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El País: Bolsonaro concede indulto de Natal a policiais e outros agentes presos
Com benefício a condenados por “excesso culposo", presidente faz aceno à base em meio à crescente violência policial. Mandatário sofreu acidente doméstico e ficará em observação em hospital
O presidente Jair Bolsonaro assinou nesta segunda-feira um decreto que concede indulto nataliano a policiais, militares do Exército e outros agentes de segurança pública que foram presos e condenados por terem “crimes culposos ou por excesso culposo”, segundo confirmou o Palácio do Planalto em nota. Isso significa que serão beneficiados aqueles agentes condenados por crimes “no exercício da função ou em decorrência dela”, sem intenção. O texto foi construído em conjunto com o Ministério da Justiça, chefiado pelo ex-juiz Sergio Moro, e será publicado nesta terça no Diário Oficial. Segundo o jornal O Globo, serão beneficiados os condenados que cumpriram ao menos um sexto da pena.
Assim, Bolsonaro faz aceno à sua base após ter sido derrotado na votação do Pacote Anticrime na Câmara dos Deputados, que excluiu o trecho que ampliava o excludente de ilicitude. O Governo também espera pela tramitação de outro Projeto de Lei que isenta de punição os militares e agentes que atuam em operações sob o decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Além disso, o indulto concedido a policiais vem em um momento de crescente violência policial. Segundo os dados mais recentes, os números de mortes cometidas por agentes públicos cresce em todo o Brasil, sendo o Rio de Janeiro o caso mais visível. Especialistas acreditam que a retórica tanto do presidente como do Governador Wilson Witzel acabam incentivando ações ilegais.Em nota, o Planalto informa que o decreto também indultará os agentes ― policiais federais, policiais civis, policiais militares, bombeiros, entre outros ― que, “no exercício da função ou em decorrência dela, tenham sido condenados por atos praticados, ainda que no período de folga, com o objetivo de eliminar risco existente para si ou para outrem”.
Promessa de isentar agentes
Bolsonaro foi eleito em 2018 prometendo ampliar o chamado excludente de ilicitude para policiais e outros agentes da segurança pública. Trata-se de um instrumento previsto no artigo 23 do Código Penal que exclui a culpabilidade de condutas ilegais em determinadas circunstâncias. Neste ano, o ministro Sergio Moro apresentou um pacote Anticrime que excluía a culpabilidade de policiais que alegassem “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Este trecho acabou ficando fora do projeto final aprovado na Câmara dos Deputados no início deste mês.Contudo, Bolsonaro insistiu em sua promessa e apresentou no último mês outro Projeto de Lei que busca isentar de punição os militares, policiais federais e agentes da Força Nacional (formada por policiais de vários Estados) que cometam excessos ou matem durante operações sob o decreto presidencial de GLO.
Presidente sofre acidente doméstico
No final da noite desta segunda, a assessoria de imprensa da presidência informou que Bolsonaro sofreu um acidente doméstico. De acordo com nota, o presidente caiu no Palácio do Alvorada, residência oficial, e foi levado para o Hospital das Forças Armadas em Brasília. Não há maiores informações sobre as circunstâncias da queda. A presidência diz ainda que Bolsonaro “foi submetido ao exame de tomografia computadorizada do crânio, que não detectou alterações". Na manhã desta terça-feira o presidente recebeu alta hospitalar, após ficar um período em observação.
Eliane Brum: Protejam Erasmo. Ele pode ser assassinado a qualquer momento
Por que a violência na Amazônia aumentou no final de 2019 e por que a sociedade precisa se organizar para barrar as mortes
Quando vi Erasmo Alves Teófilo pela primeira vez, o que me chamou a atenção foi aquele homem se movimentando muito rápido numa velha cadeira de plástico branca. Vítima de paralisia infantil, porque não havia vacina onde ele vivia, Erasmo não pode caminhar. Mas lidera. Este homem que só conta com uma cadeira de plástico branca luta pela vida de cerca de 300 famílias de agricultores familiares e pescadores na Volta Grande do Xingu, em Anapu, na Amazônia paraense, uma das regiões mais sangrentas da Amazônia. Este homem sem movimento nas pernas movimenta-se mais do que a maioria dos brasileiros para manter a floresta em pé. Hoje, ele também conta com pouco mais do que sua cadeira de plástico para escapar da morte.
Erasmo, este brasileiro que todos deveriam proteger porque sua luta protege a Amazônia para todos nós, está ameaçado por grileiros (grandes ladrões de terras públicas) que agem na região de Altamira e Anapu com a desenvoltura que a impunidade sempre conferiu a este tipo de personagem na história do Brasil. Hoje, com o antidemocrata Jair Bolsonaro no poder, a grilagem tem se comportado como se tivesse autorização para ameaçar, para bater e também para matar. Para dizer, como mais de uma pessoa ouviu de um deles: “Nenhum juiz tem poder sobre mim”.
Entre 4 e 9 de dezembro, dois homens já foram assassinados em Anapu. Erasmo poderá ser a terceira vítima, caso a sociedade brasileira não seja capaz de se organizar para proteger a ele e a todos os outros agricultores familiares, indígenas, ribeirinhos e quilombolas que estão ameaçados na floresta. Ninguém deve jamais se cansar de pressionar as instituições a fazer seu papel no Brasil. Isso é essencial para o país não perder o pouco de democracia que ainda resta. Mas é hora de compreender que o Brasil chegou a um ponto em que, se a sociedade não se organizar para defender aqueles que estão lutando na linha de frente, estas pessoas vão morrer. Como já estão morrendo.
1) Os defensores da floresta temem não ver o Ano Novo
Enquanto a população de classe média das cidades do centro-sul do Brasil se prepara para as festas de final de ano, com recessos, férias coletivas, folgas prolongadas, este é um tempo de medo na Amazônia. Mais medo. As poucas instituições que se fazem presentes, a maioria apenas nas cidades maiores dos estados amazônicos, entram em recesso. Supostamente há plantão nas capitais. Mas, se o número de funcionários já é reduzido quando há expediente normal, como será possível contar com estas instituições? Também a maior parte das Organizações Não Governamentais (ONGs), que cumprem um papel decisivo na proteção da Amazônia, entram em férias coletivas. A população em risco se torna muito mais desamparada.
Essas pessoas não estão desamparadas porque frágeis. Só existe floresta ainda porque seus povos são muito resistentes e colocam seus corpos na linha de frente, fazendo uma barreira humana contra o avanço da grilagem. A questão é que agricultores familiares, ribeirinhos, quilombolas e indígenas lutam quase sozinhos para manter a floresta viva e como um bem público e coletivo. E lutam quase sozinhos contra forças muito mais poderosas, em geral armadas, que querem derrubar a floresta e especular com a terra para o lucro privado de poucos, hoje com o apoio explícito do Governo antidemocrático de Bolsonaro.
Em pouco mais de 40 dias, entre novembro e dezembro, quatro indígenas do povo Guajajara, na Amazônia maranhense, foram assassinados. Em Anapu, não são indígenas que morrem, mas agricultores que tentam fazer assentamentos sustentáveis em áreas públicas destinadas à reforma agrária, mas cobiçadas ou já exploradas pelos grandes grileiros da região. Também tombam pessoas que apoiam os trabalhadores rurais. Os grileiros se apresentam como fazendeiros, mas sua folha-corrida mostra que são ladrões de terras da União. Os reais fazendeiros deveriam desejar se diferenciar deles, em vez de apoiá-los ou tolerá-los, mas não é isso que tem acontecido.
2) Por que Anapu se tornou um campo de cadáveres
Pergunto a Erasmo, cada vez mais perto da morte matada, vivendo numa casa que até o sopro do Lobo Mau das histórias infantis pode colocar em risco, se ele acredita na lei. E ele responde: “Eu acredito. Especialmente na lei federal. Se não acreditasse, eu não estaria aqui”. Erasmo vive numa terra em que o mais forte é a lei. Erasmo é o mais fraco na terra da lei do mais forte. E Erasmo acredita na lei, esta representada pela Constituição, esta supostamente acima dos indivíduos, em defesa da coletividade. Sinto vontade de repetir esta frase dezenas de vezes e escrevê-la de trás para frente e de cima para baixo, para ver se sob algum ângulo o mistério se revela. Sentado na cadeira de plástico branco que lhe servem de pernas, sacaneado mil vezes e mais outras mil vezes, Erasmo é um brasileiro que acredita na lei.
Anapu entrou no mapa mental do Brasil e do mundo depois que a missionária americana Dorothy Stang foi perfurada por seis tiros em 2005, provocando uma comoção internacional. Mas Anapu deve ser olhada com redobrada atenção por muito mais do que isso. O município desenha o problema da terra, do desmatamento e da violência na Amazônia brasileira. Compreendendo o que acontece lá é possível entender bastante da tragédia que hoje compromete o futuro não só das novas gerações de brasileiros, mas do planeta.
Como é sabido, a ditadura militar (1964-1985) estabeleceu um imaginário sobre a Amazônia ― e converteu esse imaginário em propaganda que até hoje perdura. Os personagens que hoje se movimentam neste cenário, para matar e para morrer, são herdeiros do projeto da ditadura para a floresta também naquilo que ele tem de mais simbólico: “a terra sem homens para homens sem terra” ou o “deserto verde” ou ainda o “integrar para não entregar”. Todos estes slogans de meio século atrás estão vivos e atuando. Os conflitos de Anapu são produtos da Transamazônica, aberta literalmente a ferro e fogo sobre corpos de indígenas e de árvores.
Nos anos 1970, a ditadura dividiu a região em dois polos, chamados “Transa Oeste” e “Transa Leste”. A primeira porção vai de Altamira até Placas e recebeu maioria de assentados da região sul do Brasil. Esta é a área da rodovia que foi destinada à colonização oficial, para produção agrícola. Já na Transa Leste, entre Altamira e Marabá, autores apontam que predominou uma colonização espontânea, daqueles que são sempre esquecidos nos programas públicos oficiais, com migrantes vindos principalmente do nordeste brasileiro. Estes não tiveram apoio governamental para ocupar terras que eram consideradas menos produtivas. Sem esquecer que todas as terras, à leste e à oeste, tinham sido por séculos ocupadas pelos povos indígenas.
Essa história, portanto, começa com um genocídio, o perpetrado pela ditadura militar na construção da Transamazônica. Esta é uma parte. A outra é o prosseguimento de uma política de branqueamento do país que se iniciou ainda no período imperial. Vale a pena lembrar que o sul do Brasil foi colonizado, mais uma vez sobre o corpo dos indígenas, por imigrantes trazidos da Europa, em especial de países como Alemanha e Itália, no final do século 19 e início do século 20. Não só os indígenas foram espoliados de suas terras e boa parte deles mortos como, na hora de escolher qual era a população que deveria ser colocada no lugar, foram escolhidos imigrantes brancos. Naquele momento, era possível ter executado uma política pública para incluir os negros que deixavam a escravidão. Mas não. Importou-se brancos.
Na construção da Transamazônica, os novos colonizadores foram chamados no sul do Brasil, a maioria deles descendentes destes imigrantes que, por sua vez, colonizaram o sul do país vindos da Europa. Nem foi fácil para os imigrantes europeus que chegaram ao sul do Brasil no final do século 19 nem foi fácil para seus descendentes que chegaram à Transamazônica nos anos 1970. Foi uma saga. Mas foi muito mais difícil para os nordestinos que foram sem convite e sem apoio do governo, em busca do sonho da terra própria para se livrar do aluguel do corpo para os coronéis.
Nesta mesma região, a ditadura implantou também uma política de concentração da terra, pelos chamados Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATPs). Estes contratos eram títulos provisórios para lotes de 3.000 hectares. Eles foram oferecidos preferencialmente para pessoas de fora da região amazônica. Com frequência, os contratos eram acompanhados de financiamentos da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), uma sigla que ficou famosa pelos escândalos de corrupção que produziria também na região de Altamira e Anapu.
Para que pudessem ganhar o título da terra, os candidatos a proprietários tinham que comprovar, em cinco anos, a instalação de empresa agropecuária. Muitas destas terras foram repassadas a terceiros antes mesmo de ter título definitivo, e, em boa parte dos casos, o cancelamento dos títulos pelo governo nunca foi feito, embora não houvesse criação de empresa agropecuária. Terras públicas e financiamento público produziram e alimentaram um mercado de especulação de terras na Amazônia e um ciclo de grilagem e de pistolagem que perdura até hoje, grande responsável tanto pela destruição da floresta quanto de vidas humanas. O que testemunhamos hoje no oeste do Pará e também em outras regiões da Amazônia é resultado direto do projeto de exploração da floresta forjado na ditadura militar e nunca suficientemente reformado na democracia que se instalou após 1985.
3) A janela histórica perdida
Para estancar a espiral de violência na disputa de terras que ainda hoje pertencem à União, ou seja, são nossas, seria necessário fazer a reforma agrária que nunca foi feita. A melhor chance histórica de estancar o sangue depois da retomada da democracia ocorreu nos governos do Partido dos Trabalhadores, de 2003 a 2016. A reforma agrária constava no programa, e agricultores familiares e trabalhadores sem terra eram uma força importante na composição da base do partido. Embora algumas ações e políticas tenham sido implementadas, porém, a reforma agrária não foi realizada. E a oportunidade foi perdida.
Os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) foram criados em lotes que o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) declarou serem improdutivos no final dos anos 1990. Os PDS foram desenhados em assembleias de agricultores para combinar agricultura familiar com atividades extrativistas, de coleta, como faz a população ribeirinha da Amazônia. Eram projetos de reforma agrária, que garantiam a terra para quem dela vive, combinados com o conceito de preservação ambiental.
Em 2003, no primeiro ano do governo Lula (PT), foram criados quatro PDS nas glebas Belo Monte e Bacajá, para o assentamento de 600 famílias. Aqueles que haviam se apossado destas terras públicas e também de gordos financiamentos públicos da Sudam reagiram com violência, na base da pistolagem, de incêndios criminosos e de derrubada da floresta. A missionária Dorothy Stang documentava e denunciava cada um dos ataques, exigindo providências das autoridades. A freira deixava claro que, para a preservação da floresta, seria necessário fazer antes a regularização fundiária. Foi executada.
Em 2005, a execução de uma freira de 73 anos com cidadania americana trouxe consequências indesejáveis para os grileiros da região. Demorou um pouco, mas o Estado se fez presente, instituições federais que não tinham escritórios na região abriram as portas. Ao longo dos mais de 13 anos no poder, os governos do PT foram se aproximando cada vez mais dos grandes latifundiários, a ponto de Katia Abreu ter se tornado ministra da Agricultura de Dilma Rousseff. Mas, no primeiro mandato de Lula, o compromisso com os pequenos agricultores ainda era forte também na prática. Não tão forte para uma reforma agrária efetiva, mas forte o suficiente para colocar o Estado em Anapu.
