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José Carlos Dias: 'Há um aparelhamento de algumas instituições por quadros conservadores e radicais'

José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e presidente da Comissão Arns, diz ver país caminhando ao autoritarismo. O também ex-ministro Seligman pondera: “Não vejo aparelhamento”

“As instituições estão funcionando”. A frase se tornou um bordão para acalmar os mais ansiosos com o rumos da política brasileira desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Agora, ela voltou com força durante a gestão de Jair Bolsonaro, quando analistas e, nos bastidores, políticos e chefes dos poderes, discutem se há em curso a deterioação de princípios democráticos e das ferramentas de peso e contrapeso do sistema de poder no Brasil, especiamente quando se fala do aparato legal, Ministério Público e Judiciário à frente. O debate cobrou força na semana que passou, quando um jornalista crítico do Governo, Glenn Greenwald, do The Intercept Brasilfoi alvo de denúncia do Ministério Público acusado de colaborar na espionagem de autoridades sem sequer ter sido investigado e contrariando as conclusões da própria Polícia Federal. Mas a pauta já estava na ordem do dia quando um juiz de segunda instância decidiu tirar do ar o vídeo humorístico com temática religiosa do grupo Porta dos Fundos (vetado pelo Supremo Tribunal Federal um dia depois). Ou quando um grupo de ativistas em Alter do Chão chegou a ser preso, sob acusação de atear fogo na floresta no Pará em um inquérito considerado frágil por especialistas na área.

“Eu entendo que há um aparelhamento de algumas instituições brasileiras por quadros conservadores e radicais”, afirma José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso entre 1999 e 2000 e atual presidente da Comissão Arns de defesa dos Direitos Humanos, um coletivo de juristas e intectuais de vários matizes políticos criado em 2019 como uma espécie de observatório do estado da democracia no país. “O Ministério Público não está se mostrando imparcial como deveria ser com relação ao Governo, e o mesmo vale para o Judiciário”, diz, apontando a convergência da denúncia contra Greenwald e os interesses do ministro da Justiça, Sergio Moro, e Bolsonaro. Para o advogado, “o momento é perigoso, nossa democracia tem se deteriorado de forma alarmante e estamos caminhando a passos largos para o autoritarismo”. Questionado se sua leitura não é alarmista, Dias responde: “Não. É realista”.

A denúncia contra Greenwald é vista pelo ex-ministro como um sinal claro de aparelhamento do Ministério Público. “O juiz não deve receber [a denúncia, o que tornaria o jornalista do The Intercept réu no processo] porque ela é inepta, não descreve crime. A ação praticada pelo Glenn foi posterior ao hackeamento”, explica. Dias afirma que a peça oferecida pelo procurador Wellington Divino de Oliveira tem “caráter político”, e busca “intimidar e silenciar" a imprensa livre. “Nesse caso, eu acho que se pode, inclusive, pensar em crime de abuso de autoridade por parte dele”. Milton Seligman, ex-ministro da Justiça de FHC em 1997 e atual professor do Insper, também é crítico com relação à ação do MP ante Greenwald: “A denúncia fere o Estado Democrático de Direito e a nossa Constituição”, afirma.

Seligman, no entanto, não se considera um “pessimista” como Dias com relação à força das instituições para reagir a eventuais erros e deslizes autoritários. “Desde que as questões sejam discutidas no âmbito delas [instituições], estamos no Estado de Direito. É previsto e normal, por exemplo, que um juiz tome decisão e depois ela seja revista em uma instância superior”, afirma. Ele também é contrário à tese de que há um aparelhamento do Judiciário e do MP: “Não vejo aparelhamento. Concordamos com algumas decisões, divergimos de outras, mas, no final das contas, tudo avança dentro de um debate que não só brasileiro, é mundial. É um momento de disrupção em vários lugares”.

