el país
El País: China e Bolsonaro transformam a carne em produto quase de luxo no Brasil
Exportação de carne bovina para o país asíático cresce ao mesmo tempo que a demanda dos brasileiros pelo produto neste fim de ano
A desenvoltura com que Silvio de Oliveira, de 48 anos, fala sobre as centenas de milhões de chineses que prosperaram nos últimos anos e a epidemia de peste suína que obrigou a sacrificar um terço do rebanho no país asiático surpreendem: estamos no Mercado Municipal de São Paulo e ele não é analista de relações internacionais. Oliveira é dono de dois imensos quiosques —Boi Feliz e Porco Feliz— com mais de 100 empregados e 30 anos de experiência no setor. Ele diz que o preço da carne nunca subiu tanto em tão pouco tempo (entende-se que desde a hiperinflação dos anos 80). “Nos últimos 40 dias, a carne aumentou 30%”, afirma. De repente, o brasileiro comum sofre as consequências de um coquetel que combina os efeitos da globalização e da própria política interna.
É um dos assuntos mais comentados no último mês; entrou no debate político, no noticiário especialista em preços André Braz, do Instituto de Economia da Fundação Getulio Vargas, que alerta que “ainda há espaço para novos aumentos”. Uma súbita e inesperada ameaça a essa instituição brasileira que é o churrasco dominical em família. Apesar dos avanços do veganismo no país, o Brasil é um dos países que consomem mais carne (77 quilos ao ano por habitante) e o segundo maior produtor de carne bovina, com mais de 10 milhões de toneladas em 2018, 16% do total mundial.
O açougueiro detalha que o quilo de contrafilé, o corte mais caro, está custando 45 reais. O acentuado aumento se deve a uma conjunção de fatores internos e externos que formaram uma tempestade perfeita que atinge com força o bolso do brasileiro às vésperas do Natal, mas entusiasmou os exportadores de carne.
“Por um lado, temos um aumento da demanda de carne bovina e suína nas festas [de Natal] e, por outro, há uma demanda muito grande da China, causada por restrições em outros mercados, que coincidiram com a desvalorização de 16% do real em novembro, tornando as exportações mais rentáveis”, explica Braz. A demanda é tal que os produtores brasileiros de carne não conseguem satisfazer simultaneamente o apetite de seus compatriotas e dos chineses. De janeiro a outubro, o gigante asiático importou 320.000 toneladas de carne bovina brasileira, o que impulsionou o aumento das exportações em 11% durante esse período.
O Uruguai passou por uma situação semelhante em agosto, quando o forte aumento das vendas de carne bovina para a China obrigou a importar carne de menor qualidade do Brasil, Paraguai e Argentina.
Os chineses lançaram mão do talão de cheques e ofereceram preços mais altos aos pecuaristas brasileiros para cobrir a demanda maior provocada por uma feroz peste suína que afetou todas as suas províncias e pelos fornecedores que perderam por conta da guerra comercial empreendida pelo presidente dos EUA, Donald Trump. Isso do lado externo.
As razões para o aumento da demanda interna são outras. Os brasileiros acabam de receber a primeira parcela do 13º salário, o que se junta ao fato de que o Governo Jair Bolsonaro autorizou os trabalhadores a sacar até 500 reais do FGTS a partir de setembro, em uma tentativa de revitalizar a economia. Está surtindo efeito, porque o PIB subiu 0,6% no terceiro trimestre, o que coloca o crescimento de janeiro a setembro em 1%.
O economista Braz prevê que, depois das festas de fim de ano, “a demanda se estabilizará”. O dono do Boi Feliz espera uma evolução semelhante, mas explica de outra maneira: “Ainda se vende porque é o fim do ano, embora o consumo tenha diminuído. Mas quando janeiro e fevereiro chegarem, a situação será ruim”. Entende-se que para ele e a clientela.
Darinka Zepeda, de 46 anos, está entre os prejudicados. Todos os dias ela vai ao Mercado Central para comprar 10 quilos de carne moída —às sextas-feiras são 20 quilos— para abastecer a hamburgueria que montou em 2017 com o marido. Cansados de ter chefes, quiseram empreender. “Eu compro uma mistura de angus, de muito boa qualidade, que me fazem aqui. No começo, o quilo custava 15,80 reais; depois subiu para 17,80 reais e nas últimas três semanas foi para 25,80 reais”, explica.
Os cortes de porco e de frango também aumentaram diante do crescimento da demanda por parte daqueles que não podem pagar pela carne bovina. O açougueiro Oliveira diz que a carne suína está 40% mais cara do que no mês passado, algo inédito. Ele diz que não repassou os aumentos aos clientes. “Se fizer isso, perco toda a clientela”, diz o dono do Boi Feliz. Zepeda argumenta da mesma forma.
El País: 'Se não resolvermos a pobreza, não haverá preocupação com o meio ambiente', diz Ricardo Salles
Em viagem para a Cúpula do Clima, na Espanha, ministro do Meio Ambiente espera conseguir mais financiamento para a conservação da Amazônia
O aumento da superfície queimada na Amazônia neste ano, um total de 9.700 quilômetros quadrados —30% a mais que em 2018, um recorde em 11 anos— motivou críticas em todo o mundo sobre a política ambiental do Governo Jair Bolsonaro. Seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que está em Madri para participar da COP25, a Cúpula do Clima, diz considerar que o desmatamento não terminará se não houver um desenvolvimento sustentável na região, em que vivem 20 milhões de brasileiros, que precisam de alternativas de sobrevivência. Para tanto pede investimentos e que a Europa libere a compra dos direitos de emissão de carbono.
Salles afirma também que vai respeitar as decisões dos povos indígenas —o centro da luta pela floresta—, mas não de grupos que decidam em nome deles, como ele diz que tem ocorrido.
Pergunta. O senhor acredita na mudança climática?
Resposta. Sim. Não há dúvida de que existe.
P. O desmatamento da Amazônia cresceu 30% no último ano. Como aconteceu algo assim?
R. O Brasil é um país que possui mais de 80% da floresta amazônica protegida e a consideramos um tesouro. O aumento do desmatamento começou em 2012. Temos que encontrar a origem, que está entre outras razões, na falta de desenvolvimento econômico sustentável para os mais de 20 milhões de brasileiros que vivem lá. Que tenham uma alternativa e que avaliem então a conservação da Amazônia. Quando o desmatamento diminuir, os pontos de incêndio se reduzirão.
P. Quem está por trás do desmatamento?
R. Por um lado, existe uma pressão de pequenos proprietários agropecuários, que cultivam pequenas parcelas e abrem novas áreas para produzir para eles mesmos. Em segundo lugar, existe a mineração, que continua sem ter regulamentação, e em terceiro, o mercado de madeira.
P. Qual o papel dos indígenas na proteção da Amazônia?
R. Os indígenas representam 1% da população e contam com 14% do território, quantidade de terra suficiente para eles e o Governo respeitará suas decisões. O que aconteceu até agora é que outros que não eram indígenas decidiram por eles.
P. Quem são esses outros?
R. Tem de tudo, representantes políticos, organizações civis, religiosas..., gente que se coloca à frente dos indígenas dizendo o que eles querem.
P. Todos os seus antecessores o acusam de desmantelar a política ambiental.
R. Isso não é verdade. As pessoas construíram uma narrativa que acusa o Governo de não respeitar o meio ambiente. Mas a realidade é que gastamos muitíssimo dinheiro em coisas que não deram resultado. Queremos que o resultado de cada recurso público ou privado investido seja medido e isso muda o comportamento.
P. A essas críticas se juntaram muitos Governos do mundo.
R. É importante dar as informações corretas. O aumento do desmatamento aconteceu nos últimos sete anos e isso não mudou no último ano. Além disso, é um terço dos 27.000 quilômetros quadrados que foram queimados entre 2004 e 2005. O que deve ser levado em conta é que as pessoas que vivem na Amazônia têm a maior quantidade de recursos naturais e, ao mesmo tempo, são as mais pobres de todo o país. Se não resolvermos a questão da pobreza, não haverá preocupação com a questão do meio ambiente. Esse é o maior inimigo do meio ambiente.
P. Quais medidas o seu Governo tomou para reduzir o desmatamento?
R. Em primeiro lugar, se propõe resolver a falta de segurança legal pela regularização dos certificados de propriedade. Sem isso é impossível responsabilizar as pessoas. Em segundo lugar, é importante desenvolver o plano de ocupação territorial da Amazônia para organizar a ocupação e o uso da terra. Também propomos o pagamento pelos serviços ambientais prestados pela floresta, não apenas para a população brasileira, mas para o mundo inteiro. Se se reconhece que a Amazônia tem um papel importante, é necessário um apoio financeiro considerável para apoiar a conservação. Por último, apostamos na bioeconomia, com investimentos dos mercados de cosméticos, de medicamentos ou da indústria de transformação de alimentos. Negócios que gerem oportunidades de emprego para que as pessoas que vivem aqui possam fazê-lo de maneira sustentável. Enquanto esses pontos são implementados, temos toda uma estratégia de controle, com fiscalização da polícia e das Forças Armadas. Mas só isso não é suficiente.
P. O que o senhor espera da COP?
R. É o momento de facilitar o comércio de carbono. A Europa fechou seu mercado e não permite a compra de créditos de carbono de outros países, inclusive da floresta amazônica; dessa maneira estão cortando as linhas de financiamento e os próprios europeus pagam um preço mais alto. Não é uma boa alternativa.
P. Existem dúvidas sobre a confiabilidade dos projetos que geram direitos de emissão no Brasil.
R. Eles são auditados por entidades públicas estrangeiras e têm total credibilidade.
P. O Brasil pede financiamento, mas o fundo da Amazônia (instrumento financiado pela Noruega e pela Alemanha para recompensar a redução do desmatamento) está paralisado e o Governo rejeitou o dinheiro oferecido pelo G7 no verão.
R. São assuntos diferentes. Uma coisa é o que foi prometido no Acordo de Paris, 100 bilhões de dólares para a luta contra a mudança climática, uma quantidade de dinheiro quase 100 vezes maior do que o que o fundo da Amazônia aporta em 10 anos. Também é um dinheiro é muito bem-vindo, mas é preciso respeitar a estratégia do Governo brasileiro, que é converter esses fundos em resultados concretos, que possam ser vistos.
P. Isso significa que o Governo quer aumentar o controle sobre esses investimentos?
R. Não necessariamente, mas saber como são implementados. Esses recursos serão investidos em ações, em estratégias. Até agora o Governo estava muito pouco envolvido com o destino desse dinheiro e, portanto, a estratégia pública tinha pouco a ver com esses recursos.
P. Na semana passada seu presidente acusou o ator Leonardo DiCaprio de “incendiar a Amazônia” com suas doações. Ele negou. O Governo tem alguma prova disso?
R. A investigação policial no Estado do Pará apontou que havia uma relação entre pessoas que lidam com organizações internacionais e a origem desses recursos. O que o presidente fez foi repetir o que já havia sido dito. Agora estamos aguardando o fim da investigação e que se tenha uma conclusão.
P. Quatro voluntários da Brigada de Incêndio de Alter do Chão foram presos na semana passada acusados de provocar incêndios. São os únicos presos?
R. Neste caso específico, ninguém mais está preso, mas outras investigações estão em andamento.
P. Existe um confronto com ONGs?
R. O que existe é a necessidade de usar os recursos com transparência, objetividade e resultados e todos devem se submeter a isso.
Juan Arias: A grande batalha, agora, é entre autoritarismo e democracia
Esquerda e direita já não nos servem. O mundo e seus medos estão revolucionando a linguagem da política
A linguística se tornou estreita para analisar as convulsões políticas que sacodem o mundo. Os velhos termos “esquerda” e “direita” não nos servem mais. Agora, o debate é entre autoritarismo e democracia. Essa é a grande batalha. Aqui no Brasil e em todo o planeta. Tanto não servem mais os velhos clichês da esquerda e da direita que criamos os termos “extrema esquerda” e “extrema direita”. Dizer que Bolsonaro, Putin ou Trump, por exemplo, são de direita significaria, na prática, fazer-lhes um elogio.
O mundo se dilacera hoje mais entre autoritarismo e democracia. Entre aqueles que lutam para cercear as liberdades individuais e coletivas e a democracia cada vez mais desprezada e ameaçada por nostalgias ditatoriais.
