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El País: Crise EUA-Irã aprofunda distância entre Planalto e a cúpula militar
Vice Mourão, militares e Agricultura se opunham a alinhamento automático com Donald Trump. Próxima disputa será indicar novo embaixador em Teerã
Afonso Benites, El País
A crise envolvendo o Irã e os Estados Unidos afastou ainda mais o presidente Jair Bolsonaro do seu vice-presidente, Hamilton Mourão, assim como do grupo militar que dá sustentação ao Governo. Além disso, deu maior força à ala radical que atua nas relações exteriores, principalmente ao assessor especial da Presidência na área internacional, Filipe Martins, e ao ministro Ernesto Araújo. Ambos foram defensores do alinhamento automático com a gestão de Donald Trump no embate com o país do Oriente Médio.
Ao longo da última semana, a reportagem entrevistou seis fontes do Palácio do Planalto, do Itamaraty e do Ministério da Defesa que reforçaram essa visão. Todos falaram sob condição de não terem seus nomes divulgados. A disputa entre as duas alas da gestão Bolsonaro agora é para indicar quem será o substituto do embaixador do Brasil no Irã, Rodrigo Azeredo, que está em férias, e não deve retornar a Teerã por questões de saúde. Ao menos três nomes já foram sugeridos ao ministro Araújo, mas a decisão ainda não foi tomada. Como de praxe em casos de crises de segurança, o Ministério da Defesa está concluindo um plano de resgate dos diplomatas brasileiros que estão lotados no Irã. Ele só será posto em prática caso haja um recrudescimento do conflito, o que não parece que ocorrerá num primeiro momento.
Desde que o general iraniano Qasem Soleimani foi morto por um ataque de míssil norte americano no último dia 2, o Brasil emitiu sinais distintos. Primeiro, o presidente Bolsonaro informou que não se envolveria na celeuma no Oriente Médio. Depois ele próprio deu declarações favoráveis aos Estados Unidos. Por fim, o Itamaraty publicou uma nota na qual defendia a luta contra o “flagelo do terrorismo”. Dizia o documento: “Ao tomar conhecimento das ações conduzidas pelos EUA nos últimos dias no Iraque, o Governo brasileiro manifesta seu apoio à luta contra o flagelo do terrorismo e reitera que essa luta requer a cooperação de toda a comunidade internacional sem que se busque qualquer justificativa ou relativização para o terrorismo”.
Em um primeiro momento, a ala militar do Governo e representantes do Ministério da Agricultura tentaram convencer o presidente a não declarar tão rapidamente apoio aos americanos, temendo haver retaliações contra brasileiros no Irã ou perder negócios. A tese era defendida também por Mourão nos bastidores. Hoje, os iranianos são o 24º parceiro comercial do Brasil. No ano passado, o intercâmbio comercial entre os dois países atingiu a marca de 2,3 bilhões de dólares (9,2 bilhões de reais).
“O grande derrotado nessa história toda é o Mourão. Ele sempre agiu como um mediador de todos os conflitos. É uma pessoa do diálogo aberto, mas o presidente e o ministro Araújo preferem se aproximar cegamente dos Estados Unidos”, afirmou um militar com acesso ao Planalto. A irritação parece ter mais fundo político, pela falta de coordenação e divergência, do que aversão a um risco concreto: uma avaliação na mesa é de que o Irã já tem inimigos demais para se indispor mais seriamente com o Brasil, mesmo considerando as declarações de Bolsonaro. A semana que passou, a seguir tudo como está, deixaria poucas sequelas.
Seja como for, o episódio serviu para medir o atual momento das relações entre Planalto e vice-presidência. Desde que assumiu o cargo, Mourão sempre se colocou à disposição de diplomatas ou empresários estrangeiros para dialogar. No início do ano passado, a agenda de Mourão era marcada por reuniões com embaixadores e ele era visto como uma espécie de porto seguro diante das opiniões radicais emitidas por Bolsonaro e Araújo. Quando a dupla se queixava do relacionamento com a China ou com algum país do Oriente Médio, Mourão tratava de receber um representante de algum desses países para conversar e levantar uma bandeira branca (o vice foi a Pequim antes de Bolsonaro, por exemplo). O mesmo ocorreu quando Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, fecharam as portas para receber o fundo Amazônia, que era mantido basicamente por doações de Alemanha e Noruega. Dias após, o vice recebeu diplomatas desses países.
De lá para cá, o desgaste de Mourão só aumentou. O da ala militar do Governo também. A queda do general Carlos Alberto dos Santos Cruz da secretaria de Governo e a saída de outros quatro oficiais que ocupavam cargos de segundo escalão ao longo do ano reforçam essa perda gradual de apoio. “Ainda não houve um rompimento, mas as relações estão abaladas sem a garantia de que haverá uma melhora por parte do presidente”, disse um dos militares ouvidos pela reportagem.
Outra questão delicada para os militares, muito mais crucial do que o Irã, é a movimentação do Brasil na crise da vizinha Venezuela e nela Bolsonaro fez uma deferência clara aos oficiais que o apoiam. Enviou Mourão como representante do Brasil nos debates do Grupo de Lima, conglomerado de países que se opõe ao regime venezuelano de Nicolás Maduro. Depois, Mourão também foi escalado para uma atuação diplomática em dezembro: representar o Brasil na posse do presidente argentino, Alberto Fernández, desafeto declarado de Bolsonaro. Fora isso, o vice-presidente tem falado muito menos com a imprensa do que nos primeiros meses do mandato e é presença mais frequente em eventos das três forças, com pouco mais que declarações superficiais.
El País: Votaram em Bolsonaro e começaram 2019 otimistas. Voltamos a eles para saber o que pensam agora
O El País volta a entrevistar, um ano depois, eleitores de quatro cidades que ajudaram a eleger o presidente. Também conversamos com a família de Manaus que não escolheu o mandatário, assim como quase metade do país
Naiara Galarraga Gortázar, Naira Hofmeister, Joana Oliveira, Afonso Benites e Liege Alburquerque, do El País
São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Brasília, Manaus
“Temos uma grande nação para reconstruir, e isso faremos juntos”, proclamou há um ano, ao assumir a Presidência, o militar reformado Jair Bolsonaro, 64 anos, que conseguiu capitalizar o desejo de mudança, a raiva em relação à classe política e o cansaço com a corrupção no Brasil. Aquele apelo à unidade não deu em nada. Como presidente, Bolsonaro continua instalado no sectarismo, põe à prova as instituições democráticas com frequência, a polarização cresce e sua popularidade não para de diminuir, mas a economia se recupera lentamente e os assassinatos caíram. No início de seu mandato, o EL PAÍS foi às ruas para sentir o clima do Brasil de Bolsonaro (leia aqui). Entrevistamos, em várias cidades, brasileiros que votaram nele para ilustrar quais eram suas expectativas em relação aos pilares do seu programa (economia, segurança, corrupção, valores) e também ouvimos uma família que não votou no ultradireitista. Voltamos a visitá-los para saber se estão satisfeitos ou não e qual deve ser a prioridade do presidente Bolsonaro em 2020.
Porto Alegre (Economia)
Ereni Azevedo no recém-construído segundo andar de sua casa.TANIA MEINERZ
Ereni Azevedo: “Espero que os preços dos produtos baixem”
O ano de 2019 foi próspero para os Prado Neves. A casa da família, no Morro da Cruz, nos arredores de Porto Alegre, tem agora um andar superior com vista panorâmica. A matriarca, Ereni Azevedo do Prado, 55 anos, que contribuiu com seu voto para a vitória de Bolsonaro, conseguiu fazer a reforma, apesar do desempenho frustrante da economia: cresceu 1%, embora a expectativa de um ano atrás fosse de 2,5%. “Para mim, o ano foi muito bom!”, celebra na cidade com a segunda cesta básica mais cara do país.
A reforma da casa era uma necessidade para a família, que cresceu em 2018 com a chegada da terceira neta. A avó vive com sua filha, de 30 anos, e três netos. A escada para o andar superior é um orgulho familiar. Quando Bolsonaro autorizou os trabalhadores a retirar 500 reais do FGTS, Azevedo do Prado investiu na escada. “Esse dinheiro chegou para mim num hora muito boa”, afirma. Com os outros 500 reais que pode sacar pretende pagar a dívida de energia elétrica, que antes ele tinha graças a uma ligação irregular.
Ela paga a obra em parcelas, mas não quer que se prolongue. Espera acabar em fevereiro. E, para isso, além de seu emprego (com carteira assinada) como cuidadora de uma idosa, aumentou os ganhos extras: faz limpeza para outros e conserta roupas.
O salário fixo, sozinho, não era suficiente para a reforma: “O salário tá baixinho e não podemos nos contentar com pouco. Quando a gente trabalha bastante, merece ganhar bem”, defende. Por isso, pede ao presidente da República que se preocupe mais com a classe trabalhadora, não só em termos econômicos. “Temos sim uma crise na saúde. E a educação está muito ruim”, diz. Seu filho Anriel, 25 anos, acrescenta a segurança entre as prioridades: “Não adianta ter serviço se eu não consigo chegar ao trabalho porque o risco de ser assaltado é grande”.
O jovem se mudou em meados de 2019 para Santa Catarina para trabalhar como motorista. “É um trabalho autônomo também, só que aqui é bem melhor dou que no Rio Grande do Sul, tudo é mais barato, a vida é melhor.” Como os impostos estaduais são menores, tudo, da gasolina à cerveja, é mais barato. A carne subiu muito em todo o Brasil devido à demanda chinesa, mas outros produtos também aumentaram. “Eu pensei que as coisas não iriam subir tanto [no Governo Bolsonaro]. Um quilo de arroz, que antes era um real e pouco, hoje está dois reais e pouco, até três reais. O feijão também, o açúcar, material de limpeza, combustível… tudo subiu”, critica. “Espero que a economia se estabilize e aí que os preços dos produtos baixem um pouco.”
Mas a família apoia a ideia defendida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, de que é mais importante ter algum trabalho, mesmo que seja precário, do que ter direitos trabalhistas. “Eu acho que só não tem trabalho quem não quer. Nunca fiquei sem trabalhar, independentemente da carteira”, afirma a matriarca da família. Está a um ano de se aposentar, mas trabalhou tão duro no ano passado que nem teve tempo de verificar se a reforma da Previdência afeta seus planos.
Salvador (Segurança)
A representante farmacêutica Rita Paim e o design gráfico Sérgio Pretto, em Salvador.MATHEUS LEITE
Rita Paim: “Tenho notado mais policiamento nas ruas, e me sento mais segura"
Para Rita Paim, uma representante farmacêutica de 52 anos, e Sérgio Pretto, um designer gráfico de 60 anos que também trabalha como motorista de aplicativo, esta “ação rápida” da polícia evidencia que o presidente Jair Bolsonaro obteve bons resultados. “Se a polícia puder agir, vai fazer seu trabalho. Infelizmente, quando acontece algo assim, às vezes a própria comunidade não favorece a ação dos policiais, fica pedindo direitos humanos quando um delinquente faz algo errado. Mas a polícia precisa agir, senão a gente não consegue botar ordem nas coisas. Não estou dizendo que tem que sair matando, não é isso”, explica ela, quase um ano depois da primeira entrevista.
O casal, que vive em um bairro de classe média alta da capital baiana, em um apartamento decorado com figuras religiosas, é parte da minoria que votou em Bolsonaro em Salvador, onde o Partido dos Trabalhadores arrasou. A Bahia é o Estado com o maior número de mortes por armas de fogo, segundo o último Atlas da Violência.
Ao final do primeiro ano do capitão reformado do Exército no cargo de presidente, o casal considera que seu projeto de segurança está “muito avançado”. “Tenho notado mais policiamento nas ruas, mais justiça, e me sinto mais segura. Os crimes continuam ocorrendo, mas os números mostram que foi reduzido o índice de criminalidade”, diz a representante farmacêutica enquanto acaricia seu cão yorkshire. É uma das conquistas que Bolsonaro mais exibe. Os homicídios caíram 22% entre janeiro e setembro, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, comandado por Sérgio Moro. São 6.900 vidas preservadas. Diminuíram também os estupros, roubos de carros, assaltos a bancos… Por outro lado, a letalidade policial não para de crescer desde 2013: naquele ano, 2.212 pessoas foram mortas por agentes públicos em todo o Brasil, mas a cifra quase triplicou em 2018, quando 6.220 pessoas morreram em decorrência de uma intervenção policial, segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2019, primeiro ano do Governo Bolsonaro, a tendência de aumento continuou: dados preliminares do Monitor da Violência do portal G1, do qual o Fórum faz parte, mostraram que as mortes cometidas por policiais aumentaram mais de 4% no primeiro semestre do ano em relação ao mesmo período de 2018.
“O Governo Bolsonaro está fazendo o que tem que ser feito, aos trancos e barrancos, mas o cara não vai resolver tudo em um ano. Não vai solucionar todos vos problemas que, sem querer colocar nome de ninguém, fizeram nos últimos 16 anos no Brasil”, comenta ele, referindo-se aos Governos do PT.
O discurso do casal parece ainda mais alinhado com o do presidente do que há nove meses. O designer gráfico sustenta que “o Rio de Janeiro, por exemplo, está uma bandalheira. Já tentaram fazer uma coisa mais agressiva [a intervenção federal na segurança pública], mas aí a própria população chia, os oponentes gritam dizendo que não pode ser assim, vêm com aquela velha história dos direitos humanos. Mas você não vê ninguém dos direitos humanos indo na casa de um policial que foi assassinado por bandido. A gente só ouve eles defendendo os bandidos”.
Sua prioridade é a educação: “Para resolver qualquer problema hoje pensando em daqui a 20 anos, a solução é o foco em educação. Com um povo educado e com saúde, a violência tende a acabar”.
Brasília (corrupção)
O dentista e profesor Adalcyr Luiz da Silva, em Brasília.CADU GOMES
Adalcyr Luiz da Silva: “Esperava medidas contra a corrupção mais contundentes”
Quando lhe perguntaram, no início do 2019, por que votou em Bolsonaro, o ortodontista de 55 anos e professor universitário Adalcyr Luiz da Silva Júnior ressaltou que estava cansado de ver o sistema corrupto estabelecido por Governos anteriores. Agora diz que é muito cedo para lamentar seu voto, mas não está contente com a luta contra a corrupção. “Eu esperava que as medidas fossem mais contundentes”, diz. “É cedo para falar que estou insatisfeito, mas não estou completamente satisfeito como eu gostaria.”
Uma de suas queixas é a falta de manifestações contundentes em apoio à Operação Lava Jato, que levou à prisão de dezenas de empresários, branqueadores de dinheiro, lobistas e políticos, incluindo o principal antagonista de Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Do Bolsonaro para cá, o que se falou da Lava Jato, por exemplo? Se existia alguma política ali [no Governo], era para diminuir o poder da Lava Jato”, afirma. Também reclama da suposta proteção do presidente ao seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro, investigado por lavagem de dinheiro, peculato e organização criminosa.
O professor, que se declara contrário a qualquer radicalismo, vê semelhanças claras entre a administração de Bolsonaro e as de seus antecessores. “O que mudou do Bolsonaro para os outros Governos foi que um tem um pensamento direitista e outros, esquerdista. Porém, o resto está muito parecido.”
A política econômica, por outro lado, é do seu agrado. “Gosto do Paulo Guedes e vejo que ele está fazendo um bom trabalho. A taxa Selic está baixa, alguns empregos estão sendo criados. Só falta o dólar baixar”, afirma. Também confia na boa vontade de Bolsonaro para “fazer com que as coisas funcionem” e ainda tem certa admiração pelo ministro da Justiça, o ex-juiz Sergio Moro: “Ele precisa ser o superministro que disseram que seria. Mas ainda acho que dá tempo de ele assumir esse papel”.
O ortodontista dá nota quatro para a atuação do Governo. A razão é o que considera uma falta de compromisso para conduzir e defender assuntos de interesse nacional perante o Congresso. “Acho que esse negócio de lavar as mãos, dizendo que é o Congresso quem tem de resolver, fez parte de outras administrações. A minha esperança é de um Governo mais atuante.”
Ele espera que o Executivo realmente intensifique suas políticas anticorrupção e, principalmente, invista em educação, com uma melhor distribuição de recursos entre as instituições de ensino fundamental, médio e superior, e sem ideologia nem partidarismo. “Eu não credito na escola como a extensão da casa, a extensão da família. Não faz parte do papel da escola tentar direcionar a cabeça dos jovens.”
Já não discutem tanto em família sobre política, embora seus filhos tenham votado em outros candidatos. “Não sou bolsonarista. Uma coisa é certa, eu não gostava do Governo anterior. Ele para mim foi uma alternativa de mudança. Mas também não idolatro. Se está dando errado, eu começo a me manifestar de maneira contrária.” A crítica já começou.
