No caminho de Lula para esse plano, há ainda obstáculos legais e outros vários processos em curso contra ele. O imediato é a Lei da Ficha Limpa: o petista está livre por causa da decisão do Supremo, mas segue inelegível por ter condenação em duas instâncias no caso do triplex de Guarujá —daí que a pressão a partir de agora é para que STF julgue o caso que pode declarar o então juiz Sergio Moro parcial, o que anularia todas as decisões relacionadas.

A decisão do juiz Danilo Pereira Júnior, da 12 Vara Federal de Curitiba, foi feita pública às 16h15 desta sexta-feira. Ele determinava a "interrupção do cumprimento da pena privativa de liberdade" de Lula, com base na decisão tomada no dia anterior pelo STF. Do lado de dentro do prédio da PF, em uma antessala na recepção, parentes do ex-presidente, como a filha Lurian e um neto, esperavam aflitos a chegada dos advogados que acompanhariam o procedimento de soltura. Já do lado de fora, um cordão de militantes do Movimento dos Sem-Terra (MST) abria espaço para um pequeno corredor, por onde pouco mais de uma hora depois Lula passaria em direção ao palco, dando lugar a um empurra-empurra sufocante.

Acompanhado de Haddad e da presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, ele subiu ao local e agradeceu nominalmente uma lista enorme de organizadores de sua vigília. "Não importa se estivesse chovendo, não importa se estivesse 40 graus, não importa se estivesse zero grau. Vocês eram o alimento da democracia de que eu precisava", afirmou o ex-presidente. Apresentou publicamente Rosângela da Silva, sua namorada, um romance iniciado dentro da carceragem de Curitiba, e anunciou que se casa em breve. E nos seus cerca de 20 minutos de fala, atacou primeiro a Operação Lava Jato e o "lado podre" do Estado que "trabalham e trabalharam para tentar criminalizar a esquerda, o PT, e o Lula". Mirou contra o Governo de seu opositor direitista, a quem acusou de "mentir pelo Twitter", e prometeu lutar para "melhorar a vida do brasileiro", que "está uma desgraça". Fez ainda críticas às políticas educacionais e à taxa de desemprego atual, dando um indício do caminho de seu discurso nos próximos meses. "Amanhã tem encontro no Sindicato dos Metalúrgicos e, depois, as portas do Brasil estarão abertas para que eu volte a percorrer esse país e discutir com o nosso povo uma saída", disse, confirmando os planos da nova caravana e também sua presença em São Bernardo do Campo, seu berço político na Grande São Paulo, neste sábado, onde deve ter novo evento público.

À militância, que o acompanhava atentamente, conseguiu apenas fazer um afago parcial, já que a multidão e o esquema de segurança montado pelos movimentos sociais o impediam de se aproximar da aglomeração. Após sua fala, desceu pela lateral do palco, onde funcionava uma das estruturas da vigília, com uma cozinha. Abraçou e beijou simpatizantes, que, emocionados, choravam. Recebeu um copo de vidro, com alguns dedos de uma cachaça produzida pelos membros do MST. Brindou com militantes e tomou um gole, passando adiante o copo, que ao final do frenesi ainda deitava sobre um balcão, como um troféu. "O Lula abraçou todo mundo. Chorou. Eu disse que o amava no ouvido dele", comemorava a petista Lúcia Fernandes, 58 anos, que estava ali no exato dia em que o ex-presidente foi preso.

- E ele tomou a cachaça que prometeu?

- Tomou! Olha ali! - diz ela, enquanto busca o copo

- Toma um gole, toma! Olha só, era o copo do Lula!


El País: Pacote de Guedes sem proteção a mais pobres provoca resistência até em liberais do Congresso

Parlamentares ainda digerem conjunto de mudanças ambiciosas para reduzir gasto público e avaliam o que tem chance de virar realidade. Extinção de municípios, por exemplo, dificilmente será aprovada

Parte do Congresso Nacional tem demonstrado boa vontade com relação ao pacote econômico enviado pelo Governo Jair Bolsonaro ao Legislativo nesta semana. Mas há resistências até entre os apoiadores das três propostas de emendas constitucionais entregues na terça-feira pela equipe de Paulo Guedes. A principal crítica é a de que faltou povo nas propostas, ou seja, faltaram ações sociais que visem diretamente a população pobre e extremamente pobre —esta última faixa atingiu 13,5 milhões neste ano. Uma das avaliações feitas à reportagem é que a lógica do plano do ministro da Economia, Paulo Guedes, segue sendo a dos anos de ditadura militar, no qual acreditava-se que bastava melhorar os índices econômicos para gerar mais empregos e retirar a população da pobreza.