A morte de Dorothy Stang atrapalhou bastante os negócios de especulação da terra na região. Eles não cessaram, longe disso, mas ficou mais difícil. Fortes indícios apontavam naquele momento para a existência do que era chamado “consórcio da morte”, um pool de grileiros que determinavam a execução de quem estava atrapalhando as investidas sobre a floresta. A existência do consórcio nunca chegou a ser provada, mas na região poucos têm dúvida de que existe. Consorciados ou não, até 2014 os grileiros mantiveram uma atuação persistente, mas discreta.
4) O sangue dos Resplandes encharca a terra
Desde 2015, a violência em Anapu refletiu o aumento do poder dos ruralistas não só no Congresso, mas também no Executivo. Tudo acontece em cadeia na Amazônia, como em qualquer lugar. Entre 2015 e 2019, houve 15 assassinatos ligados à terra em Anapu, segundo a Comissão Pastoral da Terra ― e 19 segundo a contagem dos movimentos locais. Essas mortes mostraram que os grileiros aprenderam com o assassinato de Dorothy Stang. Nos últimos anos, os pistoleiros têm matado na cidade, em vez de na zona rural, para dificultar a associação do crime com os conflitos agrários. Como parte da polícia parece não ter muito interesse em investigar, a maioria dos crimes segue impunes. Quem precisa estabelecer a relação com as disputas de terra, para estabelecer as conexões de causa e efeito, são entidades da sociedade civil como a Comissão Pastoral da Terra.
Já em 2018, uma lista de marcados para morrer circulava na cidade como se fosse uma lista de compras de material escolar. Pouco antes de ser assassinado, em 3 de junho daquele ano, Leoci Resplandes de Sousa foi checar se estava na lista da morte. Um dos chefes da pistolagem local garantiu que não. E afirmou, inclusive, que caso estivesse, ele tiraria. Era assim. E segue assim. Não se sabe se este homem mentiu, porque não só Leoci foi assassinado, como também este chefe da pistolagem algum tempo depois. A lista ― ou as listas ― seguem ativas.
O que aconteceu com a família Resplandes é uma vergonha para o Brasil e para os brasileiros. Trabalhadores rurais em busca de terra, três Resplandes já foram mortos: Hércules, de 17 anos, Valdemir e Leoci, de 29. Todos em 2018. Quando Leoci foi assassinado dentro de casa, depois de voltar da roça, a família fugiu. Vivem assim, fugindo, sem nenhum apoio. E são achados. Em novembro, outro Resplandes foi baleado, mas sobreviveu. Não há certeza de que a tentativa de homicídio esteja conectada com os conflitos por terra de Anapu, mas tudo indica ser bastante possível.
Iracy Resplandes dos Santos, 53 anos, vive acuada. Claramente está com depressão, mas conta não ter confiança de buscar tratamento. Disseram a ela que a dor pode ser aplacada com tricô. Mas ela começa a tricotar e não consegue continuar. Vive o luto do filho mais velho, do irmão e do sobrinho. Em novembro, atravessou dias e noites no hospital cuidando do filho baleado, temendo a sua morte. Iracy tem dor e tem medo. Tem desespero. Tudo o que sonhou era um pedaço de terra para plantar. Acabou tendo que semear cadáveres. E nada indica que esta semeadura de corpos humanos irá parar.
5) O crime contra o Padre Amaro
Em 2018, ficou claro que a grilagem intensificava a violência e usava métodos mais ousados. Em 27 de março daquele ano, Padre Amaro Lopes, pároco em Anapu e um dos sucessores da missionária Dorothy Stang, foi preso numa operação cinematográfica para os padrões locais: 15 policiais, várias viaturas, armamento pesado. Parecia que o padre era Al Capone, isso numa cidade em que a maioria conhece os grileiros e pistoleiros pelo nome e cruzam com eles nas ruas sem que isso pareça perturbar a polícia.
Padre Amaro foi preso com um ramalhete de acusações. E jogado na mesma prisão em que Regivaldo Galvão, conhecido como “Taradão”, um dos mandantes da morte de Dorothy Stang, paga sua pena. Depois de três meses na cadeia, o religioso católico passou a responder às acusações em liberdade, mas até hoje sujeito a várias restrições e sem poder retomar o seu trabalho, o que claramente era o objetivo da operação.
Duas semanas antes de ser preso, Padre Amaro deu uma entrevista ao jornal The Guardian. Nela, afirmou que sua “batata estava assando”, referindo-se ao fato de que sabia que algo aconteceria com ele. “Como matar a Dorothy deu muita repercussão e problemas para os grileiros, eles vão forjar algum acidente ou inventar alguma coisa para me criminalizar”, disse na ocasião. Uma das acusações, a de assédio sexual, caiu em seguida, mas já tinha cumprido o objetivo de desqualificar o padre diante de parte da população de Anapu e da região.
A prisão de Padre Amaro foi precursora do método usado recentemente em Alter do Chão, na região de Santarém. No final de novembro, quatro brigadistas voluntários, que trabalhavam em conjunto com os bombeiros locais para apagar os incêndios na floresta, foram presos sob a falsa acusação de, justamente, atear fogo na mata. Na mesma data, a ONG Saúde e Alegria, uma das mais premiadas e respeitadas organizações brasileiras, foi invadida pela polícia e teve computadores e documentos apreendidos. É a nova etapa de criminalização justamente daqueles que ou denunciam os verdadeiros criminosos ou trabalham para combater seus crimes ou, ainda, para fortalecer a população local. Pesquisadores da área de segurança apontam que há um crescente aparelhamento das polícias para atuar na defesa de interesses privados.
6) Dezembro de sangue
Em Anapu, desde que Bolsonaro foi eleito, a atmosfera se tornou ainda mais pesada. É muito difícil encontrar alguém que aceite ser entrevistado, mesmo sem dar o nome. “O povo está morrendo”, dizem aos cochichos. Desde que acompanho a situação na região, nunca vi as pessoas tão aterrorizadas. Elas têm toda a razão, já que não contam com nenhuma proteção. Ao contrário, parte dos representantes do Estado parece atuar contra as verdadeiras vítimas.
Se a tensão e a violência aumentaram desde a eleição de Bolsonaro, em novembro houve um agravamento de cenário em diversas regiões da Amazônia. Em dezembro, tornou-se ainda mais alarmante. Todos os sinais mostram que a situação ruma para o total descontrole. É neste contexto que Márcio Rodrigues dos Reis, 33 anos, pai de quatro filhas, foi assassinado em 4 de dezembro, em Anapu. O assassino fingiu ser um cliente do seu mototáxi e o matou com um golpe de faca no pescoço. A garganta cortada, segundo repetem na cidade, assinala quem teria “morrido por falar demais”.
Márcio era uma das principais testemunhas de defesa de padre Amaro Lopes. Era também alguém que sabia bastante sobre o que acontecia na região. Cinco dias depois, em 9 de dezembro, o ex-vereador do PT e conselheiro tutelar Paulo Anacleto foi executado diante do filho pequeno na praça central da cidade. Segundo testemunhas, ele estava no carro com a criança quando foi alvejado por dois homens numa moto. Paulo Anacleto era amigo pessoal de Márcio e, segundo informações, estava revoltado o suficiente para comentar pela cidade que sabia muito bem quem havia sido o mandante da morte. Quem acompanha os conflitos agrários em Anapu não tem dúvida de que os assassinatos estão ligados.
Apesar de tentar por três dias seguidos, o EL PAÍS não conseguiu informações da polícia do Pará em nenhum nível ― local, regional e estadual. O delegado Lucas Luz, responsável pela Delegacia de Conflitos Agrários (DECA), especializada sediada em Altamira, a maior cidade da região, afirmou que não poderia falar sobre os casos porque estariam “sob segredo de Justiça”. A reportagem enviou um email para a Polícia Civil do Estado do Pará. A assessoria da corporação informou que o pedido estava “em análise” ― e não respondeu até a publicação do artigo. Em Anapu, os dois telefones divulgados da delegacia local aparentemente não funcionam ou não são atendidos.
O Ministério Público Federal, no Pará, instaurou procedimento para acompanhar as investigações e solicitar providências às autoridades de segurança pública do Pará sobre o que chamou de “a nova escalada de violência no município de Anapu”. “O cenário atual no município evidencia a ocorrência de reiteradas ameaças dirigidas a defensores de direitos humanos no campo. Em menos de uma semana, entre os dias 4 e 9 de dezembro, ocorreram dois assassinatos que podem estar ligados aos conflitos agrários históricos na região”, afirmou o órgão em nota pública. O MPF também solicitou informações sobre “as providências que estão sendo tomadas para prevenir e coibir a violência contra os moradores e lideranças dos lotes 96 e 97 da gleba Bacajá, devido à “pressão para expulsão de trabalhadores rurais”. Estes lotes são uma das áreas abarcadas pela liderança de Erasmo, hoje ameaçado de morte.
A principal causa dos conflitos nos anos recentes, além da impunidade que gera mais impunidade, é a omissão do Estado em fazer as ações de reforma agrária previstas em lei, abandonando o lado mais frágil, o dos agricultores familiares, a uma luta desigual com os grandes grileiros e suas milícias armadas. Como a luta é desigual, o resultado é o massacre de trabalhadores rurais e das pessoas que os apoiam. “Ao não adotar as medidas necessárias e previstas em lei para solucionar os conflitos agrários, há uma omissão do Estado que é ação”, afirma Sadi Machado, procurador da República em Altamira. “Há uma má vontade ativa por parte do governo federal de deixar de implementar a reforma agrária, que é uma política pública do Estado. Isso provoca conflitos, produz vítimas e destrói o meio ambiente. Claramente há um confronto entre a área técnica [de carreira] do Incra, órgão que foi bastante esvaziado na região, e a condução política do órgão. Esta situação se agravou neste ano.”
Ainda hoje, parte da sociedade e mesmo dos ambientalistas não entende que lutar pela reforma agrária é lutar pela floresta em pé. Sem justiça social na Amazônia não haverá justiça climática.
7) Por que agora?
As mortes recentes de indígenas e de camponeses ligados a conflitos agrários, assim como as prisões abusivas e a crescente criminalização das ONGs, deixam claro uma ofensiva da grilagem e de seus apoiadores, dentro e fora do Estado, em toda a região. Os sinais de que a violência só vai aumentar estão por toda a parte. Por que agora?
O cientista social Maurício Torres, professor da Universidade Federal do Pará, em Belém, e um dos maiores especialistas em conflitos agrários na Amazônia, apontou alguns caminhos de reflexão para esta coluna, que reproduzo aqui:
“A grilagem acontece em dois planos. Um no chão, onde se toma a área materialmente. Pistoleiros ‘limpam’ a terra de seus ocupantes legítimos (indígenas e camponeses), e a floresta é derrubada para consolidar a apropriação. Outro plano é no papel: quando, por meio da química mágica dos cartórios ou dos órgãos fundiários, acontece o destacamento da terra do erário público e sua transferência para o patrimônio privado do grileiro. A violência (e incluo aqui o desmatamento como sua variante) é o principal instrumento de controle de terras griladas. Quando esse mercado sujo de terras agita-se, a violência, como mecanismo da grilagem, é mais acionada. As assustadoras facilidades criadas para a consumação no papel do saque de terras públicas, que transformam o grileiro em ‘proprietário’ das terras das quais se apropriou ilegalmente, incendiou esse mercado. Falo, em especial, da MP 910 ― não só da sua promulgação, mas, mesmo antes, do efeito gerado pela especulação em torno dela”.
A Medida Provisória 910 é a MP da Grilagem produzida por Bolsonaro em 10 de dezembro. Antes dela, houve a MP da Grilagem de Lula, em 2009, e a MP da Grilagem de Michel Temer, em 2017. É importante recuperar o processo, porque do contrário não é possível compreender o presente.
O programa Terra Legal, de 2009, ainda no Governo Lula, é citado por Torres e outros pesquisadores como um marco no processo de legalização da grilagem na Amazônia. Ele foi instituído pela Medida Provisória 458, sancionada na forma da lei 11.952. Entre outras ações, regularizava todos os imóveis em terras públicas na Amazônia Legal, com até 1.500 hectares, desde que ocupados até dezembro de 2004. No discurso, o programa serviria para regularizar a situação dos pequenos posseiros, aqueles que viviam na terra e viviam da terra. Na prática, o programa serviu para regularizar a grilagem praticada pelos grandes. Na época, foi apelidado de “MP da Grilagem” e, depois, de “Lei da Grilagem”.
Os números ajudam a clarear os objetivos: os pequenos eram quase 90%, mas ocupavam menos de 19% do território; já os grandes eram menos de 6%, mas ocupavam 63% do território. Para os pequenos, a lei já existente era capaz de solucionar a situação e corrigir injustiças. Não era necessário criar nada novo. Assim, afirma Torres, o programa Terra Legal foi pensado para legalizar a grilagem.
O novo e controverso Código Florestal, de 2012, aprimorou ainda mais produção de legalidade onde antes havia crime. Mais tarde, com Michel Temer e um Congresso explicitamente corrupto, dominado pelos ruralistas, o processo se aprimorou e acelerou. A lei 13.465/17, nascida da Medida Provisória 759, foi sancionada em julho de 2017 por Temer. Também é conhecida como “Lei da Grilagem”.
Com a desculpa de “regularizar” a situação de pessoas que muitos anos atrás ocuparam áreas públicas “de boa fé”, para viver nela, a lei permitiu que grileiros que ocuparam terras públicas sabendo que eram públicas até 2011 pudessem “regularizar” seus “grilos” até 2.500 hectares, uma área equivalente a 57 Vaticanos. Basta expandir a produção de “laranjas” e os grilos são legalizados de 2.500 em 2.500 hectares. Neste ato “legal”, Temer e o Congresso anistiaram grileiros. Não só os anistiaram, como converteram criminosos em “cidadãos de bem”, totalmente dentro da lei, ladrões de terra pública em fazendeiros, quadrilhas criminosas em empresas.