São Paulo (Valores)
O pastor evangélico Marcos Galdino, em São Paulo.LELA BELTRÃO
Pastor Galdino: “Satisfeito com o presidente, insatisfeito com os outros poderes”
O pastor evangélico Marcos Galdino Júnior, 35 anos, é categórico: “Estou satisfeito com o presidente e insatisfeito com o Legislativo. Porque o presidente está remando com muita força, mas o Senado, o Congresso e o Supremo o freiam”, explica ele na sede da igreja que lidera em São Paulo, uma filial da Assembleia de Deus com 100.000 fiéis. Galdino, casado, pai de três filhos, ecoa uma opinião muito compartilhada no núcleo duro do bolsonarismo, que considera desmedido o poder do presidente da Câmara de Deputados, Rodrigo Maia, para organizar a agenda legislativa. A irritação com o Supremo Tribunal Federal também é profunda. “É uma piada, ela quer legislar!”, lamenta.
Apesar de os protestos de rua de bolsonaristas contra os outros poderes do Estado terem causado preocupação institucional, embora não ao Governo, e inquietado a ONU, Galdino afirma que “deve haver equilíbrio de poderes. O Brasil não voltará a ter uma ditadura militar”.
Que Bolsonaro “desideologize as escolas”. Essa era, há um ano, sua prioridade dentro da agenda de valores prometida na campanha. Galdino está contente porque, para ele, o presidente e sua equipe “estão removendo a ideologia de esquerda” da educação e “repassando o dinheiro que era destinado a outras coisas para o ensino básico, sem ideologia”.
Foi precisamente a essa questão —a ideia de que o ensino de valores é tarefa da família, não da escola— que Bolsonaro dedicou, neste 2020, um dos vídeos divulgados em suas redes sociais para milhões de seguidores. Como não gosta do retrato que os grandes veículos de comunicação fazem de sua gestão, cria sua própria narrativa e a entrega diretamente aos seus seguidores. “Graças a Deus existem as redes sociais, porque se acreditássemos no que dizem muitas vezes na televisão, estaríamos acreditando em fábulas”, diz Galdino.
Apesar de suas referências frequentes a Deus e da defesa da família tradicional, Bolsonaro não impulsionou neste primeiro ano algumas mudanças legislativas prometidas, como dificultar o direito ao aborto —legal em três casos no país— e combater o ensino da igualdade de gênero, que ele chama de “ideologia de gênero”.
O que Bolsonaro fez foi prometer nomear ao menos “um juiz terrivelmente evangélico para o Supremo”. O pastor diz preferir que seja “terrivelmente técnico, pode ser católico. O que adianta ser evangélico se não for técnico!”. Acrescenta que “setorizar os poderes não é bom”. Agradece ao chefe do Executivo por bloquear uma tentativa de obrigar as Iglesias a pagar impostos sobre as doações, uma questão crucial que envolve enormes somas de dinheiro, porque os evangélicos costumam dar pelo menos o dízimo. Considera a medida “inconstitucional, porque seria uma segunda tributação” da renda do trabalho.
Para Galdino, não há dúvida de que a segurança deve ser a prioridade presidencial a partir de agora. Ele cita um exemplo próximo para explicar o motivo. E isso que vive em São Paulo, o Estado mais seguro do Brasil. “No domingo, mataram um frequentador da igreja. Estava com sua mulher, tentaram roubar seu carro. Era professor de matemática”, contou, em meados de dezembro. “O que esperam para endurecer as leis? A solução não são mais policiais. A lei tem que ser mais dura para que não cometam crimes”, sentencia. O pastor já pensa em uma reeleição de Bolsonaro.
Em Manaus, a família que não votou em Bolsonaro
Os empresários Ana Cláudia Chaves e Allan Kardec Filho, em Manaus.ALBERTO CÉSAR ARAÚJO
No ano passado, Ana Cláudia Chaves, 39 anos, previu que o Governo Bolsonaro não duraria um ano. O Gabinete sofreu várias crises, mas está aí. “Está desgastado, mas infelizmente não houve levante nem impeachment de Bolsonaro. E o boneco do Paulo Guedes continua falando suas asneiras para distrair a mídia e continuar com a destruição de tudo o que o país avançou no social, e também da economia mais justa das últimas décadas”, afirma a empresária. Ela e seu marido, Allan Kardec Filho, 38 anos, que vivem com suas duas filhas, dois cães e três gatos em Manaus, no coração da Amazônia, não votaram no ultradireitista, como quase metade do Brasil. Sua análise é ainda mais pessimista do que naquela época.
“Veja a questão do meio ambiente, que virou piada internacional, com um presidente entreguista e belicista, com um ministro processado com multas ambientais. Querem explorar [comercialmente] as terras indígenas. Além disso, o Governo acabou com todos os conselhos da sociedade civil e governa como um ditador.”
Eles se mostram muito preocupados com a influência da desinformação. “Acho que a mídia devia entrar mais firme para desmascarar fake news nesse Governo. As agências de fact checking não estão chegando aos grupos por onde eles espalham as notícias falsas, os dados mentirosos”, afirma Allan Kardec. Ele não tem dúvida de que Bolsonaro faz toda essa “pantomima” para desviar a atenção da mídia da reforma da Previdência e da planejada reforma fiscal. “Mas acho difícil passar, e me surpreende que a única resistência a Bolsonaro hoje não é a oposição esfacelada, é o [presidente da Câmara] Rodrigo Maia”, assinala.
Ana Cláudia Chaves diz que a oposição deve procurar se unir antes que o caminho de Bolsonaro para a reeleição comece a se consolidar. Embora celebre a liberação de Lula, ela acredita que é hora de uma mudança: “Ele já fez muito pelo país, é hora de novas lideranças serem alçadas, como [o candidato à presidência em 2018 Fernando] Haddad no PT”, defende.
A empresária acredita que só se fosse demonstrada uma conexão entre a família Bolsonaro e grupos criminosos é que o presidente seria afetado. “Enquanto ele estiver na presidência, não vejo perspectiva de melhora, porque não há humanidade no Governo e nem empatia”, afirma. “Tudo está e vai continuar pior do que imaginávamos, especialmente na questão dos direitos humanos. Bolsonaro estimulou e potencializou a questão da violência, do preconceito contra a mulher, contra os indígenas e agora também explícito contra os negros.” Seu marido teme os efeitos do discurso polarizador de “eles contra nós”. E conclui: “Bolsonaro plantou a semente e estimula seu crescimento, uma semente de ódio que vai demorar anos para a gente derrubar”.
El País: 'O combate à corrupção no Brasil sempre foi um mote para permitir retrocessos', diz Lewandowski
Ao EL PAÍS ministro do Supremo afirma que é preciso defender ativamente o Estado democrático de direito para evitar um novo “eclipse institucional”. Magistrado defende criação do juiz de garantias
Carla Jiménes e Regiane Oliveira, do El País
Foi em 2013, com o julgamento do escândalo de compras de votos no Congresso mais conhecido como Mensalão, que os ministros do Supremo Tribunal Federal se transformaram em celebridades. A cobertura sistemática das audiências em tempo real trouxe uma transparência até então nunca vista na Justiça brasileira. Mas não sem deixar sequelas. Até hoje Ricardo Lewandowski (Rio de Janeiro, 1948) se ressente dos reflexos do que especialistas chamam de “publicidade opressiva” do julgamento. Não poucas vezes as posições do ministro contrárias à maioria fizeram com que ele fosse tachado de antagonista da luta contra a corrupção. É com certa resignação que Lewandowski encara o isolamento provocado pela superexposição. “Os ministros não têm mais essa liberdade de locomoção. Ficam confinados em suas resistências, aos seus gabinetes, exatamente porque as emoções da sociedade afloram de forma muito viva, tendo em conta as questões polêmicas que são trazidas ao STF”, afirmou ao EL PAÍS em dezembro, em uma das raras entrevistas concedidas desde o Mensalão. Mas a resignação termina por aí. Na conversa —filmada pela equipe da documentarista Maria Augusta Ramos—, o ministro mostra que continua combativo e fiel a seus princípios. Vislumbra, inclusive, que certas operações judiciais e policiais, “de grande impacto midiático” —em alguns momentos cita a Lava Jato explicitamente— “vão ser julgadas de forma muito severas pela história”.
Pergunta. A pressão pública já fez o senhor mudar suas convicções?
Resposta. Eu sou pressionado desde os tempos do Mensalão... Não gosto dessa expressão, porque acho que temos que nos ater à nomenclatura técnica, o julgamento da Ação Penal 470. Eu sempre tive uma posição extremamente garantista, no sentido de respeitar o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. E, naquele momento histórico, isso não foi muito bem compreendido. O Supremo Tribunal Federal estava extremamente pressionado pela mídia. Havia um desejo de que se finalizasse rapidamente esse processo. Mas, claro, a observância rigorosa de tudo aquilo que está no Código de Processo Penal, de certa maneira, poderia atrasar o julgamento e frustrar a opinião pública. Desde aquela época sempre fiquei muito exposto, mas essa exposição e essa pressão não tiveram o condão de fazer com que eu me afastasse um milímetro sequer das minhas convicções.
P. Existe uma crítica de que o direito garantista não avança no sentido de alcançar as elites. A Lava Jato trouxe essa sensação catártica de que empresários, que outro dia estavam na capa das revistas, também eram presos. Como o senhor lida com essa percepção?
R. Primeiramente, aqueles que acham que os direitos e garantias do cidadão em juízo são perfumaria só acham isso quando o direito penal é aplicado aos outros. Não quando se trata da própria pessoa, de um parente ou amigo. Aí valem todos os recursos possíveis para se defender e não ser preso. Agora, dos 800.000 presos hoje no Brasil, eu diria que 99,9% são pessoas das camadas sociais mais baixas, os hipossuficientes, os pobres, sobretudo da população negra. Essa ideia de que agora os ricos, os poderosos, estão sendo presos não me parece que corresponde à realidade. As últimas operações tão apregoadas, tão incensadas pela mídia, prenderam muito poucos ricos e poderosos. E os poucos que foram presos já estão soltos, e com seus patrimônios intactos. Na prática, remanesceram presos um ou outro político mais conspícuo.
P. Na teoria, as operações da Lava Jato tinham como missão alcançar todos os extratos do poder em suas relações com a Petrobras. O que deu errado?
R. A verdade é que as operações foram extremamente seletivas, elas não foram democráticas no sentido de pegar os oligarcas de maneira ampla e abrangente. Por isso é preciso ter muito cuidado quando se quer fragilizar os direitos e garantias do cidadão em juízo, dentro de um contexto politicamente matizado. Eu acho que há valores de que não se pode abrir mão de forma nenhuma. São valores que resultam de lutas milenares dos povos contra a autocracia, a tirania, a opressão. É por isso que eu digo que essa avaliação episódica que certas operações produziram pode se mostrar no futuro próximo — e não digo um futuro distante — realmente uma falácia.
P. O quanto a Corte é influenciada pela opinião pública em suas decisões?
R. Eu tenho minhas dúvidas em falar que a sociedade quer isto ou aquilo. Na verdade, a sociedade é muito influenciada pela mídia, que tem preferências relativas a determinadas políticas e soluções, até mesmo as judiciais. Isso, a meu ver, contamina a opinião pública. É difícil separar o que é opinião pública e o que é opinião publicada. Uma mídia como a que existe no Brasil, altamente concentrada, tem um poder muito grande de influência. Existem juízes que podem, eventualmente, ser pressionados, e outros que não. Eu, por exemplo, não me sinto absolutamente pressionado, porque, do momento em que eu ostento sobre meus ombros uma toga, entendo que tenho que cumprir meu dever constitucional de julgar com a máxima isenção possível.
P. Como o senhor avalia a performance da Corte no Mensalão?
R. Eu não posso criticar as decisões colegiadas, ainda que eu tenha tido uma opinião contrária. Mas um ministro da Corte [Luís Roberto Barroso, durante sabatina no Senado, em 2013] disse uma frase que circulou amplamente, que o Mensalão foi um ponto fora da curva. E de fato, se olharmos retrospectivamente, causa no mínimo uma estranheza, uma perplexidade, que as atividades do Supremo Tribunal Federal ficassem paradas durante seis meses para julgar um processo. O trabalho das turmas foi paralisado. Os habeas corpus deixaram de ser julgados para que fosse apreciado apenas o Mensalão. Só isso já é algo a ser examinado pelos futuros historiadores. Há muitas questões que podem ser eventualmente discutidas. Por exemplo, a exacerbação das penas foi algo que aconteceu, a meu ver, pela primeira vez no STF e na história do Judiciário. A aplicação da teoria alemã do domínio de fato de forma muito ampla foi, inclusive, criticada por Claus Roxin, um dos principais elaboradores dessa teoria, em visita ao Brasil. Outra questão é o fato de o processo ter sido fatiado e julgado segundo a ótica do Ministério Público. São várias questões que precisam no futuro ser mais bem avaliadas, sopesadas. Mas eu não estou na posição mais adequada para criticar um julgamento colegiado do qual eu participei e no qual muitas vezes fui vencido. E no qual também, diga-se em meu benefício, muitas vezes meu ponto de vista prosperou e foi adotado pela maioria.
P. O senhor fala da influência da mídia em alguns posicionamentos, mas e o papel das redes sociais?
R. Veja, eu em nenhum momento firmei que a mídia ou a pressão popular influenciaram o julgamento dos ministros do STF ou de outros juízes. Não teria a leviandade de afirmar isso. O que eu quis dizer é que a mídia influencia ou constrói a opinião pública. Aliás, é uma das das funções da mídia esclarecer de maneira a permitir que a opinião pública forme um determinado ponto de vista. O que me parece é que a Internet, pelo menos no que diz respeito às fake news e à intensidade que as mídias sociais ganharam, é um fenômeno relativamente recente. Durante a época do Mensalão, Internet e mídias sociais eram secundárias. Decisivos à formação da opinião pública eram as televisões, as rádios e a imprensa escrita. Ultimamente, talvez de dez anos para cá, é que esse fenômeno surgiu, inclusive, influenciando no processo eleitoral. Isso aconteceu em outros países, que não quero nominar. E aconteceu também, segundo dizem especialistas, no Brasil. Sobretudo a produção das fake news, impulsionadas por robôs, que permitem que milhões de mensagens sejam divulgadas em segundos, o que, segundo os especialistas, pode influenciar de forma muito impactante a opinião pública especialmente no plano de suas opções políticas em momentos eleitorais.
P. Essas campanhas virtuais podem ajudar a enfraquecer o Judiciário brasileiro, como aconteceu em outros países?
R. Esse risco sempre existe. O Brasil a cada 25, 30 anos sofre um eclipse institucional. Nós não podemos excluir este eclipse institucional tendo em conta a própria história do país. O risco é sempre presente. Mas eu penso que a Constituição de 88 tem salvaguardas bastante importantes e tem resistido nestes últimos 30 anos a crises muito sérias. Crises econômicas, impeachment. Mesmo assim, elegemos presidentes, senadores, deputados, governadores, vereadores sem maiores incidentes. Há certa maturidade que o Brasil conseguiu a partir da Constituição de 88, que serve como rede de proteção às instituições. Mas não posso excluir esse risco, sobretudo tendo em conta a experiência internacional em países do Leste europeu, em que o risco se mostrou algo muito palpável.
P. O senhor afirma que a Constituição tem instrumentos muito sólidos, mas o STF tem se valido de um instrumento que é anterior à Constituição, o regimento interno, para justificar algumas demandas, como a abertura do inquérito das fake news. Por quê?
R. O regimento interno do STF é um regimento que passou por várias administrações. Foi em grande parte elaborado sob a égide de outras constituições, mas é um conjunto de regras, como se fossem regras de trânsito. Esse inquérito que foi aberto — e também não quero entrar de forma mais vertical nessa questão porque isso eventualmente pode ser apreciado pelo plenário da Corte— não se confunde com um inquérito policial e muito menos com os inquéritos abertos pelo Ministério Público. É um inquérito que qualquer órgão administrativo pode abrir, estando ou não previsto ou não em seu regimento interno. Um hospital público, se desaparecerem alguns medicamentos de seu almoxarifado, pode abrir um inquérito. Uma universidade pública, se tiver um problema com professores, alunos e servidores, pode abrir um inquérito para investigar. O inquérito que foi aberto no STF tem, sim, amparo no regimento interno, mas é uma providência que qualquer órgão público poderia tomar, porque não é preciso ser necessariamente um órgão judicante para investigar determinados atos que eventualmente possam ser considerados ilícitos.
P. O senhor também foi vítima de fake news?
R. Todos nós somos vítimas de fake news, de um achincalhe pelas redes sociais. Mas isso faz parte, digamos assim, do mundo contemporâneo em que vivemos. As pessoas públicas precisam se acostumar com esse fenômeno. É importante que, sobretudo os juízes, não se deixem abalar com isso.
P. De 2014 para cá, vivemos as revelações da Operação Lava Jato. Mas em junho deste 2019 começou uma revisão palpável dessa operação ambiciosa, com as revelações da Vaza Jato. Como o senhor vê esse processo?