“Não podemos esperar uma hipotética melhoria na economia para reduzirmos a desigualdade”, afirmou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos congressistas que elogiou a maior parte do pacote. E completou: “A tese de esperar o bolo crescer para, depois dividir, não funcionou no passado e não funcionará agora”

Um item que foi pouco notado entre os parlamentares é o que desvincula o Benefício de Prestação Continuada (BPC) do salário mínimo. Esse benefício é regido pelo artigo 58 da Constituição. É pago para idosos ou portadores de necessidades especiais cuja renda familiar seja de um quarto de salário mínimo per capta. Sua revogação, que já foi tentada pelo Governo Bolsonaro sem sucesso na reforma da Previdência, agora está prevista no artigo 8º, inciso VII da PEC do Pacto Federativo. Ou seja, se aprovada a PEC, o BPC poderá ser inferior a um salário mínimo.

Entre os congressistas, também há os que criticam a medida que pretende reduzir em um quinto o número de municípios brasileiros, os que reclamam da fusão dos gastos mínimos obrigatórios da saúde com a educação, da inclusão dos gastos com os inativos nessa contabilidade (ainda que o Governo tenha prometido recuar deste item), e os que se queixam da proteção de categorias consideradas a cúpula do funcionalismo público nos casos de crises econômicas. Uma das PECs, a Emergencial, prevê o congelamento da ascensão funcional de todos os servidores, excetuando-se os magistrados, membros do Ministério Público, diplomatas, militares e policiais.

“De maneira geral, as medidas são positivas porque elas dão flexibilidade ao gestor. Mas incluir os gastos com inativos no mínimo de saúde e educação é uma excrescência”, avaliou o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES). Uma análise preliminar elaborada por técnicos de um gabinete compartilhado entre Vieira, Rigoni e a deputada Tabata Amaral (PDT-SP), mostra que, apesar de considerarem o atual pacote positivo, ainda falta um pedaço da proposta econômica.

Na avaliação desses técnicos, para entender onde o Governo Bolsonaro quer chegar, ainda é preciso aguardar o envio das reformas administrativa e tributária, do projeto de geração de empregos e da nova lei das privatizações. Dizem, por exemplo, que todas essas medidas estão conectadas porque envolvem geração de receitas ou diminuição de despesas. Juntos, eles elaboram, com a bênção do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), uma série de projetos de lei com o objetivo de amenizar a dureza das medidas liberais e que leva em conta cinco eixos: a garantia de renda dos mais vulneráveis, a inclusão produtiva, atualizar a rede de proteção ao trabalhador, melhorar o acesso ao saneamento básico e à água e a criação de uma lei de responsabilidade social.

Propostas inconstitucionais

Por outro lado, estudos elaborados por técnicos das bancadas da oposição da Câmara e do Senado mostram que o pacote contém medidas inconstitucionais porque já foram rejeitadas recentemente durante o debate da Previdência. Entre elas estão: a tentativa de suspender o repasse do Fundo de Amparo ao Trabalhador para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a proibição de conceder reajuste real ao salário por até dois anos. Uma proposta legislativa uma vez rejeitada ano não pode ser reapresentada pelo período de um ano. Essas sugestões já foram recusadas pela Câmara durante a aprovação da reforma da Previdência.

Os opositores, que dizem preferir debater uma reforma tributária ao atual pacote econômico, batizaram as medidas de “PECs da Agiotagem”. “Tudo o que houver de economia, o recurso será destinado para o pagamento da dívida pública. Ao invés de se investir em saúde, por exemplo, vai pagar o capital financeiro”, reclamou a líder da oposição na Câmara, Jandira Feghali (PCdoB-RJ).

Outro ponto que está distante do consenso é o trecho da PEC do Pacto Federativo que prevê a extinção de até 1.254 municípios que tem menos de 5.000 habitantes e arrecadação própria menor que 10% de sua receita total. “Há medidas que não merecem nesse primeiro momento o nosso endosso, como a previsão de extinção de municípios, que afetaria muito Minas Gerais. Vamos analisar tudo de forma aprofundada”, afirmou o senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), que elogiou as demais propostas de Guedes.

“Essa proposta de extinção dos municípios foi colocada como moeda de troca. O Governo vai barganhar com ela. Vai dizer que foi bonzinho em retirar o bode da sala”, avaliou o líder do PSOL na Câmara, Ivan Valente.

A alegação dos governistas é simplesmente econômica. “A extinção de municípios de até 5.000 habitantes é uma importante medida para reduzir gastos desnecessários e reverter em serviços públicos para a população”, afirmou o deputado Carlos Jordy (PSL-RJ), por meio de seu Twitter.