É de esquerda ou de direita o presidente Jair Bolsonaro, que em seus 28 anos como deputado federal quase sempre votou com o Partido dos Trabalhadores, o PT? É nacionalista ou ecumênico? E Lula é de esquerda? Era quando, em seu segundo mandato, quis impor o que chamou de "controle social" dos meios de comunicação com uma cartilha em que uma comissão de fora da mídia deveria atribuir pontos de boa ou má conduta aos jornalistas? É agora que, livre da prisão, busca de novo na sombra conexões com a direita e o centro enquanto o PT sangra?
Bolsonaro é de direita quando ataca o jornal Folha de S.Paulo, ao qual ameaça com sanções? Por que a direita tem que ser contra a liberdade de expressão? Não, Bolsonaro não é de direita ― se fosse, isso não seria um pecado. Ele é um autoritário com nostalgias de velhas ditaduras, paixão pela violência e a tortura e contrário a tudo o que cheire a direitos humanos e liberdades individuais.
Os termos direita e esquerda sempre foram ambíguos, até mesmo na religião. Na Bíblia se diz que Deus colocará "à sua direita" os justos e "à esquerda", os condenados. Deus é de direita ou de esquerda? Na linguagem popular, quando tudo dá errado dizemos que "levantamos com o pé esquerdo".
Não, os velhos rótulos do passado não nos servem mais. Hoje, a grande batalha mundial se dá entre o autoritarismo e o respeito à liberdade de expressão e à cultura. Entre o canibalismo político que se nutre de corrupções e privilégios vergonhosos, seja na direita ou na esquerda, e os valores da democracia cada vez mais ameaçada pelas velhas nostalgias nazifascistas.
O mundo hoje está dividido entre a fidelidade aos valores da liberdade, de todas as liberdades que nos permitam viver sem as correntes do autoritarismo que nos sufoca, e os valores que fizeram a humanidade viver em paz. A guerra e suas ditaduras são o autoritarismo em estado puro. É o ápice da tirania incensada no altar das falsas liberdades.
Que os termos direita e esquerda não nos servem mais para definir políticas concretas está cada vez mais evidente no mundo. Hoje, uma onda de autoritarismo, de negação dos direitos fundamentais, de obsessão contra as liberdades humanas que distinguem o ser racional, atravessa o planeta. Os analistas internacionais quebram a cabeça para tentar entender esse novo fenômeno que percorre o planeta e convulsiona até a velha e moderna Europa, sede dos esplendores do Renascimento.
Talvez seja preciso voltar a Freud, que analisou como poucos a necessidade que o ser humano, frágil e com medo de suas pulsões de morte, tem de segurança e de ordem. O pai da psicanálise nos explicou que a insegurança do ser humano e seus medos ancestrais fazem com que em tempos de turbulência e perda de identidade, como os que estamos vivendo, recorramos à figura paterna e autoritária, que nos oferece segurança.
Todas as grandes neuroses pessoais ou coletivas, as depressões em massa que sacodem todos os continentes, os medos da liberdade e dos diferentes derivam dessa insegurança inata do Homo sapiens, que se debate entre a nostalgia da liberdade perdida no paraíso e o medo da solidão radical, algo que projetamos diante de todos os diferentes, vistos como inimigos.
Mais que entre direita e esquerda, que já pouco significam, o mundo hoje se divide entre os anseios de liberdade, que são a essência da vida pessoal e coletiva, e os medos do autoritarismo castrador que nos corta as asas e nos impede de respirar o ar da liberdade.
Hoje o mundo está cada vez mais dividido de norte a sul e de leste a oeste entre os que, garroteados pelo medo, tentam erguer muros que nos separem, e os que, em nome da liberdade, que é o cerne da existência, preferem eliminar fronteiras.
Parece que estamos diante das velhas guerras ideológicas entre liberdade e escravidão, entre os que preferem viver em liberdade, embora ameaçados, do que em uma escravidão que nos oferece a miragem da segurança. Quem vencerá a batalha entre o autoritarismo que se impõe como um novo dogma e a democracia, que é o espelho dos anseios mais profundos do ser humano criado para cuidar do mundo e não para prostituí-lo?
El País: Brasil estagna no PISA e expõe efeitos da desigualdade de renda e gênero na educação
Avaliação da OCDE, PISA mostra que desde 2009 país não tem evolução significativa nos indicadores de leitura, matemática e ciência
Foi curto, como um voo de galinha, o impulso que o Brasil teve nos indicadores de educação entre alunos de 15 anos. Dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes 2018 (PISA, em inglês), divulgados nesta terça-feira, apontam que no início do século, entre os anos de 2003 e 2018, o país conseguiu melhorar a performance dos estudantes desta faixa etária em leitura, matemática e ciências. Porém, a prometida arrancada não veio. Desde 2009, os resultados médios dos alunos não apresentaram uma melhora significativa: o país praticamente estagnou. A tendência se mantém há quase uma década, apontam os dados da prova mais recente, realizada no ano passado.
Em 2018, o país conseguiu 404 pontos em ciências, praticamente um empate em relação aos 401 pontos registrados na edição anterior da prova, 2015. A média global dos 79 países ou regiões econômicas que participaram da avaliação em ciências foi de 489 pontos. Em leitura o Brasil conseguiu 413 pontos, um leve avanço sobre os 407 pontos de 2015, mas muito abaixo dos 487 da média geral da OCDE. Em matemática, o país que havia pedido 12 pontos na edição passada teve uma recuperação. Conseguiu chegar a 384 pontos (contra 377 do exame anterior), mas ainda abaixo de seu melhor resultado, 389 pontos, registrado na prova de 2012. A média da OCDE em matemática foi de 489 pontos.
Realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o exame realizado a cada três anos destaca que entre 2000 a 2012, o Brasil teve uma rápida expansão do ensino médio, adicionando mais de 500.000 estudantes à população total de jovens de 15 anos elegíveis para participar do exame. Esse crescimento é fruto de uma política de Estado que tornou obrigatória a educação básica para estudantes de 4 a 17 anos a partir de 2016. Anteriormente, só a matrícula de crianças no fundamental (6 a 14 anos) era prevista em lei. O mesmo movimento de expansão do ensino médio aconteceu em países como Indonésia, México, Turquia e Uruguai. A particularidade é que nesses países, o Brasil inclusive, o aumento no número de matrículas não sacrificou a educação oferecida, o que é esperado quando há uma grande entrada de estudantes no sistema.
A educação oferecida nesta etapa no Brasil, entretanto, manteve a mesma tendência de performance. Apenas 2% dos adolescentes tiveram os níveis mais altos de proficiência em pelo menos uma das disciplinas medidas pelo PISA 2018, a prova com resultados mais recentes. Enquanto isto, 43% dos alunos brasileiros obtiveram pontuação abaixo do nível mínimo em leitura, matemática e ciências. A média é maior que a obtida pelos países na lanterna da proficiência, ou seja, o grupo com os piores resultados —entre eles, 13% dos alunos estão abaixo do nível mínimo.
Nos níveis mais altos, os alunos podem compreender a leitura textos longos, lidar com conceitos abstratos e estabelecer distinções entre fato e opinião. Os estudantes também podem modelar situações complexas matematicamente, além de selecionar, comparar e avaliar estratégias para a solução de problemas. Além disso, são capazes de aplicar de forma criativa e autônoma seus conhecimentos sobre as ciências a uma ampla variedade de situações, incluindo as não familiares. Na média da OCDE, 16% dos estudantes atingem os níveis mais altos.
Cerca de 1% dos alunos brasileiros obteve notas altas em matemática. Paralelamente, seis países ou economias asiáticas tiveram a maior parcela de estudantes no topo desta disciplina: as quatro províncias chinesas Pequim, Xangai, Jiangsu e Zhejiang tiveram 44% de estudantes em destaque nesta disciplina, seguidas por Cingapura (37%), Hong Kong (29%), Macau (28%), Taipé Chinês (23%) e Coreia do Sul (21%).
Situação socioeconômica
A desigualdade socioeconômica é um grande divisor de águas nestes resultados. Em 2018, alunos brasileiros mais ricos superaram os pobres em leitura em 97 pontos —em 2009, a diferença de desempenho nesta área entre os dois estratos socioeconômicos foi de 84 pontos no Brasil. A boa notícia é que cerca de 10% dos estudantes desfavorecidos conseguiram pontuar entre os índices mais altos do desempenho em leitura, o que indica, segundo o relatório do PISA, que a desvantagem econômica não é necessariamente o que determina o destino dos estudantes.
O otimismo da OCDE, no entanto, não se sustenta nas próprias análises da organização quanto ao potencial real de futuro desses estudantes. Cerca de 1 em cada 10 alunos desfavorecidos de alto desempenho não tem expectativa de concluir o ensino superior. Esse indicador muda quando relacionado aos estudantes mais favorecidos: apenas 1 em cada 25 alunos não deve terminar a faculdade.
Diferença de gênero
As meninas mantêm a liderança nos indicadores de leitura, com uma diferença média de performance de 26 pontos em relação aos meninos. Por outro lado, os meninos superaram as meninas em matemática em 9 pontos. Já nas ciências, meninas e meninos têm desempenho semelhante no Brasil.
De acordo com o relatório, entre o estudantes de alto desempenho em matemática ou ciências, cerca de um em cada três meninos no Brasil espera trabalhar como engenheiro ou profissional de ciências aos 30 anos. Apenas uma em cada cinco meninas espera seguir essas carreiras.
Dentre as meninas de alto desempenho, cerca de duas em cada cinco esperam trabalhar em profissões relacionadas à saúde ―o mesmo percurso deve ser seguido por cerca de um em cada quatro meninos com desempenho semelhante. Apenas 4% dos meninos e quase nenhuma menina esperam trabalhar em profissões relacionadas à tecnologia das informação no Brasil.
El País: O que está em jogo na Cúpula do Clima, que busca cortes mais drásticos das emissões dos países
A partir desta segunda, Madri se transforma no centro da luta climática internacional com a COP25. Os países devem concluir as discussões do Acordo de Paris e se comprometer a reduzir a emissão de gases
Quando há um mês as ruas de Santiago (Chile) queimavam pelos protestos e o Governo do conservador Sebastián Piñera precisou desistir de receber a Cúpula do Clima anual, se pensou em cancelá-la —simplesmente, que não fosse feita neste ano. Porque essa cúpula não estava destinada a entrar para a história. O encontro é uma transição entre a adoção e o desenvolvimento do Acordo de Paris —que foi fechado após anos de negociações e fracassos na capital francesa em 2015— e a implantação do pacto a partir da próxima década, que tenta fazer com que o aquecimento global fique dentro de limites suportáveis.
Mas a Espanha se propôs a realizá-la em Madri nas datas previstas: entre 2 e 13 de dezembro. E os que estão envolvidos nessas negociações internacionais afirmam que uma das razões fundamentais para não cancelá-la era o contexto. A cúpula, que começa nesta segunda, ocorrerá em meio a uma imensa falta de liderança internacional na luta climática e em um péssimo momento para o multilateralismo. Donald Trump já iniciou o processo para retirar os EUA do Acordo de Paris, a China não dá sinais de que irá aumentar seus planos de corte de gases de efeito estufa, a Rússia não apresentou à ONU seu programa para reduzi-los, os ainda Vinte e Oito (os membros da UE sem o Brexit) ainda não conseguiram entrar em consenso sobre a meta de zero emissões para 2050... Por isso a chamada COP25 deveria ser realizada, para fugir da sensação de que a luta climática internacional é um “processo que implode”, como disse na semana passada a ministra para a Transição Ecológica da Espanha, Teresa Ribera.
Mas esse encontro também tem pela frente dois desafios concretos: um político e outro técnico. Por um lado, deve servir para que se dê uma “clara demonstração” por parte dos países em “ampliar a ambição” contra o aquecimento, disse no domingo António Guterres, secretário-geral da ONU. Por outro lado, lembrou, é preciso terminar de desenvolver o Acordo de Paris e fixar os critérios para colocar em andamento mercados de emissões, algo que até agora não foi possível fazer pela falta de acordo entre os países.
Esses são os pontos principais da COP25 que colocará Madri no centro da ação contra a emergência climática.
O que é uma COP? A sigla COP em inglês se refere à Conferência das Partes. Ou seja, a reunião —normalmente anual— dos quase 200 países que fazem parte da Convenção Base das Nações Unidas sobre a Mudança Climática. A convenção foi adotada em 1992 e estabelecia que os gases de efeito estufa emitidos pelo ser humano em sua atividade cotidiana estão contribuindo com a mudança climática. A convenção, além disso, fixou que os países participantes devem reduzir esses gases. Para avançar esse tratado são realizadas as COP, em que participam os delegados e ministros dos quase 200 países do mundo. As cúpulas ocorrem a cada ano em uma região do planeta e essa edição cabia à América Latina. O Brasil se ofereceu primeiro, mas a chegada de Jair Bolsonaro fez com que o país renunciasse. O Chile foi a alternativa, mas desistiu há um mês e a COP será realizada em Madri. Ainda que o Chile continue conservando a presidência da cúpula, o que significa comandar as negociações.