R. Em primeiro lugar eu acho que as revelações do The Intercept são gravíssimas. Denúncias que precisam ser apuradas e que, diga-se, até o momento não foram desmentidas. Agora, o Supremo já corrigiu certos desmandos que ocorreram, não só no âmbito da operação Lava Jato, mas também em outros juízos, de 1º e 2º graus. Por exemplo, a condução coercitiva, largamente praticada no âmbito da Lava Jato, foi considerada inconstitucional. Denúncias e condenações que foram feitas com base só em delações premiadas, o STF disse que são nulas — é preciso haver uma outra prova além daquela informação prestada pelo delator que tem interesse em se beneficiar. O STF fez várias correções no que diz respeito ao devido processo legal. Por exemplo, ainda no caso da delação premiada, dizer que os delatados precisam necessariamente falar por último. Algumas correções de rumo foram feitas antes mesmo do vazamento do The Intercept. E pode ser que, a partir da constatação de que, de fato, algumas ou todas essas denúncias têm correspondência com a realidade, o Supremo aprofunde ainda mais essas correções de práticas que ofendem a Constituição, o Código de Processo Penal e o Código Penal.
P. Mas nem sempre essas correções são unânimes. E muitos interpretam as mudanças no posicionamento da Corte como fonte de insegurança jurídica.
R. Pelo contrário. Na medida em que o Supremo Tribunal Federal confirma os direitos e garantias do cidadão, que estão inscritos na Constituição, em vigor há mais de 30 anos, e que refletem toda uma elaboração histórica, até no plano internacional, de garantias dos direitos fundamentais, isso só pode militar no sentido de dar mais segurança, e não menos segurança. A insegurança ocorre quando um cidadão se coloca nas mãos de um juiz, de um magistrado, ou de um membro do Ministério Público que pode agir com a mais ampla discricionariedade sem atentar para aquilo que está na Constituição, ao Código de Processo Penal.
P. Um exemplo que ilustra essas críticas sobre a insegurança jurídica é o julgamento sobre a questão da prisão após a condenação na segunda instância, que teve em 2016 uma vitória de 6 a 5 para prisão, em 2016. E agora, foram outros 6 a 5 para a ênfase no trânsito em julgado. Por que esses votos tão apertados e num período tão curto?
R. Insegurança gerou a mudança no sentido de se superar a presunção de inocência constitucional. Durante muitos anos a Corte afirmou que a presunção de inocência impedia a prisão após o julgamento em segunda instância. Durante muitos anos foi assim. A partir, especialmente, de um julgamento histórico capitaneado pelo ministro Eros Grau [que discutiu o mesmo tema em 2009], em que se reafirmou, sobretudo em um país complicado como o nosso, no sentido do cumprimento dos direitos fundamentais, do que já está na Constituição. Mas, como uma visão mais punitivista, mais repressiva, passou a imperar no Brasil, houve uma inflexão da Suprema Corte. Por 6 votos a 5, entendeu-se [em 2016] que a partir da condenação em segundo grau se poderia mandar uma pessoa para a prisão. E o pior de tudo: automaticamente para a prisão, sem ponderar a situação pessoal do condenado, quando a nossa Constituição diz que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem fundamentada de um juiz. A partir dessa inflexão do Supremo —essa sim, que causou estranheza, que causou perplexidade —, os tribunais passaram a prender as pessoas automaticamente, tendo elas cometido um crime grave ou não, sejam elas perigosas ou não para a sociedade.
P. Mas, ministro, temos que admitir que algumas revisões do STF criam divisões até mesmo dentro do Judiciário.
R. O Brasil sem dúvida nenhuma está muito dividido. As últimas eleições mostraram uma divisão quase equitativa do nosso eleitorado. Essa divisão, digamos assim, político-eleitoral da sociedade, se reflete também no dia a dia. Todos nós verificamos isso. Os ódios aumentaram. As incompreensões também se multiplicaram. Esse ambiente, de certa maneira, também atinge as instituições e, por que não, o próprio poder Judiciário. Agora, acho absolutamente inconcebível que juízes de 1ª ou 2ª instância se manifestem publicamente ou se insurjam contra decisões da Suprema Corte do país. Isso é anomia pura. Mal sabem eles que no momento em que descumprirem uma orientação da Suprema Corte, os juízes de 1º grau também descumprirão as decisões da segunda instância. Eventualmente, as decisões do juiz de de 1º grau podem ser descumpridas pelos cidadãos e pelos próprios administradores públicos. Um caos. O que, evidentemente, não se pode aceitar de forma nenhuma. Dentro do Estado democrático de direito, as regras precisam ser respeitadas. Goste-se ou não. Quem não gostar dessas regras precisa se candidatar a um cargo eletivo e tentar mudar as normas.
P. Como o senhor avalia a figura do juiz de garantias do pacote anticrime aprovado pela Câmara e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro?
R. Esse é um avanço extraordinário. Eu sempre pugnei para que o juiz de garantia fosse adotado. Eu diria até que é um passo além daquilo que nós implantamos quando estivemos à frente do STF e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que foram as audiências de custódia. Demos cumprimento ao um dispositivo da Convenção Americana de Direitos Humanos, que estabelece que qualquer pessoa presa tem que ser imediatamente levada à frente de um magistrado, de um juiz. Por meio de uma resolução do CNJ ficou determinado que qualquer pessoa presa em flagrante deve ser encaminhada, no prazo de 48 horas, a um juiz. Essa providência teve resultados muito significativos. Segundo as últimas estatísticas, do ano de 2015, quando elas foram implantadas, até o ano de 2019, cerca de 200 mil pessoas foram liberadas mediante condições: tornozeleiras eletrônicas, comparecimento periódico ao juízo, suspensão de determinados direitos. E não foram jogados num sistema prisional dantesco. Hoje no Brasil nós temos 800.000 presos. Nós temos a terceira população carcerária do mundo e, desse número, 40% são presos provisórios, que jamais se defrontaram com um juiz. Passam meses, anos, sem serem ouvidos por um juiz, numa situação que o próprio STF classificou num julgamento histórico de “estado de coisas inconstitucionais”.
P. O que deve mudar agora com o juiz de garantias?
R. A audiência de custódia representou um avanço, e o juiz de garantia é um passo além, é um aperfeiçoamento. Qualquer pessoa uma vez defrontada com a Justiça criminal passa a ser colocada diante de um juiz de garantia, de um juiz de instrução, que vai verificar se a prisão é necessária, se medidas de caráter invasivo, como busca e apreensão em domicílio, quebra de sigilo fiscal, telefônico, bancários, são ou não pertinentes. Toda instrução criminal será feita por um juiz absolutamente independente que se coloca à margem ou longe do processo em si. Complementada essa primeira fase, que é a fase de instrução, o processo é passado para um juiz que vai julgar o mérito da questão. Ou seja, não há uma contaminação do juiz que vai julgar o mérito da ação penal com essas primeiras medidas de caráter instrutório. É um avanço civilizatório muito importante.
P. Mas este novo agente tem um custo. Será viável financeiramente, considerando que já há um déficit de juízes no Brasil?
R. A Justiça não tem custo, educação não tem custo, saúde não tem custo. São serviços públicos de caráter prioritário. A liberdade da pessoa humana é algo absolutamente fundamental, não tem preço. É preciso investir no juiz de garantias ou no juiz de instrução. É possível, ao meu ver, fazendo o remanejamento de varas, ou fazendo, eventualmente, trabalhos por turnos. É possível sem dúvida nenhuma implantar o juiz de instrução sem maiores despesas. E se tiver alguma despesa é uma despesa bem-vinda, um despesa benfazeja. Tem tantos gastos supérfluos da administração do próprio poder Judiciário que podem ser canalizados para o juiz de instrução...
P. O perfil hoje da Corte na área de costumes é considerado progressista. Mas teremos uma mudança importante nos próximos três anos. Estamos às vésperas da aposentadoria dos ministros Celso de Mello (2020) e Marco Aurélio Mello (2021), e também sua aposentadoria e da ministra Rosa Weber, em 2023. Como vê essa nova Corte, que será parcialmente constituída no Governo Bolsonaro?
R. O que se tem dito é que o Supremo Tribunal Federal é liberal nos costumes e punitivista em matéria de direito penal. Salvo exceções. Eu, por exemplo, sou um garantista. Entendo que se deve seguir rigorosamente aquilo que está na Constituição em relação aos direitos e garantias do cidadão. A verdade é que no nosso sistema de nomeação de juízes da Suprema Corte, que segue o modelo norte-americano, os juízes de certa maneira sempre trazem para os seus julgamentos um viés, amplamente considerado, daquele presidente da República que o nomeou. Se é um presidente em posições mais conservadoras, a tendência que é ele escolha um juiz mais conservador, seja em matéria de costumes, seja de direito penal. Mas isso também ocorre nos Estados Unidos. Talvez, tendo em conta este fato, e considerando também que a mudança social é extremamente dinâmica como jamais foi em outro período histórico, é possível que se possa, e penso que seja até desejável, cogitar mandatos para os juízes não só da Suprema Corte como das Cortes Superiores do país, a fim de evitar um certo engessamento de determinadas posições ideológicas ou determinadas visões de mundo. Ao invés do exercício do cargo vitalício, até o integrante do cargo atingir 75 anos, talvez pudéssemos adotar aqui no Brasil, como em outros países, um mandato de 10, 12 anos, oito anos...renovável ou não.
P. No artigo “Em defesa do Estado democrático de Direito”, publicado no final de novembro na Folha de S. Paulo, o senhor defende que um presidente está sujeito ao impeachment caso atente “contra o exercício dos direitos políticos, individuais ou sociais”, como no caso do emprego das Forças Armadas em operações para garantia da lei e da ordem (GLO) contra manifestantes. Foi um artigo de caráter educativo para os demais poderes?
R. Num país como o nosso, que a cada 25, 30 anos sofre um retrocesso institucional, é muito importante que esses instrumentos excepcionais que estão previstos na Constituição sejam utilizados com muita parcimônia. Intervenção da União nos Estados, dos Estados nos municípios, o estado de sítio, o estado de defesa e as operações GLO são instrumentos que devem ser utilizados apenas em caráter excepcionalíssimo, sob pena de se colocar em risco o próprio Estado democrático de direito. Foi esse o alerta que eu pretendi fazer.
P. O senhor está falando de riscos de colapso institucional. Tivemos dois interlocutores do Governo federal falando em AI-5. Nossa democracia corre riscos?
R. A ameaça de utilização ou de reinstituição do Ato Institucional número 5 é de uma irresponsabilidade absoluta. Não é possível que homens públicos cogitem um retrocesso institucional dessa natureza. Tendo em conta esses episódios que estamos vivendo, prisões que não poderiam nunca ter sido efetivadas, certo atropelo de direitos fundamentais que se vê aqui ou acolá. Isso tudo faz com que cada vez mais os democratas tenham que, de forma muito explícita e muito ativa, defender a Constituição. A Constituição é nossa tábua de salvação. O que impedirá retrocessos é o cumprimento escrupuloso daquilo que se contém na Constituição, sobretudo os direitos e garantias dos cidadãos.
P. O sistemas de pesos e contrapesos está funcionando no Brasil? O senhor é mais otimista ou pessimista em relação à defesa da Constituição?
R. Não podemos ter uma visão fotográfica do momento histórico. O momento histórico é um fluxo, só podemos ter uma visão mais clara depois de certos anos, ou até décadas. Este é um momento em que, de fato, o STF tem uma certa preponderância, um peso maior, sobretudo se comparado com o passado, relativamente aos demais poderes. O Congresso Nacional está muito fragmentado do ponto de vista de sua base político-partidária. Existem hoje cerca de 32 partidos políticos, e isso dificulta a tomada de decisões por parte do Congresso. As decisões são muito ad hoc, não existem posições ou decisões que são tomadas a partir de uma visão mais programática, principiológica, que é própria de um sistema partidário mais enxuto, com partidos que realmente tenham essa característica. O poder Executivo também está de braços dados com crises políticas, crises econômicas recorrentes. E o Supremo Tribunal Federal, neste momento, exatamente por decidir questões importantíssima com a maioria de 6 votos, tem condição de dar solução para os problemas que se colocam para a sociedade brasileira de forma mais célere. Mas eu imagino que, num momento futuro em que o Congresso Nacional se fortaleça e que o próprio poder Executivo possa controlar melhor o destino do país e nadar de forma mais tranquila nesses mares revoltos que vêm da política internacional, da geopolítica, o Supremo também perderá esse protagonismo que tem no momento presente.
P. Como o senhor avalia o combate à corrupção no Brasil?
R. O combate à corrupção é necessário. Todos nós queremos combater a corrupção. Mas, infelizmente, no Brasil, o combate à corrupção sempre foi um mote para permitir que se promovessem retrocessos institucionais. Foi assim na época do suicídio de Getulio Vargas, foi assim em 64. É uma visão moralista política do combate à corrupção, a meu ver, absolutamente deletéria. O combate à corrupção tem que ser feito diuturnamente, permanentemente, mas existem outros males igualmente graves no Brasil: a má distribuição de renda, a exclusão social, o sucateamento da educação, a precarização da saúde pública. São males que equivalem, se não são superiores, ao mal da corrupção.
P. O STF é muito criticado na hora de pautar a agenda de julgamentos, pela falta de transparência. Como o STF prioriza as pautas?
R. Há certa discricionariedade por parte do presidente no que diz respeito à pauta. Eu já fui presidente e posso dizer que existem dois requisitos para pautar um determinado processo: avaliação da urgência e da importância. Isso não é feito apenas de forma isolada. Consultam-se os pares, de certa maneira, há pressão das partes. Agora temos, em média, 700 processos para serem julgados pelo plenário do STF, é sempre uma escolha de Sofia. Mas não uma escolha totalmente aleatória. Claro que existe um certo desejo por parte da mídia, por parte da opinião pública, de que certos assuntos tenham prioridade em relação a outros. Mas isso não é possível.
P. Por exemplo, o fim do julgamento sobre a suposta suspeição do ex-juiz Sérgio Moro, pedido pela defesa do ex-presidente Lula. Havia uma expectativa de que seria realizado em 2019.
R. Mas, nesse caso, determinado ministro pediu vista [Gilmar Mendes] e ele devolverá a vista quando entender que o processo está maduro para ser julgado. Já não tem nada a ver com a pauta, que é aquela determinada pelo presidente do STF e que sofre uma série de junções, de pressões e, afinal de contas, o presidente tem que decidir. Os presidentes da República, do Senado, da Câmara, do STF, são eleitos para tomar essas decisões.
P. Os pedidos de vista também costumam demorar além do que prevê o regimento.
R. A Justiça é demorada também. Se nós escolhermos o processo "a", desagradaremos "b" ou "c". Sempre tem alguém que vai achar que o processo dele tem preferência, é uma escolha de Sofia.
P. Ministro, quais foram os principais acertos da Corte desde que o senhor começou?
R. Eu sou um pouco suspeito para falar porque fui o relator das cotas raciais nas universidades públicas. Esse foi um dos raros processos em que o voto do relator, ou seja, o meu voto, foi aprovado por unanimidade pelos membros do Supremo Tribunal Federal. Isso, ao meu ver, foi um avanço extraordinário no que diz respeito à integração dos negros, dos índios, e de outros segmentos mais carentes da população na universidade pública. Recentemente, o IBGE fez uma pesquisa que mostra que hoje mais de 50% da população universitária é constituída por negros. Isso me parece um avanço extraordinário.
P. E quais são os casos em que o senhor não é suspeito de falar?
R. Por exemplo, uma decisão na qual fui vencido em parte, porque achei que deveríamos ter estabelecido alguns parâmetros mais restritos, foi no sentido de liberar as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas. Isso é muito importante para as pesquisas científicas do Brasil. Eu fui vencido em parte porque achei que os limites tinham que ser mais estritos. Mas nós liberamos isso com certa generosidade. Isso, ao meu ver, foi um avanço. Outra questão, em que eu também por acaso fui relator, foi o habeas corpus coletivo para as mulheres presas. Nós criamos esse instrumento, que não estava previsto na Constituição, dizendo que as mulheres gestantes, lactantes e mães de crianças até 12 anos não deveriam mais ser presas. Porque no fundo, no fundo, quem está preso é um brasileirinho inocente que fica atrás das grades. Então são alguns marcos importantes que o Supremo estabeleceu.
P. Como o senhor vê o futuro da Justiça do Brasil?
R. Eu penso que o futuro da Justiça, não só no país, mas em todo o mundo, é no sentido de tirar da Justiça uma série de questões que podem ser resolvidas pela própria sociedade. Eu mesmo, quando fui presidente do CNJ, tendo em conta os 100 milhões de processos que estavam tramitando na época, hoje talvez um pouco mais, fiz o esforço, juntamente com os demais magistrados de todo o país, para prestigiar a conciliação, a mediação e a arbitragem. Ou seja, tirar do Judiciário uma série de questões, sobretudo aquelas que dizem respeito a direitos disponíveis, para permitir que o Judiciário se debruçasse sobre as questões mais relevantes.