A Confederação Nacional dos Municípios, entidade que reúne os prefeitos das 5.568 cidades brasileiras, tem um cálculo distinto do Governo. Diz que, por esses critérios, 1.220 correm o risco de serem reincorporados a outros e queixa-se de que, “ao propor a extinção desses municípios, há grande equívoco e falta de conhecimento acerca da realidade brasileira”. “Os principais indicadores a serem considerados devem ser a população e os serviços públicos prestados”, diz um texto assinado pelo presidente da entidade, Glademir Aroldi.

A CNM ainda ressalta que a sugestão é inconstitucional, já que a Constituição prevê que a emancipação e a fusão de municípios dependem de plebiscito com a população que vive em seu território, e não da aprovação de uma nova legislação federal.


El País: Viver com 413 reais ao mês, a realidade de metade do Brasil

Desemprego alto e aumento da informalidade faz com que 104 milhões de brasileiros tenham de viver com o equivalente a meio salário mínimo. Número de ambulantes na rua saltou mais de 500% entre 2015 e 2018

A família de Josefa faz parte dos 50% mais pobres da população, quase 104 milhões de brasileiros, que em 2018 vivia, em média, com apenas 413 reais per capita, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) publicada em outubro. No mesmo ano, 5% da população, ou 10,4 milhões de pessoas no Brasil, sobreviviam com 51 reais mensais. O levantamento revelou ainda que a desigualdade se agravou no país. A renda domiciliar per capita desses 5% mais pobres caiu 3,8% de 2017 para 2018, enquanto a renda da fatia mais rica (1% da população) cresceu 8,2%.

Na avaliação de Maria Lúcia Vieira, gerente da Pnad Contínua, os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres, porque a renda total das famílias vem majoritariamente do trabalho. "Com a recessão, o mercado de trabalho também entrou em crise, e o desemprego aumentou [hoje atinge 12,6 milhões de brasileiros]. O que afeta muito mais os mais pobres, já que o estrato mais rico tem geralmente outras fontes de renda além do emprego, como, por exemplo, dinheiro proveniente de aluguéis, pensões", explica. Ainda que nos últimos dois anos a população ocupada tenha voltado a crescer, os empregos criados foram, principalmente, os informais. "Os postos que estão surgindo são pouco remunerados e de baixa qualificação", diz Vieira.

Informalidade bate recorde

Fabiano Manuel de Souza, de 26 anos, começou a trabalhar de ambulante para sair da fila do desemprego.
Fabiano Manuel de Souza, de 26 anos, começou a trabalhar de ambulante para sair da fila do desemprego.

Entre julho e setembro deste ano, a taxa de informalidade da população ocupada bateu recorde da série iniciada em 2012, chegando a 41,4% dos trabalhadores. Ou seja, a cada 10 trabalhadores, seis têm ocupação precarizada. Segundo a gerente, o número de brasileiros que trabalham como ambulantes informais vendendo alimentos foi um dos que mais aumentou nos últimos tempos. Entre o segundo trimestre de 2015 e o segundo trimestre de 2019, o número desses ambulantes cresceu 510% subindo de 78,4 mil para 478,3 mil pessoas.

Um dos filhos de Josefa, que já saiu de casa, faz parte desse grupo de novos ambulantes. Após ser demitido de um trabalho com carteira assinada, resolveu seguir os passos da mãe e apostar nas vendas na rua. Fabiano Manuel de Souza, de 26 anos, ajuda a mãe a transportar no ônibus a mercadoria e depois segue para outro ponto também em Pinheiros, na zona oeste da cidade. "Não é um trabalho fácil, e as vendas dependem muito de cada dia. Faça chuva ou faça sol a gente vai pra rua. Agora no calor é mais fácil ganhar com água, mas está tudo meio parado. Não sei se as coisas vão melhorar, acho que esse Governo novo é pior. Eu preferia o Lula, fui até em manifestação contra o Bolsonaro no Largo da Batata para protestar, mas também para aproveitar as vendas", conta.

Apesar dos tempos de economia fraca e pouco dinheiro no bolso, Josefa está mais tranquila nos últimos meses. Neste ano, conseguiu, finalmente, uma autorização na prefeitura da capital paulista para legalizar a sua atividade e o carrinho que utiliza na calçada para expor os produtos que vende: água, refrigerantes, salgadinhos e balas. O local escolhido por ela é estratégico, fica em frente a um ponto de ônibus, a poucos metros do metrô Faria Lima. "Agora estou na paz, despreocupada. Antes era uma corrida de gato e rato entre eu e os fiscais. Cheguei a perder 13 vezes a minha mercadoria aqui, a polícia levou tudo. Eles corriam atrás de mim como se eu fosse um ladrão, vivia tensa. Eu estava apenas trabalhando. Eu nem tinha o carrinho, vivia com sacolas para sair correndo", conta ao lado da filha Kelly, de 20 anos, que está cursando faculdade de educação física, mas ajuda a mãe nas horas vagas.