Apesar da ressalva, o ex-ministro tucano reconhece que “vários setores” da sociedade são favoráveis a uma restrição das liberdades. “Todos os Governos têm, em algum momento, a tentação de implementar mecanismos autoritários. No Governo Lula e Dilma, por exemplo, houve uma tentativa de controle social da mídia que foi debatido. E sob Bolsonaro essa tentação [autoritária] também ocorre”, diz. Seligman aposta em um freio social a esse tipo de pulsão: “A sociedade se organiza e não permite. Não permitiu lá [durante a gestão petista] e não permitirá agora”. Do mercado financeiro, segundo o ex-ministro, não se pode esperar muito. Ele critica setores empresariais que se acomodam diante de uma deterioração democrática desde que haja recuperação econômica. “É uma miopia muito grande, a mesma liberdade de empreender que o mercado defende não pode ser restrita a um lado da calçada. Ou é pra todos ou não há liberdade. Não se pode vislumbrar liberdade de empreender com um governo autoritário”.

Tradicionalmente, um dos principais freios ao autoritarismo de promotores, juízes, parlamentares e do próprio presidente tem sido o Supremo Tribunal Federal. Mas, na avaliação de Dias, a Corte por vezes tem “batido cabeça” na hora de desempenhar esta função. A polêmica mais recente envolvendo os ministros foi a decisão de Luiz Fux de derrubar uma decisão do presidente do STF, Antonio Dias Toffoli, e suspender a implementação do juiz de garantias, aprovada no Congresso como parte do pacote anticrime. Esse segundo magistrado, que atuaria apenas na etapa de instrução do processo, autorizando ou não medidas como prisão coercitiva ou quebra de sigilo bancário, teria como missão impedir abusos contra investigados. O ministro Marco Aurélio classificou a manobra de Fux como “censura”. Dias prevê que a situação do Supremo deve se deteriorar ainda mais. “O decano Celso de Mello deve se afastar no final do ano, o que será uma grande perda para o Brasil, especialmente se ele for substituído por um ministro que tem o paladar do Bolsonaro. O STF só tende a piorar”.


El País: 'Estou disposto a pagar mais impostos para ter uma sociedade mais saudável', diz Paul Krugman

Prêmio Nobel de 2008, o economista americano lamenta em entrevista ao EL PAÍS que, diante de um novo “buraco” econômico, “os amortecedores do carro já foram usados”

No escritório de Paul Krugman (Albany, Nova York, 1953) reina a desordem que se poderia imaginar em um economista provocador e hiperativo, prolixo em artigos, em livros e, o mais polêmico, em previsões do futuro. Nobel de Economia de 2008, é membro destacado do clube de economistas americanos de tendência progressista, como os também premiados Joseph Stiglitz e Jeffrey Sachs. Integra também essa legião de democratas que não previram os estragos que a globalização —unida à robotização— causaria em partes da sociedade americana. Seu último livro, Arguing with Zombies: Economics, Politics, and the Fight for a Better America (“discutindo com zumbis: economia, política e a luta por uma América melhor”), de 2019, reúne artigos publicados nos últimos 15 anos, alguns no EL PAÍS, sobre assuntos como a Grande Recessão, a desigualdade e, é claro, Donald Trump. Dois bonés parodiando o lema eleitoral do republicano −Tornemos a Rússia grande de novo, Tornemos a ignorância grande de novo− se misturam em sua mesa com o último livro do economista sérvio-americano Branko Milanovic. “As pessoas enviam para mim, não sei”, comenta, rindo, o professor Krugman. Diz que ser comentarista na mídia “nunca fez parte do plano”. No entanto, ele é um dos economistas mais expostos da atualidade.

Pergunta. O senhor diz que hoje em dia tudo é político e que é preciso ser sincero sobre a desonestidade. Pode explicar?
Resposta. Em um debate econômico, muitas pessoas constroem argumentos de forma pouco honesta, falseiam ou deturpam os fatos, servem basicamente aos interesses de um grupo. E se você está tentando debater com essas pessoas, o que deve fazer? Fingir que é um debate sincero, responder com dados e explicar por que elas estão equivocadas? Ou dizer: “A verdade é que você não está sendo sincero”? Depende do contexto. Em uma publicação econômica, não falaria de desonestidade com pessoas com pontos de vista diferentes. Mas se você está escrevendo para um jornal e essa desonestidade é generalizada, é injusto que os leitores não saibam disso. Por exemplo, você basicamente não encontrará economistas honestos que digam que uma redução de impostos se pagará sozinha [como prometeu Donald Trump com seu grande corte fiscal]. Temos muitos exemplos de que não é assim, mas as pessoas continuam dizendo isso.