P. O senhor comentou sobre o momento de mares revoltos que vive o Brasil e a necessidade de os democratas enaltecerem a Constituição para marcar posição contra os arroubos autoritários. Qual o papel do STF no sentido de acalmar esses mares revoltos?
R. O papel do STF e do Judiciário brasileiro só pode ser julgado daqui alguns anos, daqui a algumas décadas. Não podemos julgá-los a partir das emoções que estão à flor da pele neste momento histórico. Mas o Judiciário vem representando um papel de consolidação da democracia, de estabilidade das instituições republicanas. Basta ver, por exemplo, o papel da Justiça Eleitoral. A partir da Constituição de 88, sobretudo, a Justiça Eleitoral tem representado um papel importantíssimo no sentido de fazer com que os resultados das eleições sejam aceitos sem maiores contestações. Eu mesmo fiz uma eleição geral como presidente do TSE disputadíssima, em que foi eleita a primeira mulher, Dilma Rousseff. A eleição foi apurada em poucas horas a partir das urnas eletrônicas. E a partir disso não se contestou, pelo menos contestação séria ou jurídica, o resultado das eleições. O próprio STF, seja na pauta de costumes, seja em questões que afetam o dia a dia do cidadão, ou mesmo nas questões criminais, tem decidido, às vezes por maiorias apertadas, e a questão se pacifica em toda a sociedade. Existem descontentamentos aqui e acolá, sobretudo em matéria criminal, mas de modo geral eu penso que as nossas decisões não são contestadas, são aceitas e militam no sentido de pacificar a sociedade.
El País: ‘Doutrina Guedes’ coloca o Brasil à venda
Paulo Guedes, o ‘czar’ econômico do Governo Bolsonaro, realiza a maior privatização de empresas e recursos públicos da história do Brasil
O Governo brasileiro quer vender tudo. Não é uma licença jornalística ou uma tentativa de capturar o leitor: são palavras literais do czar econômico de Jair Bolsonaro, o ultraliberal Paulo Guedes, e do próprio secretário-geral de privatizações, Salim Mattar, uma figura cuja mera existência é uma declaração de intenções. Para além da retórica, já colocaram mãos à obra, demonstrando que vão com tudo em um plano de privatização iniciado na época de Michel Temer, mas que ganhou força com o nacional-populista no poder. O objetivo autofixado de arrecadar 20 bilhões de dólares em 2019 através da venda, parcial ou total, de participações em empresas ou ativos de titularidade do Estado foi superado: até o fim de setembro as autoridades brasileiras tinham vendido participações em empresas arrecadando mais de 19 bilhões de dólares, oferecido infraestruturas por 6 bilhões e leiloado direitos de exploração de matérias-primas —principalmente petróleo— por 12 bilhões. Embora com mais obstáculos do que a nova administração gostaria, no último trimestre do ano —período para o qual ainda não há dados disponíveis—, o número continuou engordando.
O argumento para a venda dos ativos públicos que estão nas mãos do Estado repousa sobre dois pilares. O primeiro, fiscal: são necessárias mais receitas para reequilibrar as contas públicas e diminuir uma dívida que se aproxima perigosamente de 80% do PIB. O segundo, o que mais pesa, é puramente ideológico: Guedes, fiel à doutrina da Escola de Chicago, é totalmente favorável à ideia de que o setor privado é, por definição, melhor gestor do que o Estado e afirma que a venda de bens públicos diminuirá a corrupção. A ânsia privatista nasce, na boca do próprio ministro da Economia, da “disfuncionalidade” das próprias empresas públicas pela qual culpa o PT de Luiz Inácio Lula da Silva.
No horizonte do mandatário de ultradireita, surge um objetivo: obter mais de 320 bilhões de dólares em privatizações e leilões de infraestrutura —de poços de petróleo a estradas, aeroportos e portos— durante seu mandato. Somente no ano recém-iniciado Mattar anunciou a vontade do Governo de se desfazer de sua participação em 120 empresas, número que pode mais que dobrar caso se consiga a aprovação do Senado —um extremo que não está nada claro, dada a controvérsia política e a resistência social— pela venda da Eletrobras e suas subsidiárias. Para além da holding elétrica estatal, Guedes e sua equipe deram um passo à frente na venda do porto de Santos (o maior da América do Sul e o segundo mais importante da América Latina) e de suas ações na empresa de telecomunicações Telebras. Uma lista da qual já faziam parte os Correios e a Casa da Moeda e à qual acabam de ser adicionados os 21% da gigante da carne JBS, ainda nas mãos do Estado através do BNDES e que sairá ao mercado aproveitando seu bom momento no mercado de ações, em pleno auge das exportações para a China.
O movimento com a JBS é muito parecido com o que o Governo quer realizar com a Petrobras: continuar se desfazendo gradualmente de sua posição acionária, ainda superior a 42%. Paralelamente, o Congresso já se movimentou para facilitar a entrada de dinheiro privado no setor de tratamento de água em um país em que quase metade da população, cerca de 100 milhões de pessoas, ainda não tem acesso a esse serviço básico. São marcas de identidade com as quais Bolsonaro quer se apresentar aos investidores no final de janeiro no Fórum de Davos, onde tentará explorar a imagem de um Brasil que deixou para trás os dias de recessão e redobrará os acenos aos investidores.
Diante do alarde com o qual o Governo está vendendo o processo, prudência. “No papel, parece impressionante, mas a execução será muito difícil. É uma operação, principalmente, da porta para fora e convém diminuir as expectativas”, diz Aldo Musacchio, da Universidade Brandeis. “A experiência nos mostra que é preciso tomá-lo com um grão de sal”. Na mesma linha, Lourdes Casanova, diretora do Instituto de Mercados Emergentes da Universidade Cornell, pede cautela e alerta para dois riscos: a criação de monopólios privados, como aconteceu em outros países da América Latina, e a debilitada capacidade de negociação do Brasil depois de ter estabelecido um objetivo concreto de privatizações. “Sempre se deve vender a partir de uma posição forte. Quando você é obrigado e o comprador sabe disso, ele te pressiona”. A maioria dos brasileiros tampouco vê isso claramente: mais de dois terços dos consultados em agosto pelo Datafolha eram contra o plano de privatização.
“É verdade que o Governo conseguiu superar seu objetivo de arrecadação em 2019, mas principalmente pelas concessões, sobretudo as de petróleo e gás. A única opção de privatização total é a Eletrobras, para a qual esperamos que obtenha a aprovação do Congresso em 2020 ou 2021”, afirma Chris Garman, da consultoria Eurásia. "Em resumo: o progresso foi positivo, mas distante do que Guedes prometeu na campanha”. Um pouco mais otimista se mostra Alberto Chong, professor de economia da Georgia State University e autor de Privatizações na América Latina: Mitos e Realidades, que prevê “um aumento relativamente imediato na qualidade dos serviços públicos da maioria das empresas privatizadas, melhoria palpável na cobertura dos serviços” e, isso sim, “demissão de trabalhadores das antigas empresas estatais”.
Se os números projetados por Brasília forem finalmente alcançados, não haverá precedentes próximos de uma onda privatizadora dessa envergadura. Entre 1991 e 2001 o setor público transferiu o controle de 119 empresas ou participações em empresas. Obteve 68 bilhões de dólares e reduziu a dívida em 18 bilhões, segundo dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), números que fizeram da operação uma das maiores transferências de ativos públicos da história. “Ali foram vendidas as joias da coroa: Vale, Petrobras, Siderbras...”, destaca Musacchio. Mas mesmo depois esse movimento, país possui 418 empresas de titularidade pública, segundo a Fundação Getulio Vargas (FGV). Quase 140 delas estão nas mãos do Governo central e cerca de uma centena está no radar de privatizações de Bolsonaro. Fiel à sua estratégia de mão dura, seu ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, já disse que, nos casos em que for impossível vender, se decidirá diretamente pela liquidação. Tudo para cumprir sua missão: diminuir ao máximo o tamanho do Estado.
El País: O ano em que a Vaza Jato colocou a maior operação anticorrupção do país em xeque
Mensagens entre procuradores e membros da força-tarefa da Lava Jato, reveladas em 2019, expuseram os bastidores das investigações e podem mudar os rumos da operação
Regiane Oliveira e Marina Rossi, do El País
Em junho de 2019, quando o The Intercept Brasil divulgou a primeira reportagem feita com base em mensagens do Telegram que haviam sido entregues ao jornalista Glenn Greenwald por uma fonte anônima, a Lava Jato já estava consolidada como a maior operação anticorrupção do Brasil. Naquele momento, já havia derrubado empresários, colocado políticos como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na prisão e feito com que seu juiz mais eminente, Sergio Moro, da 13ª Vara de Curitiba, fosse convidado para ser ministro da Justiça do Governo recém-eleito de Jair Bolsonaro.
Até então os feitos da Lava Jato davam o tom dos noticiários. Todos seguiam atentos à divulgação das prisões cinematográficas e dos números grandiosos—centenas de conduções coercitivas, outras centenas de condenados, milhares de buscas e apreensões, bilhões de reais devolvidos aos cofres públicos. Até novos movimentos sociais foram criados para apoiar a missão do chefe da operação em Curitiba, o procurador Deltan Dallagnol. Curitiba se apresentava como o Brasil em cruzada contra a corrupção —e, de fato, trouxe avanços na área. Mas nem todo o Brasil se sentia representado por Curitiba.
Críticos afirmavam que a sacralização da Lava Jato abria espaço para justificar qualquer tipo de ação. Havia dúvidas sobre até onde a operação estaria esticando os limites da Justiça em vazamentos seletivos de informações sigilosas, suspeitas de violação do devido processo legal e do princípio da imparcialidade, além do uso de prisões para forçar acordos de delações premiadas. Muitos tinham convicção de que a operação tinha problemas, mas não tinham provas. Até a Vaza Jato colocar a credibilidade da operação em xeque.
À luz das conversas do Telegram, o agora ministro da Justiça e os procuradores se tornam protagonistas de uma trama que revelou as zonas cinzentas do funcionamento do Judiciário, onde as linhas que separam o que é ilegal, imoral e legítimo se confundem sob os olhos da Justiça e da opinião pública. Os documentos permitiram um mergulho nos bastidores da operação.
Desde a primeira reportagem feita pelo The Intercept Brasil com base nas conversas do Telegram, todos os envolvidos sempre negaram a veracidade das mensagens, afirmando que elas são produto de um crime por terem sido subtraídas dos telefones dos procuradores. Sergio Moro e a força-tarefa da operação afirmam ainda que se, de fato, fossem reais, não possibilitariam saber se foram ou não editadas e que, portanto, não serviriam como prova para nada. Mas elas mostraram, em muitos momentos, Moro orientando o procurador Dallagnol para que trocasse a ordem de fases da Lava Jato, cobrando agilidade em novas operações e até mesmo dando conselhos estratégicos e pistas de investigação, como se fosse seu superior hierárquico.
Chamado para se explicar na Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça do Senado em junho, Moro repetiu que as mensagens foram adquiridas por “uma invasão criminosa” por meio de um grupo organizado e não por “adolescentes com espinhas”. No mês seguinte, quatro pessoas foram detidas suspeitas de hackear celulares de autoridades. Walter Delgatti Neto, um dos suspeitos, disse ter invadido o celular de um promotor de Araraquara (SP) e, a partir daquele aparelho, saltou de telefone em telefone até chegar em autoridades mais graúdas. Com isso, Delgatti Neto, que está preso até hoje, ganhou o apelido de hacker de Araraquara. Mas um relatório da Polícia Federal, concluído no último dia 18, apontou que o hackeamento começou pelo celular do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República, em março do ano passado. Segundo o documento, Deltan Dallagnol e o ministro Sergio Moro estão entre os alvos dos hackers. Os investigadores ainda avaliaram que os suspeitos "tinham a intenção explícita de interferir nas investigações de organizações criminosas que estão sendo conduzidas pela força-tarefa da Operação Lava Jato, tendo por objetivo final a obtenção de ganhos financeiros.”
As revelações da Vaza Jato
O EL PAÍS foi um dos veículos que teve acesso ao conteúdo das mensagens e o publicou. Primeiramente, procurou se assegurar da veracidade do material. Com auxílio de fontes externas, que viram suas conversas com procuradores divulgadas em meio ao material recebido pelo The Intercept, foi possível verificar a autenticidade do conteúdo.
Apenas em um segundo momento o EL PAÍS passou a pesquisar no banco de dados —em um trabalho bastante artesanal, feito por meio de buscas com termos pré-definidos, que retornavam milhares de resultados—. Diante da imensidão do material, era preciso ter um ponto de partida. E começou-se pelas dúvidas que foram levantadas durante os anos de cobertura da Lava Jato e também após o início da Vaza Jato: afinal, porque os procuradores confiaram tanto no Telegram? Qual era a relação entre a Lava Jato e os ministros do Supremo? Como foi recebida a nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge? Onde foi parar a Lava Jato dos bancos tão prometida pela força-tarefa de Curitiba? Por que a força-tarefa de São Paulo parece tão inexpressiva quando comparada com a do Rio de Janeiro ou Curitiba? O que aconteceu nos bastidores da prisão do ex-presidente Michel Temer?
A partir destes questionamentos, foram cruzadas as informações encontradas nas mensagens, com confirmações de fontes e pesquisas sobre o que foi noticiado de cada assunto em cada momento da Lava Jato. Assim, foi revelado que a força-tarefa de Curitiba tinha um plano de ação que diferenciava a estratégia adotada contra empreiteiras e contra bancos. Enquanto as construtoras deveriam ser responsabilizadas por meio de ações penais, a meta para bancos era buscar acordos, a título de indenização. Paralelamente, Dallagnol realizou palestra para a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). Sua assessoria afirma que o “procurador foi escolhido por preencher critérios técnicos relacionados ao tema e a sua participação foi remunerada e formalizada por meio de contrato”.
Um exemplo dessa estratégia utilizada com as instituições financeiras foi um acordo da Lava Jato que blindou o banco Safra de punições por negociar com o doleiro Alberto Youssef. A força-tarefa arquivou em outubro do ano passado o inquérito que investigava conduta suspeita do banco em empréstimo ao doleiro.
Também foi descoberto que a força-tarefa de Curitiba planejou buscar na Suíça provas contra o ministro do STF Gilmar Mendes, um conhecido crítico da operação. Procuradores discutiram usar o caso de Paulo Preto, considerado operador do PSDB, para reunir munição contra ministro. As conversas apontaram ainda o empenho da força-tarefa pelo impeachment do magistrado.
O cruzamento de informações com as mensagens encontradas também mostrou que às vésperas do afastamento de Dilma Rousseff da Presidência, em 2016, a Lava Jato rejeitou a delação que acabou prendendo Temer em 2019. As conversas no Telegram mostram que, à época, a procuradoria não viu interesse público nas acusações contra o então vice-presidente.
A apuração mostrou que procuradores tratavam a chefe Raquel Dodge, então procuradora-geral da República, como um entrave para operação. Eles buscaram driblá-la e planejaram vazamentos de informação na imprensa para pressioná-la a liberar ao STF delações, entre elas, a de Léo Pinheiro, da construtora OAS, uma testemunha-chave de casos que incriminam o ex-presidente Lula.
Foi por meio dessa investigação que foi possível revelar que a força-tarefa de São Paulo era considerada o elo fraco da operação por Curitiba e conflitos entre os membros fizeram com que a equipe implodisse em dezembro de 2018. Daí a menor visibilidade da procuradoria paulista diante dos trabalhos realizados em Curitiba e no Rio de Janeiro.
Os procuradores de Curitiba, em sua confiança cega no aplicativo Telegram, o utilizaram, inclusive, para enviar documentos sigilosos, como a proposta de delação do ex-ministro Antonio Palocci, documento que deveria estar protegido pela lei da colaboração premiada.
Ainda não é possível medir exatamente os impactos da Vaza Jato para a operação deflagrada em 2014. O STF já vem realizando movimentos para tentar corrigir seus excessos. As conduções coercitivas, um instrumento comum da operação, já haviam se tornado ilegais em junho de 2018, em uma votação apertada (6x5) na Corte. Ministros do Supremo Tribunal Federal já afirmaram que verificarão a autenticidade do material e que ele pode influenciar o julgamento de futuros casos.
Está na na fila para ser votada pelos ministros a suspeição de Sergio Moro, pedida pela defesa de Lula e que pode anular o processo do tríplex do Guarujá, que já condenou o ex-presidente em três instâncias. No habeas corpus, que já havia sido pedido antes das revelações da Vaza Jato, os advogados do petista anexaram as mensagens trocadas por procuradores para reforçar a tese da defesa de que Moro atuou com “parcialidade” quando era juiz da Lava Jato.