Josefa de Souza trabalha como ambulante há 25 anos.
Josefa de Souza trabalha como ambulante há 25 anos.CAMILA SVENSON

Para regularizar sua atividade, Josefa entrou no programa "Tô Legal!" da Prefeitura de São Paulo e paga um imposto trimestral de quase 700 reais. Somou-se aos novos gastos um estacionamento para seu carrinho de 150 reais mensais e mais 10 reais diários para que outro vendedor da região a ajude a levá-lo à garagem. Para que o dia seja lucrativo, ela precisa trabalhar das 10/11h da manhã até 21h/22h da noite, de segunda a sábado.

O dia de Josefa começa, no entanto, muito mais cedo, e termina muito mais tarde. A vendedora acorda 6h da manhã para preparar o café da manhã dos dois filhos, de 18 e 16 anos, que vão para a escola e para organizar a marmita do filho que trabalha. Todos moram em uma casa simples de três quartos.  Como vive no bairro Jardim do Colégio, em Embu das Artes, na Grande São Paulo, ela leva quase duas horas para chegar ao local de trabalho e precisa pegar dois ônibus para percorrer um trajeto de cerca de 25 km. Na volta, acaba chegando em casa depois da meia-noite. É quando Josefa começa a preparar o jantar e o almoço do dia seguinte dos filhos e marido. "Acabo dormindo 3h da manhã. Mas o jantar é a única refeição forte do dia que eu faço. Não tenho onde aquecer a comida lá no meu carrinho e se compro na rua gasto 15 reais. Não posso, preciso economizar para os remédios. Por isso, nem almoço", explica.

Há três anos, a vendedora trata algumas feridas na perna ocasionadas pela má circulação sanguínea, chamadas úlceras varicosas. O tipo de lesão acomete, muitas vezes, pessoas que passam muito tempo em pé. "Preciso passar uma pomada cara, de 52 reais, que compro toda semana, e enfaixar as pernas. Nem passo mais no posto de saúde porque eles não têm nada. O médico diz que preciso ficar de repouso uns três meses, mas cada dia que não trabalho o dinheiro no fim do mês diminui, não dá".

Se pudesse escolher, Josefa optaria hoje por ter um emprego com carteira assinada, onde pudesse usufruir dos direitos trabalhistas, como o de tirar uma licença médica remunerada. "Mas, infelizmente, eu já não tenho mais idade. Ninguém vai me contratar com 58 anos", lamenta a vendedora que chegou a trabalhar 13 anos registrada em diferentes empregos antes de virar ambulante.

Ela veio da Paraíba para São Paulo aos 13 anos e já conseguiu, quando chegou, um posto em uma fábrica. "Como contribui esses anos, agora estou pagando o INSS para completar os 15 anos e tentar aposentar por idade. Ainda tenho que ver o que essa reforma da Previdência vai mudar nos meus planos, mas a aposentadoria vai ajudar muito, porque não vou poder trabalhar para sempre na rua", explica. O marido também deve conseguir se aposentar por idade daqui a 3 anos.

Enquanto as aposentadorias não chegam, Josefa tem um 'plano B' para melhorar de vida. Está há alguns anos construindo um novo andar na casa, com quartos separados para cada filho, para onde pretende se mudar com toda a família. "Aí vamos alugar essa parte de baixo e ganhar um dinheiro extra. A obra a gente começou com um acerto que meu marido ganhou quando foi demitido. Mas não conseguimos terminar e está difícil sobrar dinheiro, vivemos apertados", explica. O dinheiro anda tão escasso que, às vezes, ela pede para um primo um empréstimo. Ele empresta um vale alimentação para que ela compre novas mercadorias e ela só paga dez dias depois. Josefa acredita, no entanto, que com o dinheiro que fizer nas vendas no Carnaval de 2020 talvez consiga poupar um pouco. "É a melhor época. Acho que no ano que vem conseguimos terminar a obra e mudar lá pra cima. Acho que vai melhorar muito", diz sorrindo.