P. Acredita que existe a racionalidade econômica, ou a política sempre se impõe em alguma medida?
R. A análise econômica não é inútil, ou nem sempre. Há políticos que escutam e fazem as coisas bem. Acredito que as políticas de Barack Obama foram influenciadas por um bom pensamento econômico, mas muitas coisas ele não pôde fazer porque não tinha o poder do Congresso.

P. Dani Rodrik disse uma vez que o sucesso econômico dos Estados Unidos se devia ao fato de que, em última instância, o pragmatismo sempre vence, e que a política era mais protecionista, liberal ou keynesiana conforme as necessidades. Também pensa assim?
R. Os Estados Unidos tendiam a ser pragmáticos, mas não tenho certeza de que ainda sejamos esse país. É por isso que falo de ideias zumbis em meu livro. Há muitas coisas que sabemos que não funcionam, mas as pessoas continuam a dizê-las por motivos políticos. Não acredito que ainda sejamos esse país pragmático de 50 anos atrás.

P. Rodrik afirma que, de fato, isso mudou a partir de Ronald Reagan, nos anos oitenta. O senhor trabalhou como economista para essa Administração...
R. Isso foi divertido.

P. O que lembra sobre aqueles dias?
R. Bem, eu era um tecnocrata. Era o chefe de economia internacional no Conselho de Assessores Econômicos, e Larry Summers era o economista-chefe. Éramos dois democratas de carteirinha, trabalhando em assuntos técnicos. Foi fascinante ver como era o debate sobre as políticas. Provavelmente a Administração Reagan foi pior que as anteriores. Você via um monte de gente que não tinha nem ideia do que estava falando. Também aprendi como é difícil conseguir que algo seja feito. Isso faz você perceber que não vai mudar o mundo apenas por ter uma ideia inteligente.

P. Há quem situe naqueles anos de desregulamentação o início das desigualdades nos EUA.
R. Sim, é uma grande ruptura no rumo da economia americana, em direção a uma maior desigualdade e ao desmoronamento do movimento trabalhista. Reagan teve um grande impacto no tipo de economia que os EUA eram. Nunca nos recuperamos.

P. Muita gente também critica o consenso dos anos noventa [durante a Administração de Bill Clinton] sobre a globalização. O senhor mesmo mudou seu ponto de vista.
R. Ainda acredito que a globalização, em seu conjunto, funcionou bem. Do ponto de vista global, fez mas bem que mal. Possibilitou o crescimento de economias pobres em direção a um padrão de vida decente. Depois, também foi um fator de desigualdade em algumas comunidades específicas nos EUA.

P. Os economistas também vivem em uma bolha, como se diz, às vezes, a respeito dos jornalistas?
R. É claro que observar o que acontece com seus amigos é uma forma muito ruim de julgar o que acontece no mundo. E ver apenas o que as pessoas publicam em estudos pode ser um problema, porque esses autores podem ter pontos cegos. Nunca imaginei que a globalização teria apenas ganhadores, sem perdedores. O que não vi é algo muito específico, que é até que ponto algumas comunidades concretas ficariam tão mal. Perguntávamos o que iria acontecer com os trabalhadores do setor manufatureiro e pensávamos que provavelmente seu salário real [descontando o efeito da inflação] cairia em torno de 2%, o qual não é pouco, mas também não é enorme. O que não consideramos foi o que iria acontecer com as cidades da Carolina do Norte dedicadas apenas à indústria de móveis. E o fato é que [a globalização] estava destruindo essas cidades. Isso eu não soube ver porque o mundo é muito grande e, efetivamente, não conheço nenhum trabalhador do setor de móveis de Hickory, Carolina do Norte.