Foi também depois da Vaza Jato que os magistrados acordaram em fixar tese sobre manifestações de réus e delatores nos processos da operação. No entendimento dos ministros, a ordem em que as defesas são feitas pode influenciar na sentença. Por isso, o acusado deve ser o último a fazer sua defesa, depois de todos os delatores. Esse entendimento ainda pode beneficiar dezenas de presos pela operação. Mas o golpe mais forte sofrido pela Lava Jato até agora talvez tenha sido a reversão do entendimento sobre a prisão em segunda instância, realizada também pelo STF. A decisão nocauteou a operação, tirando da cadeia o ex-presidente Lula.
El País: América Latina busca estabilidade após a explosão popular
Região enfrenta as consequências dos protestos populares e a consolidação de novos Governos em um momento de incerteza econômica
Prever que a conjuntura política da América Latina será marcada pela incerteza e pelo fator surpresa não é arriscado, na medida que a essas alturas do ano passado pouco se sabia, por exemplo, sobre a existência de Juan Guaidó na Venezuela, e os protestos populares que convulsionaram muitos países estavam longe sequer de ser uma possibilidade. As ainda incertas consequências dessa agitação serão um fator determinante na reacomodação política que vem ocorrendo na região nos dois últimos anos, com mais de uma dezena de eleições, incluindo as principais potências; inumeráveis Parlamentos fragmentados —com exceção do poder total de Andrés Manuel López Obrador no México— e a previsão da Cepal (órgão da ONU) de que o septênio 2014-2020 será o de menor crescimento econômico nos últimos 40 anos.
No plano ideológico, a vitória de Alberto Fernández na Argentina; a libertação de Lula no Brasil; a derrota do uribismo nas eleições locais da Colômbia e os protestos contra Sebastián Piñera no Chile, deram uma trégua às forças progressistas da região, após as vitórias conservadoras no Brasil, Colômbia e Chile e o rumo autoritário tomado por Venezuela e Nicarágua. Após um começo de século marcado pela hegemonia do denominado socialismo do século XXI, o pêndulo entre as forças progressistas e conservadoras permanece pela primeira vez equilibrado em um ano em que estão previstas eleições presidenciais somente na República Dominicana e na Bolívia.
A Venezuela será presumivelmente de novo o foco de maior tensão na região. No país que dava a impressão de que tudo iria mudar com o surgimento de Juan Guaidó, nada mudou. Pelo menos no plano político: a situação econômica continua sendo crítica, apesar da dolarização que traz um salva-vidas aos mais ricos; a migração não tem freio —aproximadamente cinco milhões de pessoas deixaram o país—. Não muda o conflito entre Nicolás Maduro e Juan Guaidó. O primeiro conseguiu se entrincheirar no poder após um ano complicado e as expectativas geradas pelo presidente da Assembleia Nacional, reconhecido como mandatário interino por mais de 60 países, se diluíram e sua figura ficou prejudicada, não somente dentro da Venezuela; a comunidade internacional faz malabarismos para lidar com o Governo de Maduro sem que isso signifique um enfraquecimento de Guaidó.
A próxima segunda-feira será a primeira prova de fogo para o jovem dirigente venezuelano, de 36 anos. Nesse dia deverá referendar seu cargo como principal líder da Assembleia Nacional. O chavismo, que voltou ao Parlamento neste ano, de maioria oposicionista, mobilizou nas últimas semanas uma ofensiva para tentar enfraquecer os apoios de Guaidó ao tentar subornar vários dirigentes de oposição para que mudem seu voto. A Assembleia Nacional está, desde o final de 2015, em poder da oposição, de modo que Guaidó possui, a priori, apoio suficiente, mas pelo menos trinta deputados estão no exílio e várias dezenas ameaçados.
A partir da próxima semana se abrirá um novo cenário —mais um—na Venezuela. O chavismo está decidido a convocar eleições legislativas, como deveria acontecer nesse ano. Muitos pensam que serão fixadas no começo do ano para colocar a oposição em uma armadilha. Um setor dos críticos a Maduro sustenta que não existem condições para um processo eleitoral limpo, como já defenderam em maio de 2018 nas eleições presidenciais vencidas por Maduro e que não foram reconhecidas pela grande maioria da oposição e da comunidade internacional. Há, entretanto, amplos grupos de dirigentes oposicionistas —alguns deles defenderam Guaidó no último ano— que acham que devem participar da hipotética data. O entorno mais próximo ao presidente do Parlamento está cauteloso, não descarta outro cenário eleitoral e que os confrontos voltem a se intensificar.
A crise da Venezuela vai além do país caribenho e, certamente, balançará novamente toda a região. Na parte diplomática, muitos olhares estão no México, que neste ano terá a presidência temporária da Comunidade dos Estados Americanos e do Caribe (CELAC), o órgão que viveu seus melhores dias sob a proteção de Hugo Chávez e Lula e que agora o Governo de López Obrador quer relançar, em parte como contrapeso à Organização de Estados Americanos (OEA), a quem vê com receio pelo papel de protagonista exercido por seu secretário-geral, Luis Almagro.
A diplomacia mexicana, pouco atuante no caso venezuelano, deu nos últimos meses um passo à frente, especialmente com a crise desatada na Bolívia pela renúncia, após a pressão dos militares, de Evo Morales, a quem López Obrador deu asilo em seu país antes de que ele se instalasse na Argentina. No plano interno, a segunda potência da região encara um ano marcado pela incerteza econômica, após entrar em recessão pela queda de rendimento. A consolidação do novo acordo comercial com os Estados Unidos e o Canadá é o principal trunfo para dar um pouco de oxigênio a López Obrador, que mantém amplo apoio popular, de acordo com todas as pesquisas, mas que continua sem gerar confiança no mundo empresarial para retomar as finanças do país e poder realizar sua ambiciosa agenda social.
A economia também será determinante no primeiro ano de Governo de Alberto Fernández na Argentina, outra potência que, como o México, decidiu guinar à esquerda, formando um teórico eixo progressista que ainda está longe de se materializar no papel. É, pelo menos por enquanto, um contrapeso à grande economia da América Latina, o Brasil, governada pelo ultradireitista Jair Bolsonaro, que ainda não pôde concretizar suas grandes reformas. As eleições municiais de outubro serão um termômetro para medir o desgaste de Bolsonaro após dois anos de sua vitória e o apoio que pode ter o Partido dos Trabalhadores de Lula, após o ex-presidente sair da prisão.
O termômetro da força das manifestações populares virá do Chile e da Colômbia, em que os protestos ainda estão vivos, especialmente contra o mandato de Sebastián Piñera. No caso colombiano, se une a pressão a Iván Duque para que consolide os acordos de paz com as FARC e detenha o avanço do paramilitarismo no país. A continuidade da pressão e os ganhos que possam vir dela mostrará a força dos movimentos sociais latino-americanos e a capacidade de liderança dos políticos, isso é, o nível de governabilidade em uma das regiões mais agitadas.
Brasil, entre as reformas e o medo das ruas
O grande dilema que o presidente do Brasil enfrentará em 2020 é como calibrar as reformas para liberalizar a economia, de maneira que impulsionem o crescimento, mas sem deixar prejudicados, ou não muitos. O Governo quer evitar que se acenda o pavio do descontentamento da população que tantos estragos vem causando no restante do continente e, simultaneamente, oferecer ao eleitorado conquistas tangíveis suficientes para que o bolsonarismo tenha bom desempenho nas eleições municipais, antessala das presidenciais de 2022.
É um desafio maiúsculo. Porque o espelho chileno em que se olhavam o ultradireitista e seu ultraliberal ministro da Economia, Paulo Guedes, para realizar suas profundas reformas econômicas se partiu a golpes de protestos de rua. Antes ou depois Bolsonaro deverá decidir se resgata as reformas tributárias e do funcionalismo público da caixa em que as colocou no final de novembro. É provável que o desmantelamento das políticas cultural e do meio ambiente continue —a não ser que a pressão externa o impeça— e que a agenda conservadora chegue ao Congresso, onde deve encontrar resistência de políticos que pretendem se viabilizar como uma alternativa ao centro, como o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
O ex-preso Lula, 74 anos, será, a não ser que ocorra alguma surpresa, um dos protagonistas da campanha eleitoral, ajudando a promover palanques pelo país e, com isso, tentar forjar uma base mais forte do PT nos campos municipais. Prefeitos e vereadores funcionam, nas eleições presidenciais, como importantes cabos eleitorais.
Bolsonaro também enfrenta desafios em seu próprio campo de jogo: manter uma certa coesão em um Gabinete que congrega grupos frequentemente rivais e dar corpo ao partido que acaba de fundar, Aliança pelo Brasil, a tempo para as eleições de outubro. O partido é, por enquanto, pouco mais do que um breve manifesto que condensa o ideário nacionalista, de extrema direita, cristão e populista do presidente e ainda precisa do registro formal no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ele terá um olho nas investigações sobre seu filho mais velho, o senador Flávio, suspeito de corrupção e lavagem de dinheiro. Um tendão de Aquiles.
Outro dilema que o aguarda é a licitação da rede 5G, prevista para este ano. A pressão de Washington para que a empresa chinesa Huawei seja excluída é imensa. Bolsonaro terá que escolher entre aborrecer seu admirado Donald Trump ou Pequim, seu principal parceiro comercial, a quem tratou a patadas até que a Presidência viu claramente que marginalizar a China seria catastrófico à economia. Ou talvez procure uma desculpa para adiar a licitação para 2021.
El País: 'A lógica bolsonarista nas eleições municipais deve ser a mesma, com campanhas aquecidas e radicais', diz Corbellini
Juliano Corbellini, responsável por coordenar as campanhas vitoriosas de Flávio Dino no Maranhão, afirma que a esquerda negligencia pautas de segurança e corrupção
As eleições municipais de 2020 prometem. Teremos a reestreia (nas ruas) do ex-presidente Lula como cabo eleitoral, uma vez que o petista passou boa parte de 2019 atrás das grades, e o primeiro teste da capacidade do presidente Jair Bolsonaro de transferir votos para outros candidatos que não seus filhos. “É preciso ver qual será a situação do Governo e como estará popularidade do presidente, e por outro lado como se dará a mobilização de Lula e os efeitos que isso irá produzir”, afirma Juliano Corbellini, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e consultor de marketing eleitoral. Ele foi responsável por coordenar as duas campanhas vitoriosas de Flávio Dino (PC do B) ao Governo do Maranhão que destronaram o clã Sarney.
Ao lado do economista Maurício Moura, escreveu A eleição disruptiva: por que Bolsonaro venceu (Editora Record, 2019), que mostra como o atual presidente surfou na onda do “Partido da Lava Jato” e utilizou com maestria o sentimento antipetista (e o submundo do WhatsApp) para chegar ao Planalto. Sobre o pleito do ano que vem, Corbellini acredita que estamos em um processo de “transição” política, mas ainda há uma “força residual muito forte do antipetismo”. Em entrevista ao EL PAÍS, ele destaca ainda as lições que o campo progressista tem para tirar das campanhas de Dino: “É um Governo de esquerda com forte atuação no campo social mas que se apropriou da pauta de segurança, econômica e anticorrupção. E segurança e a corrupção são justamente as pautas onde a esquerda perdeu em 2018 de maneira geral”.
Pergunta. As eleições municipais de 2020 também serão “disruptivas” como as de 2018?
Resposta. Eu acho que vamos viver uma eleição que já se dá em meio a um processo de transição no quadro político e partidário, embora ainda não saibamos para onde esta transição ira levar. Vai haver um pouco de ressaca, ainda teremos uma força residual, mas muito importante, do antipetismo. Por outro lado o PT vive outro momento, com Lula solto e podendo fazer campanha para seus candidatos.
P. Bolsonaro deve ser um bom cabo eleitoral?
R. Isso depende de como ele irá se comportar nesta posição. Mas uma coisa está clara: apesar dele ter uma situação partidária indefinida [o presidente deixou o PSL e se empenha para fundar uma nova legenda], o fato é que o bolsonarismo, que nós chamamos de “partido da Lava Jato” no livro [A eleição disruptiva], demonstrou em 2018 que a questão partidária é secundária para eles. Eles são uma força que transcende partidos. Então evidentemente muitos candidatos de diferentes legendas irão tentar se associar ao bolsonarismo, como ocorreu no ano passado.
É preciso ter em conta que este “partido da Lava Jato” continua sendo uma força social muito forte. Mas alguns dos acontecimentos deste ano, como os episódios revelados pelo The Intercept Brasil , e mesmo o Sergio Moro se alinhando politicamente ao Governo —inclusive assumindo sua defesa—, e as acusações envolvendo Flávio Bolsonaro, expuseram muito o clã. O próprio Moro, que continua sendo popular, é bem menos do que era quando juiz.
P. Quem deve desempenhar melhor esse papel de cabo eleitoral, Lula ou Bolsonaro?
R. Isso só vamos saber em agosto de 2020, quando começar a campanha. Porque é preciso ver qual será a situação do Governo, como estará a popularidade do presidente e, por outro lado, ver como se dará a mobilização de Lula e os efeitos que isso irá produzir. É preciso ter em vista a possível equação das alianças políticas: o PT dialoga com outros partidos e forças grandes. O fato é que ambos serão players importantes nas eleições, mobilizando amor e rejeição.
P. A popularidade do presidente está baixa. Isso pode impactar sua capacidade de alavancar aliados?
R. Não podemos analisar a popularidade do Bolsonaro como analisamos a dos outros Governos, pela própria atipicidade desta gestão. A preocupação dele não é ter mais de 50% de ótimo/bom nas pesquisas. Ele não busca ampliar a base de apoio, como Lula. O objetivo do presidente é manter os seus seguidores coesos, manter um terço do país mobilizado. Ele precisa manter essa base de apoiadores aquecida. E para isso um dos pré-requisitos é apostar na lógica de polarização política permanente, manter seus inimigos sempre vivos. O que ele quer é ser a maior minoria, essa é a estratégia dele para 2022. Demonizando a esquerda, fomentando a pauta do armamento... A lógica dele nas municipais deve ser a mesma: campanhas aquecidas, radicais.
P. O desempenho da economia tem um peso forte nas municipais assim como tem na nacional?
R. Sim. Se o Governo conseguir criar um ambiente de recuperação econômica, o voto em candidatos apoiados por ele tende a ser maior, mesmo nas municipais.
P. Qual lição o Maranhão de Flávio Dino pode dar para o campo progressista nestas eleições?
R. O Maranhão tem lições muito importantes para dar. O Governo do Flávio tem uma pauta social muito profunda, com foco em mudanças na educação. O Estado saltou no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), isso em um Estado muito pobre, onde é difícil fazer políticas públicas efetivas. O Maranhão é um dos que paga o maior salário para professores da rede estadual... Enfim, existe um compromisso com a pauta social, mas sem abrir mão do diálogo com o centro.
Mas para além da pauta social, o Maranhão tem grande obra na área da segurança, e o Governo dele não abre mão da austeridade fiscal. É um Governo de esquerda que se apropriou da pauta de segurança e da pauta econômica e anticorrupção. E a segurança e a corrupção são justamente as pautas onde a esquerda perdeu em 2018 de maneira geral.
P. O PSDB não conseguiu aproveitar a crise do PT e naufragou em 2018. Você acha que há espaço para que o partido se recupere? Com esse novo PSDB do João Doria?
R. Em 2018 o PSDB flertou pelo partido da Lava Jato e foi engolido por ele com uma série de denúncias contra alguns de seus integrantes. Do ponto de vista da polarização da política brasileira, o PSDB foi removido. Com essa derrota do Geraldo Alckmin, que representava o PSDB mais clássico, vemos que hoje o partido tem uma cara indefinida. Há um esforço do Doria em assumir esta nova cara do PSDB, mas mesmo ele não consegue se definir direito: ora é gestor, ora antipetista, hora pacificador. O Doria obteve algumas vitórias na Executiva Nacional do partido, conseguiu indicar um novo líder, mas foi derrotado na questão da expulsão do Aécio Neves.
P. Qual o foco do Doria nestas eleições?
R. São Paulo. Se o candidato apoiado por ele perder aqui em 2020 ele não poderá jogar em 2022 a cartada de que ele é o PSDB “que dá certo”. Uma derrota na capital do Estado não seria o suficiente para tirá-lo do páreo na corrida para o Planalto, mas enfraquece.
P. O governador defendeu uma chapa com o prefeito Bruno Covas disputando a reeleição e a deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) de vice. Seria competitiva?
R. Essa tentativa tem fundamento. Covas é o PSDB clássico, enquanto que a Joice representa o “Partido da Lava Jato”. Pode ser competitivo.
P. Mas o Covas está com índices baixos de popularidade...
R. É preciso ter em mente que o primeiro semestre do ultimo ano de gestão tem um peso enorme na disputa para as prefeituras em geral. Costuma ocorrer, até por uma questão de execução orçamentária, uma recuperação de popularidade. Então este sprint final das prefeituras no ano eleitoral reserva surpresas.