Ao final do primeiro ano de governo, Bolsonaro criou a sua MP da Grilagem. Não há precedentes de algo tão escandaloso, pelo menos não no que formalmente tem se chamado de democracia. A MP da Grilagem de Bolsonaro é uma “masterpiece” da legalização da bandidagem. Com a mesma desculpa usada por Lula e depois por Temer, a da “regularização fundiária”, agora é possível legalizar terras roubadas da União até dezembro de 2018. Em resumo: você rouba do patrimônio público, destrói a floresta amazônica e, um ano depois, vira latifundiário legalizado e vai gozar a vida como “cidadão de bem”.
A mesma medida provisória também aumentou para até 15 módulos o tamanho da área que dispensa vistoria do Incra. Em alguns locais da Amazônia, isso significa mais de 1.500 hectares, O processo é praticamente autodeclaratório. O criminoso rouba um pedaço da floresta, diz ao governo que a área é dele e vira fazendeiro. Nenhum funcionário vai sequer checar. Como alguém acredita que vai sobrar floresta amazônica com este estímulo oficial para saqueá-la?
Maurício Torres analisa o impacto: “Há dois efeitos. O primeiro é o óbvio: a busca por terras públicas não destinadas aumentou, pois agora é só declarar que é o dono para se tornar dono. Essa situação aumenta também o conflito de grileiro comendo grileiro e, também, de grileiro expulsando camponês e indígena. Mas há um outro efeito, este mais sutil. A promulgação de algo dessa dimensão em benefício do grileiro, como é o caso da MP 910, passa uma mensagem de empoderamento, fazendo essa gente se sentir autorizada a tudo”.
As áreas que hoje estão em litígio judicial, ocupadas por agricultores familiares, mas disputadas por grileiros, vão ser tomadas à bala. É o que está acontecendo neste momento na Amazônia e particularmente em Anapu, que têm muitas áreas em litígio. Por isso mais lideranças estão ameaçadas de morte e grileiros têm dito nas ruas que não estão nem aí pra juiz. Por que estariam? Se o Congresso não barrar essa MP, a Amazônia se tornará uma floresta de cadáveres. Não só de árvores, mas de gente.
“Desde a construção das grandes rodovias na Amazônia, talvez nada tenha tanto efeito sobre o aumento da violência e do desmatamento do que essa MP pode gerar”, afirma Maurício Torres. “A medida irá privatizar dezenas de milhões de hectares, ninguém sabe ao certo, mas creio que algo entre 40 e 60 milhões de hectares. Isso significa a emissão de autorizações legais para a derrubada de 20% da floresta nas terras tituladas, algo em torno de 10 milhões de hectares. E isso só contando o que pode ser legalmente autorizado. Mesmo que uma parte disso já esteja desmatada ― e está mesmo ― o impacto será trágico.”
8) Como proteger Erasmo?
Em 2005, um dos principais grileiros da região deu carona a Dorothy Stang. Queria dar a ela um aviso. A missionária depois relataria as palavras deste homem: “Se alguém ‘invadir’ as ‘minhas’ terras, vai ter sangue até a canela”. Este homem, assim como meia dúzia de outros, todos eles bem conhecidos de quem vive na região, tem feito provocações em Altamira e região. É um sinalizador.
Parte do crescimento da violência e da crescente desenvoltura destes personagens miram nas próximas eleições municipais. Eles sentem que já estão no governo, em nível federal. Mas querem ocupar também o poder local para consolidar ― e facilitar ― a conversão do público no privado. Se nada foi feito para barrar a violência, as eleições municipais de 2020 poderão se tornar uma carnificina nas regiões amazônicas de conflito.
Neste cenário em que a lei é usada para proteger o crime contra o patrimônio público, é possível imaginar como estão vivendo ― e morrendo ― os mais frágeis. Como Erasmo, liderança que luta por 300 famílias de agricultores familiares em terras disputadas por grileiros. Na noite de 12 de dezembro, coincidência ou não, dois dias depois da assinatura da MP da Grilagem por Bolsonaro, um homem que trabalha para um dos grileiros das áreas em disputa foi até a casa onde Erasmo vive com os pais, já velhos, e a companheira. Antes de chegar lá, já tinha batido numa mulher e disparado três tiros. Uma das balas passou rente a uma vizinha que voltava da igreja. Diante da casa de Erasmo, o capanga do grileiro gritou e xingou. Queria que Erasmo saísse para falar com ele. A família se trancou dentro de casa.
Quando Erasmo conta o que aconteceu, seu corpo treme sobre a cadeira de plástico branca.
Esta é a vida de muitos que protegem a floresta para todos nós. Esta é a vida de Erasmo, enquanto não for morte.
Está avisado.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum
El País: Promotoria boliviana ordena a prisão do ex-presidente Evo Morales
Ex-mandatário, que está asilado em Buenos Aires, é acusado de terrorismo pelo novo Governo opositor
A Promotoria da Bolívia ordenou na quarta-feira a prisão do ex-presidente Evo Morales, que está asilado na Argentina desde 12 de dezembro. A decisão da Justiça do país, assinada por dois promotores da cidade de Cochabamba, chega quase um mês depois de o gabinete interino que o sucedeu no poder apresentar uma denúncia por sedição (insubordinação) e terrorismo contra o ex-mandatário. O documento determina que policiais e funcionários públicosprendam e conduzam Morales à Promotoria Anticorrupção de La Paz para depor pela suposta realização desses crimes.
A acusação contra o dirigente cocaleiro, que governou a Bolívia durante quase 14 anos, se baseia na suposta tentativa de apoiar os bloqueios às principais cidades, impedindo assim a passagem de alimentos e combustíveis. A Bolívia atravessou uma onda de fortes protestos após a saída de Morales em 10 de novembro. Ele deixou seu cargo forçado pelo Exército e dias depois abandonou o país. Partiu ao México, onde o Governo de Andrés Manuel López Obrador lhe ofereceu asilo, e lá estava durante as mobilizações. O gabinete da presidente interina, Jeanine Áñez, divulgou à época a gravação de uma ligação telefônica em que o ex-presidente supostamente dava ordens a alguns seguidores para cortar caminhos. Os bloqueios isolaram durante dias La Paz e a vizinha cidade de El Alto, um dos principais cenários dos confrontos entre manifestantes e forças de segurança. A escassez de gasolina foi o primeiro efeito. A repressão dos militares, que chegaram a ser eximidos de responsabilidade penal por um decreto depois revogado, deixou dezenas de mortos e centenas de feridos.
O ex-mandatário chamou a investigação de montagem. “A Promotoria inicia investigações com montagens, provas plantadas e gravações manipuladas contra os movimentos sociais que lutam pela vida e pela democracia, mas para 30 irmãos assassinados a tiros na Bolívia, não há investigação, responsáveis e detidos”, atacou em sua conta no Twitter. Morales pediu na terça-feira em Buenos Aires seu direito de voltar a seu país para a convocação de eleições presidenciais —ainda sem data— após a anulação das eleições de 20 de outubro, em que a auditoria da Organização dos Estados Americanos (OEA) detectou várias irregularidades e “manipulação dolosa” das urnas. “Se pretendem realizar eleições livres, me deixem entrar na Bolívia. Não serei candidato nessas eleições, mas tenho direito a fazer política”, solicitou em um comunicado à imprensa.
A ordem de prisão, entretanto, complica o retorno do ex-mandatário à primeira linha. O Governo ultraconservador de Áñez, que assumiu em meio a acusações de golpe de Estado, desde o primeiro dia trabalhou para enfraquecer a máquina do Movimento ao Socialismo (MAS), o antigo partido governista, e colocou em andamento uma campanha para encurralar o entorno de Morales. O ministro do Governo, Arturo Murillo, responsável pela política de segurança, começou no cargo anunciando a “caça” de rivais políticos.
A própria Áñez, do Movimento Democrata Social, prometeu em uma de suas primeiras falas como presidenta que não perseguiria adversários. Mas já à época, antes de apresentar uma denúncia, quis deixar claro que o líder indígena enfrentaria suas responsabilidades caso retornasse. “Agora estão pedindo para que venha quando ninguém o expulsou do país. Ele partiu sozinho, [...] ele sabe que ainda tem contas pendentes com a Justiça boliviana”, disse. “Se o presidente Morales voltar, que volte, mas ele sabe que também precisa responder à Justiça. Nós vamos exigir que a Justiça boliviana faça seu trabalho”.
El País: Câmara aprova processo de impeachment de Trump, que será julgado pelo Senado dos EUA
O presidente norte-americano é acusado de abuso de poder e obstrução. Ele será o terceiro julgado da história
Donald Trump tornou-se nesta quarta-feira o terceiro presidente da história norte-americana que será submetido a um processo de impeachment. Uma Câmara dos Deputados totalmente dividida aprovou levar Trump a julgamento no Senado por abuso de poder e obstrução do Congresso após um escândalo sobre a suposta pressão da Casa Branca sobre a Ucrânia para obter benefícios eleitorais ao republicano. Após um longo e sombrio debate, às vezes teatral, a maioria democrata votou a favor das duas acusações, com todos os republicanos contra, em um claro reflexo da natureza partidária, quase tribal, desse processo. Os fundadores da Constituição planejaram remover um presidente em caso de "crimes graves ou delitos". Seus herdeiros a transformaram em uma guerra sem quartel.
"Resolução 755 para o impeachment de Donald John Trump, presidente dos Estados Unidos, por crimes e ofensas graves". Um cabeçalho de 18 palavras convocou os 431 membros da Câmara dos Deputados a votar se julgariam o líder do país mais poderoso do mundo por pressionar o Governo de Kiev a iniciar investigações que o favoreciam para a reeleição em 2020. Por volta das três da tarde (cinco horas da tarde, horário de Brasília), o debate parlamentar havia se tornado um acidente de trem entre republicanos e democratas sobre a culpa ou inocência de Trump."Hoje estamos aqui para defender a democracia do povo", disse a presidente da Câmara, a veterana democrata Nancy Pelosi, ao abrir o debate. Pelosi, terceira autoridade da nação e líder dos democratas em Washington, apareceu de vestido escuro e falou em um tom calmo e sério, tentando transmitir uma ideia de solenidade institucional que contraria as críticas de Trump e dos republicanos, que acusam a oposição de agir de maneira partidária. Pelosi citou a Constituição e os pais fundadores e descreveu o presidente como "uma ameaça contínua à segurança nacional". Enquanto isso, Donald Trump escreveu em sua conta do Twitter, em letras maiúsculas e vários pontos de exclamação: “Que mentiras hediondas da esquerda radical! (...) Este é um ataque à América e ao Partido Republicano!”
O que vem agora no Senado
No julgamento, que ocorrerá no Senado após o recesso de fim de ano após o sinal verde da Câmara, os legisladores deverão revisar os depoimentos, chamar novas testemunhas se acharem necessário, examinar os documentos, as evidências e decidir se, de fato, o presidente dos Estados Unidos cometeu algum "crime ou ofensa grave", como diz a Constituição, que torna necessária sua remoção.Os senadores são obrigados a tomar suas decisões independentemente da cor política do presidente que julgam, mas a deliberação parece uma pantomima. A maioria dos legisladores democratas vê Trump culpado e todos os republicanos o consideram inocente. Nesta quarta-feira, com 233 dos 431 assentos ocupados pelos democratas, o julgamento do presidente já era dado como certo. No Senado, com 53 senadores republicanos em 100, a absolvição também parece decidida, já que um veredicto de culpado exige uma maioria de dois terços. À diferença do Brasil, nos EUA o presidente só deve ser afastado se for condenado na etapa final, não havendo a figura do afastamento temporário.
El País: Eduardo Bolsonaro inaugura escritório comercial em Jerusalém e reafirma que Brasil transferirá embaixada
Em visita a Israel, filho de presidente diz perante Netanyahu que o Brasil cumprirá o compromisso
A ponto de completar seu primeiro ano de mandato, o presidente Jair Bolsonaro continua sem cumprir sua promessa eleitoral de transferir para Jerusalém a embaixada do Brasil em Israel, uma decisão polêmica que contraria o consenso internacional e que até agora só foi adotada pelos Estados Unidos e a Guatemala. Bolsonaro já evitou se pronunciar sobre a transferência da legação diplomática em abril, durante sua visita oficial ao Estado judeu, mas anunciou, como primeiro passo, a abertura de um escritório comercial. Seu filho e herdeiro político, Eduardo Bolsonaro, afirmou que o mandatário cumprirá seu compromisso, ao inaugurar neste domingo na Cidade Sagrada uma missão da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), entidade vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, mas sem status diplomático.
“[Meu pai] me disse que existe um compromisso firme, que a transferência da embaixada a Jerusalém será realizada”, disse o deputado federal, de 35 anos, que preside a Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Em um ato na nova agência do Brasil em Jerusalém, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu recebeu o anúncio com satisfação, num momento em que se prepara para enfrentar a terceira campanha eleitoral deste ano a fim de tentar se manter no poder. O chefe de Governo de Israel foi além, ante seu visitante, ao declarar que via a inauguração do escritório comercial “como uma parte do compromisso do presidente Bolsonaro de abrir no próximo ano uma embaixada em Jerusalém.”
Apenas a Guatemala —país com uma importante presença de evangélicos defensores do Estado hebreu em seu Governo— seguiu os passos do presidente Donald Trump, ao transferir a embaixada dos EUA de Tel Aviv, onde ficam as representações diplomáticas das demais nações que mantêm relações com Israel. O consenso geral da comunidade internacional deixa o status final de Jerusalém —que os israelenses consideram sua capital “eterna e indivisível” e onde os palestinos aspiram a estabelecer a capital do seu futuro estado na parte oriental— para um acordo de paz duradouro entre ambas as partes.
Em um primeiro momento, o Paraguai também seguiu os passos dos EUA. Após uma mudança na presidência do país, no entanto, ordenou reabrir a embaixada em Tel Aviv. Netanyahu não conseguiu inaugurar mais legações diplomáticas na Cidade Sagrada. Países da União Europeia com Governos favoráveis a Israel estabeleceram recentemente em Jerusalém um escritório comercial (no caso da Hungria) e um centro cultural (República Checa).
Bolsonaro precisa estabelecer um difícil equilíbrio entre o apoio eleitoral que recebeu da comunidade evangélica no Brasil —incondicional defensora do Estado judeu— e os interesses dos poderosos grupos de pecuaristas locais, que exportam todos os anos cinco bilhões de dólares (cerca de 21 bilhões de reais) em carne halal (com aprovação religiosa muçulmana) ao mundo islâmico. A balança comercial se inclina decididamente para os países árabes, que concentram cerca de 5% das exportações brasileiras, contra uma fatia de apenas 0,2% de Israel.