P. Essa crise industrial é frequentemente usada para explicar a ascensão do trumpismo. Acredita que isso também tem a ver com o crescimento do socialismo?
R. Não, são histórias distintas. A tecnologia tem sido mais importante que o comércio em relação ao pessoal da indústria. Se você observar os lugares mais favoráveis a Trump, são as zonas de carvão, e não porque perderam as exportações, nem pelas políticas ambientais, que são algo muito recente. O declínio se deve à mudança tecnológica, ao fato de que paramos de enviar tantos homens para as minas e usamos sistemas que precisam de menos mão-de-obra. Quanto ao socialismo... na verdade, em primeiro lugar, não acredito que existam muitos socialistas nos Estados Unidos.

P. Acredita que esse suposto crescimento do socialismo é superestimado?
R. Existem muitas pessoas que se definem como socialistas, mas são social-democratas. Em geral, são pessoas jovens e altamente qualificadas que veem o quanto é difícil ganhar a vida com essa economia. E nos últimos 60 anos, toda vez que alguém propôs algo para facilitar a vida das pessoas, foi chamado de socialistas pelos grupos de direita. Por isso, muita gente acaba dizendo: “Se isso é socialismo, então sou socialista”. Alexandria Ocasio-Cortez, por exemplo, representa uma mistura de pessoas formadas, de cor, em uma área muito democrata. Bernie Sanders diz: “Quero que sejamos como a Dinamarca”. Bem, a Dinamarca não é socialista, e sim uma forte social-democracia.

P. Fala-se muito da virada para a esquerda do Partido Democrata nas primárias. Acredita que eles estão indo longe demais?
R. Não, mesmo que Bernie Sanders se torne presidente, seu programa será mais gradual. Fico um pouco preocupado com que os democratas sejam retratados como radicais. Muitas das coisas que eles defendem, inclusive os mais esquerdistas, como aumentar os impostos dos ricos e ampliar a assistência social e a saúde pública −sem eliminar os seguros privados−, são bastante populares entre as pessoas. O problema é se fizerem com que essas coisas pareçam perigosas. É interessante o que ocorreu no Reino Unido. [O líder trabalhista] tinha um programa bastante radical em 2017 e teve um bom desempenho nas urnas. Em 2019 não era mais radical, mas foi mal devido à questão do antissemitismo e ao Brexit. Portanto, não tenho certeza de que o esquerdismo seja um problema para os democratas, [o que eles não devem fazer] é cair em coisas que alienem as pessoas.

P. O senhor diz que aumentar impostos dos ricos é popular. Quem é rico? O senhor deveria pagar mais do que paga?
R. Depende. Elizabeth Warren quer ir atrás das pessoas com mais de 50 milhões de dólares [209 milhões de reais], essas são claramente ricas. Obama aumentou impostos. Sua reforma de saúde foi paga em boa medida pelo aumento de impostos para quem ganhava mais de 250.000 dólares [1,04 milhão de reais] ao ano. Houve quem reclamasse que teria dificuldade para chegar ao fim do mês e, é claro, virou piada. Quanto a mim, muito bem, vou dizer desta forma: esse imposto sobre as grandes fortunas proposto por Warren não me afetaria, mas qualquer democrata que faça as coisas que eu gostaria de ver na política econômica acabaria precisando que eu pagasse mais impostos. E tudo bem com isso. Não sou santo, mas estou disposto a pagar mais impostos para ter uma sociedade mais saudável.