P. Alguns dos políticos que se autointitulavam “outsiders” agora estão dentro. Isso não afeta suas possibilidades?
R. Uma safra de prefeitos eleitos com base na chamada nova política ou na antipolítica, serão julgados nas urnas. Pega Rio e Belo Horizonte, por exemplo, onde prefeitos se elegeram com discurso de critica à política tradicional. Agora serão avaliados com base na sua capacidade administrativa.
P. As pautas nacionais devem influenciar as eleições municipais?
R. Sempre há uma proeminência da pauta municipal, mas estas eleições sinalizam o ambiente da opinião pública com vistas à eleição nacional. Nas municipais de 2000 era possível antever a vitória do PT em 2002. Nas municipais de 2016 se vislumbrou a onda antipolítica que culmina com a vitória do Bolsonaro em 2018. Então estas eleições serão um termômetro para 2022.
P. As campanhas via Whatsapp e Facebook, manchadas pela disseminação de fake news, serão preponderantes em 2020?
R. Acho que o Whatsapp chegou para ficar. Foram feitas mudanças importantes [no funcionamento do aplicativo, como redução no número de destinatários para disparo], mas é preciso ver qual serão seus efeitos. Teremos que acompanhar o debate a respeito das fake news, bem como sobre uma legislação capaz de punir os responsáveis por sua disseminação. As candidaturas municipais, principalmente para vereadores, terão o Whatsapp como instrumento importante, até pela ausência de financiamento.
P. De agora em diante toda eleição será pautada por notícias falsas?
R. Não dá para dizer que isso é um modelo definitivo. A eleição do Bolsonaro foi um evento, não é possível prever que irá se repetir. Qual o modelo de campanha dele? Foi feita por baixo, via contágio, redes que ele construiu por quatro anos. Agora, achar que esse modelo será um novo modelo universal para todas as campanhas é precipitado. Aquele foi um modelo que funcionou para aquela conjuntura. O voto em 2018 foi um antivoto movido por valores específicos, como o nacionalismo, a defesa da família e a pauta anticorrupção.
Eliane Brum: Os cúmplices
Em 2020, cada um saberá quem é diante de uma realidade que exige coragem para enfrentar e coragem para perder
Nenhum autoritarismo se instala ou se mantém sem a cumplicidade da maioria. É o que a história nos ensina. Não haveria nazismo sem a conivência da maioria dos alemães, os ditos “cidadãos comuns”, nem a ditadura militar no Brasil teria durado tanto sem a conivência da maioria dos brasileiros, os ditos “cidadãos de bem”. O mesmo vale para cada grande tragédia em diferentes realidades. Os déspotas não são alimentados apenas pelo silêncio estrondoso de muitos, mas também pela pequena colaboração dos tantos que encontram maneiras de tirar vantagem da situação. Em tempos de autoritarismo, nenhum silêncio é inocente —e toda omissão é ação. Esta é a escolha posta para os brasileiros em 2020. Diante do avanço autoritário liderado pelo antidemocrata de ultradireita Jair Bolsonaro, que está corroendo a justiça, destruindo a Amazônia, estimulando o assassinato de ativistas e roubando o futuro das novas gerações, cada um terá que se haver consigo mesmo e escolher seu caminho. 2020 é o ano em que saberemos quem somos —e quem é cada um.
Há várias ações em curso. E várias mistificações. Quem viveu a ditadura militar (1964-1985) conhece bem, guardadas as diferenças, como o roteiro vai se desenhando. No final de 2019, parte da imprensa, da academia e do que se chama de mercado começou a exaltar os sinais de “melhora econômica”. A alta da bolsa, a “queda gradual” do desemprego, a indicação de aumento do PIB em 2020 são elencados entre os sinais. Ainda que se esperasse mais, afirmam, “os inegáveis avanços do ponto de vista econômico”, entre eles a reforma da Previdência, “a inflação comportada” e os juros fechando 2019 “em patamar inimaginável” permitem —e aí vem uma das expressões favoritas deste seleto grupo de players— um “otimismo moderado”. Até a pesquisa de uma associação de lojistas divulgou uma incrível alta de 9,5% nas vendas de Natal, imediatamente contestada por outra associação de lojistas. É como se a “economia” fosse uma entidade separada da carne do país, é como se houvesse uma parte que pudesse ser isolada e sobre a qual se pudesse discorrer usando palavras enfiadas em luvas de cirurgião. É como se bastasse enluvar jargões técnicos para salvar os donos das mãos de todo o sangue.
Enquanto esse diálogo empolado e bem-educado do pessoal da sala de jantar, dos que sempre estão na sala de jantar, independentemente do governo, é estabelecido, bombas explodiram no prédio da produtora do programa de humor Porta dos Fundos, policiais matam como nunca nas periferias de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, ampliando o genocídio da juventude negra, o antipresidente legaliza o roubo de terras públicas na Amazônia, ambientalistas são acusados de crimes que não cometeram, ONGs são invadidas sem nenhuma justificativa remotamente legítima, adolescentes pobres morrem pisoteados porque decidiram se divertir num baile funk numa noite de sábado, indígenas guardiões da floresta e agricultores familiares são executados, as polícias vão se convertendo em milícias como se isso fosse parte da normalidade, e são também os policiais e “agentes de segurança” condenados por crimes os únicos que são libertados no indulto de Natal. Os sinais estão por toda parte, mas membros respeitados de instituições da República que deveriam ser os primeiros a percebê-los —e combatê-los— seguem inflando a boca para assegurar que “a democracia no Brasil não está ameaçada”.
A qual Brasil se referem estes senhores bem-educados? De qual país estes luminares do presente falam? Certamente não do meu nem do de muitos, não o das favelas onde as pessoas se trancam sabendo que não há porta capaz de barrar a violência da polícia, não este em que os policiais já exterminam os pretos sem responderem por isso há muito, mas esperam mais já que o extermínio vai sendo legalizado pelas beiradas. Não este em que os templos de religiões afro-brasileiras são invadidos e destruídos apesar de o Estado ser formalmente laico. Não este em que as lideranças da floresta enxergam o Natal e o Ano-Novo como os piores momentos do ano porque é o tempo de deixar a família e fugir, pelo menos até que as capengas instituições voltem do recesso.
Neste país, pessoas da sala de jantar, há muita gente escondida neste exato momento para poder virar o ano vivo. Não esperam brindar, desejam apenas não ter o corpo atravessado por uma bala —ou por quatro na cabeça, como ocorreu com Marielle Franco, num crime não decifrado quase dois anos depois. Democracia onde? Os escondidos, os ameaçados, os parentes dos mortos querem saber. Todos nós queremos muito viver neste país em que vocês enxergaram “inegáveis avanços na economia em 2019” e “instituições que funcionam”. Não fiquem com o endereço só para vocês.
As pessoas da sala de jantar, porém, só podem seguir na sala de jantar ditando o que é a realidade porque a maioria assim permite, omitindo-se ou aproveitando-se das sobras. São as pessoas, no dizer da historiadora franco-alemã Géraldine Schwarz, “que seguem a corrente”. A questão é se você, que lê este texto, vai engrossar o rebanho dos que seguem a corrente.
Não o rebanho de ovelhas. Esta imagem evoca passividade, engano, uma obediência absolvida pela inocência. Não. Este rebanho, o dos que agem se omitindo, ou o dos que agem tirando pequenos proveitos, “porque afinal é assim mesmo e quem sou eu para mudar a realidade”, é um rebanho de lobos. Porque o ativismo de sua omissão é cúmplice do sangue das vítimas, estas que tombam, estas que vivem uma vida de terror. É cúmplice também das ruínas de um país. No caso da Amazônia, é cúmplice das ruínas da vida da nossa e de muitas espécies no único planeta disponível.
Géraldine Schwarz escreveu um premiado livro chamado Os amnésicos (Flammarion), infelizmente sem tradução no Brasil. A historiadora, cuja família foi uma dessas que obteve vantagens no nazismo, mas se considerava inocente do Holocausto, deu uma excelente entrevista ao jornalista Fernando Eichenberg, em O Globo. Ela aponta como a adesão aos déspotas do século 21 mantém a estrutura da adesão aos totalitarismos do século 20:
“No imaginário coletivo, temos tendência a dividir a sociedade em três categorias históricas no século 20: heróis, vítimas e carrascos. Na verdade, a maioria da população não se reconhece em nenhuma delas. É a via mais fácil não se incluir em nenhuma das três categorias, mas apenas seguir a corrente. Há o magnífico filme baseado no romance de Alberto Moravia [O conformista, de Bernardo Bertolucci], que mostra muito bem como o conformista acaba aceitando o que antes era inaceitável. No ensino da história, muitas vezes por meio da ficção ou de comemorações, temos uma visão um pouco distorcida do passado. Se tem a impressão de que a população não teve nenhum papel nessa história. E teve, muitas vezes, um papel de pilar e consolidador de ditaduras. É nisso que a democracia tem um papel importante, pois o povo tem os meios de impedir um golpe e a instalação de um regime criminoso. Eleger Bolsonaro, por exemplo, para mim, é brincar com o fogo, pois parece alguém capaz de tudo.”
A historiadora defende a memória como um dos principais instrumentos de defesa da democracia. “O importante é tomar consciência de nossa falibilidade e reconhecer que podemos nos transformar também em um bárbaro”, afirma. "A história não se repete, mas os métodos de manipulação, sim, porque a psicologia humana não muda. Em um contexto de crise, em meio a um grupo, o homem terá reações similares. Um dos métodos é difundir o medo, muitas vezes exagerado em relação à realidade. [...] Trata-se de confundir a fronteira entre o verdadeiro e o falso, desorientando totalmente as pessoas. Perde-se as referências, não se sabe mais no que acreditar. E, como dizia [a filósofa alemã] Hannah Arendt, quem não acredita em mais nada é manipulável à vontade. Ao ponto de inverter seus valores: o que era bom ontem já não o é mais hoje. É o que se observa em várias sociedades do mundo. As pessoas que, hoje, apoiam Jair Bolsonaro, há dez anos provavelmente defendiam os direitos humanos. Por isso que o ensino do Terceiro Reich é capital. Na história há muito poucos exemplos de uma sociedade tão civilizada, moderna, intelectual, que derivou rapidamente para a barbárie. É um ensinamento universal, que serve de alarme a todo mundo.”
O problema é que países como o Brasil não produziram a memória da ditadura justamente para absolver os assassinos, sequestradores e torturadores de Estado. A condição da retomada da democracia foi o perdão ao imperdoável. Essa política de amnésia resultou, em 2018, na eleição de um presidente que tem como herói um torturador e assassino de civis. Diante de uma população desmemoriada, ao final do primeiro ano do governo do déspota eleito vimos um roteiro semelhante se repetir, com as necessárias adaptações a uma época impactada pela Internet. Ainda que a memória no Brasil seja frágil, porém, ela existe. Não há desculpa para omissão. Nem há qualquer inocência no suposto conformismo.
O problema, no Brasil e em outros países que vivem processos políticos semelhantes, é também de memória recente. Esta que está sendo construída agora, não só nas mentiras disseminadas nas redes sociais por Bolsonaro e sua familícia, mas também nas narrativas que isolam a economia da carne que sangra. Como se a evocação do AI-5 por Paulo Guedes não tivesse nada a ver com suas escolhas econômicas, como se o Posto Ipiranga fosse radicalmente diferente do dono do posto. Está em produção uma memória falsa, o que é pior do que desmemória. Pior do que não lembrar é lembrar de um acontecido que nunca aconteceu.
Entre as tantas perversões da ditadura, uma se mostrava particularmente enlouquecedora para aqueles que escolheram lutar contra o regime de opressão. Enquanto homens e mulheres eram vigiados e perseguidos dia e noite, afastados de seus postos, demitidos de seus empregos, transformados em párias e criminalizados, enquanto livros, jornais, filmes e peças de teatro eram censurados, enquanto brasileiros precisavam deixar o país para salvar a vida ameaçada pelo Estado, enquanto os que ficavam eram sequestrados, torturados e mortos por agentes do Estado, uma maioria fingia que nada estava acontecendo. Fingia tanto que acabava acreditando que não eram gritos de dor e de terror o que ouvia. Era o cidadão de bem que apenas seguia a corrente, protegendo os próprios interesses e avaliando o que poderia ganhar com o estado das coisas.
Começamos a testemunhar hoje o mesmo mecanismo perverso. Com todas as desculpas possíveis, auxiliadas pela polarização que desloca o perigo para uma falsa oposição. Com todos os erros e os crimes do PT no poder, o antipetismo não é justificativa aceitável para alguém seguir a corrente. Não tem mais clima para se fingir de iludido. Basta ter vergonha na cara para perceber que não se trata mais do PT. Se trata da corrosão do que ainda resta de democracia no Brasil. Se trata da autorização para roubar enormes pedaços de floresta, desmatá-los e botá-los no nome dos autores do crime. Se trata da conversão das forças de segurança em milícias com autorização para matar. Se trata da criminalização de quem defende os mais frágeis, usando para isso o aparato do Estado. Se trata de genocídio de negros —e também de indígenas.
Há muita gente se fingindo de ovelha para lavar as mãos diante do que vive o Brasil. Mas há também gente angustiada perguntando o que fazer diante do que já não consegue deixar de ver. A estes, respondo que ninguém vai dar a resposta. Esta resposta terá que ser criada, coletivamente, por iniciativa dos que fazem a pergunta. Em cada profissão há o que fazer. Este é um momento em que precisamos fazer melhor o que sabemos fazer, mas também precisamos fazer bem o que não sabemos. Apenas o que sabemos já não é suficiente. O que somos já não é suficiente. Temos que ser melhores do que somos para enfrentar este tempo em que já não há tempo. E temos que ser juntos, fazendo laços e tecendo redes entre nós.
Este é o desafio de 2020. O ano novo não está dado. 2020 só será novo se nossa resistência resgatar o presente das mãos dos déspotas. Esta é a única resolução possível diante do que vivemos e do que testemunhamos. Cada um de nós precisa se responsabilizar pelo horror do nosso tempo.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, construtor de ruínas, Coluna Prestes - O avesso da lenda, A vida que ninguém vê, O olho da rua, A menina quebrada e Meus desacontecimentos, e do romance Uma duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum
El País: Asilo a soldados venezuelanos renova tensões entre governos de Bolsonaro e Maduro
Militares suspeitos de ataque a base do Exército cruzaram a fronteira desarmados e pediram refúgio, segundo o Executivo brasileiro
A recente entrada no Brasil de cinco soldados venezuelanos suspeitos de um ataque a uma base militar no sul da Venezuela, no dia 22 de dezembro, renovou as tensões bilaterais. Nos últimos meses, centenas de militares abandonaram suas unidades e atravessaram a fronteira dos países vizinhos, sobretudo a Colômbia, em resposta a um chamado de Juan Guaidó, reconhecido por mais de 50 países como presidente da Venezuela. Desta vez, o impacto é diferente, já que Nicolás Maduro os vinculou diretamente ao ataque a um posto avançado no sul do país em que morreu um militar e foram roubados fuzis e lançadores de foguetes, dos quais a maioria foi recuperada, segundo Maduro.
No fim de semana passado, Maduro pediu que o Brasil entregue os cinco militares. A Venezuela culpou pelo ataque a Colômbia, o Peru e o Brasil, que, embora sejam todos governados por opositores do chavismo, negaram com veemência participação no ataque. Em um discurso diante de militares, Maduro se referiu ao caso e revelou que os soldados venezuelanos foram perseguidos até o limite entre os dois países. "Nosso Exército chegou à fronteira e viu os atacantes terroristas do outro lado. Tínhamos um dilema: entrar, capturá-los e trazê-los para cá ou respeitar a fronteira e a soberania do Brasil. Tomamos a decisão correta, de acordo com o direito internacional. O território brasileiro é sagrado”, disse ele, segundo relato da agência France Presse. Mas Maduro pediu sua entrega porque "um desertor que entra em outro país deve ser devolvido imediatamente".
Os cinco militares foram localizados pelo Exército Brasileiro no dia 26, durante uma patrulha em torno do único posto de fronteira entre os dois países nos mais de 2.000 quilômetros de fronteira comum. As autoridades brasileiras informaram que eles estavam desarmados e que, após serem interrogadas na fronteira, iniciaram os trâmites para o pedido de asilo, de acordo com um comunicado conjunto dos Ministérios das Relações Exteriores e da Defesa. A nota ministerial não fez nenhuma referência ao ataque letal à base venezuelana, mas uma fonte militar brasileira reconheceu em declarações à Reuters que os recém-chegados eram suspeitos de terem participado do ataque.
O Governo venezuelano também fez um apelo ao presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, pela cooperação antiterrorismo e o respeito à legislação internacional: “A Venezuela espera ter uma maior colaboração das autoridades do Brasil, como resultado da cooperação que deve prevalecer entre os Estados na luta contra o terrorismo e as ameaças à paz social”, diz uma nota do Ministério das Relações Exteriores da Venezuela.