Netanyahu, que mantém estreitos laços com líderes ultraconservadores como o norte-americano Trump e o húngaro Viktor Orbán, agradeceu Bolsonaro pelo apoio do Brasil nos fóruns internacionais, onde o novo presidente se distanciou da tradição de condenação à ocupação dos territórios palestinos mantida pelos anteriores Governos do PT.
Eduardo Bolsonaro, a quem o pai tentou sem sucesso designar como embaixador em Washington, também anunciou ante o premiê israelense que seu país tomará a decisão “mais cedo ou mais tarde” de considerar o partido-milícia libanês Hezbollah como grupo terrorista. “Organizaremos a transferência [diplomática] a Jerusalém”, concluiu o deputado, “não apenas em nome do Brasil, mas como um exemplo para o restante da América Latina.”
El País: 'Depois das milícias urbanas, temos agora as milícias rurais que assassinam pessoas com requintes de crueldade', diz Marina Silva
Para a ex-ministra do Meio Ambiente, a Conferência do Clima de Madri trouxe resultados insignificantes. Ela diz que sob Bolsonaro país vive regressão civilizatória
Por Afonso Benites, do El País
Ex-senadora, ex-ministra do Meio Ambiente, candidata derrotada à Presidência da República e ativista ambiental, Marina Silva, 62 anos, transitou nessa sexta-feira pela Conferência do Clima em Madri (COP 25) vestindo uma camiseta com os dizeres: “Na luta desde pirralha”. Era uma provocação ao presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que chamou a ativista Greta Thunberg de pirralha, por ela ter se solidarizado com a morte de dois indígenas Guajajara no Maranhão ocorridas no dia 7. Nesta sexta-feira, mais um foi assassinado, Erisvan Soares Guajajara, 15 anos.
Enquanto acompanhava os eventos de encerramento do encontro, Marina concedeu uma entrevista por telefone ao EL PAÍS e disse que a COP 25 teve resultados insignificantes, criticou a gestão Bolsonaro-Salles no meio ambiente, afirmou que o aumento da violência contra indígenas ocorre porque os criminosos sentem-se impunes e declarou que permitir a mineração na Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca) no Norte do Brasil seria um crime de lesa-pátria.
P. Qual o balanço a senhora faz da COP 25?
R. Ainda não temos o veredito final. Mas pelo decorrer das coisas, vamos sair daqui com resultados bastante insignificantes diante da magnitude do problema que temos. Essa COP tem uma característica particular. Diferentemente da COP de Paris, onde havia um acordo a ser assinado, e que cada país deveria dar o seu sim ao acordo, nessa são acordos mais pulverizados. Infelizmente, o contexto dessa COP é bastante delicado.
P. Em que sentido é delicado?
R. A União Europeia sempre teve um papel importante na alavancagem do debate. E o Brasil também. Com o Brexit não temos mais o tripé, França, Alemanha e Reino Unido. No meu entendimento, isso enfraqueceu a liderança da União Europeia na negociação. Também eles têm o problema do avanço do populismo. Os Governos têm de se deparar com as lideranças populistas que são contrárias ao debate sobre a mudança climática. Os Estados Unidos também saindo do Acordo de Paris significam um enfraquecimento enorme. A Rússia e a China também não fazem os esforços necessários. O resultado aqui não será promissor. Só haverá uma mudança de contexto, em termos políticos mais amplo, se os democratas elegerem o presidente e a maioria do Congresso nos Estados Unidos. Só isso criará uma nova força gravitacional para que uma próxima COP possa avançar. Se tivermos a eleição de um Governo como o do Donald Trump, só teremos dificuldades.
P. Mas nessa reunião não houve um aumento da participação da sociedade civil?
R. Essa é uma contradição. No ritmo que estamos não atingiremos a meta de conter as emissões de CO2 em um ano e meio, dois. Ter esse aumento de desmatamento, governos negacionistas, que é o caso de Trump e Bolsonaro, é algo muito preocupante. Por outro lado, tivemos, sim, uma forte participação da sociedade, com indígenas, jovens. E tudo em um contexto em que a sociedade defende os esforços para amenizar as alterações climáticas, mas parece que as grandes empresas e os Governos não querem.
P. Qual a avaliação pode ser feita sobre a participação do Brasil nessa COP 25?
R. Este é um governo negacionista, que nega a mudança climática. Eles vieram para a COP muito mais para dificultar do que para contribuir. O Brasil vinha contribuindo positivamente desde o protocolo de Kyoto, da ECO 92, da Rio +5, da Rio +20. Viemos de um ano com resultados muito negativos, com aumento de desmatamento, das queimadas. O Brasil não vai alcançar suas metas de redução na emissão de gases. Temos um aumento da violência, aumento de assassinatos de indígenas e lideranças de comunidades. Além de não ter querido sediar a COP. O Brasil foi um mercenário, que prometeu só fazer os esforços de redução das emissões, do desmatamento e das queimadas, se os países ricos pagarem para que se faça isso. Ou seja, o Brasil teve uma atitude mercenária na COP. Quando fui ministra, nós reduzimos em 83% o desmatamento, evitando 4 bilhões de CO2 serem lançados na atmosfera não foi porque alguém nos pagou, mas porque essa era nossa obrigação, era nossa contribuição em uma atitude multilateral.
P. O discurso do Governo Bolsonaro é o de que a questão da Amazônia tem de levar em conta a soberania nacional. Qual a sua opinião sobre essa postura?
R. Eu costumo dizer o seguinte: ninguém cuida do próprio filho somente se alguém lhe pagar. Posso até receber uma ajuda para educar meu filho melhor, para dar uma moradia ou um transporte melhor para o meu filho. Mas eu não condiciono cuidar do meu filho, por mais precária que seja a minha condição, se alguém me pagar para isso. É certo, a Amazônia é de nossa inteira soberania. Mas soberania implica em responsabilidade. Não posso dizer que sou soberano, mas só cuido daquilo que eu sou soberano, se alguém me pagar. Somos inquestionavelmente soberanos sobre a Amazônia brasileira, assim como o Peru é sobre a peruana, a Bolívia sobre a boliviana. Quando fui ministra cumprimos com a nossa responsabilidade.
P. A senhora usou durante a COP uma camiseta em alusão à fala de Bolsonaro sobre a ativista Greta Thunberg [Com os dizeres “Na luta desde pirralha”]. Discursos radicais como o do presidente acabam reforçando a necessidade de se discutir o tema ambiental?
R. Eu comecei meu ativismo quando tinha 17 anos, junto com o Chico Mendes. Estou, de fato, na luta desde pirralha. Ele está no posto mais elevado de um país e fazendo discursos que são deseducativos, porque são inoportunos e agressivos. A Greta havia se solidarizado com a tribo Guajajara, com o assassinato de dois índios. E o presidente, ao invés de atacar os criminosos com investigações e punições justas, ele ataca uma adolescente que está se solidarizando com as vítimas. É uma regressão civilizatória. Um presidente da República agredindo uma adolescente, uma criança, é a coisa mais anticivilizatória que eu já vi.
Marina Silva na COP 25, em Madri./ Divulgação
P. Qual é o balanço que a senhora faz da gestão Ricardo Salles no Meio Ambiente?
R. É a gestão da desconstrução, do desmonte da política ambiental brasileira. Como se não bastasse ele ter feito toda a desconstrução, ele veio para a COP igualmente, naquilo que ele podia, desconstruir os esforços multilaterais. Em menos de um ano ele conseguiu desmontar o que foi feito ao longo de mais de três décadas. Ele abandonou o plano de combate ao desmatamento, enfraqueceu o Ibama, o ICMBio, desmontou todo o trabalho que havia sendo pelo Inpe do ponto de vista da gestão com [cientista] Ricardo Galvão. Como eu sou uma mulher de fé, Deus e a Justiça dos homens são tão bons porque o Ricardo Galvão foi atacado pelo Bolsonaro e está agora entre os dez melhores cientistas do mundo, de maior influência. Bolsonaro agride uma adolescente e ela é a personalidade do ano da revista Time. O Bolsonaro vai na contramão de tudo o que tem a ver com avanço. Esse desmonte que eles fizeram é algo que vai cada vez mais aumentar. Neste ano tivemos quase 30% de desmatamento, com a medida provisória da grilagem, o enfraquecimento do Ibama e do ICMBio, a falta de suporte da Polícia Federal com inteligência, a falta de apoio do presidente e do ministro com os funcionários que lidam com a agenda ambiental, vai fazer com que o desmatamento no ano que vem seja incomparavelmente maior. E as queimadas também.
Aqui na COP, nem a presença do Brasil teríamos mais, se não fossem as ONGs com um espaço. Dentro do pequeno escritório que era apenas do Governo, tinha uma alusão ao agronegócio dizendo que eles eram os amigos da proteção ambiental. E os índios sendo assassinados, as ONGs sendo criminalizadas, intimidadas e caluniadas. Os cientistas sendo desmoralizados e as estruturas sendo desmontadas.
P. Dados da Comissão Pastoral da Terra mostram que 2019 já bateu o recorde de mortes de indígenas no país na última década. Foram oito mortes até o momento. Por que tem ocorrido tantos casos?
R. Os criminosos estão se sentindo empoderados. Eles apostam na impunidade. O discurso de ódio, de descaso feito contra os índios, que nunca havia sido feito por nenhum Governo, estimula essas milícias rurais e florestais. Como se não bastassem as milícias urbanas agora temos as milícias rurais e florestais que assassinam pessoas com requintes de crueldade.
P. A resposta que o Governo tem dado aos últimos casos de assassinatos indígenas, com o envio da Força Nacional ao Maranhão, por exemplo, foi satisfatória?
R. Acaba de ser assassinado um adolescente indígena com a Força Nacional no Estado. Mas só vamos ver a violência arrefecer quando se investigar e punir os mandantes e os executores dos crimes. Tem de se passar uma mensagem de que não haverá mais qualquer expectativa de impunidade. Fazer um trabalho de inteligência para identificar esses grupos organizados que estão orquestrando esses crimes contra os índios e contra as populações locais que resistem contra o desmatamento e a exploração ilegal de madeira.
P. E no caso da prisão dos brigadistas de Alter do Chão. Há uma tentativa de criminalizar a atuação de ONGs, na sua opinião?
R. É algo que precisa ser acompanhado com todo o rigor pelas organizações de Direitos Humanos e pela imprensa. Porque as investigações, tanto da Polícia Federal quanto do Ministério Público Federal, apontavam um grupo de grileiros e criminosos que desmatavam a terra. Não havia qualquer indício de envolvimento daqueles jovens. No entanto, o delegado e o juiz prenderam aqueles jovens. O risco é de que, com a visão autoritária do Governo, eles estejam fabricando fatos para dar credibilidade às suas narrativas. Inventam narrativas e podem depois estar construindo fatos para dar base a elas. As pessoas estão se sentindo intimidadas, perseguidas, injustiçadas.
P. O que podemos esperar para o meio ambiente em 2020? Consegue ver algo positivo?
R. Se o Congresso Nacional suspender a tramitação de todos os projetos contrários ao meio ambiente e aos índios, pode ser algo positivo. O projeto de mineração em terras indígenas passará pelo Congresso, assim como a medida provisória da grilagem, as leis que tentam reduzir reserva legal e diminuir unidades de conservação também. Se os presidentes da Câmara e do Senado não admitirem retrocessos, eles podem retirar da pauta esses projetos antiambientais. Isso será uma coisa boa. Mas só isso não basta, porque o Governo continuará com a prerrogativa de enfraquecer as ações do Ibama, do Inpe, do ICMBio, sem dar apoio a fiscais e gestores ambientais. Essa é a primeira vez que temos um Governo e um ministro antiambientalistas.
P. O Governo Bolsonaro estuda reeditar o decreto de Michel Temer que extinguiu a Renca. Qual é a sua opinião sobre esse movimento?
R. Na época do Temer ele tentou e a mobilização da sociedade o impediu. Espero que a mesma sociedade ajude a impedir. E a Justiça sobretudo faça esse impedimento. Se ele reeditar o decreto, haverá um conjunto de ações. Se chegar a esse ponto, a Justiça brasileira pode cumprir um grande papel. Como já o fez quando impediu que a Funai saísse do Ministério da Justiça e fosse para o Ministério da Agricultura. Mineração na Renca é um crime de lesa-pátria porque será um grande prejuízo ambiental para aquela imensa área preservada.
El País: Alberto Fernández defende agenda com Brasil maior que “diferenças pessoais” entre seus líderes
Em discurso de posse, novo presidente argentino promete relação “ambiciosa, criativa e fraternal” com o Brasil
O presidente Alberto Fernández tomou posse nesta terça-feira fazendo uma descrição dramática da situação na Argentina. Disse assumir o governo de um país “praticamente em moratória” e “com 40% da população em situação de pobreza”, e em referência à dívida, lançou uma mensagem transparente: “O país tem a vontade de pagar, mas não tem recursos para isso”. A crueza empregada para falar da crise econômica contrastou, por outro lado, com o tom conciliador do seu discurso de posse. Perante as duas câmaras do Congresso e numerosos convidados estrangeiros, Fernández fez um apelo à fraternidade e a “superar o muro do rancor e do ódio” na política. “Quero ser o presidente que escuta, o presidente do diálogo.” Sobre o Brasil especificamente, disse, ainda no tom conciliatório, que quer construir uma agenda "ambiciosa, inovadora e criativa em temas de tecnologia, produção e estratégia, que esteja respaldada pela irmandade histórica de nossos povos que é mais importante que qualquer diferença pessoal de quem governa". O presidente brasileiro Jair Bolsonaro não foi à posse, e enviou seu vice, Hamilton Mourão.
A posse do novo presidente argentino refletiu um fato importante: diferentemente de outros países latino-americanos, e apesar do drama econômico e social, a Argentina goza de uma saudável normalidade institucional. Alberto Fernández entrou no plenário, onde se reuniam deputados e senadores, empurrando a cadeira de rodas da vice-presidenta em final de mandato, Gabriela Michetti, que é paraplégica. Foi um gesto simples, mas que conferiu humanidade à cerimônia. Depois Mauricio Macri, entregando a faixa e o cetro presidenciais, teve que suportar que a nova maioria cantasse aos brados a Marcha Peronista, e que sua velha rival, a vice-presidenta Cristina Fernández de Kirchner, lhe oferecesse um cumprimento gélido. O agora ex-presidente soube se despedir com elegância. Nestes tempos, isso é muita coisa.