O que é o Acordo de Paris? A convenção base serviu primeiro para que fosse aprovado em 1997 o Protocolo de Kyoto. Depois, em 2015, foi adotado o Acordo de Paris, que substituirá Kyoto a partir da próxima década e que obriga todos os países a fazer cortes nas emissões de gases de efeito estufa. A soma de todas essas reduções deve ser suficiente para que se cumpra o principal objetivo do Acordo de Paris: que o aumento da temperatura média do planeta não supere os dois graus centígrados em relação aos níveis pré-industriais, e na medida do possível que não ultrapasse 1,5. Esse é o limite estabelecido pela ciência para evitar os efeitos mais catastróficos de um aquecimento que já não pode ser revertido.
O que diz a ciência? Os estudos científicos —liderados pelo IPCC, o grupo de especialistas que assessora as Nações Unidas— e os diferentes órgãos internacionais ligados à ONU alertam que os países não estão de maneira nenhuma encaminhados para cumprir as metas de Paris: devem multiplicar por cinco seus planos de corte para conseguir a meta de 1,5 grau e por três para os 2 graus. A concentração na atmosfera dos principais gases de efeito estufa só aumentou desde a assinatura da convenção base em 1992. As emissões só caíram de maneira clara em períodos de crise. “Estamos em um buraco profundo e continuamos cavando”, resumiu Guterres, que afirma que a humanidade está ficando sem tempo e “logo será muito tarde” para que o aquecimento fique dentro dessas margens seguras.
O que é a meta? Por trás dessa expressão se esconde a premissa de que os planos de corte das emissões dos países não são suficientes. “A lacuna é enorme”, disse no fim de semana a ministra chilena do Meio Ambiente, Carolina Schimdt, que ostenta a presidência da COP25. Por isso, o Acordo de Paris estabelecia revisões periódicas ao aumento dos planos de corte. A primeira é em 2020 e o objetivo político é que os Governos se comprometam a fazê-la durante essa cúpula. Esses planos são de aplicação imediata e fixam metas para 2030. Guterres destacou que espera que mais países também se comprometam durante a COP25 a atingir a grande meta a longo prazo: a neutralidade de emissões para 2050.
O que é o artigo 6? O Acordo de Paris precisava de uma regulamentação de desenvolvimento e, desde 2015, os negociadores dos 200 países vem trabalhando nele. Mas a negociação encalha no artigo 6 desde 2015. “Não quero conceber a possibilidade de que não ocorra acordo no artigo 6”, disse Guterres. Mas, na verdade, seu desenvolvimento está se complicando. Esse artigo faz referência às trocas de direitos e unidades de emissões de gases de efeito estufa entre países, e é o único de todo o acordo que faz referência ao setor privado, já que abre as portas para que as empresas possam adquiri-los.
No Protocolo de Kyoto já existia um sistema pelo qual um país que não conseguisse diminuir o que precisasse de seus gases poderia comprar de outro Estado direitos de emissões. Esse sistema deve continuar com Paris e um dos principais debates é como evitar a dupla contabilidade, ou seja, que um mesmo direito não seja levado aos balanços de redução de dois países ao mesmo tempo.
A outra perna que deve se desenvolver dentro desse artigo afeta os mercados de emissões aos que devem comparecer as empresas dos setores obrigados a fazer cortes. Por exemplo, a aviação: as companhias terão que comparecer para comprar esses direitos para compensar suas emissões. A Europa já possui um mercado desse tipo e a filosofia por trás é que quando é obrigado a pagar pelos gases emitidos, o setor privado avança à eliminação do gás carbônico. Mas a União Europeia demorou 15 anos para fazer com que seu mercado se tornasse eficaz e só recentemente conseguiu substituir as usinas a carvão, as mais poluidoras.
Jovens, cientistas e delegados negociadores
As cúpulas do clima não recebem somente delegados para negociar, além de mandatários –em Madri são esperados 50 para a inauguração de segunda-feira. Entre as 25.000 pessoas que participarão da COP25 também há outros atores como os representantes de vários órgãos científicos. As cúpulas servem para que através da apresentação de diferentes relatórios se radiografe a evolução da luta contra o aquecimento e seus efeitos. Além disso, as últimas COP ganharam a forte presença de outro ator: os jovens ativistas que estão liderando os protestos nas ruas. Em 6 de dezembro se espera uma grande manifestação em Madri liderada pela ativista Greta Thunberg. Os cientistas e jovens terão a presença de mais um ator: as empresas. Durante a cúpula de Madri se espera que um importante número de grandes companhias se comprometa a reduzir suas emissões e a lutar contra o aquecimento.
Eliane Brum: O AI-5 já se instala na Amazônia (e nas periferias urbanas)
Ações de autoritarismo explícito se multiplicam no país e aceleram a desproteção da floresta, de seus povos e de ambientalistas
O bolsonarismo é competente ao usar a estratégia de controlar o noticiário e manter a sociedade e a imprensa só na reprodução e na reação. Quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, evoca o AI-5, e antes dele o zerotrês Eduardo Bolsonaro (PSL), estão latindo num lugar enquanto a matilha já está mordendo em outro. É na Amazônia e nas periferias urbanas que o autoritarismo já se instalou. Como denominar um país em que a polícia do estado do Rio de Janeiro já matou até outubro de 2019 mais do que em qualquer ano das últimas duas décadas? Se fosse enfileirar as 1.546 vítimas da polícia haveria mais de 2 quilômetros de cadáveres. Esta violência que mata os negros e pobres e faz com que as crianças, também elas pobres e negras, temam o som dos helicópteros porque seis delas já tombaram por bala “perdida” somente neste ano no Rio está conectada com a violência que faz vítimas na floresta amazônica. Os amazônicos e os periféricos não se conhecem, mas têm o mesmo rosto de quem morre no Brasil: negros e indígenas. É contra estes povos, estes rostos, que a violência está recrudescendo. As Organizações Não Governamentais (ONGs), foco da ofensiva do bolsonarismo, estão sendo atacadas porque defendem estes povos, estes rostos.
Desde o início de novembro há sinais de que o projeto autoritário está aumentando de velocidade e de intensidade. O mês abriu com a morte de um dos guardiões da floresta, Paulo Paulino Guajajara. E está terminando com criminalização de uma das organizações mais respeitadas, premiadas e amadas da Amazônia, o Saúde e Alegria, que atua na bacia do Tapajós há décadas. Na terça-feira, 26 de novembro, a ONG teve seus documentos e computadores apreendidos pela polícia civil, em Santarém. No mesmo dia, quatro brigadistas voluntários da Brigada de Alter do Chão, criada para combater os focos de incêndio na floresta em parceria com o Corpo de Bombeiros, foram presos pela suspeita de que teriam ateado o fogo que queimou uma área equivalente a 1.600 campos de futebol em setembro, na região de Santarém. Ser preso, mesmo que a prisão se mostre abusiva, já cumpre o objetivo de quem quer desmoralizar os agentes que combatem a destruição da floresta. O estrago já está feito, especialmente sobre uma população assustada e desinformada.
Em Washington, Guedes evoca o AI-5, autoridades e sociedade reagem, redes sociais se enfogueiram. É preciso avisar que, na linha de frente, o AI-5 já está e os mais frágeis estão resistindo quase sozinhos. E perdendo. O principal projeto do bolsonarismo é a abertura da Amazônia. A disputa desigual está sendo travada na floresta e nas cidades que beiram a floresta. Quem vive e atua na Amazônia já entendeu que pode ser preso sem motivo porque o Estado é arbitrário e as provas são forjadas. É isso o que os acontecimentos em Santarém estão mostrando. AS ONGs são alvo porque, em um país precário como o Brasil, onde o Governo decidiu não cumprir a lei e as instituições fraquejam, são elas que estão fazendo uma barreira contra a destruição da floresta e dos corpos dos povos da floresta. Ambientalistas brancos começaram a ser presos. Os mortos continuam tendo o mesmo rosto: negros e indígenas.
Enquanto tenta mudar a Constituição para abrir as áreas protegidas da floresta amazônica, o bolsonarismo executa o projeto na prática ao desproteger as áreas protegidas, enfraquecendo os órgãos de fiscalização e fortalecendo os destruidores da floresta. Na Amazônia basta deixar de fazer o pouco que se fazia e avisar aos amigos que podem ficar à vontade porque não responderão pelo seus atos. É o que faz o bolsonarismo enquanto a PM de alguns estados está sendo preparada para virar uma milícia que toma suas próprias decisões.
O resultado é tanto a explosão do desmatamento, que aumentou 30% entre agosto de 2018 e julho de 2019, quanto a ameaça e/ou assassinato dos pequenos agricultores familiares e defensores da floresta: indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Quem vive na Amazônia percebe claramente que a ofensiva aumentou desde novembro. As ONGs estão entre os principais alvos a serem eliminados. Em várias regiões do Pará, quem está clamando pela “CPI das ONGs” são justamente notórios grileiros e madeireiros e seus representantes. Enrolam-se em bandeiras do Brasil e evocam o nacionalismo, mas o que querem é fincar um papel com o seu nome ― ou no nome de um de seus laranjas ― num pedaço da floresta amazônica roubada da União ou dos estados.
No Pará, estado que lidera o desmatamento no Brasil, vale a pena observar uma sequência de acontecimentos ocorridos no espaço de uma semana. De 17 a 19 de novembro, os movimentos sociais da região do Médio Xingu organizaram em Altamira um encontro chamado Amazônia Centro do Mundo. A cena da mesa de abertura do encontro, na Universidade Federal do Pará, é uma alegoria do que acontece no cotidiano da floresta. Um grupo de grileiros e fazendeiros se posicionou propositalmente no lado direito da plateia ― “sentamos à direita, como nos convém”. Há dias eles vinham sendo incitados por um homem que se apresenta como antropólogo e trabalha para a banda podre do agronegócio. Desde o início, o grupo gritava a cada vez que um dos convidados a compor a mesa falava, na tentativa de impedir que o evento se realizasse. Era uma provocação. Se alguém reagisse, o articulador manipularia os acontecimentos e diria que ele tinha sigo o agredido. Ele já usou esse truque em outros momentos na região amazônica. O maior alvo deste grupo era Raoni, o Kayapó que se tornou a principal liderança indígena do Brasil, com grande repercussão no exterior, indicado para o Nobel da Paz.
Os guerreiros Kayapó que acompanhavam Raoni entraram em sua bela formação ritual, como costumam fazer. Os Kayapó são orgulhosos e impressionantes em suas aparições públicas. Criaram uma barreira humana para permitir que os organizadores do encontro pudessem falar. E então foi possível ouvir as vozes dos intelectuais da floresta, dos intelectuais da academia, das lideranças dos movimentos sociais. Durante a maior parte da manhã, o pequeno grupo de fazendeiros e grileiros (há que se diferenciar uns dos outros) tentou impedir a voz dos povos da floresta e dos movimentos sociais. Sempre provocando, tentando abafar a voz dos convidados da mesa de abertura. Um pequeno mas revelador sinal de que limites estão sendo superados se revelou justamente no fato de que nem o bispo do Xingu, Dom João Muniz, conseguiu falar sem ser interrompido por provocações. Os organizadores já tinham registrado as tentativas de intimidação ao longo dos dias anteriores, feitas por redes sociais e por email. Presenças internacionais importantes, como a princesa da Bélgica Maria Esmeralda, ativista e embaixadora da WWF, deixaram de comparecer ao evento por temer a violência.
Submerso no noticiário produzido por Brasília, este que gravita em torno das declarações de Bolsonaro e de Lula, parte do Brasil não percebeu a grandeza do que ocorreu em Altamira neste encontro. “Amazônia Centro do Mundo” reuniu lideranças da floresta, pensadores e cientistas da academia, representantes de movimentos sociais e jovens ativistas climáticos do Brasil e da Europa, dos movimentos Engajamundo, Extinction Rebellion e Fridays For Future, este último inspirado pela adolescente sueca Greta Thunberg.