El País: Nome de Bolsonaro aparece em investigação do caso Marielle, que pode ir para o STF

Segundo 'JN', porteiro disse em depoimento que acusado de matar vereadora buscou presidente em seu condomínio no Rio no dia do crime. Mandatário ataca TV Globo e Witzel

O nome do presidente Jair Bolsonaro surgiu nas investigações sobre a morte de Marielle Franco. De acordo com o Jornal Nacional, da TV Globo, o porteiro do condomínio de luxo do presidente no Rio de Janeiro afirmou, em depoimento à polícia, que um dos principais acusados de matar a vereadora do PSOL, o ex-PM Elcio Queiroz, buscou a casa de Bolsonaro no próprio dia do crime, em 14 de março de 2018. Queiroz solicitou a entrada no condomínio, foi autorizado a entrar por alguém na casa do então deputado federal que teria se identificado como "Seu Jair", mas acabou se dirigindo à propriedade de Ronnie Lessa, no mesmo local. Queiroz e Lessa, presos acusados pelo assassinato desde março deste ano, saíram momentos depois para cometer o crime, ainda segundo a polícia.

A reação de Bolsonaro foi quase imediata e deu à divulgação um status ainda mais explosivo. Da Arábia Saudita, onde está em visita oficial, o presidente apareceu no Facebook e, depois, em entrevista à TV Record, para negar qualquer envolvimento no caso, atacar a Globo, a quem acusou de querer desestabilizar seu Governo, e também seu ex-aliado, Wilson Witzel, governador e chefe da Polícia do Rio, a quem atribuiu o vazamento da informação a respeito do inquérito. Exaltado, e pedindo desculpas à audiência por seu estado, disse querer prestar depoimento ao delegado do caso assim que voltar ao Brasil, na quinta-feira. Disse ainda que não pedirá sigilo a respeito do que falar. "O porteiro é vítima de uma farsa", disse. No Facebook, o presidente encerrou suas declarações reclamando do trabalho das autoridades para elucidar o atentado a faca que sofreu, em setembro de 2018. Em nota, a TV Globo afirmou que "não fez patifaria nem canalhice". Também "lamenta que o presidente revele não conhecer a missão do jornalismo de qualidade e use termos injustos para insultar aqueles que não fazem outra coisa senão informar com precisão o público brasileiro".

A citação do presidente nas investigações sobre a execução de Marielle, que avançam lentamente e não apontaram mandante, tem ingredientes para se tornar uma crise também política, além de um teste para a independência das instituições, desde as próprias polícias, incluindo a Federal, até o procurador-geral da República, Augusto Aras, que acaba de ser nomeado pelo presidente. A reportagem do programa da TV Globo afirma que os promotores do Rio de Janeiro, após a citação do nome do presidente, procuraram diretamente o presidente do Supremo, Antonio Dias Toffoli. Como trata-se do mandatário, que tem foro privilegiado, caberá a Toffoli definir se o caso irá ou não para a alçada da Corte.

Jornal Nacional deu ainda alguns detalhes sobre o depoimento do porteiro do condomínio de Bolsonaro. Apontou que ele tem ao menos uma aparente contradição: o funcionário diz ter falado, via interfone, com alguém que se identificou como "seu Jair", que não só autorizou a entrada, como disse saber a que casa Elcio Queiroz se dirigia naquela noite —a de Lessa, acusado de ter apertado o gatilho contra a vereadora. No entanto, segundo registro da Câmara dos Deputados e um vídeo gravado pelo próprio Bolsonaro na data, o então deputado federal estava em Brasília no dia do crime que chocou o Brasil. O telejornal disse ainda que a polícia ainda busca as gravações da guarita de segurança para corroborar a versão do porteiro e informou que, além do próprio presidente, o seu filho, o vereador Carlos Bolsonaro (PSL-RJ), também possui uma casa no complexo de luxo.

Outras citações ao clã Bolsonaro e Brazão

Não é a primeira vez que a família presidencial se vê envolvida no emaranhado ligado à investigação do assassinato de Marielle e de seu motorista, Anderson Gomes. Já era sabido que Ronnie Lessa, hoje preso penitenciária federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, morava no mesmo condomínio de luxo dos Bolsonaro. Além disso, havia registro de uma imagem do mandatário no Facebook ao lado de Élcio Queiroz. Também apareceu como envolvido na execução o Escritório do Crime, um sofisticado grupo de extermínio que faz serviços para milicianos e contraventores. Um dos integrantes do Escritório, o ex-PM Adriano Nóbrega, foragido desde janeiro por conta das investigações, já foi homenageado por Flávio Bolsonaro quando estava preso por homicídio, em 2004, e possuía duas parentes lotadas no gabinete do então deputado estadual até o segundo semestre de 2018.