Fernández recordou, por seu tom e suas palavras, Raúl Alfonsín, o presidente que insistiu em receber o bastão de comando (usurpado até então por uma atroz ditadura militar) em um 10 de dezembro, o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Fernández, peronista, iniciou sua carreira política na administração de Alfonsín, um membro da União Cívica Radical pelo qual desde então sente um grande afeto. O novo presidente recorreu a uma conhecida frase de Alfonsín, “com a democracia se come, se cura e se educa”, para expressar seu desejo de que o diálogo caracterize seu mandato. “Se alguma vez me desviar do compromisso que assumi, saiam à rua para me recordá-lo”, pediu. Também utilizou com frequência a fórmula “nunca mais”, muito citada desde que o promotor Julio Strassera a usou para encerrar os julgamentos das Juntas Militares da ditadura.
O peso da dívida
Como primeira medida, Fernández jogou na lixeira o orçamento redigido pelo governo antecessor. Explicou que não era possível fazer projeções econômicas sem antes resolver a questão da dívida, a ser renegociada urgentemente com o Fundo Monetário Internacional e com os credores privados. Trata-se de um problema monstruoso. Sob as atuais condições, em 2020 a Argentina enfrentará vencimentos de mais de 58 bilhões de dólares (232,3 bilhões de reais), 36 bilhões (149,3 bilhões) em 2021, e quase 50 bilhões (207,4 bilhões) em 2022, somando as dívida em dólares e em pesos. “O país tem a vontade de pagar, mas não tem os recursos para isso”, admitiu. “Para poder pagar, primeiro é preciso crescer.” O projeto do governo peronista se centra em conseguir que o FMI adie por dois anos o reembolso da parte principal e dos juros da dívida, para dedicar esses 24 meses a recuperar certa estabilidade e relançar uma economia que não cresce desde 2010.
Fernández proclamou que, paralelamente à renegociação da dívida, sua prioridade seriam os mais desfavorecidos, 40% da população que vive na pobreza, sendo 12% mergulhados na miséria, e advertiu que os mais acomodados deveriam fazer “uma maior contribuição” na forma de impostos. “Seriedade na análise e responsabilidade nos compromissos que assumidos para que os mais fracos deixem de sofrer: sob essas premissas confrontaremos toda a negociação da nossa dívida”, afirmou.
Como mecanismo para regular o funcionamento da economia, com objetivos de longo prazo e com políticas de Estado, anunciou a criação de um Conselho Econômico e Social. Também declarou uma “emergência sanitária” para enfrentar a crise da saúde pública: sob o mandato de Macri, o orçamento da saúde caiu 45%. Comprometeu-se também a dirigir “com absoluta transparência” os recursos das obras públicas (houve pouquíssima transparência nesse âmbito durante o mandato de sua hoje vice-presidenta).
Um presidente peronista é obrigado a oferecer um gesto inaugural de bom populismo, e Fernández suscitou um grande aplauso quando anunciou uma intervenção na Agência Federal de Investigação, cujo histórico recente é sinistro, e a supressão completa de seus recursos reservados – esse dinheiro se destinará ao plano contra a fome. “Nunca mais Estado secreto, nunca mais porões da democracia!”, exclamou.
A espionagem política contribuiu para o descrédito da Justiça argentina nos últimos anos, e nesse terreno o presidente enfrenta um campo minado. Quer promover uma “reforma integral” do sistema federal de Justiça para acabar com “as perseguições indevidas”, os “dossiês contaminados” pelos serviços secretos e os “linchamentos midiáticos”. “Nunca mais uma Justiça que persegue segundo os ventos políticos”, disse – mas terá que fazer isso sem dar a impressão de que seu objetivo se limita a salvar sua vice, imputada por corrupção em numerosos processos.
A ex-presidenta adotou uma atitude discreta ao assumir o novo cargo de vice. O protagonismo foi para Alberto Fernández, que reconheceu a “visão estratégica” de Kirchner ao abrir mão da sua própria candidatura, muito divisora, e entregar-lhe a cabeça da chapa que se impôs rotundamente à dupla Mauricio Macri/Miguel Pichetto nas eleições de novembro.
Alberto Fernández dedicou o trecho final de seu discurso a prometer que lutaria para “erradicar a violência contra as mulheres” (surpreendeu que não mencionasse seu compromisso eleitoral de legalizar o aborto) e acabar com a discriminação por raça, gênero, sexualidade ou qualquer outra razão. Nas primeiras filas aplaudia seu filho Estanislao, de 24 anos, desenhista, funcionário administrativo de uma seguradora e transformista. “Voltemos a ganhar a confiança do outro”, pediu o presidente, antes de relembrar que ao final do seu mandato a democracia argentina completará 40 anos.
“Quero que sejamos recordados por termos conseguido voltar a unir a mesa familiar, por termos sido capazes de superar a ferida da fome, por termos superado a lógica perversa de uma economia que gira ao redor da desorganização produtiva, da cobiça e da especulação”, desejou.
Alberto Fernández concluiu seu pronunciamento com uma alusão a seus pais e com lágrimas nos olhos. Depois de muitas saudações e abraços, se dirigiu no seu veículo particular à Casa Rosada, onde deu posse a seus ministros e acenou do balcão à multidão que, sob intenso calor, lotava a praça de Mayo.
El País: Argentina se despede de Mauricio Macri e se abraça ao peronismo
Alberto Fernández assume nesta terça-feira como presidente com a urgência de resolver a crise econômica e renegociar a dívida externa. Mourão vai representar o Brasil na posse
A Praça de Maio de Buenos Aires, cenário da memória política da Argentina, vivenciou uma noite de domingo muito agitada. Dezenas de operários retiraram a grade que desde as revoltas de 2001 a dividia de lado a lado e protegia a Casa Rosada das manifestações. Alberto Fernández, que na terça-feira substituirá Mauricio Macri como presidente, pediu a retirada da grade para que a praça sirva para “acabar com as divisões e unir a Argentina”. Não existirá mais grade, assim como primavera política: Fernández receberá um país que está há dois anos em recessão e tem urgência em renegociar uma dívida externa que se tornou impagável.
As manifestações chegarão agora às portas da sede do Governo, onde já se montou um palco para a festa que virá após a entrega de comando. A Argentina iniciará assim uma nova etapa, marcada pelo retorno do peronismo ao poder — que não é bem vista pelo Governo do vizinho Brasil. Jair Bolsonaro, que já havia lamentado a eleição de Fernández, não vai à posse. Decidiu mandar como representante, de última hora, seu vice, Hamilton Mourão, num "gesto político", segundo o próprio vice. É a primeira vez em 16 anos que um presidente brasileiro não prestigia a troca de comando no país vizinho.
Quando Fernández receber o cetro de comando das mãos de Mauricio Macri terão acabado quatro meses de uma transição envenenada. A derrota governista nas eleições primárias de agosto obrigou Macri a pilotar sem poder a crise econômica que prejudicou a parte final de seu mandato. Em 27 de outubro, as urnas ratificaram a vitória de Fernández em primeiro turno. O Governo anunciava à época que não poderia cumprir com os pagamentos da dívida contraída com donos de bônus privados e com o Fundo Monetário Internacional e impunha um torniquete cambiário para deter a sangria de reservas do Banco Central.
Em um gesto político, o presidente @jairbolsonaro me designou para representá-lo na posse do presidente da #Argentina Alberto Fernández @alferdez . Parto agora de Brasília rumo a Buenos Aires.
Urgido pelo calendário de vencimentos, Fernández terá menos de um semestre para revolver o problema da dívida e apenas poucas semanas para acalmar a ansiedade de seus eleitores, necessitados de respostas rápidas diante da perda do poder aquisitivo de seus salários e da inflação, que nesse ano superará 55%. O homem escolhido para resolver a herança recebida se chama Martín Guzmán, um discípulo do Nobel Joseph Stiglitz, que Fernández repatriou da Universidade de Columbia (Nova York).
Guzmán, de 37 anos, é um especialista em processos de renegociação de dívidas externas, mas sua experiência política é nula. Em novembro, o economista apresentou às Nações Unidas um plano sobre a dívida argentina. Disse à época que Buenos Aires não deve pagar capital e juros até 2022; evitar novos empréstimos do FMI; e neutralizar qualquer hipótese de quebra. Durante o período de indulto, a Argentina reordenará suas contas para tornar “sustentável” a dívida a médio prazo.
Fernández encontrará uma situação econômica debilitada por dois anos consecutivos de queda do PIB (a CEPAL estima -3% para 2019, a pior da região depois da Venezuela e Nicarágua) e um aumento da pobreza a 40%, o maior número em quase 20 anos. O novo presidente apressará a declaração de “emergência econômica”, uma fórmula que lhe permitirá fazer mudanças estruturais por decreto, sem passar pelo Congresso. Para lutar contra a inflação, tentará um grande acordo em que participarão sindicalistas e empresários dispostos, os primeiros, a moderar seus pedidos salariais; e aumentos de preços, os segundos.
Macri e Fernández se abraçam durante um ato religioso realizado no domingo.
Outro cenário de conflito será o Congresso. Fernández contará ali com a espada de Cristina Kirchner, que como vice-presidenta terá sob sua responsabilidade a titularidade do Senado. Kirchner teceu uma rede de apoios que lhe permitirá controlar a Câmara Alta sem problemas. Seu filho, o deputado Máximo Kirchner, liderará o bloco governista na Câmara Baixa. A ex-presidenta será uma figura em que valerá prestar atenção durante o novo Governo. Tão repudiada quanto amada, o desenvolvimento das causas judiciais por suposta corrupção que amealhou durante o macrismo será teste do nível de autonomia dos tribunais.
Macri, enquanto isso, se despediu em câmera lenta. Na quinta-feira fez um balanço muito otimista de seus quatro anos como presidente em uma mensagem gravada que foi retransmitida em rede nacional (em todas as rádios e televisões do país). Durante 40 minutos, limitou a autocrítica ao desempenho econômico e descreveu o que considera os sucessos de sua gestão; a integração da Argentina no mundo, instituições mais sólidas, uma justiça mais independente, uma melhora energética e estatísticas oficiais confiáveis.
Dois dias depois, subiu em um palco na Praça de Maio para dizer adeus aos seus partidários. Ao ritmo de Volví a Nacer, de Carlos Vives, milhares de pessoas cantavam “Você foi o respiro e a esperança era tão grande” instantes antes de Macri aparecer acompanhado de sua esposa, Juliana Awada, e de seu candidato a vice-presidente, o ex-kirchnerista Miguel Ángel Pichetto. “Obrigado, obrigado, obrigado”, repetiu várias vezes o presidente, emocionado às lágrimas. “Esse coração já é mais de vocês do que meu”, disse à multidão, muito inferior aos atos anteriores como o realizado na avenida 9 de Julho dias antes das eleições.
Macri lamentou os supostos “entraves” colocados pelo peronismo durante seu mandato e enviou uma mensagem a seu sucessor: “Pode ter certeza de que após muito tempo irá encontrar uma oposição construtiva e não destrutiva. Encontrará uma oposição firme e serena que defenderá a democracia, a qualidade institucional e nossas liberdades”.
Na mesma noite, Macri divulgou através das redes sociais um vídeo chamado Momentos em que mostra sua faceta mais íntima. “Há tempo para as ambições. Para 2021, para 2023...”, diz no documentário, gravado em primeiros planos que procuram ressaltar a emoção da mensagem. No vídeo, prevê um futuro difícil à coalizão de Fernández pelas múltiplas correntes internas que se uniram para apoiar sua candidatura. “Quando tantos se juntam antes de uma festa, é difícil que a festa dê certo. O DJ precisa ser muito bom”, frisa.
Apesar de suas palavras, o macrismo é hoje o principal afetado pelas divisões, após o abandono de três deputados nacionais e a ruptura de seu bloco na província de Buenos Aires, a maior e mais povoada do país.
O último ato público do presidente antes da entrega do comando foi domingo em Luján. Participou de uma missa pela paz realizada diante da basílica da cidade em que Macri e Fernández se abraçaram em um gesto de harmonia sem precedentes. A partir de terça-feira se verá se não se limita a uma fotografia.
El País: 'Todo dia a esquerda cancela alguém, mas não vemos propostas. Virou radicalismo de Twitter', diz Rosana Pinheiro-Machado
Antropóloga lança o livro ‘Amanhã vai ser maior’, no qual apresenta visão esperançosa sobre as gerações mais jovens e as novas agendas do ativismo no Brasil e no mundo
Por Felipe Betim, do El País
Ao longo de vários anos de pesquisa de campo, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado esteve em contato com trabalhadores informais da base da pirâmide brasileira, ouvindo suas demandas e anseios. Ela também vem pesquisando de perto as manifestações e movimentos que explodiram a partir de junho de 2013, passando pela nova geração de feministas, os encontros de jovens da periferia em shoppings que ficaram conhecidos como rolezinhos, as ocupações nas escolas pelos secundaristas, a greve dos caminhoneiros... Professora da Universidade de Bath (Reino Unido) e colunista do site The Intercept, ela transformou o que acumulou em anos de pesquisa em seu novo livro, Amanhã vai ser maior: O que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual (Editora Planeta).
Resposta. Não só o Brasil, mas o mundo todo, tem ido constantemente às ruas no século XXI. Com características muito diferenciadas, respondendo a demandas nacionais fundamentalmente, mas colocando as pessoas nas ruas de forma que os movimentos tradicionais não compreendem. Então, por um lado, [vai ser maior] por causa deste Brasil que é insurgente e politizado desde junho de 2013 e com o advento das novas tecnologias. Por outro lado, há esperança por conta da luta de vários movimentos que surgiram após junho de 2013. São movimentos que já existiam, como o feminista e o negro, mas vemos a formação de uma nova geração extremamente politizada. Não víamos antigamente nas periferias, e em vários lugares do país, uma geração de meninas feministas. É algo completamente inédito na sociedade brasileira. Essa juventude está sendo disputada à esquerda e à direita.
R. Vejo como um processo. Essa explosão no Brasil eu chamo de revolução, mas no sentido antropológico, de uma quebra de estrutura social, não no sentido da teoria política. Junho de 2013 não proporcionou isso, mas é um marco, fruto de processos democráticos e lutas históricas que foram ocupando o poder, se institucionalizando, criando espaços nas escolas e as cotas, reformando currículo... É todo um Brasil que se preparou para isso. A maturidade da Internet nos anos 2010 também proporciona o surgimento dessa subjetividade insurgente. E, para mim, a grande diferença é que esta geração é muito mais autonomista, muito mais democrática, com muitos coletivos. Você vai numa escola e vê 10 grupos feministas, não apenas um DCE centralizador. É uma geração que se expressa de maneira muito mais horizontal. Não é perfeito, a gente sabe de todos os conflitos e contradições que existem, mas há uma lógica muito mais democrática e horizontal. E também pouco partidária. De alguma maneira esta geração inclusive rejeita os partidos.