P. Apoia algum pré-candidato específico?
R. Não posso fazer isso, o The New York Times nos proíbe de declarar um apoio explícito, porque se um colunista faz isso, essa posição é atribuída ao jornal [a entrevista foi feita antes que o conselho editorial do The New York Times manifestasse seu apoio às candidatas democratas Elizabeth Warren e Amy Klobuchar]. O que posso dizer é que quem tem as melhores ideias em matéria de políticas é Warren, claramente. Ela tem pessoas muito inteligentes, embora eu ache que avaliou mal a questão da saúde [Warren iniciou sua campanha defendendo a eliminação dos seguros privados, agora se mostra mais flexível]. De qualquer forma, acredito que todos os democratas seriam bastante parecidos do ponto de vista de suas políticas. A de Sanders é a mais expansionista, mas ele não poderia levá-la adiante no Senado e acabaria sendo mais gradual. Talvez Joe Biden seja o mais moderado, mas todo o partido se moveu para a esquerda. Não tenho ideia de quem vai ter mais opções nas urnas. Acho que ninguém sabe. O que espero −e certamente também não é permitido dizer, segundo as regras do Times− é que Trump não ganhe.

P. O senhor é um dos que temiam que as políticas de Trump trouxessem uma recessão global. Como vê isso agora?
R. Eu disse isso na noite das eleições, levado pela emoção, mas me retratei em seguida. As consequências econômicas de Trump foram bastante tênues. O déficit aumentou e ele tem sido protecionista, mas se tivesse conseguido revogar a reforma de saúde [da Administração Obama], muita gente teria ficado em má situação, e pelo menos ele não conseguiu. Se você observar a tendência do emprego dos últimos 10 anos, não saberia se houve eleições nesse período. Talvez tenhamos um pouco menos de investimento devido à incerteza da guerra comercial e um pouco mais de consumo devido à redução de impostos e ao aumento do valor da Bolsa, mas há pouca diferença entre os números da economia com Trump e com Obama.

P. Outro prêmio Nobel [Kenneth Arrow] disse que as forças da economia são mais importantes que o impacto de um Governo.
R. Sim, na maior parte do tempo. As políticas monetárias podem importar muito, mas isso não está sob o controle de um presidente. Estes só têm muita importância em tempos de crise. Se Obama não houvesse promovido esses estímulos e o resgate dos bancos, teria sido muito grave.

P. Como imagina a próxima crise?
R. É difícil. De vez em quando se vê algo tão claro que a crise é previsível, como a bolha imobiliária, que foi um ciclo óbvio. Mas agora não há nada assim. O que quer que seja, não parece óbvio. Provavelmente a próxima crise virá de várias coisas ao mesmo tempo, uma mistura de muitas coisas pequenas. Também tivemos esse tipo de crise, a recessão de 30 anos atrás, por exemplo.

P. Essa próxima recessão encontrará as economias do G10 com taxas de juro zeradas.
R. Sim, essa é a principal preocupação.

P. Qual é a política cambial correta nesse caso?
R. Não tenho certeza. O que mais me preocupa não é ignorar de onde virá a crise, e sim o fato de não saber como responderemos. O Banco Central Europeu não pode baixar mais os juros, eles já são negativos. E a Reserva Federal [banco central dos EUA] tem pouca margem para fazer isso. Vamos nos deparar com um buraco na estrada e os amortecedores do carro já foram usados. Nesse caso, a política econômica do Governo ajuda, mas temo que talvez não tenhamos gente muito boa tomando decisões. Em 2008, tivemos sorte de ter pessoas inteligentes para enfrentar a crise. Agora a Europa não tem nenhuma liderança e Estados Unidos têm Trump. Não está claro que tenhamos uma boa resposta.

P. Que efeitos terá o Brexit?
R. O Brexit é negativo, prejudicará a economia britânica e a do resto da Europa, mas no longo prazo, não serão grandes números. As tarifas britânicas provavelmente serão mínimas, não será uma união alfandegária, mas haverá poucos impostos. Estados Unidos e Canadá têm um acordo de livre comércio sem união alfandegária. Assim, em uns cinco anos, o Reino Unido será um pouco mais pobre, talvez 2%, mas não será radical. O que acontecerá nos próximos seis meses é que assusta as pessoas.