Antes das revelações do Jornal Nacional, o último grande desdobramento envolvendo o caso havia sido o surgimento do nome de Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro e ex-líder do PMDB na Assembleia Legislativa do Estado. Em setembro, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) que as investigações fossem federalizadas e um novo inquérito fosse aberto para identificar os mandantes do crime. Dodge denunciou formalmente Brazão por obstrução da Justiça, falsidade ideológica e favorecimento pessoal por tentar atrapalhar o trabalho da polícia para elucidar o assassinato. A denúncia de Dodge se baseou nas conclusões da Polícia Federal, que apontaram o conselheiro como o "principal suspeito de ser o autor intelectual dos assassinatos" de Marielle e de seu motorista. Brazão nega as acusações.

A citação do presidente Bolsonaro deve trazer ainda mais holofotes internacionais para a trama do assassinato da vereadora, que cruzou um limite inédito na história recente da violência política do Brasil, com a execução de uma liderança ascendente não nos rincões do país, mas no centro de sua segunda maior cidade, à época com a segurança controlada por militares. Se o crime comoveu políticos de vários matizes até no exterior, não arrancou do então candidato presidencial Bolsonaro, ou de qualquer de seus filhos, nenhuma condenação à época.


El País: Alberto Fernández vence Macri e será o próximo presidente argentino

O líder peronista se reúne nesta segunda-feira com seu rival para acordar uma transição ordenada

Alberto Fernández é o novo presidente da Argentina. Mauricio Macri admitiu sua derrota, ampla (48% versus 40,5%), mas não tão severa quanto as pesquisas previam, e convidou seu sucessor para um café da manhã com o objetivo de organizar as seis semanas de transição restantes até as 10 de dezembro.  Fernandez alertou a multidão peronista que comemorava a vitória sobre a dureza da tarefa que ele deverá enfrentar. "Os tempos difíceis estão chegando", disse ele, depois de prometer que governaria "pelo povo, por todos". Macri, por sua vez, parabenizou o vencedor e ofereceu cooperação.

O resultado da eleição foi o mais balsâmico possível. Alberto Fernández derrotou, mas não varreu, o que permitiu que o macrismo se tornasse uma forte oposição. Também o comportamento de Macri e Fernández foi balsâmico. Diferente do áspero alívio de quatro anos atrás, em que Cristina Kirchner se recusou a entregar os símbolos presidenciais a Macri, desta vez os dois rivais deixaram de lado sua antipatia mútua e se declararam dispostos a trabalhar juntos.

Ambos estavam cientes de que a situação econômica da Argentina está em um ponto crítico. E que nos próximos dias poderia reproduzir a turbulência financeira que se seguiu à vitória peronista nas primárias de agosto.

"Estamos preparados para qualquer cenário", disse Hernán Lacunza, ministro das Finanças que assumiu o cargo em agosto, depois que a reação dos mercados financeiros ao resultado primário transformou uma crise séria em uma crise muito séria. Lacunza foi o homem que acabou com o dogmatismo econômico que Macri e seu chefe de gabinete, Marcos Peña, haviam defendido anteriormente, e manteve na gaveta o manual do liberalismo para adotar medidas muito semelhantes às usadas por Cristina Kirchner durante sua segundo mandato, quando a queda nos preços das matérias-primas esgotou a inércia da prosperidade desfrutada desde 2003.

Lacunza tinha um aperto dos controles de câmbio pronto, para impedir um colapso adicional do peso. O conselho do Banco Central se reuniu às 21 horas e estudou um pacote de medidas de emergência. Desde agosto, o Banco Central perdeu 22 bilhões de dólares em reservas e restam apenas 11 bilhões . A ex-presidenta Cristina Kirchner, nova vice-presidenta, exigiu que o governo cessante tenha cuidado nas próximas semanas.

Macri manteve o otimismo até o último momento. Ele tinha razões: estrelou uma campanha eletrizante e reduziu substancialmente a diferença de 17 pontos que Fernandez havia conquistado nas primárias. Macri precisava de uma participação muito alta, perto de 85%, que em 1983 deu a vitória ao radical Raúl Alfonsín e pôs fim à ditadura. Foi a primeira vez que o peronismo foi derrotado por eleições livres. Nesta ocasião, 82% do eleitorado votou. Os dados corresponderam às expectativas do macrismo: uma grande quantidade de votos foi essencial para diluir os 49,4% alcançados por Fernández nas primárias. Mas também era imperativo que eleitores adicionais se voltassem a favor de Macri, e isso não aconteceu. Embora tenha sido derrotado e perdido a presidência, Macri permaneceu politicamente de pé.

"Todos entendemos que é uma escolha histórica entre dois modelos de países", disse o presidente ao meio-dia. "Agora temos que permanecer calmos."

Alberto Fernández já estava confiante ao votar: "Temos que tomar isso como um dia histórico e começar o tempo que vem com tranquilidade, o nós contra eles acabou", disse. "Quando a eleição passar, conversaremos com mais calma", acrescentou.