R. Esse é o grande conflito. Você tem a CUT, mas muitas vezes essa nova geração não quer ir a um protesto com a bandeira da CUT ou mesmo do PT. E há uma esquerda que não consegue ver os frutos e sementes de Marielle Franco. É uma esquerda institucionalizada, que sofreu um golpe, é verdade, mas que não consegue abarcar essas novas lideranças e novos movimentos. Vai para a rua com caminhão de som, mas estamos falando de uma geração totalmente contrária ao caminhão de som.
R. O PSOL se abre um pouco mais para isso, mas quem são os novos quadros do PT? Muito difícil você reivindicar novas juventudes no partido. A gente precisa de um quadro de renovação no próprio PT, ele ainda é o maior partido do Brasil. Há uma carência de novas figuras. É preciso ampliar, renovar mesmo. E há uma insegurança da esquerda com essa geração que ocupa as ruas. Não raro a esquerda culpa junho de 2013 por tudo que aconteceu, já que não controla essas pessoas, não é algo centralizado. É muito mais fácil acusar de golpista e não fazer mais nada do que trabalhar politicamente. Precisa negociar, disputar essas multidões, e não culpá-las. A esquerda até quer a multidão, desde que seja controlada por bandeiras. Se não for, ela se torna um risco. Isso é o oposto de um processo de politização e da camaradagem, o que significa trabalhar dentro de uma lógica universal, de amor.
R. É um problema da classe política de modo geral. Mas, ao mesmo tempo, vemos o MBL [Movimento Brasil Livre], que cresceu absurdamente com um discurso juvenil, com uma estética jovem, subversiva... Mas essa crise institucional partidária ficou escancarada em 2013. Já não havia engajamento partidário há muito tempo. A crise é profunda, há uma indignação e uma vontade por politização e processo democrático imenso. Tenho diferenças ideológicas com correntes como o Renova ou MBL, mas acho extremamente positivo que esses diferentes grupos transversais se apropriem da política. O Muitas e a Bancada Ativista estão conseguindo inovar dentro de uma lógica partidária. São movimentos que mostram o esgotamento generalizado do modelo partidário, mas que conseguem incorporar essas novas demandas, apesar das contradições. A população não se vê naquele modelo, então você tenta fazer algo mais transversal e entra na lógica partidária. Como isso funciona na prática é difícil, como vem sendo esse conflito entre a Tabata do Amaral [do Acredito] com o PDT.
R. Tenho até dificuldade de compreender essa ideia de manifestação espontânea. Eu também não concordo. A Internet ajuda no contágio, na explosão, mas sempre tem alguém por trás. Os grupos de direita estão organizados desde os anos 2000 e começam a ver oportunidade e a se apropriar de slogans como “vem pra rua”, “hospital padrão Fifa”... A greve dos caminhoneiros foi muito mais um pavio que se acendeu e explodiu, com um papel do WhatsApp muito forte. Os rolezinhos, que começaram em 2013 e ganharam força em 2014, era uma organização de jovens via grupo de Facebook. Mas aquilo refletia um momento da Internet que não existe mais.
R. Não tínhamos filtros bolha nas timelines. Com os algoritmos fica muito mais difícil conseguir essa mistura que tivemos em junho de 2013. A Internet mudou. Por outro lado, você pode ter coletes amarelos, greve dos caminhoneiros... Com pautas específicas e com multiplicidade de vieses ideológicos. Isso vai acontecer mais ainda. Vamos ainda ver a revolta do Uber e vai ficar todo mundo dizendo que eles são fascistas (risos).
R. Eu começo o livro falando sobre esses momentos mais paradigmáticos e que, de alguma maneira, mudaram o mundo. Houve um alerta de que as coisas não estavam boas. E a partir dali houve uma mensagem que a extrema direita acabou se apropriando. Mas depois, quando critico a esquerda, explico que a direIta está se organizando desde os anos 2000, com think tanks e organizações bilionárias por trás. Absolutamente nada é espontâneo. Quem foi atacado por blogueiros de direita como Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino ou Reinaldo de Azevedo já sabia, mesmo antes de 2013, que havia uma horda fascista pronta. O discurso antipetista foi sendo forjado.
R. São as mesmas ideias, citam os mesmos autores fascistas para dizer que há um colapso da civilização ocidental. Há supremacistas, masculinistas, anarcocapitalistas... E brigam entre eles todos, mas querem destruir um inimigo em comum. Estão usando o YouTube e blogs há muito mais tempo e oferecem respostas com raiva e indignação. O Brasil entrando numa crise profunda, multidimensional, econômica fundamentalmente, e eles chegam para dizer “olha, o problema é que tudo foi dado para a feminista e nada para você, trabalhador”. Isso se alinha muito bem com os evangélicos e a tradição religiosa que aponta para o problema da família e da moral em colapso. Passou desapercebido desse mundo establishment que colapsou e ninguém mais sabe como voltar.
R. A segunda metade do século XX, principalmente a partir de 1968, trouxe grandes progressos para os direitos civis, das mulheres e da população LGBT, mas essas conquistas históricas tiveram reação. Esse é sempre um processo de ação e reação. Michael Kimmel, um sociólogo de que gosto muito, escreveu sobre o “homem branco raivoso”. Ele termina a introdução dizendo que se há uma curva ascendente na história da humanidade é a conquista das mulheres, e que essa curva continua ascendente. São muitas as conquistas, mas como a gente é soterrado pela vitória da extrema direita, não conseguimos enxergar as conquistas dessa juventude e que também elegemos a maior bancada feminista, a primeira deputada indígena... E nem acho que a extrema direita seja só uma reação a isso, as duas coisas estão coincidindo e está muito em disputa ainda. O capítulo do meu livro que resume isso é “a extrema direita venceu, as feministas também”. Há esse avanço das lutas por modos de vida e é dali que vem alguma esperança de conquistas.
“A direta está se organizando desde os anos 2000, com think tanks e organizações bilionárias por trás. Absolutamente nada é espontâneo”
P. Se é uma disputa, o lado obscurantista pode acabar ganhando. Como o campo progressista deve se organizar?
R. Em primeiro lugar precisa disputar as pessoas, online e offline, e parar com a ideia de que existe uma cisão entre os dois. Você tem que voltar para a periferia para ver que a pessoa está sendo assaltada na parada de ônibus às onze da noite e que quer segurança pública, mas também precisa saber disputar as redes dentro de uma perspectiva de diálogo. Quando as insurgências e contradições vierem, e todos os trabalhadores trazem contradições, é preciso trabalhar para recrutar essas pessoas e trabalhá-las politicamente. Mesmo antes das fake news a direita já fazia isso muito bem. A gente precisa fazer material de qualidade com uma linguagem popular e aberta, que dê respostas à população. Em segundo lugar, temos que fugir do populismo. Significa que não podemos dizer que a solução para a segurança pública é dar armas para as pessoas, mas sim oferecer um projeto para a população. E hoje não enxergo para onde as esquerdas estão indo com relação a projetos. Elas ainda estão na defensiva. É horrível o que aconteceu, mas é preciso trabalhar na construção de alianças democráticas. Primeiro para derrotar o fascismo e, depois, para construir programa de emprego e trabalho no século XXI, na educação, na saúde... A esquerda britânica está aí falando, está sonhando, está sendo radical... No Brasil, a gente só vê radicalismo da esquerda na Internet, nos xingamento e na lacração. Mas em termos de propostas, o que há de radical, de revolucionário, na esquerda brasileira? Que diga para um trabalhador que há um caminho? Quem tem a coragem de ser visionário, de ousar, de ser louco, de pensar algo que ninguém pensou?
P. O ex-presidente Lula atrasa essa renovação e esses novos projetos?
R. Lula teve um julgamento extremamente injusto. Todo mundo tem direito fundamental a um julgamento neutro. Então o “Lula Livre” é uma questão de justiça histórica, de democracia. Ponto. Mas a gente precisa avançar para além de Lula, e também para além de sua própria figura. Sem negar o papel fundamental que ele tem, mas buscando novas lideranças.
P. Acredita então que a esquerda replica estratégias de violência nas redes que a extrema direita aplica?
R. Vejo isso entre alguns setores petistas, além de outros da esquerda. É um processo de radicalização da agressividade, da violência, do escracho, do cancelamento. É extremamente violento. Neste ponto sou totalmente freiriana. Paulo Freire dizia que corremos o risco de ter uma esquerda magoada, de corte ressentido e vingativo. E de cairmos no mesmo rancor da extrema direita. Essa luta se transformou numa luta revanchista e vingativa, em grande parte. Parece que não fazemos mais nada, que ficamos no Twitter cancelando as pessoas, apontando o dedo para quem não é puro. A gente já tem uma lógica de não recrutar “porque é fascista”. E quem está dentro, você vai cancelando até sobrar muito pouco. Isso é muito danoso, o oposto da esquerda. A esquerda é um princípio humanista e da camaradagem, o oposto do cancelamento. Há varias pessoas da esquerda e do centro que estão com muito medo de se manifestar na Internet. E ninguém acha que está linchando, todo mundo diz que só está “criticando”. Mas é um comportamento de manada, alguém faz um comentário, o outro vai lá responder e em pouco tempo uma nuvem já trucidou a pessoa. Todo dia vemos um cancelamento diferente, mas não vemos programa. Virou radicalismo de Twitter, não de proposta.
“Em termos de propostas, o que há de radical, de revolucionário, na esquerda brasileira? Que diga para um trabalhador que há um caminho?”
P. Existe o risco de crescimento da esquerda autoritária?
R. É um movimento crescente, porque provavelmente ela tenta acreditar que quem derrotou o fascismo foi uma esquerda stalinista. Além de reeditar todos os métodos violentos, isso tem um efeito muito perigoso nos jovens. Sou especialista em China e vejo que há um revisionismo da história chinesa, com influencers neo-maoístas dizendo que não há presos políticos na China. E se alguém fala sobre autoritarismo do Estado chinês, pedem provas de que existem presos políticos, mesmo com todas as evidências científicas e jornalísticas indicando que a ditadura chinesa prende. É terraplanismo, mesmo. Todas essas correntes autoritárias estão crescendo absurdamente nos movimentos estudantis, entre jovens que sequer sabem direito quem foi Mao ou Stalin. Então essa geração com a qual estou muito animada pode ser levada para esse caminho autoritário.
P. Os radicais da Internet representam a maioria ou há demanda por mais moderação no discurso?
R. Assim como vejo essa esquerda do cancelamento, que cresce muito e que tem força, vejo um público cada vez maior sedento e desesperado por pessoas que sejam abertas ao diálogo. Elas não têm referências ainda, mas estão buscando a nuance e a contradição do processo. E estão completamente órfãs. Então precisamos de uma esquerda que ocupe os canais de comunicação e que consiga um projeto de falar para a população, com todas as suas contradições. Significa falar com o caminhoneiro que quer intervenção militar e ao mesmo tempo queria Lula. Estou convencida de que há uma demanda por essas figuras. As pessoas estão sofrendo com essa radicalização, que não leva a nada, não é programática e não melhora a vida de ninguém.
P. Em entrevista ao EL PAÍS, o sociólogo de Pedro Ferreira de Souza, que estuda a desigualdade social, afirmou que o trabalhador industrial do ABC paulista está mais perto do topo da pirâmide, enquanto que a maioria nunca teve direito algum. A ideia de trabalhador também ficou arcaica?
R. Isso é fundamental. Esse trabalhador ideal não existe. Além de ser um extrato muito pequeno da pirâmide brasileira, esse trabalhador inclusive politicamente não existe. E a tendência é de flexibilizar cada vez mais. Se pensarmos no protótipo do trabalhador brasileiro hoje, tem que pensar no motorista de Uber. Ele compra um carro, vai trabalhar 15 horas por dia, está cansado, mas quer continuar tendo um carro e vai colocar alguém para trabalhar para ele. Esses dias conheci um motorista que disse que trabalhava 24 horas por dia e que dormia dentro do carro, para que com 30 anos tenha dois trabalhadores para ele na mesma lógica. Não acho que isso seja 100%, preto no branco, porque esse trabalhador também está indignado e quer transporte público, saúde e benefícios sociais. Durante 10 anos estudei economia informal, e o sonho de todo camelô, com todo aquele discurso empresarial, é ter a carteirinha de trabalho. As pessoas querem ter a dignidade de ter direitos, mesmo que reproduzam esse discurso do empreendedorismo. Existe um processo de flexibilização, mas também temos que trabalhar para prover mais direitos para essas pessoas. Acho que o MEI, com todas as dificuldades, foi uma tentativa de legalizar essas pessoas e de oferecer um sistema de Previdência.
“Vejo um público cada vez maior sedento e desesperado por pessoas que sejam abertas ao diálogo”
P. Como avalia a estratégia da esquerda ao lidar com a reforma da Previdência?
R. Ela ficou na base da negação, com nada de propositivo, apenas no revanchismo. Ela foi inábil e ao mesmo tempo ficou na lógica revanchista, dizendo para o trabalhador “seu pobre, você se ferrou”. Falando para uma população que não necessariamente será afetada pela reforma da Previdência. A população brasileira historicamente está na economia informal, com poucos direitos e que não vai estar lá, nas ruas, lutando por eles. O discurso de retirada de direitos trabalhistas e da aposentadoria não necessariamente pega nessas pessoas. De novo, é mais fácil cancelar. Você pensa a partir de uma linguagem estrita de uma esquerda do século XX, e não consegue responder às pessoas de carne e osso que estão vivendo as contradições do processo. É obvio que temos que lutar pela Previdência e por mais direitos, mas isso não faz sentido nenhum para a base da população.P. Acha que a esquerda precisa dialogar com centristas, liberais e setores da direita?R. No aspecto institucional temos hoje que fazer aliança com todo mundo que quiser derrotar Bolsonaro. E isso é fundamental em todas as frentes, inclusive com setores do PSDB que estiverem dispostos a fazer isso. Se FHC fizer a frente, tem que se aliar inclusive com FHC. Quando penso em uma frente, nela tem que estar inclusive uma direita que se denomina democrática. Não é uma aliança para pensar programa, mas de frente democrática, para barrar todos os retrocessos. E para isso é preciso dialogar com todos.