Uma parcela dos participantes vinha de outra jornada, com o mesmo nome, ocorrida uma semana antes na Terra do Meio, do qual fui uma das organizadoras. Do encontro no coração da floresta haviam participado o grande xamã yanomami, Davi Kopenawa, que hoje testemunha o território do seu povo ser mais uma vez tomado por garimpeiros, e a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy Riot, que ficou presa na Sibéria por quase dois anos depois de enfrentar o déspota Vladimir Putin. Estavam ali para se conhecerem e criarem uma aliança pela floresta. Era uma reunião de gente que não quer roubar terra pública para especular ou tirar minério. Só quer que a floresta fique em pé para que ela siga transpirando e salvando o planeta.
Em Altamira, o encontro foi organizado por dezenas de movimentos da cidade e da floresta. Depois de rachar na construção de Belo Monte, as organizações sociais se uniram novamente para lutar contra a destruição da Amazônia. Desta vez, mais preparados para identificar os truques daqueles que buscam desuni-los para poder consolidar seus projetos de destruição. Belo Monte e seu conjunto de violações foram uma pós-graduação completa sobre como agem os “gerenciadores de crise” para neutralizar a resistência, manipular as informações e infiltrar a discórdia. Este ainda é um aprendizado em curso, já que há sempre os que demoram mais a aprender. E há também os que nunca aprendem.
O encontro mostrou algo que parecia muito difícil, senão impossível, no Brasil atual: a organização de uma resistência ao autoritarismo em curso. Não apenas como uma reação aos ataques, mas como criação de futuro, como proposta de uma relação diferente com a floresta e com o próprio modo de viver para muito além da floresta. Movimentos sociais urbanos, agricultores familiares e cientistas ficaram lado a lado com indígenas, ribeirinhos e quilombolas, uma aliança que seria difícil no passado recente pela própria história de cada um destes povos. O espaço não poderia ser mais adequado, já que a universidade pública tem sido um dos principais alvos do bolsonarismo. A aliança entre os saberes da academia e da floresta foi consumada também na concretude do local escolhido.
Um dos momentos mais emocionantes aconteceu quando um agricultor da Volta Grande do Xingu, ecossistema que está sendo secado e destruído pela usina de Belo Monte e ameaçado também pela instalação da mineradora canadense Belo Sun, pediu, aos prantos, perdão aos indígenas por um dia ter ocupado terras que lhes pertenciam. Ao terminar seu discurso, um Kayapó colocou sua mão sobre a dele e, imediatamente, várias pessoas foram somando mãos. A cena tornou-se uma performance artística, não planejada, da aliança que ali estava sendo consumada.
Antes de os fazendeiros e grileiros se retirarem, vencidos em sua tentativa de criar tumulto e silenciar as vozes, ocorreu o momento mais tenso do encontro. Surgiu também ali uma liderança que a sociedade brasileira ― a que defende a vida, a democracia e a justiça ― precisa se organizar para amparar. Seu nome, para recordar e proteger: Juma Xipaya.
Estudante de medicina da Universidade Federal do Pará, em Altamira, Juma pertence a um povo que chegou a ser considerado extinto e precisou provar que tinha sobrevivido à tentativa de extermínio. Ela fez um discurso contundente contra os que tentavam impedir a realização do evento. Um dos notórios grileiros presentes se descontrolou e colocou o dedo no seu peito. Perto dele, duas missionárias que foram companheiras de Dorothy Stang, assassinada em 2005 por um grupo que ficou conhecido como “consórcio da morte”, rezavam. A jovem indígena não se intimidou:
“Meu nome é Juma Xipaya. Eu fico pensando o que vocês pensam quando muitas vezes se contrapõem aos nossos discursos, às nossas lutas. Parece que somos inimigos de vocês. Só quero lembrar vocês que, em momento algum, nós falamos que vocês são nossos inimigos ou que nós somos inimigos de vocês. Nós defendemos a vida, nós defendemos a floresta. E se vocês dizem que a Amazônia é do Brasil, por que vocês não estão lutando para defender a Amazônia?
Toda essa produção e esse desenvolvimento que vocês pensam são para os brasileiros ou é para o estrangeiro? Então que discurso é este que vocês pregam que a Amazônia é do Brasil, sendo que vocês não sabem a importância do que a Amazônia significa pra nós, vocês não sabem o valor da Amazônia? Vocês não são dignos para dizer isso. Sabem por quê? Vocês não sabem o que é perder um filho, vocês não sabem o que é ter as casas invadidas, vocês não sabem o que é ser expulso de terras. Respeite, respeite, respeite. Respeite a minha fala.
Vocês devem nos ouvir. Vocês invadem as nossas terras, vocês entregam o nosso minério, vocês acabam com a nossa vida, e não querem ouvir a nossa voz. Respeitem. Respeitem a Amazônia, respeitem os nosso povos que morrem todos os dias, que têm mulheres todos os dias violentadas, que têm indígenas com mãos decepadas por defenderem as suas terras. Nós defendemos o Brasil. Nós defendemos a Amazônia com nossa própria vida há séculos!
O dever de defender a Amazônia não é só porque nós, indígenas, moramos nas nossas terras. O mundo tem o dever, tem a obrigação de defender a Amazônia, porque é daqui que tiram todas as nossas riquezas e deixam somente as mazelas, as doenças, as tristezas, os conflitos.
Qual é o filho que luta para desmatar e para matar a sua mãe?
Desrespeito é vocês virem aqui gritar, interromper a nossa fala. Se estão aqui para dialogar, então respeitem cada um. Não agridam, não cometam violência, porque eu não estou aqui agredindo vocês. Eu estou defendendo nossos direitos, o direito de existência, o direito de indígenas. Nós também somos donos, até muito mais do que vocês. O Xingu, a Amazônia, todos os seres que vocês não conseguem ver nem respeitar, sabem por quê? Porque vocês não são ligados à terra, vocês não sabem como é a conexão com a mãe natureza. Porque qual é o filho que luta para desmatar e para matar a sua mãe?
Que filhos são vocês? Que brasileiros são vocês? Eu tenho dó. Não de vocês. Eu tenho dó das futuras gerações. Dos filhos e netos de vocês. Vocês não têm o direito de acabar com a nossa futura geração. A Amazônia e o Brasil não são só de vocês. São também nossos. No mínimo, vocês têm que ter respeito e aprender a conviver”.
Raoni pediria mais tarde a todos aqueles que defendem a Amazônia que ajudassem a proteger Juma Xipaya. O pedido precisa ser ouvido para muito além da floresta. Com um AI-5 não oficial já se instalando na região, a sociedade civil precisa se organizar para criar uma rede de proteção aos defensores da floresta e impedir o processo de criminalização das ONGs que protegem estes defensores ― seja cuidando do seu bem-estar, como faz o Saúde e Alegria há mais de 30 anos, seja ajudando a implementar a economia da floresta, aquela que produz renda sem desmatar, como faz o Instituto Socioambiental nas reservas extrativistas da Terra do Meio, seja combatendo diretamente o desmatamento, como fazem outras organizações. A disputa do futuro está sendo travada exatamente agora.
Apesar das ilusões que todo povo alimenta sobre as grandezas do seu país, o Brasil tem hoje importância no cenário global principalmente por causa da Amazônia. É a maior floresta tropical do mundo que empresta relevância estratégica ao Brasil. É abrigar 60% de um bioma estratégico para o controle do superaquecimento global que faz o Brasil um país necessário. O problema é que o bolsonarismo, assim como uma parcela da elite econômica e uma parcela dos militares, continua acreditando que a riqueza da Amazônia é o minério embaixo da terra e a quantidade de terra para especulação. Parte acredita nisso porque é burra e desinformada, parte porque só se interessa por lucros privados e imediatos, colocando seus interesses acima inclusive do futuro dos próprios filhos.
A riqueza da Amazônia é a sua imensa biodiversidade e a capacidade da floresta de, como um gigantesco coração, bombear água para a atmosfera. Sem essas duas riquezas articuladas, a espécie humana, além de muitas outras, estará condenada nos próximos anos e décadas a uma existência hostil num planeta superaquecido. Como lembra o cientista da Terra Antonio Nobre, a floresta inteira lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera a cada 24 horas. É o que se chama de rios voadores. Neste caso, um volume maior do que o Amazonas ao desaguar no Atlântico é lançado sobre nossas cabeças todos os dias. Cada árvore grande da floresta lança mil litros de água por dia na atmosfera, pela transpiração. É essa sinapse que cada um precisa completar na sua cabeça.
A qualquer hora que qualquer pessoa pegar o carro e entrar na Transamazônica, especialmente à noite, mas também de dia, vai encontrar caminhões cheios de toras na carroceria. Na região de Altamira, a maioria delas foi arrancada da terra indígena Cachoeira Seca, uma das mais invadidas e desmatadas do país desde a construção de Belo Monte. Foi isso o que os ativistas do Fridays For Future e do Extinction Rebellion viram ao viajar à Terra do Meio. Os caminhões de toras passavam ao lado do microônibus dos participantes em pleno dia. Para os habitantes locais, é uma cena corriqueira. Para os ativistas europeus, foi um choque.
O cálculo que precisa ser feito é que cada uma daquelas toras deixou de colocar mil litros diários de água na atmosfera quando era uma árvore viva, em pé na floresta. Com cada árvore que tomba morrem milhares de outros seres vivos que se conectavam à sua vida e produziam outras vidas no seu entorno. Sem compreender a dimensão do assassinato, é difícil compreender a destruição da floresta. O planeta é orgânico. Cada morte gera uma cadeia de acontecimentos. Alguns visíveis, a maioria invisíveis. Ao final do encontro em Altamira, um estudante comentaria, visivelmente abalado: “Quando falam na floresta os indígenas doem, né? Eles não estão falando de outra coisa, fora deles, mas da mesma coisa. Eles são floresta. Só entendi isso agora”.
Indígenas, quilombolas e ribeirinhos protegem a Amazônia com o próprio corpo, fazendo dele uma barreira entre a floresta e os que querem destruí-la. Diferentemente do que aconteceu no evento, onde depois de provocar confusão, fazendeiros e grileiros foram se retirando porque derrotados no seu objetivo de silenciar as vozes, lideranças da floresta morrem no massacre cotidiano no interior da floresta, lá onde não há câmeras para registrar os crimes. Também são ameaçados e/ou morrem agricultores familiares, como acontece hoje em Anapu, num número muito mais elevado do que no ano do assassinato de Dorothy Stang. A sociedade brasileira precisa decidir de que lado está e proteger quem a protege.
Apenas alguns dias depois do encontro Amazônia Centro do Mundo, em 25 de novembro, a Subcomissão Temporária da Usina de Belo Monte do Senado foi a Altamira para “fiscalizar” a hidrelétrica e realizar uma “reunião técnica”. A imprensa, porém, não pôde acompanhar a “vistoria” pela manhã. À tarde, na reunião aberta ao público, as ONGs viraram alvo. O senador Lucas Barreto (PSD) afirmou explicitamente que recomendaria a inclusão do Instituto Socioambiental, uma das organizações mais atuantes da região na defesa da floresta e de seus povos, na “CPI das ONGs”. O antropólogo da banda podre perguntou então se a CPI estava garantida para o próximo ano. E o senador confirmou. Comemorações.
A ofensiva para eliminar os “entraves” para converter a floresta de todos em fazenda de poucos está desenhada e já foi colocada em curso. A ONG Saúde e Alegria pode ser só a primeira vítima. Parte da imprensa tem colaborado com o método, ao divulgar prisões sem verificar o contexto nem fazer investigação própria. Quando alguém é preso no Brasil, o estigma gruda na pele, a condenação pública precede todo o ritual legal. Os agentes de segurança e da justiça abusam do poder para promover linchamentos. E é exatamente este o objetivo. A suspeição lançada sobre pessoas e organizações pode durar para sempre, como a história já mostrou.
É absolutamente necessário que a sociedade, autoridades e instituições repudiem as evocações do AI-5, como feitas por Paulo Guedes. Mas, junto com isso, é preciso também entender que o autoritarismo está se infiltrando sem papéis e sem documentos com uma velocidade inédita na Amazônia e nas periferias urbanas. Esta é a estratégia deste Governo barulhento que, desde que assumiu, controla o noticiário e leva a comoção pública para onde quer.
No dia 25, atingidos por Belo Monte compareceram ao Centro de Convenções de Altamira. Estas famílias moravam no Bairro Independente I e ainda não foram reassentadas. A maioria é ligada ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que tem importante atuação na região. Antes de os senadores entrarem para a reunião pública, acompanhados de ruralistas e da direção da Norte Energia, dois policiais militares ostensivamente armados atravessaram o salão para também fazer uma vistoria.