Talvez "nós" e "eles", a fenda que divide a sociedade argentina em duas partes, a peronista e a anti-peronista, termine mais tarde. Por enquanto permanece. No colégio da Universidade Católica em que Fernández votou, dois pequenos grupos de manifestantes foram formados, um gritando “corrupto” para o candidato, outro cantando o “nós retornaremos” que os peronistas cantam desde que perderam o poder em 2015. Quando a recontagem começou, as redes sociais foram inundadas com mensagens que denunciavam, em resumo, uma fraude eleitoral do peronismo. A raiva dos perdedores prenunciava a turbulência. Como a euforia peronista: o público que lotava a sede da Frente de Todos assobiava e vaiava Macri quando seu discurso de aceitação da derrota foi transmitido.

A vice-presidente Cristina Kirchner, uma figura essencial para entender a polarização do país, votou em seu feudo patagônico de Río Gallegos e depois voou para Buenos Aires. O dia das eleições coincidiu com o décimo aniversário da morte de seu marido, Néstor Kirchner, presidente que, em 2003, conseguiu tirar a Argentina do pântano em que o país havia caído após o colapso econômico de 2001 e 2002.


El País: A desigualdade mobiliza a América Latina

As expectativas frustradas e a insatisfação com os políticos dinamitaram a paciência de milhões de pessoas e explicam os protestos que ocorrem de norte a sul da região

As expectativas frustradas dinamitaram a paciência de milhões de latino-americanos. Os protestos na região mais desigual do planeta se repetem num ritmo vertiginoso, do Haiti ao Chile; da América Central aos Andes. Buscar uma explicação simples para uma região como duas dezenas de países e mais de 600 milhões de habitantes seria ilusório, apesar do empenho de muitos em tentar construir uma espécie de primavera latino-americana —num continente onde, como se não bastasse, as estações brilham por sua ausência— ou armar um complô orquestrado pela Venezuela, que, apesar de mal poder se manter de pé, agora teria a capacidade de desestabilizar quase todo o continente. A frustração de milhões de desejos, o questionamento de modelos econômicos como o neoliberalismo e o desencanto com os políticos, sem importar a ideologia, são combustíveis comuns em todos os países para acender as labaredas que não parecem dispostas a se apagar no curto prazo.

América Latina é um caldeirão de protestos num mundo que se tornou uma “cartografia a ser decifrada”, nas palavras do jornalista e historiador Pablo Stefanoni. Em alguns casos, porque a qualidade de vida piora, como na Argentina e no Equador; também no Chile e, há anos, no Brasil, onde também foram frustradas as expectativas de uma classe média à qual se incorporavam cada dia mais pessoas. As mobilizações desses países, e as menos midiáticas dos estudantes da Colômbia e as do Haiti, não podem ser entendidas se não olharmos também para os coletes amarelos franceses, os protestos de Hong Kong e, mais recentemente, os do Líbano. Mas as explosões sociais fazem parte da paisagem política latino-americana há décadas e viveram seu auge no final dos anos noventa e início deste século. “Há toda uma cultura de mobilizações que funciona como um mecanismo de pressão para exigir a ampliação de direitos e uma redução das históricas injustiças sociais”, explica Luciana Cadahia, pesquisadora do Centro de Estudos Avançados Latino-Americanos nas Humanidades e Ciências Sociais (CALAS-Andes).

Os protestos atuais surgem num contexto de desaceleração e crise econômica. A América Latina saiu praticamente ilesa da crise global de 2008, mas agora é a região mais atingida. Segundo as previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI), organismo que, por outro lado, volta a estar na mira de quase todos os protestos, a região crescerá 0,2%, quase nada na prática. Em menos de um ano, a previsão caiu de 1,4% para 0,6% (há 90 dias). Ao mesmo tempo, espera-se que as economias asiáticas cresçam em média 5,9% e as africanas, 3,2%.

Embora cada país tenha suas características específicas, o fim do auge das matérias-primas (commodities) sobrevoa a incerteza econômica. “Em algumas partes, o que se esgota é o neoliberalismo; em outras, os projetos nacionais-populares têm um problema de fundo que a região não pode abordar, que é o modelo de desenvolvimento. Inclusive na guinada à esquerda, os avanços foram redistributivos, políticas sociais que democratizaram o consumo. Não houve mudanças profundas, nem econômicas nem institucionais”, afirma Stefanoni. A desigualdade de renda diminuiu desde 2000, mas hoje um em cada 10 latino-americanos (10,2%) vive na extrema pobreza. Em 2002, havia 57 milhões de pessoas em situação de carestia extrema na região. Quinze anos depois, a cifra subiu para 62 milhões. Em 2008 foram 63 milhões, segundo a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (Cepal). “Um dos denominadores comuns são as expectativas frustradas, a precariedade das pessoas que haviam recuperado algo e que agora veem como os seus desejos e sonhos se perdem. Isso exacerbou uma enorme fúria”, diz Arturo Valenzuela, subsecretário de Estado para América Latina durante a Administração de Barack Obama.