“A violência estrutural que afeta o pobre favelado também afeta o policial. Temos que falar com ele”
P. Como encara a morte dos dez jovens de Paraisópolis no atual contexto político e como enxerga as reações?
R. Evidentemente se trata de mais um episódio que se soma ao genocídio da população negra no Brasil. Essas populações sempre foram desumanizadas, vulnerabilizadas e mortas. Parte da bolha que apoiou a ação policial argumentava que não eram jovens se divertindo, mas sim vagabundos, pessoas que não tinham o que fazer. Estudei os rolezinhos e vi diferença de percepção de lazer de jovens pretos e periféricos e de jovens de classe media alta. Quando há uma tragédia semelhante num baile de camadas médias brancas, essa mesma bolha consegue ver as vítimas como pessoas dignas de luto. E o outro lado é tratado com frieza e desumanidade. Tudo isso é histórico, mas vemos agora uma legitimação inédita por parte dos governos Federal e estadual, com um discurso oficial de que esses policiais estão autorizados a matar e depois são coroados. Por outro lado, vi uma reação positiva na bolha progressista, o que desperta a possibilidade de que isso seja uma fagulha para que movimentos sociais saiam às ruas. Às vezes um fato pode ser disparador de comoção. O grande desafio é ver se há possibilidade maior de contágio, que não se deixe que a pauta do próximo dia tome conta e faça a gente esquecer do ocorrido. Esse massacre precisa continuar sendo algo que trabalhe nossa indignação contra esse novo Brasil marcado pela bala.
P. Como os movimentos sociais e o campo progressista devem abordar a questão da violência policial? Acredita precisam disputar os policiais com a extrema direita?
R. Enquanto nós estivermos um estado policial, devemos disputar os policiais. Como mostram os trabalhos do pesquisador Rafael Alcadipani, o policial militar está entre as profissões com maior nível de estresse, pelo contexto da violência e precariedade da profissão, atentando contra toda a família do policial. É uma classe extremamente precarizada, que sofre depressão e com altas taxas de suicídio. A mesma violência estrutural que afeta o pobre favelado também afeta esse policial, ele mata por ódio e acaba ferrado psicologicamente. Temos que falar com policiais. Claro que parte da esquerda vai dizer que precisam desaparecer, mas a polícia existe. E existem grupos de esquerda e antifascistas na polícia que fazem um trabalho nesse sentido. Evidentemente tem que alargar o discurso para esses setores e trabalhar a questão da violência estrutural.
Juan Arias: Sergio Moro rumo à disputa eleitoral
Ex-juiz afirma que afirma que Jair Bolsonaro é “uma pessoa muito digna”
Ex-juiz da Lava Jato, o ministro da Justiça do Governo, Sergio Moro, que declarou que o ex-presidente Lula pertence ao seu “passado”, afirma, ao mesmo tempo, que o presidente Jair Bolsonaro é “uma pessoa muito digna” —o mesmo que que avaliam, segundo ele, “todos que o conhecem de perto”. Já Bolsonaro, que começa a se apaixonar pelo ex-juiz da Lava Jato, diz que na política Moro “está indo bem pra caramba”. Eles até parecem querer disputar juntos a reeleição em 2022.
O encontro de Moro com Bolsonaro, tão criticado, não tinha começado com o pé direito. Chegou-se inclusive a pensar que Moro sairia do Governo. Hoje tudo parece ter mudado, e o ministro da Justiça não descarta concorrer como vice do mandatário, embora destaque, de forma diplomática, que seria melhor que continuasse como tal o general Hamilton Mourão, uma pessoa que disse “respeitar bastante”. Mas acrescentou que essa possibilidade de ser o próximo candidato a vice nas urnas deverá ser construída “lá na frente”, e que cabe ao presidente escolher. Será que já está tudo decidido?
Bolsonaro também está aprendendo a nadar nas águas da política e sabe que hoje as pesquisas dão mais votos a Moro que a ele mesmo. Desperdiçará essa chance? Votos são votos. “E quantos vices, além do mais, acabaram sendo presidentes do Brasil?”, poderá estar pensando Moro.
Restam poucas dúvidas, portanto, de que o ex-juiz se prepara para as urnas. Quanto mais ele nega com as palavras, mais perto aparece, em seus gestos e simbolismos, sua aproximação da política, algo que assombra os próprios profissionais dessa arte. Até o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que havia iniciado mal sua relação com Moro, lembrando que ele era apenas um “empregado do presidente”, hoje comenta, surpreso, que Moro “está aprendendo muito rápido a ser político”. Foi significativo o sorriso do ministro quando, dias atrás, numa reunião no Senado, ele foi apresentado de forma equivocada como “senador Moro”. O ministro comentou, lisonjeado: “É que eu tenho vindo tantas vezes aqui que estou virando senador.”
De uma relação inicial conflituosa, Bolsonaro agora tece elogios ao ministro, dizendo que, no campo político, “está indo bem pra caramba” e que ambos estão aprendendo a fazer política. Uma admiração que parece ser recíproca. Se alguém no início se perguntava o que Moro faria se episódios de corrupção aparecessem no Governo e se o caso Marielle se complicasse, Moro acaba de se antecipar.
Sabendo, de fato, que não deixará de haver escândalos de corrupção no Governo Bolsonaro, o ministro da Justiça se apressou maquiavelicamente em dizer que “sempre é possível haver casos de ilegalidade em qualquer governo”. Disse em seguida que o que ocorreu, porém, com os Governos do PT é que foram “esquemas sistemáticos de suborno e corrupção incrustrados na administração pública”. E acrescentou que as lideranças do novo Governo estão “dando um exemplo” nesse campo.
Cabe maior elogio ao Governo Bolsonaro? Ao mesmo tempo, o ex-juiz da Lava Jato justifica assim sua presença cada vez mais forte no novo Governo de extrema direita com o qual se identifica em sua tese de pulso firme contra os bandidos, que, na linguagem de Bolsonaro, “sempre serão melhores mortos do que vivos”.
Mas ainda falta um último passo para a plena inserção de Moro no Governo Bolsonaro. Ele precisará sair ileso das Forças Caudinas do Supremo Tribunal Federal (STF), que deverá julgar se anula ou não suas sentenças contra o ex-presidente Lula, a quem levou à prisão.
Se Lula for inocentado pelo Supremo com as sentenças anuladas, Moro sofrerá um grave revés de credibilidade que poderia frustrar sua carreira política. Até o momento, nesse jogo enigmático de linguagem mariana, cuja semântica deveria ser mais estudada, já adiantou, com sua proverbial frieza: “Lula faz parte do meu passado e acho que do passado do país”. Uma profecia ou um desejo inconsciente? Assim, Lula pertenceria ao passado do Brasil enquanto ele e o novo Governo Bolsonaro seriam seu presente e seu futuro.
Será?
Eliane Brum: Belo Monte, a obra que une os polos políticos
Duas vezes inaugurada, a primeira por Dilma Rousseff (PT), a segunda por Jair Bolsonaro (PSL), a polêmica usina denuncia o drama da democracia brasileira
A polarização entre o bolsonarismo e o petismo é uma realidade. Há outras realidades, porém. E é urgente que elas sejam vistas. Perceber o que quebra a polarização é tão importante —ou até mais— quanto perceber o que a mantém, se quisermos respeitar a memória para, com ela, criar uma história que respeite a Amazônia e os seus povos. Hoje não mais uma opção, mas uma emergência, já que sem a floresta em pé não há possibilidade de futuro. Belo Monte é a obra que demanda o enfrentamento das contradições. É isso o que mostra, mais uma vez, a inauguração —pela segunda vez— da usina erguida no rio Xingu, no Pará. Quem inaugurou a primeira turbina, em 5 de maio de 2016, foi Dilma Rousseff (PT), antes da conclusão do processo de impeachment. Quem inaugurou a décima-oitava e última turbina foi Jair Bolsonaro (PSL), em 27 de novembro. Ambos estavam orgulhosos. Sem enfrentarmos os porquês deste orgulho pela realização de Belo Monte, capaz de superar a atual polarização política do Brasil, seguiremos barrados como país.
A cerimônia de inauguração, transmitida ao vivo pela TV Brasil, é bastante esclarecedora. Jair Bolsonaro, que se fez acompanhar da mulher, Michelle, manteve-se calado. Coube a ele o ato simbólico de acionar a última turbina. O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), discursou. É bastante justo que o tenha feito. Não por ser governador do Pará, mas porque pertence ao partido que, junto com o PT, fez de Belo Monte uma obra possível. A arquitetura financeira da usina é alvo de investigação da Operação Lava Jato, já que há suspeitas de negociação de propinas pelo PT e PMDB com empreiteiras que formaram o Consórcio Construtor de Belo Monte. Márcio Lobão, filho de Edison Lobão (MDB), ministro de Minas e Energia durante parte do segundo mandato de Lula e durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff, chegou a ser preso em setembro deste ano por conta das investigações do propinoduto na construção de Belo Monte.
Vale sempre lembrar que, em 2010, ano do leilão da usina, a obra era orçada em 19 bilhões de reais. Hoje, é calculada em mais de 40 bilhões de reais, a maior parte dele financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Belo Monte é apresentada como a quarta maior hidrelétrica do mundo. É importante esclarecer, porém, que capacidade instalada —mais de 11 mil megawatts— é diferente do que efetivamente a usina vai produzir, aquilo que no jargão técnico se chama de “energia firme”. Como o rio Xingu vive metade do ano na seca, a média de produção de energia é menos da metade disso, uma das razões pelas quais cientistas e técnicos apontavam —e apontam— a inviabilidade da hidrelétrica.
É justo que Helder Barbalho, o herdeiro do clã Barbalho, que tanta história construiu e constrói no Pará e no Brasil, algumas ainda por serem devidamente contadas, faça as honras da casa. Não se deve esquecer a participação do PMDB, hoje MDB, no que veio antes e em tudo o que ainda acontecerá devido à construção de Belo Monte. O DNA de José Sarney esteve na retomada do projeto de Belo Monte no início do primeiro mandato de Lula, quando Dilma Rousseff era ministra de Minas e Energia, como esteve por décadas em tudo o que aconteceu no setor elétrico brasileiro. Agora, outra oligarquia da política nacional e do MDB fez questão de deixar suas digitais na obra mais controversa deste século.
O PT não estava sozinho na construção do “Belo Golpe”
O PT não estava sozinho na construção do que a população atingida chama de “Belo Monstro” ou “Belo Golpe”. Ao discursar, Barbalho preferiu definir a usina como “a maior obra de produção energética 100% brasileira”. Esta tecla, a do “100% brasileira”, tem sido muito batida, com o objetivo de exacerbar o nem tão novo tipo de nacionalismo que acomete parte dos brasileiros, o subserviente. Também serve para adicionar superlativos à Belo Monte, já que, sem isso, a maior hidrelétrica é Itaipu, dividida entre o Brasil e o Paraguai.
É interessante perceber como, apesar de seus detratores cíclicos, Freud segue atual. Sempre há algum ato falho, uma verdade que escapa, mesmo nos discursos mais estudados. Foi assim com Barbalho. A certa altura, ele agradeceu “a cada cidadã e cidadão que, ao longo dos últimos oito anos, dispensou a sua vida para esse empreendimento extraordinário que hora temos a oportunidade de entregar”. Extraordinário. É fato que milhares de pessoas tiveram seu modo de vida inteiramente destruído ao serem expulsas de suas casas, ilhas e terras e jogadas nas periferias urbanas de Altamira e de outras cidades da região. Algumas adoeceram e morreram. Outras foram assassinados no curso da violência que tornou Altamira a cidade mais violenta da Amazônia após a construção da usina. E há os que hoje vivem uma crise humanitária na Volta Grande do Xingu porque o rio está secando.
“Dispensou”, o verbo usado pelo governador do Pará, é um verbo justo. Apenas que estes homens e mulheres, adultos e crianças não “dispensaram” nem “dispensam” a sua vida porque assim decidiram, como uma espécie de sacrifício no altar do que alguns chamam de progresso. Ao contrário. Tiveram sua vida dispensada pela Norte Energia S.A., a empresa concessionária da hidrelétrica, pelos governos de Dilma Rousseff (presidente) e de Michel Temer (vice-presidente), e pelo judiciário que barrou o julgamento de parte das 25 ações produzidas contra Belo Monte pelo Ministério Público Federal. Tiveram sua vida dispensada também por todos aqueles que costumavam lutar pelos direitos humanos e, por conveniência política, deixaram de fazê-lo. Nesta dispensa de vidas há os que agiram —e há os que se omitiram. Ainda hoje é assim.
Ministro militar lembra que Belo Monte simboliza a continuidade do projeto da ditadura
Depois do discurso de Helder Barbalho, foi a vez de Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia do Governo Bolsonaro. Ele disse pelo menos uma verdade, importante para estabelecer as conexões históricas: “A conclusão desta obra, concebida na década de 70, no século passado, é marco histórico para nosso país. [...] Com sentimento de satisfação e alegria, vejo que somos testemunhas de mais um capítulo de prosperidade que contou, presidente, com uma visão estratégica: a concepção de uma política energética de Estado, criada há mais de 40 anos, com o uso da cultura da nossa academia, engenharia, indústria e da capacidade de empreendimentos nacionais”.
O militar Bento Albuquerque, almirante de Esquadra da Marinha que iniciou sua carreira em 1973, durante a ditadura militar (1964-1985), fez questão de sublinhar a continuidade —sem rupturas efetivas— da política energética e da política para a Amazônia instituída pelo regime de exceção e mantida durante a retomada da democracia. Belo Monte simboliza essa continuidade e desfaz, pelo menos neste campo, a polarização entre lulismo e bolsonarismo. Obra concebida na ditadura e barrada por décadas pelos povos indígenas e movimentos sociais do Xingu, a usina foi realizada pelos governos do PT, de Lula e de Dilma Rousseff. Como as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, Belo Monte é produto de uma visão de desenvolvimento para a Amazônia estruturada durante a ditadura militar que nunca deixou de estar presente nos governos da democracia.
Em nenhum deles, porém, essa visão foi tão vitalizada quanto nos governos do Partido dos Trabalhadores. Na construção da obra, em si, mas também na forma como Belo Monte foi imposta às populações atingidas e ao país. Do leilão à inauguração desta última turbina, a hidrelétrica pode ser contada por uma sequência de violações de direitos humanos, animais e ambientais em conluio com os governos e com a conivência de parte do judiciário.
Belo Monte, como já demonstrei amplamente em artigos publicados desde 2011, foi construída num microcosmo de exceção. Isso está amplamente demonstrado pelos fatos expostos em reportagens, relatórios científicos e ações do MPF. Um dia, se restar algum resquício de democracia no Brasil, essas violações serão julgadas. É importante que as ações sejam desbloqueadas e se recupere o fluxo da justiça. É também neste ritual que se recupera a memória, como as vítimas da ditadura e seus familiares sabem tão bem, já que nunca foram contemplados pela justiça brasileira. A desresponsabilização e o barramento da memória são ativos importantes do atoleiro no qual nos encontramos hoje.