A cena que ali se desenrolou é incompatível com a democracia. Eles e suas armas paravam diante de cada pessoa e as obrigavam a mostrar seus cartazes de protesto. É assim que se institui o AI-5 sem nenhum documento, assinatura ou anúncio oficial.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum
El País: Bolsonaro intensifica perseguição à imprensa e ONGs enquanto desgasta base de apoio
Presidente censura a Folha de licitação pública, provoca até DiCaprio para sustentar acusações sem provas a ONGs, mas aprovação cai de 27,4% para cerca de 25% nos últimos dias, segundo Atlas Político
As bombas midiáticas do presidente Jair Bolsonaro como método para reforçar sua identidade de extrema direita, atacando princípios democráticos, estão virando rotina. Desta vez, ele conseguiu provocar até o ator mais bem pago de Hollywood, Leonardo DiCaprio, insinuando que ele investe em ONGs responsáveis por queimar a Amazônia, a ponto de o ator precisar responder à provocação. Para além dessa acusação contra DiCaprio — sem base na realidade —, Bolsonaro decidiu atentar contra a democracia ao censurar o jornal Folha de S.Paulo numa licitação de jornais com o Governo federal, seguindo os mesmos métodos de governantes de ultradireita pelo mundo. “Recomendo a todo o Brasil que não compre mais a Folha”, disse ele em uma Live para seus seguidores, dizendo que vai boicotar produtos de anunciantes do jornal.
A escalada autoritária faz barulho, mas também tira um pouco mais do seu apoio, como constatou o cientista político Andrei Roman, da Atlas Político. A rejeição ao presidente Bolsonaro subiu nos últimos dias, enquanto o número de apoiadores que consideram seu governo ótimo ou bom caiu de 27,5% no dia 12 de novembro, para algo em torno de 25% neste sábado, diz Roman, que monitora por tracking diariamente as redes para clientes do mercado financeiro. “A rejeição voltou a subir”, explica Roman, embora não precise quanto. Mas no último levantamento da Atlas, no dia 12 de novembro, estava em 42,1%.
A lista de descalabros arbitrários do Governo foi grande na semana que passou. O ataque às ONGs contou com o presidente celebrando nas redes sociais a suspeita prisão de quatro brigadistas voluntários do balneário Alter do Chão, no Estado do Pará, cuja detenção foi cercada de diversas incongruências. A ação foi questionada pelo próprio Ministério Público Federal, que vinha investigando o caso, e afirmou que nunca houve suspeita contra os quatro jovens detidos na terça-feira. Foi também contestada por diversas entidades de meio ambiente e direitos humanos, e repercutiu negativamente no exterior, às véspera da Conferência Mundial do Clima, que acontece em Madri na.
Os jovens voluntários, João Victor Pereira Romano, Daniel Gutierrez Govino, Marcelo Aron Cwerner e Gustavo Fernandes, saíram juntos da prisão na quinta. A cena da saída, filmada pelo coletivo Mídia Ninja, choca. Os quatro tiveram a cabeça raspada quando entraram na prisão, e estão visivelmente humilhados. Saindo de mãos dadas, encontram seus familiares. Um deles cai no choro nos ombros do pai e repete “Eu não fiz nada, pai”.
AI-5 do ministro da Economia
A aposta no tudo ou nada do autoritarismo bolsonarista passou também pela segunda menção ao decreto AI-5, de 1968, que inaugurou a linha dura da ditadura militar. Em coletiva com jornalistas, em Washington, o ministro da Economia, Paulo Guedes, não hesitou em falar sobre o AI-5 ao abordar os protestos na América Latina. “Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente? Levando o povo para a rua para quebrar tudo”, afirmou o ministro, que se transformou no fiador da candidatura Jair Bolsonaro quando ele ainda era uma miragem no horizonte das eleições de 2018. Guedes foi duramente criticado pelas forças que procuram fazer um contrapeso aos arroubos do presidente e dos integrantes do Governo. Mas já era a segunda tentativa de colocar o assunto em pauta. O deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, já havia feito a alusão à necessidade de um novo AI-5 caso o Brasil entrasse em convulsão social, como o Chile, ou a Bolívia pós eleição.
De discurso em discurso e da sequência de atos arbitrários como a censura à Folha na licitação, o governo Bolsonaro mostrou que trabalha para desgastar a democracia, tal qual previa Steven Levitski em seu livro Como as Democracias Morrem. Em agosto, ele já havia feito outra tentativa de sufocar jornais, principalmente o jornal de economia Valor, por se mostrar contrariado com a cobertura. Naquele mês, Bolsonaro assinou uma medida provisória para que os balanços das companhias abertas, hoje uma fonte de renda dos jornais, não precisassem mais ser publicados nos veículos de papel, podendo ser exibidos apenas no sites das empresas. Na ocasião, deixou claro que era uma retaliação aos ataques que sofria da imprensa. “Espero que o Valor sobreviva à medida assinada ontem”, ironizou Bolsonaro um dia depois de assinar a MP.
A MP foi suspensa por liminar do ministro do Supremo, Gilmar Mendes, e depois derrubada por uma comissão da Câmara dos Deputados. Mas, a artilharia para alterar as normas é contínua e perigosa por estar sob o manto democrático, como observou Pedro Abramovay, diretor da Open Society Foundation, no artigo “O sapo escaldado da democracia”, publicado pela revista Piauí. “O novo autoritarismo vai gradualmente subindo sua temperatura até que a democracia morra calmamente, sem gritos ou baionetas”, escreve Abramovay, que recorre à metáfora do sapo que entra no caldeirão de água fria, e vai esquentando pouco a pouco até ferver e ele morre sem se dar conta da armadilha.
Em editorial deste sábado intitulado Fantasia de Imperador, a Folha de S.Paulo faz uma dura crítica à combinação entre “leviandade e autoritarismo” de Bolsonaro diante da exclusão da Folha de uma licitação ― e da ameaça a seus 5.000 anunciantes —, lembrando que o Palácio do Planalto não é extensão de sua casa no Rio de Janeiro, “nem os seus vizinhos na praça dos Três Poderes são os daquele condomínio”, afirma. Bolsonaro mora num condomínio na Barra da Tijuca, e tem como vizinhos Ronnie Lessa, que está preso, e é um dos suspeitos do assassinato da vereadora Marielle Franco. Em entrevista à Folha, o diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Azevedo Marques Neto, explica que a censura ao jornal do processo de licitação pode configurar improbidade administrativa ou crime de responsabilidade. A aposta do presidente atiça sua base radical, mas mostra-se um jogo arriscado para sua própria sobrevivência política antes mesmo de completar um ano de Governo.
El País: Guedes admite freio em reformas ante temor de contágio de protestos na América Latina
Ministro enviou superpacote de "choque liberal" no Estado no começo do mês, mas agora diz ponderar reação da oposição. Governo enfrenta falta de base sólida no Congresso às vésperas de ano eleitoral
A onda de descontentamento e protestos de ruas que varre a América do Sul não chegou ao Brasil, mas o temor e o nervosismo diante de um possível contágio são evidentes. O ministro da Economia, o ultraliberal Paulo Guedes, admitiu na noite de segunda-feira nos EUA que o medo de um incêndio nas ruas é o motivo pelo qual o Governo freou seu ambicioso programa de reformas para abrir a economia e encolher o Estado. Guedes chegou a evocar o AI-5, o decreto da ditadura que deu início aos anos de chumbo e fechou o Congresso, porque “é irresponsável chamar alguém à rua agora pra dizer que tem que tomar o poder”, disse ele, referindo-se ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E advertiu: “Não se assustem se alguém pedir o AI-5”. A indignação foi imediata.
Guedes explicou com franqueza a situação em uma longa entrevista coletiva em Washington, depois de se reunir com membros da Administração Donald Trump. Admitiu que a inédita onda latino-americana de protestos é o motivo pelo qual o Governo do presidente Jair Bolsonaro estacionou a reforma tributária e a administrativa, que iria apresentar ao Congresso neste mês. “É verdade que se desacelerou. Quando começa todo mundo a ir pra rua sem motivo aparente, você fala: ‘Não, pare tudo para gente não dar nenhum pretexto. Vamos ver o que está acontecendo primeiro. Vamos entender o que está acontecendo”, disse, segundo o Estado de São Paulo.
O ministro plenipotenciário em assuntos econômicos, um antigo banqueiro de investimentos com pouca experiência política, e sua agenda reformista são os motivos pelos quais o empresariado deu, desde o início, seu apoio ao Governo Bolsonaro. Este Governo conseguiu levar adiante a impopular reforma da previdência, mas não quer arriscar. Guedes salientou que a economia brasileira começa a se recuperar, disse que Bolsonaro mantém sua aposta na agenda reformista e minimizou o fato de o dólar estar batendo recordes em relação ao real. O dólar abriu a 4,25 reais nesta terça-feira, novo recorde nominal para a modea americana.
Depois da aprovação da reforma da Previdência, o pacote econômico de Guedes tem pelo menos cinco propostas legislativas que exigem alteração da Constituição. Oficialmente, agora o ministro admite que foram adiadas pelo temor de que a esquerda mobilize sua militância com grandes manifestações nas ruas são a tributária e a administrativa —a primeira, projetada para simplificar o sistema de impostos, e a segunda, para reduzir os salários e a estabilidade dos novos funcionários públicos.
Mas o quadro é mais complexo. Para começar, a resistência de uma mudança tão profunda no serviço público não afetaria apenas as tradicionais forças de esquerda, mas os poderosos lobbies de servidores em Brasília. O mesmo vale para os planos do Governo, ao menos no papel, de retirar subsídios de alguns setores produtivos, que também não avançariam sem resistências do empresariado.
Como pano de fundo, está também desorganização da própria base de Bolsonaro no Congresso. O presidente abriu uma nova crise com sua bancada parlamentar ao abandonar seu partido para criar uma nova sigla, a Aliança pelo Brasil, enquanto a Câmara decidiu concentrar seus esforços no debate de uma proposta para reverter a decisão do Supremo Tribunal Federal que permitiu a libertação de Lula e de outros 5.000 presos.
Rodrigo Maia, o presidente da Câmara de fato tem coordenado a aprovação das pautas econômicas no Legislativo, não comprou o discurso de Guedes pelo preço de face: "Se a gente está preocupado com a insatisfação da sociedade, a gente não vai resolver o problema apenas criticando o discurso do ex-presidente Lula. Foi muito radical, propondo que alguém possa falar de AI-5", disse Maia. "A gente tem que dar soluções permanentes. Onde está o problema do Estado? Está na concentração de recursos de impostos e transferências na elite da sociedade brasileira. Do setor público e privado. Nós temos que ter coragem de enfrentar esse debate", defendeu.
Brasil de olho nos vizinhos
No Brasil, ninguém tira os olhos da agitada vizinhança. As manifestações que persistem no Chile −o modelo para as reformas de Guedes− e na Colômbia, os protestos já menos intensos na Bolívia, no Equador e no Peru, a vitória da esquerda peronista na Argentina e até mesmo a recontagem de votos no sempre estável Uruguai preocupam o Governo Bolsonaro e inspiram a oposição. O discurso duro de Lula após sair da prisão só acrescentou pressão a esse coquetel. A Venezuela e sua arraigada crise são um capítulo à parte.
Guedes investiu contra o duro discurso de Lula agora que recuperou a liberdade, embora o ex-presidente não possa disputar eleições. “É irresponsável chamar alguém à rua agora pra fazer quebradeira, pra dizer que tem que tomar o poder. Se você acredita na democracia, espera vencer e ser eleito”, disse o ministro, que se referiu em duas ocasiões ao decreto AI-5 (de dezembro de 1968, o quinto dos Atos Institucionais da ditadura), que, além de fechar todos os Legislativos, suspendeu os habeas corpus, entre outras medidas. Guedes tentou convencer depois a imprensa de que a entrevista era off-the-record, ou seja, não era para ser publicada, e enfatizou que “o Planalto jamais apoiaria um AI-5, isso é inconcebível”.
O Brasil teve sua grande revolução de descontentamento a partir de 2013. Começou como agora nos países vizinhos, de maneira inesperada. O aumento da passagem de ônibus foi a faísca que levou os brasileiros a tomar as ruas contra a corrupção e a classe política. A longo prazo, aquela explosão desaguaria numa polarização política sem precedentes. Veio na esteria a destituição da presidenta Dilma Rousseff e a própria Operação Lava Jato, com a prisão de boa parte dos líderes políticos e empresariais e, indiretamente, a eleição de um presidente como Bolsonaro.