Os atuais protestos populares estão muito vinculados com o modelo econômico que, desde os anos noventa, tentam implementar uma e outra vez na região”, diz Cadahia, que, como outros analistas consultados, vê nos diferentes tipos de ajustes dos Governos um dos denominadores comuns dos protestos. “Os Estados têm o papel de proteger um modelo econômico que não gera fontes de trabalho nem necessita diminuir lacunas de desigualdade. De modo que deixam de investir em aspectos fundamentais como a educação e a tecnologia. As instituições se deterioram, as desigualdades crescem, e cada cidadão começa a sentir o mal-estar quando descobre como piora sua a vida cotidiana, o seu dia a dia.” Nesse sentido, a acadêmica e feminista cubana Ailynn Torres considera que as manifestações “arremetem contra a ordem da desigualdade, que os governos do ciclo progressista anterior não desativaram de forma efetiva, e da pobreza —que de fato diminuiu no ciclo anterior, mas que voltou a crescer progressivamente depois de 2008, e de forma muito acelerada após 2015”, afirma a pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).

A autoridade da classe política ficou em evidência nas últimas semanas, ainda que a demanda por novas lideranças venha se manifestando há meses, ou mesmo anos. A fonte de instabilidade é total, como ilustra Stefanoni. “No Chile, menos de 50% dos eleitores votaram na última eleição; na Bolívia, metade do país acredita que houve fraude no pleito; no Equador, o sucessor de [Rafael] Correa deu uma guinada significativa em suas alianças e discursos ideológicos; no Brasil, as pessoas votaram com um dos favoritos (Lula) preso e acusado de corrupção; no Peru, todos os presidentes acabaram na cadeia pelo caso Odebrecht, e um se suicidou".

Não se trata de interpretar, pois, o mal-estar no eixo esquerda/direita. O último Latinobarômetro já apontava nessa linha. Para 75% das pessoas, há uma percepção de que se governa para poucos e que os Governos não defendem os interesses da maioria. Segundo o estudo, apenas 5% consideram que existe democracia plena; 25% acham que há pequenos problemas; 45%, grandes problemas; e 12% acreditam que não se pode chamar de democracia o que se vê hoje em dia. Além disso, a média de quem considera democrática a América Latina é de 5,4 numa escala de 1 a 10.

O desprestígio dos governantes não significa necessariamente um desencanto com a política, pois as sociedades latino-americanas estão mais do que politizadas. Valenzuela destaca a necessidade de implementar uma série de reformas políticas que ainda não foram conseguidas. “Há presidentes que são minoritários e se acham majoritários, que não têm depois o apoio do Congresso. Tudo isso gera uma paralisia e uma crise de representação”, explica o ex-funcionário do Governo dos EUA.

Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, sente que “os números contam uma história e as elites econômicas e políticas estão contentes com esses números, mas a experiência das pessoas é outra”. Stuenkel cita como exemplo os protestos de 2013 no Brasil, muito similares em sua origem aos do Chile da semana passada. “O que vimos é uma consequência de uma sociedade muito desigual, não só do ponto de vista econômico. É preciso ver por onde se movem as elites, com quem se relacionam. Também é preciso lembrar que a elite intelectual —jornalistas, analistas, entre os quais me incluo— não antecipou isso. É uma prova de que a elite financeira, política e intelectual da América Latina não tem sido capaz de monitorar e entender o que acontece na sociedade”.

O exemplo mais paradigmático desse distanciamento —além da cegueira autocrata de Nicolás Maduro, que tende a negar a realidade há anos— talvez tenha sido dado nos últimos dias pelo presidente do Chile. Sebastián Piñera passou de uma situação em que celebrava o oásis no qual seu país (supostamente) estava para outra em que a panela de pressão explodia. Após dizer que estavam em guerra contra um inimigo todo-poderoso, ele saudou as manifestações que, justamente, exigem sua renúncia e a de todos os seus ministros. Ailynn Torres, em consonância com outros analistas e acadêmicos consultados, mostra-se cautelosa em relação ao que virá. “Os resultados são incertos e talvez não sejam muito mais claros quando a etapa aguda terminar. O que está em jogo vai muito além; os povos sabem disso, e os Governos também".