O ataque de 22 de dezembro a uma instalação militar em Gran Sabana, uma área remota da Amazônia, no sul da Venezuela, perto do posto fronteiriço de Pacaraima, causou a morte de um soldado. Os agressores também roubaram 120 espingardas e nove lançadores de foguetes, dos quais 111 espingardas e oito lançadores foram recuperados.
O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer Guaidó como presidente e é um dos mais ativos na demanda de que Maduro abandone o poder para que se resolva a grave crise econômica, política e social em que a Venezuela está imersa. No entanto, o país se distanciou dos que ventilaram a possibilidade de intervenção armada. Em paralelo, mantém uma operação na área de fronteira para acolher civis e militares que estão fugindo da situação catastrófica e recentemente deu asilo a 21.000 venezuelanos em um único dia. Um gesto elogiado pela ONU em um momento em que países como Colômbia ou Peru, que receberam um número muitíssimo maior de venezuelanos que o Brasil, endurecem as condições para que se estabeleçam em seu território.
El País: Do bolsonarismo ao integralismo, como a extrema direita se organiza na Internet
O pesquisador David Nemer explica que, em 2019, os ultraconservadores se dividiram na Internet em três subgrupos. Em um deles estão os encapuzados que reivindicaram o ataque ao Porta dos Fundos
Jair Bolsonaro está prestes a completar um ano no cargo de presidente da República. Ao longo deste período, o território virtual que abriga o bolsonarismo, e que foi engrenagem essencial de sua campanha para chegar ao poder, sofreu algumas mudanças e se dividiu. A ideologia de extrema direita continua lá, intacta e até mais radical. Mas a união conseguida por Bolsonaro naquelas eleições se desfez. Os extremistas estão agora divididos em ao menos três subgrupos, segundo explica David Nemer, especialista em Antropologia da Informática. Em um deles, que ele nomeia de insurgentes, estão pessoas com o mesmo perfil dos homens encapuzados que reivindicaram o ataque com coquetel molotov à sede da produtora Porta dos Fundos, na madrugada de 24 de dezembro. Eles se identificam com o integralismo, o movimento fascista que surgiu nos anos 1930 e que, na era da Internet, ganha novo vigor.
“Os insurgentes são mais militaristas e acabaram virando oposição, porque acham que Bolsonaro cedeu ao establishment e não é radical o suficiente. Acreditam que a única forma de salvar o país é fazendo uma insurgência armada para fechar o Congresso e o STF, e começar do zero. Eles falam muito de insurgência armada”, explica Nemer, que desde 2018 está presente em grupos de WhatsApp da extrema direita para monitorar seu comportamento.
Em vídeo que circula nas redes sociais desde a última quarta-feira, os encapuzados que assumiram o ataque ao Porta dos Fundos dizem ser parte do Comando de Insurgência Popular Nacional, recorda Nemer. Já a Frente Integralista Brasileira (FIB) soltou uma negando qualquer relação com os homens que assumiram o atentado. Ainda que não seja possível dizer que aquelas pessoas específicas formem parte dos grupos de WhatsApp que monitora ou que oficialmente estejam ligados aos integralistas, o pesquisador explica que “o tom nacionalista cristão e as ideias de atentar contra as universidades e as instituições” são as mesmas. Ele ainda lembra que o mesmo grupo que diz ter atacado a produtora invadiu a UniRio em 2018 e queimou bandeiras antifascistas, conforme também publicou a Ponte Jornalismo. Esses radicais atuam em fóruns da darkweb, mas também recrutam novas pessoas pelo WhatsApp e pelo Youtube. “Não consegui identificar um só canal no Youtube, porque eles são constantemente banidos ou colocados em quarentena. Então existe uma rotatividade”, completa o pesquisador.
O núcleo de propaganda é outro subgrupo que Nemer identificou após as eleições. Formado por bolsonaristas que apoiam o presidente incondicionalmente, tornou-se uma espécie de cão de guarda do Governo, atuando de acordo com a agenda política diária. Nas redes, essas pessoas defendem a gestão Bolsonaro em situações delicadas ― por exemplo, em momentos nos quais mede força com o Congresso ― ou quando se vê acuado ― como durante a crise internacional desatada pelos incêndios na Amazônia. “Bolsonaro precisa de um inimigo para alimentar a retórica do eles contra nós. E essas pessoas nas redes precisam de um inimigo para trabalhar. Nesse sentido, os peronistas se tornaram inimigos, Macron se tornou inimigo e até pessoas do PSL se tornaram inimigas. Agem como milícia virtual e até pessoas como Alexandre Frota e Joice Hasselmann se tornaram alvos”, explica Nemer, mencionando os dois deputados que romperam com Bolsonaro depois de se elegerem fazendo campanha para ele.
Por fim, o pesquisador também identificou o subgrupo que ele classifica como supremacistas sociais, que estão mais ligados aos evangélicos e podem ser tão radicais quanto os insurgentes. “Os supremacistas sociais não estão muito ligados à política do dia a dia, mas eles capitalizam em cima do discurso do presidente e de seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro. Compartilham conteúdo neonazista, racista, anti-LGBT, anti-Nordeste...”, explica Nemer. “Afinal, se o filho do presidente usa uma retórica parecida e não acontece nada com ele, então essas pessoas, que estão no anonimato, se sentem mais livres para compartilhar esses conteúdos. O Governo Bolsonaro valida muito esse pensamento racista que eles têm”.
Por que o bolsonarismo se dividiu em três subgrupos? O pesquisador aponta para a própria natureza das últimas eleições. “Bolsonaro abarca várias linhas de pensamento: a liberal na economia, a evangélica, a militar... Essas linhas são conflitantes, não andam de mãos dadas, como pudemos ver durante a briga entre os seguidores de Olavo de Carvalho e os militares”, argumenta. “Esses grupos estavam todos alinhados numa mensagem de eleger Bolsonaro, mas começaram a entrar em conflito. Umas pessoas queriam mais militarismo, outras queriam mais olavistas, outras mais evangélicos. É um reflexo do que Bolsonaro está fazendo na vida real: se ele demitia um militar, então os militaristas ficavam indignados...”, prossegue. Assim, as pessoas foram deixando os grupos de WhatsApp montados durante a campanha e criando outros mais de acordo com a linha que eles queriam que o presidente seguisse.
O método de sua pesquisa
Professor titular e pesquisador no Departamento de Estudos de Mídia na Universidade da Virgínia, Nemer realiza seu trabalho de campo em ambiente virtual, para averiguar como as pessoas se comportam e interagem entre si. No ano passado, identificou que as conversas dos grupos de família estavam mudando e adquirindo um tom mais político conforme as eleições se aproximavam. Algo aparentemente normal, mas que ganhou força com a difusão de conteúdos feitos de forma caseira ― isto é, pouco profissional ― com informações falsas ou distorcidas. Também foi um dos que identificou o comportamento de milícias virtuais que agem para perseguir determinadas figuras públicas e destruir reputações. Ele mesmo se tornou neste mês de dezembro um dos alvos dessas milícias virtuais. Ao publicar suas análises, conta ter recebido e-mails com ameaças e até mesmo uma foto sua andando em um local de São Paulo.
Com as eleições se aproximando em 2018, Nemer entrou em quatro grupos de WhatsApp bolsonaristas para monitorá-los. Ele identificou na ocasião uma forma de agir hierarquizada. No topo da pirâmide estavam algumas poucas pessoas anônimas que ele classifica como influencers, responsáveis por criar desinformações e distribuí-las nesses grupos. No meio da pirâmide estavam o que chama de exército voluntário, isto é, bolsonaristas que ficavam responsáveis por espalhar esses conteúdos pelas redes e grupos família. Na base estavam os brasileiros comuns, pessoas que conheceram Bolsonaro e impulsionaram sua candidatura. “Eram pessoas que não tinham espaço para debater e eram bombardeadas com conteúdos. Pela repetição, não havia espaço para dúvidas”.
Com a eleição de Bolsonaro, muitos desses brasileiros e brasileiras comuns foram deixando os grupos, que acabaram desinflando. Permaneceram os mais radicais, que se dividiram nos subgrupos explicados acima. Hoje, Nemer monitora cerca de uma dezena de grupos de WhatsApp e já colheu relatos de pessoas que dizem ter recebido quantias de dinheiro para impulsionar conteúdo falso nas redes.
“É uma minoria, uma coisa menor do que era antes, mas é uma minoria extrema e radical. Temos que prestar atenção porque esses espaços obscuros, escondidos, promovem uma radicalização. A pessoa passa a não ter mais senso crítico”, explica. Essa minoria hoje trabalha a partir da política do medo, tentando criar um passado mítico, que não aconteceu, para motivar as pessoas a saírem para votar ou protestar, segundo explica. “A desinformação não quer só puxar uma agenda política. Ela aliena você da verdade e tira todo o seu pensamento crítico”, completa.
El País: Criação do juiz de garantias indispõe Bolsonaro e base e abre debate sobre implementação
Presidente sanciona texto com emenda criticada por Moro. Ex-ministro do Supremo vê inconstitucionalidade enquanto professor da USP aponta avanço na proteção de direitos
Jair Bolsonaro de sancionar, no dia 24, a versão do Congresso do pacote anticrime, de autoria do ministro Sergio Moro, mantendo algumas das alterações propostas pelos parlamentares provocou uma série de críticas ao Governo por parte de sua própria base. A celeuma gira em torno da criação da figura do juiz de garantias, magistrado que irá acompanhar a fase de investigação e coleta de provas do processo para se assegurar de que os direitos dos investigados não estão sendo atropelados durante o inquérito. As etapas de julgamento e sentença ficarão, segundo o novo desenho do Judiciário sancionado, a cargo de um outro juiz. Havia a expectativa de que Bolsonaro vetasse este ponto, que foi incluído no pacote via emenda do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e era criticado por Moro. Para além do tremor político no mundo bolsonarista, a lei também abriu um debate imediato entre especialistas e acadêmicos sobre a constitucionalidade da medida e sua viabilidade econômica.
A mudança foi, na prática, uma derrota para Sergio Moro, especialmente porque o presidente barrou outras 25 alterações consideradas sensíveis, mas deixou esta passar. A proposta de criar um juiz de garantias vem na esteira das críticas ao próprio Moro quando à frente da Operação Lava Jato. O então juiz sempre foi acusado de agir em dobradinha com a acusação, rompendo a figura do juiz imparcial no direito brasileiro. A situação mudou de patamar com a revelação de conversas privadas entre o magistrado e os integrantes da força-tarefa de procuradores publicadas pelo The Intercept em parceria com outros veículos, como o EL PAÍS. Se a regra já tivesse valendo na Lava Jato, por exemplo, Moro, que decidiu a controversa condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não teria ditado a sentença contra o petista no mesmo caso.
Nesta quarta, o agora ministro da Justiça se manifestou no Twitter de forma comedida sobre o assunto: “Não é o projeto dos sonhos, mas contém avanços. Sempre me posicionei contra algumas inserções feitas pela Câmara no texto originário, como o juiz de garantias. Apesar disso, vamos em frente”.
O próprio presidente considerou o saldo do pacote anticrime “extremamente positivo”. Ele fez questão de destacar o aumento da pena máxima de prisão, de 30 para 40 anos, e o fim da saída temporária para condenados por crime hediondo que resultou em morte. Sobre o juiz de garantias, nenhuma palavra, enquanto até aliados o chamavam de “traidor”. Coube aos filhos de Bolsonaro saírem em sua defesa neste ponto. Carlos Bolsonaro retuitou comentários que apontariam para uma estratégia “de mestre” do pai. Segundo a visão propagada nas redes sociais, o Judiciário não conseguiria arcar com o custo de contratação de centenas de novos juízes —uma vez que supostamente os quadros atuais não dariam conta de acumular funções—, o que faria com que este ponto do pacote anticrime seja derrubado posteriormente via uma Ação Direta de Incostitucionalidade (Adin). A jogada do presidente teria sido não vetar o juiz de garantias para não “indispor” o Governo com o Legislativo, tendo em vista uma série de reformas que o Planalto irá propor no ano que vem e que precisam de apoio do Congresso para serem aprovadas.
Apesar de ter ido contra o desejo de Moro sobre a criação de um juiz de garantias, Bolsonaro afirmou, nesta quinta-feira, que o Brasil estará em boas mãos se o ex-juiz e atual ministro da Justiça for candidato à sua sucessão em 2022.
Debate sobre a implementação
Em um cenário de arrocho nas contas públicas e com um teto de gastos que deve apertar ainda mais o orçamento —reportagem do O Estado de São Paulo aponta que Judiciário deve cortar até estagiários em 2020— esta leitura tem sua lógica, ainda mais quando se leva em conta que quase a metade dos municípios não tem sequer um juiz. Simone Tebet (MDB-MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, classificou a criação do cargo de juiz de garantias “inconstitucional (...) ou ilegal, por inobservância da Lei de Responsabilidade Fiscal”. Ela também destacou o déficit já existente de magistrados em várias comarcas.
Sancionado hoje o projeto anticrime. Não é o projeto dos sonhos, mas contém avanços. Sempre me posicionei contra algumas inserções feitas pela Câmara no texto originário, como o juiz de garantias. Apesar disso, vamos em frente.
Quanto ao custo da alteração, que seria um impeditivo à sua execução, Gustavo Badaró, professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo, acredita que o impacto econômico não seria tão grande quanto está sendo alardeado. “Será necessária a contratação de menos juízes do que se afirma, basta que se crie um sistema eficiente no qual os magistrados atuem em pares, com o juiz de uma vara atuando como garantista de um colega da segunda vara, e vice-versa”. No entanto haveria um empecilho: “É claro que os juízes nunca irão querer ter mais trabalho ganhando o mesmo salário”. Badaró, que considera a medida um avanço que fortalece a imparcialidade do processo penal, também minimiza o discurso de que essa mudança tem como objetivo cercear a atuação da Lava Jato. “Existia um projeto de lei de 2009 que já previa a criação desta figura, cinco anos antes da operação começar”, afirma. Ele destaca também que o juiz de garantias é comum em vários países e órgãos internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Apesar das dificuldades apontadas pelos críticos da medida, já existem experiências positivas neste sentido no Brasil. É o caso do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo) na capital em São Paulo, que conta com juízes que atuam justamente na concessão de medidas cautelares (tais como interceptações telefônicas, busca e apreensão, etc). “Com exceção de homicídios e casos mais leves, o Dipo funciona com uma estrutura semelhante à proposta pelo pacote anticrime”, explica Fábio Toffic, advogado criminalista e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Ele destaca ainda que com o modelo de processos virtuais já vigente em várias varas do país, no qual os casos são organizados digitalmente e informatizados, também facilita a reorganização do Judiciário proposta. “Um juiz de Campinas pode ser juiz de garantias de um processo que corre em Jundiaí sem problema algum, porque na fase de investigação o magistrado quase que não precisa manter contato com as partes”.
Por parte dos magistrados, como era de se esperar a medida não foi recebida com louvor. O presidente da Associação de Juízes Federais, Fernando Mendes, destacou que sempre se posicionou de forma contrária à criação da figura do juiz de garantias. No entanto, ele afirmou que uma vez regulamentada, esta nova figura precisa atender a todo o Judiciário e não se limitar aos casos como o da Lava Jato, que envolvem crimes de colarinho branco. “Se o instituto é realmente importante, tem se ser aplicado para todos, seja nos processos da Lava Jato, seja nos processos de crimes comuns, que são milhares tramitando no interior do país e que precisam ter as mesmas garantias”, afirmou. Ele ainda apontou para o imbróglio estrutural que a medida traz: “A Justiça Federal terá de redesenhar a sua estrutura e redefinir a competência penal para tornar possível a implementação do juiz de garantias”.
O debate deve se alongar nas próximas semanas e caberá ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) orientar o Judiciário sobre a implementação, que, segundo a lei, tem de começar em 23 de janeiro. Nesta quinta, o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), Antonio Dias Toffoli, determinou a criação de um grupo de trabalho para avaliar a aplicação do mecanismo de juiz das garantias. A instância tem 15 dias para apresentar seu parecer.
El País: 'Governo Bolsonaro não vai desistir de aprovar o excludente de ilicitude para policiais', diz major Vitor Hugo
Líder do Governo no Legislativo, deputado adminstrou falta de base e racha no PSL. Ele diz que gestão Bolsonaro insistirá nas pautas de costumes em 2020, mesmo elas tendo sido rejeitadas até agora
Em seu primeiro mandato na Câmara dos Deputados, Vitor Hugo Almeida, major da reserva do Exército e analista do Legislativo, assumiu uma missão árdua, liderar o Governo de Jair Bolsonaro em um Parlamento sem base alguma. Aos 42 anos, o baiano eleito por Goiás, deparou-se com uma crise no seu partido, o PSL, uma Reforma da Previdência, um entrevero com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o rompimento com a então líder do Governo no Congresso, Joice Hasselmann (PSL-SP), e a tentativa até agora infrutífera de emplacar as pautas de costumes conservadoras.