El País: Senadores travam votações em protesto contra congelamento da PEC da segunda instância
Líderes do Congresso Nacional fazem acordo e desagradam parlamentares que queriam mudar regra que resultou na libertação do ex-presidente Lula
Um acordo entre lideranças do Congresso Nacional jogou para 2020 qualquer votação de projetos que tratem da prisão após condenação em segunda instância. A decisão provocou uma reação imediata de um grupo de parlamentares que tinha pressa na aprovação de ao menos um dos projetos em tramitação, eles obstruíram a sessão do Congresso desta terça-feira e prometem repetir o ato até quando conseguirem. “Parece que há um acordão entre a cúpula de todos os poderes que quer evitar esses projetos e fazer com que corruptos continuem soltos”, reclamou o senador Álvaro Dias (PODE-PR), um dos que lidera o grupo de congressistas contrários ao acordo anunciado nesta terça.
Até agora duas propostas estavam em discussão avançada. Um projeto de lei no Senado e uma proposta de emenda constitucional (PEC) na Câmara. Com o acordo firmado entre os presidentes das duas Casas, testemunhado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, e por boa parte das lideranças partidárias, uma comissão especial será criada por deputados e terá 40 sessões para concluir os seus trabalhos. Como faltam apenas 10 sessões para o fim do ano Legislativo, não haveria tempo hábil para levar a PEC à votação. Enquanto isso, no Senado, o projeto de lei ficar temporariamente paralisado, havendo apenas discussões, sem votações.
O entendimento atual, dado no início do mês por um julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, é o de que a prisão só poderá ocorrer após o trânsito em julgado, ou seja, o fim da análise de todos os recursos. Mobilizados pela soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), um grupo de parlamentares tentou acelerar as propostas, e, agora, acabaram derrotados. “A depender desse acordo de agora, a prisão em segunda instância irá para as calendas”, reclamou o senador Oriovisto Guimaraes (PODE-PR). No início do ano, esse parlamentar chegou a apresentar uma PEC tratando desse tema. Abriu mão dela porque havia um acordo para que fosse votado um projeto de lei que altera o Código de Processo Penal, e institui a prisão após um julgamento por um tribunal colegiado. E, como PLs têm trâmite mais rápido que PECs, concordou com esse combinado.
Álvaro Dias diz que protelar essas votações é uma tentativa de retirar a pressão popular que havia ocorrendo principalmente por meio das redes sociais. “Se esfriar agora, ninguém sabe como será no ano que vem”, reclamou. Além de obstruir os trabalhos, esses parlamentares tentarão reunir ao menos 41 assinaturas para quebrar o acordo de lideranças e mostrar que, apesar de vocalizado por quem é líder, a maioria do Senado é contrária ao combinado.
Ainda que não haja nenhuma votação prevista, no Senado a Comissão de Constituição e Justiça, Simone Tebet (MDB-MS), anunciou que fará uma audiência pública com o ministro Moro para discutir o tema. Ele é um dos apoiadores da matéria. “Entendemos como imprescindível a execução [da pena] após condenação em segunda instância”, declarou a jornalistas após participar da reunião com as lideranças partidárias.
Autor da PEC 199, que define segunda instância como trânsito em julgado e reduz as possibilidades de recursos judiciais, o deputado Alex Manente (CIDADANIA-SP) diz que não houve protelação das votações. “Ela segue o trâmite natural. Acabou de ser aprovada na CCJ da Câmara. Depois vai para uma comissão especial e acreditamos que ela seja aprovada no primeiro trimestre aqui”, afirmou. Nesse cálculo, a PEC estaria sendo votada pelos senadores até meados de 2020.
Líder do PT na Câmara, o deputado José Guimarães, diz que impedir as votações neste ano foi uma vitória da oposição. “Pra que essa pressa toda faltando 15 ou 20 dias para o recesso? Qualquer votação ocorreria sobre o calor da decisão do Supremo, adiar foi uma conquista”, ponderou. Tratando do mérito da questão, Guimarães afirmou que o seu partido é contrário à mudança do entendimento do STF, que resultou na libertação de dois ícones petistas, o ex-presidente Lula e o ex-ministro José Dirceu. “O trânsito em julgado e a presunção de inocência são cláusulas pétreas. Não discutimos o problema do Lula ou de quem quer que seja individualmente, nossa luta é a defesa intransigente da Constituição, fora disso é a barbárie”. Um dos debates é saber se, uma vez aprovadas as novas regras pelo Congresso, elas já valeriam para Lula, por exemplo, ou só seriam aplicadas em novos casos.
Diante das críticas ao acordo, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que era necessário chegar a um consenso entre as duas Casas e debater com intensidade o tema para que ele não gere mais insegurança jurídica. “Precisamos de [uma PEC] sem o objetivo de ser contra o cidadão A ou o cidadão B. Porque hoje é contra um e amanhã pode ser contra qualquer outro”.
El País: Paulo Guedes repete ameaça de AI-5 e reforça investida radical do Governo Bolsonaro
Num momento em que presidente insiste em aumentar excludente de ilicitude para proteger excessos de agentes militares, ministro da Economia traz de volta fantasma de decreto da ditadura
No dia 13 de dezembro de 1968, quando o Governo do marechal Costa e Silva baixou o decreto do Ato Institucional de número 5 (AI-5), o ministro da Fazenda Antonio Delfim Netto justificou seu voto favorável à medida da seguinte forma: "Eu creio que a revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas, principalmente, para criar as condições que permitissem uma modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico". Nesta segunda-feira, quase 51 anos depois daquela data, em que se institucionalizou a perseguição política e o terror cometido pelo Estado durante a ditadura militar (1964-1968), o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, seguiu linha similar: "Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente? Levando o povo para a rua para quebrar tudo. Isso é estúpido, é burro, não está à altura da nossa tradição democrática", disse ele durante entrevista coletiva em Washington.
Guedes falava sobre os massivos protestos de rua que mergulharam alguns países da América em uma verdadeira convulsão social. Sobretudo o Chile, onde a população vem colocando em xeque o modelo liberal implantado pela ditadura Pinochet (1973-1990) e que é a principal referência do ministro do Governo do ultradireitista Jair Bolsonaro. Sobre o risco de um possível contágio dessas manifestações em solo brasileiro, ele pedia que a oposição "fosse responsável" e praticasse democracia. "Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa?", questionou. Ao ser perguntado por jornalistas sobre a diminuição dos ritmos das reformas econômicas por medo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Guedes respondeu: "Aparentemente digo que não [Bolsonaro não está com medo do Lula]. Ele só pediu o excludente de ilicitude. Não está com medo nenhum, coloca um excludente de ilicitude. Vam'bora".
Guedes depois ponderou que um novo AI-5 "é inconcebível", mesmo "que a esquerda pegue as armas". Mas a menção ao decreto da ditadura em tom de ameaça vem num momento em que a extrema direita brasileira se arma de instrumentos jurídicos para justificar ações radicais contra eventuais manifestações no Brasil. Há menos de um mês, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, o filho zero três do presidente Jair Bolsonaro, afirmou em uma entrevista que, caso os protestos no Chile se repetissem no país, um novo AI-5 poderá ser editado. "Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito como ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada". Mesmo desmentido na ocasião por seu pai, a radicalização segue no horizonte do Governo. Na última quinta-feira, Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional um Projeto de Lei que busca isentar de punição os militares, policiais federais e agentes da Força Nacional (formada por policiais de vários Estados) que cometam excessos ou matem durante operações sob o decreto presidencial de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Nesta segunda deixou claro que sua intenção era também a de reprimir protestos. "Vai tocar fogo em ônibus, pode morrer inocente, vai incendiar bancos, vai invadir ministério, isso aí não é protesto. E se tiver GLO já sabe. Se o Congresso nos der o que a gente está pedindo, esse protesto vai ser simplesmente impedido de ser feito", disse o mandatário quando entrava no Palácio da Alvorada, segundo reportou a Folha.
O projeto enviado ao Congresso também assinado pelos ministros da Defesa, o general Fernando Azevedo Silva, e da Justiça, Sergio Moro. “Não adianta alguém estar muito bem de vida se está preocupado com medo de sair na rua com medo de ladrão de celular. Ladrão de celular tem que ir para o pau”, justificou Bolsonaro na quinta-feira. A ampliação do excludente de ilicitude durante operações no âmbito da GLO complementa o Pacote Anticrime enviado por Moro ao Congresso. Seu texto original previa que os agentes que aleguem "escusável medo, surpresa ou violenta emoção" após matar podem ficar sem nenhuma punição. Essa parte foi excluída do projeto pelos deputados na Comissão de Segurança Pública da Câmara logo após a morte da menina Ágatha Félix, mas Moro fez um apelo na última quinta-feira para que o trecho volte a ser incluído no plenário.
Um Governo com licença para matar
Se o Congresso Nacional aprova a última medida proposta por Bolsonaro, os agentes que estiverem agindo sob ordem direita do Governo Federal ficarão livres para matar. Algo que por si só já vem sendo ventilado como possível retorno de ferramentas autoritárias que estavam disponíveis após o decreto do AI-5. Para o historiador Carlos Fico, professor da UFRJ e especialista em ditadura militar brasileira, o clã Bolsonaro reedita a estratégia do passado de invocar uma suposta ameaça da esquerda. "O campo progressista está derrotado, sem iniciativa, parece que ainda surpreso com a vitória de Bolsonaro. Não vejo nenhuma ameaça de radicalização [por parte da esquerda]", opinou durante entrevista ao EL PAÍS no início do mês.
Em 1968, quando o AI-5 foi editado, tampouco havia uma ameaça real das forças progressistas. "Houve ações armadas, mas poucas. O AI-5 é do final de 68, um ano de manifestações pacíficas, sobretudo do movimento estudantil. Então, também naquela época, essas manifestações foram usadas como pretexto. E agora nem há nada, não está acontecendo coisa nenhuma", reforça o historiador. Contudo, Fico argumenta que, ao contrário dos militares linha-dura do regime, Bolsonaro não apresenta embasamento ideológico. Também não acredita que as Forças Armadas brasileiras estejam interessadas em um novo projeto autoritário de poder. "Hoje, o presidente Bolsonaro não tem nenhuma densidade ideológica, doutrinária, nada disso. Acho que ele chegou à presidência um pouco por acaso, em grande medida porque foi poupado de uma exposição pública mais intensiva graças ao episódio terrível da facada. Por conta disso, conseguiu não ir a nenhum debate", argumentou. "Ele vai sendo movido por essa intuição política, que certamente ele tem, muito pautada pelo autoritarismo, violência e despreparo", completou.
Por ora, as declarações de Guedes geraram uma enxurrada de críticas, inclusive daqueles que se identificam com o liberalismo econômico idealizado pelo ministro. "Não tem 'mas', nem 'porém', nem 'todavia', nem qualquer outra conjunção adversativa. Quando, e se, houver protestos a democracia está plenamente equipada para lidar com eles. Nada justifica autoritarismo; simples assim", afirmou o economista Alexandre Schwartsman no Twitter. "E a máscara do liberalismo caiu. Ninguém vai para governo Bolsonaro por acaso. As ruas estão tranquilas. A cabeça dele não", afirmou a também economista Elena Landau.
Já as declarações de Eduardo Bolsonaro fizeram com que a oposição apresentasse uma queixa-crime no Supremo e instaurasse um processo na Comissão de Ética da Câmara. "Não se pode punir ninguém por achar ou pensar alguma coisa, mas pelo o que ela faz. Outra coisa muita diferente é fazer propaganda de atos que atentem contra o Estado Democrático de Direito. Foi o que o deputado fez", explicou Fico. Para ele, Eduardo deve ser punido com a cassação de seu mandato e os ministros do Supremo podem considerar que ele cometeu um crime. "Não se trata de uma simples opinião, mas um crime, que inclusive é previsto na lei de Segurança Nacional que ainda vigora no Brasil desde a época da ditadura. Ela diz claramente que é proibido fazer propaganda de meios capazes de atentar contra o Estado de Direito, as instituições...", explicou.
Fico ainda opina que, como agravante, as declarações de Eduardo Bolsonaro, o deputado federal mais votado do país, expressam também o pensamento e as vontades do presidente. E que uma punição seria uma oportunidade de as instituições brasileiras de fato se mostrarem como contrapeso às vontades presidenciais. "Se continuarem assim, vai se tornar uma atitude de leniência em relação a essas declarações todas, que agora se desbordaram do simples ponto de vista, da simples opinião, para uma situação claramente criminosa", argumenta. "É um teste importante, porque seria uma forma de afirmação. Mesmo que venha em forma de uma punição branda, uma simples advertência, já seria saudável para o momento atual da política brasileira", completa.