A visão de desenvolvimento para a Amazônia atravessou as décadas e hoje é alegremente levada adiante pelo governo de Jair Bolsonaro, povoado por militares estrelados. É interessante observar como no discurso do almirante Bento Albuquerque o século 20 é resgatado em sua grandiosa decadência. O que é enaltecido é justamente aquilo que carregou as humanidades (no plural) para o colapso climático que hoje apenas começamos a experimentar. A visão do século 20 já demonstrou toda a sua capacidade de destruição da vida no planeta, mas ainda é repetida e glorificada. Também por uma parcela significativa da população brasileira, desinformada e pouco educada – e pouco educada também nas elites, que, vivendo em guetos, são muito deficitárias.
A tragédia atual do Brasil não é que os militares voltaram ao poder com Bolsonaro, mas sim que os militares que voltaram ao poder com Bolsonaro foram justamente os militares que não conseguiram se atualizar. De várias maneiras, só enxergam na sua frente o passado, tanto para impô-lo mais uma vez como o único destino possível, caso deste imaginário sobre desenvolvimento que nunca foi suficientemente criticado no Brasil, como para reescrevê-lo apagando os crimes cometidos pela ditadura contra a população civil. Sabemos que há militares preparados e bem informados, mas não são estes que apoiaram Bolsonaro. Estes seguem na Guerra Fria – ou precisam da Guerra Fria.
Movimentos sociais do Xingu exigem “envolvimento” em vez de “des/envolvimento”
Estamos, mais uma vez, às voltas com o passado que nunca passou. Com o agravante que, no caso de Belo Monte e das grandes hidrelétricas construídas na Amazônia nas últimas duas décadas, uma parte da esquerda ligada ao PT quer também apagar essa memória ou reescrever a história, o que torna tudo muito mais difícil para as vítimas e para o debate de um novo modelo de “envolvimento” com a Amazônia. No manifesto do encontro Amazônia Centro do Mundo, realizado em Altamira em novembro, os movimentos sociais do Médio Xingu propõem o “envolvimento” em detrimento do “des-envolvimento”. Des-envolver como “não se envolver” ou “deixar de se envolver”. Eles conhecem este des-envolvimento – literalmente na pele.
Discursa o almirante, que também é ministro de Minas e Energia do bolsonarismo: “O concreto aplicado em Belo Monte é suficiente para construir 37 Maracanãs!”. É século 20 na veia. Enquanto os efeitos nocivos do concreto são denunciados por todo o planeta, nossos ministros militares acham maravilhoso ter colocado 37 Maracanãs no meio da floresta amazônica. Bento Albuquerque quis fazer como Lula e invocar o futebol, aproveitando a vitória do Flamengo na Libertadores. Como juntou Belo Monte com Maracanã, porém, acabou evocando a corrupção presentes na obra da usina e na reforma do estádio para a Copa do Mundo de 2014.
Tanto o almirante quanto o governador enalteceram todas as grandes obras e os minérios e a indústria e a engenharia etc. Esqueceram-se por completo do que é a maior riqueza da floresta. Ou seja, a própria floresta em pé, que salva o planeta todos os dias pela sua capacidade de regular o clima. Esta que ainda empresta relevância ao Brasil, país que não para de se apequenar diante da comunidade global. Poderíamos criar uma bolsa de apostas para tentar descobrir se as autoridades brasileiras vão chegar ao século 21 antes ou depois do fim do mundo.
“Usina grandiosa”, enalteceu Dilma Rousseff ; “obra magnífica”, afirmou ministro de Bolsonaro
Este mesmo espírito do século passado inspirou Dilma Rousseff em 2016, na primeira inauguração de Belo Monte. A ex-presidenta foi ainda mais grandiloquente em seu entusiasmo. Lembremos apenas de uma pequena parte: “Essa usina é do tamanho desse povo. É grandiosa. É uma usina grandiosa. A melhor forma de descrever Belo Monte é essa palavra: grandiosa”. E segue: “Acho importante destacar que, com Belo Monte, nós não levamos só energia para o resto do Brasil. Criamos aqui uma riqueza única, que é colocar à disposição das empresas que quiserem vir aqui, colocar o seu negócio aqui, participar desse estado que tem grandes reservas minerais, grande potencial agrícola. Podem vir aqui, porque não vai faltar energia”.
Em 2016, Dilma assim terminou a primeira inauguração de Belo Monte: “Para concluir, eu quero dizer a vocês que eu tenho imenso orgulho das escolhas que eu fiz. Uma delas, que eu quero destacar mais uma vez, é a construção de Belo Monte como um legado para a população brasileira dessa região, para o povo de Altamira e o povo de Xingu. Mesmo que não seja dos municípios diretamente impactados por Belo Monte, toda essa população vai ser beneficiada direta e indiretamente. Tenho orgulho das escolhas que fiz”.
Em 2019, o almirante de Bolsonaro assim terminou a segunda inauguração de Belo Monte: “Destaco e enalteço o esforço, a competência e a bravura de que todos que trabalharam para a realização desta obra magnífica por todo e qualquer aspecto que seja considerada. É mais que orgulho, é mais que satisfação. Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
Temos, portanto, uma concordância explícita entre os dois polos que têm dominado o debate cotidiano do país. O Brasil não é apenas um construtor de ruínas. O Brasil não apenas constrói ruínas em dimensões continentais. O Brasil também inaugura duas vezes as ruínas que constrói.
Bolsonaro estava feliz como um menino ao fazer o acionamento simbólico das unidades geradoras da hidrelétrica construída pelo PT. Ao fazê-lo, o barulho terrível que se associava ao progresso no passado – o ruído das máquinas, o símbolo da suposta superioridade do homem sobre a natureza – se fez ouvir. Parecia um daqueles filmes futuristas do início do século 20.
No encerramento do evento Amazônia Centro do Mundo, semanas antes, foi exibida a peça teatral “Altamira 2042”. A diretora e atriz Gabriela Carneiro da Cunha captou os ruídos reais da conversão da floresta em hidrelétrica, da vida em morte. O trabalho é impressionante. A diferença é que, ao final desta barulheira infernal que Bolsonaro, Barbalho e outros celebraram, a barragem rompia. Na ficção, este é o futuro que os criadores apontavam.
Belo Monte é “fato consumado” para quem?
Gente demais, à direita e também à esquerda, gosta de repetir: “Chega de falar de Belo Monte, é fato consumado”. Fato consumado para quem?
Ainda que Belo Monte já tenha destruído vidas e modos de vida, os impactos do barramento de um dos maiores e mais vitais rios da Amazônia estão só começando. Neste momento, a Volta Grande do Xingu seca por conta do controle da água feito pela usina, e uma crise humanitária se instala na região. Uma carta do diretor-presidente da Norte Energia S.A, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirma, conforme reportagem do El País de minha autoria, também publicada pelo The Guardian em 8 de novembro: “Se não mantiver a cota mínima de 95,20 metros no reservatório do Xingu, a onda negativa que poderá se formar devido aos ventos atingirá áreas da barragem não protegidas por rocha, situação que pode resultar danos estruturais à principal barragem do Rio Xingu, que é Pimental. Assim, é absolutamente necessário manter a cota mínima de 95,20 m para garantir a segurança da barragem de Pimental”.
Na tarde de 10 de outubro, também segundo o diretor-presidente da Norte Energia, o nível do reservatório já havia atingido a cota mínima. Por isso a empresa pedia autorização à Agência Nacional de Águas (ANA) para alterar as vazões de água, evitando assim o risco de danos estruturais: “Nesse sentido, por absoluto imperativo de: (i) garantir a segurança das instalações e (ii) manter a vazão mínima para o TVR (Trecho de Vazão Reduzida) em 700 m3/s (conforme Hidrograma), a decisão operacional da NESA é fazer o imprescindível ajuste emergencial e temporário de redução da vazão afluente ao Reservatório Intermediário para 100 m3/s”. O grifo é da empresa.
Procurada pela reportagem dos dois jornais com uma série de perguntas referentes ao documento enviado à ANA, a concessionária de Belo Monte limitou-se a comentar: “A Norte Energia, empresa responsável pela Usina Hidrelétrica Belo Monte, informa que vem cumprindo rigorosamente os compromissos estabelecidos no licenciamento ambiental do empreendimento". A resposta foi publicada na íntegra no corpo da reportagem. Em 21 de novembro, o El País publicou uma longa carta da empresa, repleta de jargões técnicos inacessíveis à maioria dos leitores. Nela, a Norte Energia nega que exista qualquer risco. Resta saber em qual carta – do mesmo autor – devemos acreditar. Ambas foram publicadas pelo El País e estão à disposição dos leitores, das autoridades e da comunidade científica.
Qual é a polarização que queremos?
Respeitar os fatos e produzir memória sobre Belo Monte é fundamental por todas as razões éticas óbvias. E porque é preciso esclarecer como partidos e sociedade civil vão enfrentar os impactos que ainda não foram indenizados, os impactos que jamais poderão ser reparados e, principalmente, os impactos que ainda podem ser evitados, como a morte da Volta Grande do Xingu. É essencial saber também como a esquerda vai enfrentar a retomada da construção de grandes hidrelétricas na Amazônia anunciada por Bolsonaro, parte delas projetadas pelos governos do PT.
O que proponho aqui não é o fim da polarização. Mas uma outra polarização que me parece urgente em tempos de escalada do autoritarismo bolsonarista: a dos direitos humanos contra a violação dos direitos humanos, a dos direitos da natureza contra a violação dos direitos da natureza, a do conhecimento contra a ignorância, a da democracia contra a quebra do Estado de Direito, a da centralidade da Amazônia viva para todos contra a predação da Amazônia para poucos. A da verdade contra todas as mentiras.
O que faremos com Belo Monte nos definirá– e definirá o futuro.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum
El País: Presidentes do Mercosul pedem mais democracia, e Bolsonaro faz piada sobre golpe
Acordo do bloco eleva a 1.000 dólares o permitido em compras em viagens entre os sócios. Brasileiro cobra abertura comercial em recado a futuro Governo argentino
Ante uma América Latina em efervescência nas ruas e com Chile e Bolívia sacudidos por protesto e crise, os presidentes do Mercosul decidiram enfatizar a defesa da democracia no comunicado conjunto que encerrou a cúpula do bloco em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, nesta quinta-feira. Num grupo que vive sua própria turbulência interna, com as divergências ideológicas entre o futuro Governo esquerdista argentino e o ultradireitista Jair Bolsonaro, coube à vice-presidenta uruguaia, a centro-esquerdista Lucía Topolansky, fazer o discurso mais enfático. “O Mercosul não é um paraíso nem uma ilha da fantasia e esta reunião se realiza em um contexto regional particularmente preocupante. Já não se trata de um único país com crise institucional, política e econômica e social. São vários os países da região sacudidos por protestos sociais, crises políticas, conflitos institucionais e até golpes de Estado”, disse a também mulher de José Mujica, que representou o Uruguai no encontro porque o mandatário Tabaré Vázquez está doente.
O chamado de Topolansky, que ao contrário dos colegas chamou de golpe a queda de Evo Morales na Bolívia, marcou uma cúpula sui generis, de despedida. Na próxima reunião dos presidentes do Mercosul, metade de seus representantes será diferente. Sairão o direitista Maurcio Macri e o esquerdista Vázquez, para a chegada de seus opositores Alberto Fernandez e Luis Lacalle Pou, respectivamente. No discurso, a vice-presidenta do Uruguai ressaltou a troca de comando no seu país e tentou enviar uma mensagem conciliatória em direção ao futuro, cobrando a necessidade de intensificar o diálogo entre os que pensam diferente.
Publicamente, os discursos de seus colegas foi na mesma direção. Bolsonaro afirmou que “a defesa de democracia também é um pilar essencial ao Mercosul”. Já Macri, que entrega o cargo a Fernández na terça-feira que vem, destacou que seu país tem “compromisso com a democracia, com a liberdade e com os direitos humanos”. Enquanto o paraguaio Mario Abdo Benítez Benítez, que quase sofreu um impeachment neste ano por causa de uma crise envolvendo o Brasil e a hidrelétrica binacional de Itaipu, cobrou maior participação popular. “Temos o grande compromisso de revigorar nossas democracias. Melhorar nossa democracia com mais democracia e não com anarquia”. Ao lado deles, representantes de Chile e Bolívia, países associados ao bloco. A Venezuela, submersa na crise e na deriva autoritária de Nicolás Maduro, está suspensa do Mercosul.
Já fora dos holofotes oficiais, coube a Jair Bolsonaro fazer uma brincadeira fora de tom, após transmitir o cargo de presidente pro-tempore do bloco ao colega paraguaio. Num momento em que países da região enfrentam convulsões sociais e quando integrantes de seu Governo e aliados mencionam atos da ditadura como o AI-5, o brasileiro disse: “Quero continuar presidente, não dá pra dar um golpe, não? Tudo quando eles perdem dizem que é golpe. É impressionante, né?”, e entregou o martelo que simboliza a presidência do bloco ao colega paraguaio. Benítez sorriu.
Cobrança de Bolsonaro e futuro
O encontro também foi marcado pela insistência do Brasil na agenda de liberalização do comércio e da queda de tarifas, uma bandeira que terá de ser negociada com o argentino Alberto Fenández, que já explicitou suas ressalvas ao acordo do Mercosul com a União Europeia, ainda pendente de ratificação. Ao longo do ano, Bolsonaro e Macri tentaram reduzir ou revisar a tarifa externa comum, que trata de impostos para a comercialização de produtos de fora do bloco, mas não tiveram êxito. Nesta quinta-feira, ambos usaram o encontro da despedida para ressaltar a importância de retomar esse tema nas próximas negociações. "A taxação excessiva à competitividade é prejudicial a quem produz. O Brasil confia na abertura comercial como ferramenta de desenvolvimento, e insiste na necessidade de reduzir ou revisar a TEC”, disse o brasileiro.
Os quatro representantes do Mercosul assinaram oito acordos que tratam da facilitação do comércio, de cooperação policial, da possibilidade de uso de serviços públicos por moradores de cidades fronteiriças e sobre o reconhecimento de assinaturas digitais nos tratados comerciais. Na ocasião, ainda concordaram em aumentar de 500 para 1.000 dólares o limite de isenção de bagagem acompanhada em viagens aéreas e marítimas.