Ao contrário do presidente, que diz não conversar com representantes de partidos de esquerda, ele garante que, entre congressistas, sempre é possível dialogar, independentemente da ideologia. “Na Câmara, a gente consegue ter uma conversa com a oposição. Porque tem parte da oposição que faz o trabalho de uma oposição inteligente, pô!”
destaPergunta. Como foi estar na liderança de um governo sem base logo em sua estreia na Câmara?
Resposta. Já trabalhava na Câmara havia quatro anos, antes de tomar posse. Mas a dimensão técnica é muito diferente da dimensão política. Até visualmente, a Câmara mudou para mim. São outros espaços que ocupo. É completamente diferente. E, lógico, o trabalho é diversificado. A minha área era segurança pública e defesa nacional, e hoje eu trato de tudo. A Câmara como um todo trata pouco da defesa nacional e de segurança pública um pouco mais. O foco neste ano no Legislativo foi muito na economia. Em decorrência do que foram as eleições onde dois partidos políticos pequenos (PSL e PRTB) elegeram um presidente da República sem coalizão e, depois, o presidente não loteou os ministérios, não entregou ministérios com porteira fechada, acertadamente ele fez isso, modificando a política nacional, sabíamos que haveria consequências para o relacionamento do Legislativo com o Executivo. E a consequência maior foi expressa nas turbulências que enfrentamos no começo do ano.
P. Como foi passar por essas turbulências?
R. Como eu entendia o contexto, não levei para o lado pessoal. Havia uma expectativa de manutenção de como se dava as relações entre Executivo e Legislativo, e isso não ocorreu. Até que as coisas se alinhassem, demorou um pouco. Hoje, está muito mais alinhado, exemplo disso é a aprovação da reforma da Previdência, a aprovação do Médicos pelo Brasil, a Medida Provisória para reduzir as fraudes no INSS, a redução do número de ministérios, são pautas que demonstram que houve um amadurecimento. O mesmo amadurecimento que o Governo teve, a Câmara também teve. Eu tive, lógico, dentro da minha nova função, aprendendo a ser líder e deputado ao mesmo tempo.
P. Essa série de trocas de ministros, foram quatro nesse primeiro ano, não passa uma imagem de que faltou conversa, articulação por parte do Governo?
R. É um grupo de ser humanos. Às vezes você tem uma impressão da pessoa e quando inicia o trabalho você percebe que ela não rendeu o tanto que você imaginou. Ou que existe uma incompatibilidade de personalidades. Isso existe em qualquer grupo, inclusive no de ministros.
P. Com tantas trocas de ministros e de líderes do Governo ou do partido do presidente, o senhor se sente seguro no cargo de líder do Governo?
R. Me sinto completamente seguro. É uma construção também. O Governo tem um nível de ambição com o Parlamento diferente do que se tinha no passado. O Parlamento é muito mais livre para decidir. Não houve a captura do Parlamento, como em outros momentos existia, como o loteamento de ministérios, com a distribuição indiscriminada de emendas não impositivas. O Parlamento se libertou e o nosso trabalho ficou mais difícil porque temos de negociar a cada projeto. Temos de estar muito mais atentos às demandas de mérito dos deputados.
P. O Governo se vangloria pela aprovação da reforma da Previdência, mas esse sucesso não é mais da Câmara do que do Executivo?
R. Sempre vai ser do Congresso. Pela Constituição essa responsabilidade é do Congresso. Mas ele foi iniciado pelo Governo, que construiu a proposta. E os eixos estruturantes do Governo foram mantidos. A economia pretendida pelo Governo em grande medida foi mantido. E o presidente foi o responsável por sensibilizar a população para que apoiassem em massa. O presidente e sua equipe. Infelizmente, o Congresso Nacional está entre as instituições com o menor grau de confiança junto à população.
P. Mas houve mudanças grandes, como BPC, aposentadoria rural. E o presidente não se empenhou em negociar com o Legislativo.
R. Quando disse o presidente, disse o presidente e sua equipe. Houve um apoio da população por causa do empenho do presidente. E no Legislativo, havia quem de sua equipe que negociasse com os deputados. Um presidente eleito com 57 milhões de votos tem a capacidade de mobilizar a população muito maior em torno de um tema, que era árido, do que infelizmente o Parlamento. O trabalho foi feito aqui dentro e o governo era mais um ator ajudando. As lideranças tiveram grande papel aqui, todas as lideranças partidárias e o presidente da Casa [Rodrigo Maia]. Mas é preciso ressaltar o papel do presidente Bolsonaro, como protagonista, não como coadjuvante. E, também, lógico, de toda estrutura do Governo.
P. O que esperar para 2020 com relação aos projetos do Governo?
R. Temos uma pauta extensa. Muito, em parte voltado para a área econômica, porque o Parlamento é mais sensível para essa área atualmente, mas eu acho que com o tempo, essa base que está se formando de maneira implícita e tem apoiado as pautas do Governo na área da economia, mais pra frente vai ser o embrião da base nas pautas de costumes também.
P. A estratégia é convencer quem apoiou as medidas econômicas a apoiar as pautas mais conservadoras nos costumes?
R. É primeiro partir de uma área prioritária à população, que é a economia. Depois, a partir dessa convergência e construir algumas aproximações para, lá na frente, enfrentar os embates que eu imagino que serão maiores.
P. Desculpe, mas não ficou muito claro o que é prioritário.
R. Primeiro serão as três reformas que vêm do Senado, a revisão do pacto federativo, as PECs dos Fundos Públicos e a PEC Emergencial, que cria gatilhos para a economia. Tem também a reforma tributária, que o Governo vai embarcar de igual maneira, a reforma administrativa também vai acontecer, só não temos claro ainda qual será o prazo, e também uma pauta grande o Banco Central de microeconomia.
P. O senhor não citou a PEC da segunda instância. Ela não é prioritária para um Governo que se elegeu com esse discurso de combate à corrupção?
R. É prioridade também, mas essa a sociedade tem praticamente tocado sozinha. Existe um apoio muito forte da sociedade e as duas casas querem também, de sua maneira, apresentar sua solução, vai andar também.
P. Não se vê um empenho do Governo nesse tema da segunda instância. Não há declarações recentes do presidente sobre o assunto, por exemplo. Ele apoia essa PEC de fato?
R. Sempre houve um empenho, quando o pacote anticrime foi apresentado aqui na Câmara, já havia essa tese de apoiar a prisão após condenação em segunda instância.
P. O pacote anticrime não foi aprovado como vocês esperavam. Vários pontos foram alterados.
R. Não avançou tanto como nós queríamos, em alguns aspectos houve retrocesso, mas aprovamos o que foi possível. A gente entende que o Parlamento faz o seu papel da mesma maneira que o Executivo faz o dele.
P. O senhor, particularmente, ficou contente com esse acordo firmado entre Câmara e Senado para deixar todo a PEC da segunda instância para o ano que vem?
R. Não havia tempo regimental para resolver esse ano. E as coisas na política, por mais que a gente tenha uma ansiedade pessoal para resolver, é com a cautela que a política mesmo recomenda. Melhor do que fazer algo açodado. A solução pela emenda constitucional é boa porque ela revê não só a questão criminal, mas revê toda a questão recursal do país, na área cível, trabalhista, tributária. A impunidade não é só penal.
P. Discutir segunda instancia diante da libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva contamina o ambiente de debates?
R. O Lula não tem quase mais nenhuma influência. Você vê que ele vai aos eventos e poucas pessoas aparecem, a não ser a militância mais próxima do PT. Ele não é um líder que consegue trazer em torno de si todas as outras lideranças esquerdistas. Em alguma medida, ele estar fora representa a antítese do que nós acreditamos, mas não o vejo como um fator perturbador, não.
P. O bolsonarismo não se preocupa mais com o Lula?
R. Eu não posso falar pelo bolsonarismo. Quem sou eu para falar? É uma opinião particular minha. Acho que ele não tem a força que ele tinha no passado. Por isso, na minha visão, ele não representa essa preocupação toda com relação ao impacto política de sua soltura. Embora, eu gostaria que ele estivesse preso indefinidamente, até porque há vários processos em que ele é investigado, delatado, denunciado, réu, condenado. É uma afronta à população brasileira, por mais que eu respeite o STF, decidir contra a prisão em segunda instância. Não é só o Lula, mas outros milhares de criminosos estão se beneficiando dessa decisão e colocando toda uma população em risco.
P. É possível esperar que o Governo tenha uma base congressual?
R. Toda imprensa caracteriza o Governo como sem base, mas as pautas do Governo são sempre aprovadas, incluindo a Reforma da Previdência que outros Governos, com base muito mais sólida, não conseguiram. Se algum partido vai dizer que é da base ou não, para dizer que temos uma base formal, eu não sei dizer. Agora, vamos trabalhar para continuar tendo o mesmo sucesso que tivemos nesse ano.
P. Pode ser um sucesso na área econômica, mas na de costumes, não tem tanto retorno, assim. O excludente de ilicitude é um exemplo disso. Ou o senhor enxerga de outra maneira?
R. O excludente de ilicitude saiu do projeto anticrime, mas veio no projeto que trata da garantia da lei e ordem. É o que vai ser discutido e rediscutido. O Governo não vai desistir de aprovar o projeto de excludente de ilicitude. É uma medida justa que vai ao encontro da necessidade da população de ser protegida e potencializa a capacidade do policial de proteger a população.
P. Esse excludente é apontado por alguns especialistas como licença para matar.
R. Não é conceder licença para matar. Pelo contrário, é para deixar nossos policiais e militares mais bem protegidos no momento de crise. É uma medida de crise e será retomada.
P. E porte e posse de armas. O Governo já foi derrotado algumas vezes, inclusive em um decreto presidencial que acabou retirado. Pretendem voltar a esse assunto?
R. Tem um projeto de lei que trata da posse de arma de algumas categorias e é um projeto que vai continuar avançando. O que for possível se fazer por decreto, será feito. Houve uma interpretação diferente do que era possível fazer por decreto e o que era possível fazer por lei, mas isso não quer dizer que não possamos avançar em outras pautas que o Governo entenda que há espaço legal para fazer.
P. Por que o Governo tem apresentado tantas medidas provisórias, se algumas delas acabam caducando ou tem sido aprovadas apenas nos últimos dias de prazo no Senado? Algumas foram completamente alteradas.
R. Muitas medidas provisórias ficaram muito tempo nas comissões mistas. E essas comissões são de reponsabilidade da liderança do Governo no Congresso.
P. Está dizendo que a culpa era da deputada Joice Hasselmann?
R. A Joice [Hasselmann] era a líder no passado. E chegava aqui na Câmara com prazo muito curto para os deputados aprovarem e o Senado fazer algum trabalho. Os senadores ficavam muito incomodados com isso, o que é natural. Com a chegada do senador Eduardo Gomes a tendência é normalizar. Mas, modificações de mérito são normais que aconteçam. Faz parte do jogo democrático. O Executivo manda a proposta que ele entende ser urgente, relevante e o Legislativo modifica da maneira que ele pode, dentro dos limites constitucionais.
P. Em alguns casos, deputados da oposição têm votado com o Governo. Isso ocorreu na reforma da Previdência e no pacote anticrime, por exemplo. A gestão Bolsonaro é uma no discurso e outra na prática, já que diz que não debaterá com a esquerda, mas no fundo dialoga com opositores?
R. Na Câmara, a gente consegue ter uma conversa com a oposição. Porque tem parte da oposição que faz o trabalho de uma oposição inteligente, pô! Não se opõe a tudo o que o Governo propõe. Aquilo que é proposto e é correto, na visão dessa parte da oposição, eles vão com a gente.
P. E quem é essa oposição que dialoga com vocês?
R. É uma parte do PDT e do PSB. Isso ocorreu na Previdência, no pacote de leis anticrime, na questão do saneamento básico. O diálogo com a oposição não contrasta com a postura do presidente. O presidente é radical com alguns temas, combate à corrupção, com os temas ideológicos. No plenário, conseguimos manter um diálogo com aqueles que são menos radicais.
P. Como vocês estão trabalhando com o racha no PSL? O quanto impactará no trabalho dentro do Parlamento?
R. A maioria dos deputados do PSL vota com o Governo, independentemente de que lado estejam, se do Bolsonaro ou do Luciano Bivar [presidente do partido]. Até porque essas pautas do Governo são as que eles defenderam na campanha e ao longo desse primeiro ano aqui. Mas o que eu gostaria era de ver o partido Aliança pelo Brasil criado o quanto antes para que pare com essa instabilidade de troca de lista, de líder e tal. Acho que não teremos grandes influências, no ano que vem, se Deus permitir, teremos o PSL fazendo parte de nosso passado e a Aliança criada.
P. Quem do PSL não dialoga com vocês?
R. Falamos com todo mundo.
P. Até com o Joice?
R. Menos porque ela tomou posições contraditórias. Ela era líder do Governo, tinha o compromisso moral de defender as pautas do presidente e, quando houve o racha do partido, ela ficou do outro lado, mostrando uma incoerência. E, depois, passou a assumir uma postura bem crítica ao Governo, ao presidente, aos filhos do presidente. Então, com ela, nós temos muito menos contato. Agora, se fosse necessário para aprovar uma pauta na Câmara, não deixaria de pedir o apoio dela.
P. Como foi esse rompimento dela com o presidente?
R. Foram várias rupturas ao longo do tempo. A Joice sempre fez uma liderança meio desconectada do Palácio do Planalto. Você pode ver quantas vezes ela se reuniu no Planalto com o presidente. Você pode perguntar para os deputados e vai notar como eles se sentiam inseguros em seguir a orientação dela nas votações. Sobre vetos, as pessoas se perguntavam, “pô, mas vai derrubar essa quantidade de vetos do presidente, com o consentimento da liderança do Governo no Congresso?” Eu, mesmo, muitas vezes, não seguia a orientação porque não sabia se havia respaldo no Palácio do Planalto. Acho que foram as rupturas sucessivas que culminaram nesse racha do PSL, quando ela decidiu ficar com a ala bivarista.
P. Vocês trabalham com qual quantidade de deputados do PSL migrando para a Aliança?
R. Deve ser entre 28 e 30. E tem um grupo de parlamentares de outros partidos que podem vir na janela de troca de legendas. Mais uns dois ou três falaram comigo, mas outros deputados podem ter recebido informações semelhantes.
P. O senhor defende um governo em que alguns de seus membros e aliados fazem alusões a atos antidemocráticos, como o AI-5. Como trabalha com isso?
R. As manifestações foram, primeiro, em hipótese. Eu nunca vi o presidente da República, nem em brincadeira defender algo semelhante. Algo que pudesse colocar em xeque a democracia em nosso país. No fundo, as duas manifestações, do Paulo Guedes e do Eduardo Bolsonaro, acabou sendo algo assim: caso o Brasil chegue ao ponto de perturbação da ordem no nível que estava ocorrendo em outros países da América do Sul, haveria medidas constitucionais que podem ser adotadas, como intervenção federal, estado de sítio, estado de defesa. Inclusive com a chancela, aprovação e fiscalização do Congresso Nacional, para proteger a vida das pessoas e o país volte a sua normalidade constitucional. Não há espaço institucional no momento histórico que vivemos para algo semelhante. Eu e o presidente somos completamente contrários a qualquer ato antidemocrático.
P. Em meados do primeiro semestre o senhor e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, romperam relações depois que o senhor enviou uma charge com um político subindo a rampa do Congresso com um saco de dinheiro. Como foi esse episódio e como está sua relação hoje?
R. Não sei se essa foi a razão, mas certamente foi um dos momentos mais críticos nesse primeiro ano. O que eu postei em um grupo fechado de deputados do PSL no WhatsApp foi uma charge que eu não desenhei que expressava a visão que a população tem dos políticos, de nós. De muitas vezes que as coisas só andam aqui quando há troca de interesses. E, nos governos petistas, com um agravante de que não era só emendas, houve propina, mensalão, petrolão. Mas não era eu dizendo que isso acontecia. Nem eu dizendo que isso acontece agora. Era eu dizendo no grupo do PSL exortando para que nós não nos portássemos nessa legislatura, de modo especial no PSL, a ponto de reforçar essa imagem. Agora, o presidente Rodrigo Maia entendeu de outra maneira. Tive chance de explicar para ele. Aproveitei para fazer críticas sobre a reunião de colégio de líderes, mas eu acho que, de lá para cá, as coisas mudaram muito. A gente não é amigo, mas tem uma relação institucional que permite uma ajuda mútua. Eu querendo ajuda para o Governo. E ele para manter os compromissos que assumiu para se eleger presidente da Câmara.
P. Falando em emendas, há um grupo de parlamentares que se queixa do não pagamento das emendas prometidas durante a reforma da Previdência. Como está isso?
R. É um tema que é tratado pela Secretaria de Governo, não é comigo. Não existe emenda atrelada à Previdência. Existem emendas impositivas e emendas não impositivas. Quem trata dela é a Secretaria de Governo.
P. Haverá reforma ministerial em 2020, como tem sido aventado?
R. Não tenho informação sobre isso.