Aliança pelo Brasil, o novo partido da ultradireita
A radicalização promovida por Bolsonaro e membros mais próximos de seu Governo vem na esteira da criação de seu novo partido, o Aliança pelo Brasil, anunciado oficialmente na última quinta-feira. O presidente vem buscando agregar os aliados mais radicais do bolsonarismo e imprimir sua ideologia extremista numa sigla inteiramente controlada por ele — que presidirá a nova legenda — e seu filho, o senador Flávio Bolsonaro — que será o vice. Assinada sua desfiliação do PSL, legenda à qual se uniu para disputar as eleições de 2018 e que está sendo investigada por promover candidaturas laranjas, o presidente busca seguir os passos de outros líderes da extrema direita no mundo, como a francesa Marine Le Pen e o premier húngaro Víktor Orbán. Em comum, as lideranças ultraconservadoras controlam com mão de ferro partidos feitos sob medida para eles. Não pode haver fissuras em um projeto autoritário.
A ideologia de extrema direita do Aliança pelo Brasil começa por sua logomarca e seu número. Na semana passada, Bolsonaro ganhou do artesão Rodrigo Camacho uma placa em que projéteis de vários calibres, entre eles de fuzis, compunham o nome da legenda. Momentos depois do ato de lançamento, que aconteceu em Brasília, o presidente anunciou por meio de uma live no Facebook que o número da sigla na urna será o 38. Enquanto seus partidários celebram a coincidência com o revólver de calibre 38, Bolsonaro garantiu que se devia ao fato de que ele é o 38º presidente da República. Ainda assim, a defesa do armamentismo é uma de suas prioridades: "O partido se compromete a lutar incansavelmente até que todos os brasileiros possam ter plenamente garantido o seu direito inalienável de possuir e portar armas para a sua defesa e dos seus", disse a advogada Karina Kufa, ao ler o programa do novo partido durante o ato de lançamento, na última quinta. Ainda é precisa colher quase 500.000 assinaturas em ao menos nove unidades federativas para ter sua criação chancelada pelo Tribunal Superior Eleitoral.
As pessoas mais próximas ao presidente, e que devem migrar do PSL para o Aliança pelo Brasil, vêm demonstrando, semana após semana, fidelidade ao seu estilo. Na semana em que foi comemorado, no dia 20, o Dia da Consciência Negra, os deputados federais Daniel Silveira — o mesmo rasgou a placa de Marielle Franco durante ato de campanha no ano passado — e coronel Tadeu se voltaram contra uma exposição na Câmara dos Deputados sobre o data. Após uma placa contra o genocídio da população negra ter sido quebrada por Tadeu, Silveira, em uma fala claramente racista, afirmou que negros morrem mais porque são maioria portando armas e cometendo crimes. "Não venha atribuir à Polícia Militar do Rio de Janeiro as mortes porque um negrozinho bandidinho tem que ser perdoado", afirmou.
Em claro contraponto, o presidente da Casa, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), condenou a atitude dos parlamentares bolsonaristas e ordenou que a exposição fosse restabelecida. Nessa mesma linha atuou prontamente o deputado estadual de São Paulo Cauê Macris (PSDB), que proibiu que também na última semana que ocorresse na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo uma homenagem ao ditador Augusto Pinochet, promovida pelo deputado Frederico D'Ávila (PSL).
O historiador Carlos Fico acredita que o grau de virulência e radicalismo promovidos pelo clã Bolsonaro podem ser uma estratégia em decorrência de algum receio ou medo. "Provavelmente dessas investigações que os associam a milicianos ou a corrupção de verbas obtidas como parlamentares. Flávio Bolsonaro está envolvido com acusações de corrupção, e agora houve essa coisa nebulosa do Caso Marielle Franco. Então, é um momento crítico para a família Bolsonaro e para o presidente", explica Fico, que também cita alguns fracassos, como a estratégia falida de elevar Eduardo Bolsonaro ao posto de embaixador brasileiro nos Estados Unidos. "É tudo muito confuso, de modo que o pior quadro que a gente pode ter é de políticos autoritários acuados e com medo. Eles reagem dessa maneira autoritária e violenta. Mas não é surpreendente, vai muito de acordo com o próprio pensamento de muitos anos".
El País: 'Onde está o amigo de Bolsonaro, o Queiroz?', ironiza Raoni
Em Altamira, no Pará, um dos maiores líderes indígenas do mundo responde às críticas do presidente com cobrança e faz apelo: "É a floresta que segura o mundo. Se acabarem com tudo, não é só índio que vai sofrer"
O cacique kayapó Raoni Metuktire só fala em paz. Em Altamira, onde participa do encontro Amazônia Centro do Mundo —que reúne povos da floresta (indígenas, quilombolas e ribeirinhos), cientistas e ativistas—, um dos maiores líderes indígenas do mundo repete a mensagem que espalha há mais de cinco décadas: "Minha luta é para proteger a floresta, para que todos possamos viver em paz". Não à toa, em setembro, Raoni entrou na lista de indicados para concorrer ao Nobel da Paz e outras lideranças indígenas de todo o país iniciaram a campanha para que ele levasse o prêmio (que acabou indo para Abiy Ahmed, primeiro-ministro da Etiópia). O cacique caiapó, no entanto, ficou alheio ao burburinho. "Esse é só o meu trabalho, né? Eu nunca pedi prêmio algum, mas, se eu ganhasse, usaria o reconhecimento para continuar ajudando o povo indígena e a preservação da floresta", diz ao EL PAÍS, sentado em um banquinho de madeira às margens do rio Xingu.
Apesar de falar português, há anos ele decidiu comunicar-se apenas em caiapó. Quem traduz a entrevista é Megaron Txukurramãe, seu sobrinho e, há anos, acompanhante nas viagens pelo mundo. É com ele, e com o segurança que o segue a todas as partes, que Raoni chega para o encontro, no meio da floresta. Antes de sentar-se para a conversa com a reportagem, ele, vestido com calça e camiseta azul marinho, um cocar de penas amarelas, diversos colares e o botoque no lábio inferior que lhe é tão característico, para durante alguns minutos para observar as árvores ao redor. "Como é bonito isso aqui!", diz, quase com um suspiro.
O cacique senta-se muito ereto no banco sem encosto para as costas e gesticula apenas com a mão esquerda. Se agita e faz movimentos com os dois braços, apontando repetidamente o indicador, de modo acusatório, quando faz menção ao presidente Jair Bolsonaro. Raoni, de aproximadamente 89 anos —não se sabe o ano exato de seu nascimento—, que havia passado os últimos anos afastado da vida pública, depois de tornar-se conhecido internacionalmente desde os anos 1980 pela defesa dos povos indígenas e pela luta contra construção da hidrelétrica de Belo Monte, conta que foi por causa de Bolsonaro que decidiu voltar a viajar e reunir-se com líderes de todo o mundo. "Nunca deixei de me preocupar pelos indígenas e pelo progresso dos nossos povos, com o que está acontecendo com a floresta. Mas, este ano, com a mudança de Governo, que ameaça nossa existência, pensei em voltar e continuar minha luta".
Em maio, Raoni viajou pela Europa em busca de apoio para a defesa da Amazônia. Esteve com o Papa Francisco e visitou o presidente francês, Emmanuel Macron. Isso rendeu-lhe um ataque de Bolsonaro em seu discurso de abertura da Assembleia-Geral da ONU, em setembro. “A visão de um líder indígena não representa a de todos os índios brasileiros. Muitas vezes alguns desses líderes, como o cacique Raoni, são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia”, disse o presidente brasileiro.
Em agosto, Raoni lamentou publicamente que Bolsonaro não quisesse encontrar-se publicamente com ele. Hoje, diz que não tem interesse em sentar-se com o presidente. "Eu conversaria com algum outro representante do Governo, alguém que substitua ele. Mas com Bolsonaro não quero falar, não". Nesta segunda-feira, Raoni foi hostilizado por um pequeno grupo de representantes de entidades ruralistas durante a abertura da jornada da Amazônia Centro do Mundo na Universidade Federal do Pará (UFPA) de Altamira, que fizeram eco das palavras de Bolsonaro sobre as ONGs serem responsáveis por crimes ambientais na Amazônia. Apesar do incidente, quando retomou a fala, o líder indígena voltou a pedir paz.
O cacique solta uma sonora gargalhada quando perguntado se seu amigo Sting —ex-líder da banda The Police, com quem Raoni saiu em turnê internacional nos anos 1990 para denunciar a destruição da floresta e o descaso do Governo brasileiro com a população indígena— lhe telefonou para demonstrar apoio ante as críticas do presidente. "Todas as pessoas que eu conheço, Sting, Nicolas, Hulot [ambientalista francês], o presidente da França, o Papa, todos me apoiaram, todos me falaram que Bolsonaro não é bom, porque ele está me atacando. Todos me disseram: 'Estamos com você'. Mas sou eu que pergunto onde está o amigo dele. Cadê o amigo de Bolsonaro? Cadê o Queiroz?", pergunta, referindo-se a Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar do senador Flavio Bolsonaro, filho do presidente. Queiroz é acusado de ter movimentado mais de um milhão de reais de forma irregular entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, período em que trabalhou como motorista e segurança do político. O ex-funcionário da Assembleia do Rio é investigado por lavagem de dinheiro e suspeito de cobrar uma fatia do salário de outros servidores, num caso paralisado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal que volta ao debate nesta quarta.
Mudanças climáticas e desmatamento
No dia em que o Governo divulgou que a Amazônia perdeu 9.700 quilômetros quadrados em um ano, o que representa o maior desmatamento desde 2008, Raoni lembrou que vem alertando há décadas sobre o problema, provocado principalmente pelas mineradoras, fazendeiros, madeireiros e grileiros na região. "Fico preocupado com o que está acontecendo hoje, as pessoas estão desmatando cada vez mais para fazer roças e plantar. E estão fazendo isso de uma maneira muito séria, com fogo. Acho que esse povo já tem seus pedaços de terra para empreender, deveriam continuar usando o que já têm, sem derrubar mais floresta".
O cacique também falou sobre as mudanças climáticas, um dos principais temas do encontro Amazônia Centro do Mundo. "Minha preocupação não é só com os indígenas, mas com todo o mundo. Porque se eles desmatarem toda a floresta, o tempo vai mudar, o sol vai ficar muito quente, os ventos vão ficar muito fortes. Eu me preocupo com todos, porque é a floresta que segura o mundo. Se acabarem com tudo, não é só índio que vai sofrer. Minha preocupação é com o futuro das crianças e jovens que vão crescer neste planeta", lamenta.
Raoni celebrou o encontro inter-geracional e de vários povos e etnias para debater soluções para a proteção do meio ambiente e dos povos da floresta. "Gostei muito de estar com eles, pude passar minha mensagem. Espero que essa união continue daqui para a frente, que possamos formar uma aliança para proteger a Amazônia", diz, fazendo com as mãos um movimento que indica união, junção de povos. Ele mencionou os jovens ativistas pelo clima, entre eles as belgas Anuna de Wever e Adélaïde Charlier, que navegaram durante seis semanas em um barco a vela para vir ao Brasil.
A essas jovens, deu um conselho sobre a melhor forma de lutar pela preservação da floresta e da vida: "Na minha vida, fiz muito discurso e falei com muito chefe político do mundo todo. É lá fora que temos que controlar o problema. Porque é o povo de lá que vem com dinheiro para investir aqui, para construir barragens, coisas grandes", diz e acrescenta: "Agora é a vez de vocês falarem com eles. E não é só pedir dinheiro. Dinheiro é bom para fiscalizar nossas áreas e não deixar madeireiros e garimpeiros entrarem, mas não é tudo. Tem que falar com os políticos".
À beira dos 90 anos —ou quiçá com mais que isso— Raoni diz que ainda tem força para lutar, apesar de dividir a responsabilidade para a juventude. "Eu vim para cá falar e para ser ouvido. É isso que vou fazer", afirma.
Eliane Brum: Amazônia Centro do Mundo
Encontro histórico reúne, neste momento, líderes da floresta, ativistas climáticos internacionais, cientistas do clima e da Terra e alguns dos melhores pensadores do Brasil
Neste momento, na Terra do Meio, coração da maior floresta tropical do planeta, uma formação humana inédita está reunida para criar uma aliança pela Amazônia. É um encontro de diferentes em torno de uma ideia comum: barrar a destruição da floresta e dos povos da floresta, hoje devorada por predadores de toda ordem. Entre eles, as grandes corporações de mineração e o agronegócio insustentável. É também um encontro para salvar a nós mesmos e as outras espécies, estas que condenamos ao nos tornarmos uma força de destruição. Nesta luta, devemos ser liderados pelos povos da floresta – os indígenas, beiradeiros e quilombolas que mantêm a Amazônia ainda viva e em pé. Este é um encontro de descolonização. Por isso, não um encontro na Europa nem um encontro nas capitais do Sudeste do Brasil. Deslocar o que é centro e o que é periferia é imperativo para criar futuro. Na época em que nossa espécie vive a emergência climática, o maior desafio de nossa trajetória, a Amazônia é o centro do mundo. É em torno dela que nós, os que queremos viver e fazer viver, precisamos atravessar muros e superar barreiras para criar um comum global.
Em busca de soluções para barrar o desmatamento e o extermínio da biodiversidade, Davi Kopenawa Yanomami, Socorro de Barcarena, Anita Juruna, Isis Tatiane da Silva, Bedjai Txucarramãe, Raimunda Gomes, Mitã Xipaya, Chico Caititu, Mukuka Xikrin, entre outras lideranças indígenas, quilombolas e beiradeiras hoje estão sentados em círculo conversando com as jovens lideranças do movimento Fridays For Future Anuna De Wever e Adélaïde Charlier, da Bélgica, e Elijah Mackenzie, do Reino Unido, com os ativistas do movimento Extinction Rebellion Robin Ellis-Cockcroft, Alejandra Piazzolla e Tiana Jacout e com a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy Riot. Nesta roda pela vida da Amazônia estão também alguns dos mais inspiradores cientistas e pensadores do Brasil: o cientista da Terra Antonio Nobre, o arqueólogo Eduardo Neves, as antropólogas Manuela Carneiro da Cunha e Tânia Stolze, o engenheiro florestal Tasso Azevedo e o cientista social Maurício Torres.
Todas estas pessoas deixaram suas casas e seus países convidadas por mim, pelo Instituto Ibirapitanga, pelo Instituto Socioambiental e pela Associação dos Moradores da Reserva Extrativista Rio Iriri. Algumas viajaram semanas num barco à vela, para conhecer de forma profunda, com seu corpo no corpo do território, a floresta e os povos da floresta. É instinto de sobrevivência o que as move, mas é também amor. É movimento de vida numa geopolítica que impõe a morte da maioria para o benefício e os lucros da minoria que controla o planeta. É uma pequena grande COP da Floresta criada a partir das bases. Aqui, não há cúpula.
Ao final desta travessia, parte deste grupo se somará ao grande evento chamado Amazônia Centro do Mundo, que começa às 17 horas deste domingo, 17 de novembro, em Altamira. Os movimentos sociais do Xingu e as organizações da floresta, além da Universidade Federal do Pará – campus Altamira, estão conjurando os brasis e os brasileiros a deslocarem seu corpo para o verdadeiro centro do país e do planeta para criar uma aliança pela Amazônia. Estes, que agora estão na floresta, levarão suas vozes para que sejam somadas a destas outras vozes. Neste centro, nos conjugamos no plural e nos realizamos no coletivo.
Em Altamira, o grupo da floresta encontrará lideranças históricas, como Antonia Melo, do movimento Xingu Vivo, e Antonia Pereira, da Fundação Viver Produzir e Preservar. Também Jackson Dias, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), religiosos como os bispos Dom Erwin Kräutler e Dom João Muniz e a sacerdotisa de umbanda Mãe Juci D’Óyá. Também artistas do Xingu e de outras regiões do Brasil. Algumas das vozes mais representativas da Amazônia atenderam ao chamado para virar uma voz só em defesa da floresta e de seus povos. Altamira, epicentro da destruição da Amazônia, será epicentro de uma aliança pela vida. Buscamos a paz para todos, humanos e não humanos – e não apenas para alguns.
Lideranças de grande expressão estão trazendo seu conhecimento para encontrar soluções para manter a floresta e seus povos vivos: entre elas, Raoni, indicado para o Nobel da Paz, Maria Leusa Munduruku, representante de um dos povos indígenas que mais lutam pela integridade da floresta e da bacia do Tapajós, Michael Heckenberger, um dos mais renomados arqueólogos do planeta.
No encontro Amazônia Centro do Mundo haverá população da cidade e da floresta. E também os produtores rurais que colocam alimento na mesa da população, aqueles que respeitam os povos tradicionais e atuam preservando a Amazônia, porque sabem que dela depende o seu sustento. Sabemos que há fazendeiros que destroem a floresta, mas também sabemos que há agricultores que a respeitam e têm mudado suas práticas para responder aos desafios do colapso climático que atingirá a todos, produtores que respeitam a lei e a democracia e que também querem viver em paz. Pessoas que perceberam que precisam não apenas parar de desmatar, mas reflorestar a floresta.
O fim do mundo não é um fim. É um meio. É o que os povos indígenas nos mostram em sua resistência de mais de 500 anos à força de destruição promovida pelos não indígenas. À tentativa de extermínio completo, seja pela bala, seja pela assimilação. Hoje, meio milênio depois da barbárie produzida pelos europeus, as populações indígenas não apenas não se deixaram engolir como aumentam. E erguem, mais uma vez, suas vozes para denunciar que os brancos quebraram todos os limites e constroem rapidamente um apocalipse que, desta vez, atinge também os colonizadores: a maior floresta tropical do mundo está perto de alcançar o ponto de não retorno. Dizem isso muito antes do que qualquer cientista do clima. Alguns de seus ancestrais plantaram essa floresta. Eles sabem.
Como Raoni tem repetido há décadas:
“Se continuar com as queimadas, o vento vai aumentar, o sol vai ficar muito quente, a Terra também. Todos nós, não só os indígenas, vamos ficar sem respirar. Se destruir a floresta, todos nós vamos silenciar”.
Os humanos, estes que sempre temeram a catástrofe na larga noite do mundo, tornaram-se a catástrofe que temiam. Alteraram o clima do planeta. Ameaçaram a sobrevivência da própria espécie na única casa que dispõem. Mas não todos os humanos. Uma minoria dos humanos, abrigada nos países desenvolvidos demais, consumiu o planeta. As consequências, porém, já são sentidas pelas maiorias pobres e pelos povos que não cabem nas categorias de rico e de pobre impostas pelo capitalismo.
Na Amazônia brasileira, estes povos são principalmente indígenas, beiradeiros (ou ribeirinhos), e quilombolas. A ONU chama de “apartheid climático”, mas talvez apartheid pressuponha que os que estão fora queiram entrar. Essa crença de que o desejo maior de todos aqueles que não consomem é se sentar à mesa do consumo. Como é a crença de que tudo o que uma “nação” deve querer é crescer infinitamente, como se isso fosse possível. Não. Estes outros que são chamados de povos tradicionais não querem entrar, se tornar também eles devoradores de mundos. Eles querem que não destruam esta casa a qual pertencem, mas não possuem nem querem possuir. Querem apenas viver nela segundo seus próprios termos. Porque são parte dela, são outros e o mesmo.
Enquanto isso se passa na Amazônia há séculos, em 2018, no lado de lá do mundo, uma garota de rosto redondo, uma trança loira de cada lado, postou-se sozinha diante do parlamento sueco. Ela fazia uma greve escolar pelo clima. “Estou fazendo isso porque vocês, adultos, estão cagando para o meu futuro”, dizia. Aos 15 anos, Greta Thunberg, hoje o mundo inteiro conhece o seu nome, inspirou um movimento de resistência que abarcou o planeta.
Inspirada por ela, outras adolescentes, como Anuna De Wever e Adélaïde Charlier, na Bélgica, e Luisa Neubauer, na Alemanha, levaram milhares de jovens às ruas de vários países da Europa, Oceania, Ásia, África e América. Já na primeira greve global, em março de 2019, mais de um milhão de crianças e adolescentes deixaram a escola para denunciar a falta de políticas públicas para enfrentamento do colapso climático e para barrar os grandes poluidores do planeta. Também em 2018, o movimento Extinction Rebellion (Rebelião contra a Extinção) bloqueou as pontes de Londres e se espalhou por outras cidades do mundo, defendendo a desobediência civil e não violenta para evitar a extinção em massa e a aniquilação da biodiversidade do planeta.
A geração climática encarna a primeira grande adaptação psíquica e comportamental ao Antropoceno, esta nova época geológica em que os humano tragicamente substituíram a natureza como força dominante do planeta. Pela primeira vez, os filhotes são obrigados a proteger o mundo que seus pais e avós destruíram e destroem com afinco. Deve ser aterrorizante lutar contra adultos que acreditam que o melhor que podem fazer por um filho é “lhe dar tudo”, quando é justamente este “tudo” de materialidades que vem arruinando a Terra. Os meninos e meninas europeus que vão às ruas estavam inscritos na infância protegida, esta infância que na época do colapso climático já não pode ser. Quando vão para as ruas apontar o dedo contra o sistema que exauriu o mundo, estão sinalizando também a passagem para um outro conceito de infância.
O que esses jovens europeus que lutam pelo clima talvez não saibam é que são também índios. Sua forma de compreender seu ser/estar no planeta é muito mais semelhante a dos povos originários, com os quais nunca conviveram, para além de referências distantes em livros e exposições, do que semelhantes a de seus avós e bisavós. A compreensão de que a Terra é casa e que a “casa está em chamas”, como diz Greta, os lançou numa outra inscrição. Nesta inscrição parecem ter se tornado capazes de reconhecer outras gentes e também as outras gentes de si.
É desta percepção que parte a ideia deste encontro na floresta amazônica. Deslocamos o que é centro e o que é periferia para recolocar o que estava deslocado. Numa época de emergência climática, vale repetir mais uma vez, o centro do mundo é a Amazônia. A cada 24 horas, a maior floresta tropical do planeta lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera. Pela transpiração. A floresta transpira e salva o planeta todos os dias. Como aponta Antonio Nobre, cientista de Gaia, não há como conter o superaquecimento global sem manter a floresta criando rios voadores. Uma apoteose cotidiana não alcançável por nenhuma das obras-primas da arte humana.
Mas o centro do mundo é a Amazônia também porque nela habitam os povos que sabem como viver no planeta sem destruí-lo, os povos que compreendem, das mais diversas maneiras, que a sua carne é a carne da Terra. Os povos que também são floresta. Os povos com os quais os brancos precisam aprender, se eles ainda estiverem dispostos a ensinar, depois de tudo o que a chamada “civilização” fez contra os seus corpos.
O encontro entre outros e outros acontece na floresta profunda, no lugar chamado Terra do Meio, na bacia do Xingu. Um mosaico de terras indígenas, reservas extrativistas ocupadas por beiradeiros, uma estação ecológica e um parque nacional. Os não índios, os não beiradeiros, os não quilombolas fizeram o gesto de se deslocar até o coração da floresta que é também coração do planeta. Vieram para falar. Vieram principalmente para escutar. E sentir. Os rios, as árvores, seus povos humanos e não humanos. Reconhecem, com o deslocamento do corpo, a centralidade da floresta.
Vieram para a criação de uma aliança pela Amazônia. Vieram também para a refundação de um humano outro, um que possa ser múltiplo. Este encontro, este de corpo encarnado no corpo encarnado da floresta, de todas as florestas que compõem a floresta, é o ponto inicial de uma tessitura de múltiplas centralidades. É também um gesto de rompimento dos muros e das barreiras que não param de se reproduzir sob o domínio dos déspotas eleitos – e seus nacionalismos que deixam apenas os corpos que já exauriram de fora, depois de já terem devorado as riquezas naturais de seus mundos. Nesta época de nacionalismos de ocasião, os que vêm de dentro e de fora vêm também para mostrar que não há fora, que somos +um+um+ na única casa que temos. A potência desse gesto é tecer o comum na horizontalidade colorida de nossas diferenças.
É imensamente simbólico que as jovens ativistas climáticas Anuna De Wever e Adélaïde Charlier tenham escolhido alcançar a Amazônia de barco à vela desde a Europa. Não mais saltar sobre os mundos. Mas percorrê-los, por semanas, no gesto de alcançar o outro e encontrar a si mesmas. Desta vez as caravelas são de descolonização. Este é um encontro para descolonizar o pensamento e também a ação. E é, sim, um encontro de índios. Os que sabiam que eram, os que só descobriram agora.
Bem-vindos ao centro do mundo.