P. O euro foi responsabilizado por muitas das disfunções da União Europeia, mas no final é um país com outra moeda que está saindo do bloco.
R. Acho que o euro foi um erro, causou muitos danos, mas a política não é tão racional. De fato, o Reino Unido não foi vítima da crise do euro, embora tenha imposto a si mesmo muita austeridade, enquanto a Grécia e a Espanha foram forçadas a ela. Se você observar a crise política na Europa, alguns dos países que aumentaram a rejeição à democracia não faziam parte do euro, mas o euro desacreditou as elites europeias, as pessoas pararam de acreditar que os tecnocratas de Bruxelas sabiam o que estavam fazendo e, sob esse ponto de vista, acabou contribuindo para o Brexit.

P. mudança climática continua um pouco subestimada como um risco para a economia.
R. É o problema mais importante, alguns dos principais manuais falam bastante disso, incluindo o meu. Temos dois problemas: um, ter um Partido Republicano que é negacionista, e o outro, a mudança climática. Se Deus quis criar um problema realmente difícil de combater antes de ocorrer uma catástrofe natural, esse problema é a mudança climática. É gradual e tende a ser invisível até que seja tarde demais. Avança de forma progressiva e cada vez que não agimos, piora. A questão é: quais países podem fazer esforços para resolvê-lo? Se tivéssemos uma liderança forte nos Estados Unidos, poderíamos ter adotado uma ação efetiva, mas, em vez disso, temos um Partido Republicano que nega o problema. Assim, é bastante assustador. As possibilidades de catástrofe são muito altas.


El País: Impeachment de Trump chega a clímax com desfecho previsível e impacto eleitoral incerto

Advogados da Casa Branca alertam contra a destituição do mandatário: “Estão pedindo algo muito perigoso”

Os advogados de Donald Trump começaram no sábado seu turno de fala e defenderam que as manobras do presidente sobre o Governo da Ucrânia, a quem pedia investigações prejudiciais aos seus rivais democratas, eram de interesse legítimo e não foram apoiadas em coação. O advogado da Casa Branca, Pat Cipollone, acusou os democratas de usar um procedimento excepcional como o impeachment, que os Estados Unidos realizam pela terceira vez na história, para retirar o mandatário da reeleição em 2020. Cipollone tentou dessa forma dirigir a acusação que pesa sobre o acusado aos promotores. “Estão pedindo que façam algo muito perigoso”, alertou.

Trump tem o caminho à absolvição livre uma vez que a destituição precisa de dois terços da Câmara e os republicanos, que são maioria com 53 das 100 cadeiras, cerraram fileiras em torno ao mandatário. Os democratas têm problemas para conseguir convencer até mesmo quatro deles, com os quais somam 51 votos, para poder pedir a declaração de testemunhas no julgamento. Foi a maioria democrata na Câmara baixa que tornou possível a abertura do julgamento, mas o peso agora está na alta, território amigo do mandatário. O veredito do Senado é previsível, o efeito nas eleições presidenciais de 2020 é mais incerto.

A manhã começou com um gesto teatral por parte dos gestores do impeachment, os sete congressistas democratas que lideram a acusação e na sexta-feira concluíram sua exposição pedindo a destituição do presidente. Pouco antes das 10h, quando começava a sessão, marcharam em procissão da Câmara dos Representantes ao Senado para entregar um total de 28.578 páginas de transcrições e outros documentos divididos em caixas. Procuravam reforçar a solidez do caso diante do que estava por vir: a tentativa da defesa do presidente de dar uma guinada na acusação.

“Estão pedindo que revertam não só os resultados da última eleição, como pedem que retirem o presidente Trump de eleições que ocorrerão em nove meses”, afirmou Cipollone no começo de uma exposição de duas horas, breve, pelos parâmetros em que se move o impeachment. “Seria um abuso de poder completamente irresponsável fazer o que lhes estão pedindo que façam: interferir em uma eleição e excluir o presidente dos Estado Unidos das urnas”, afirmou ao concluir.

Trump é acusado de abuso de poder, em seu benefício eleitoral, por pressionar Kiev para que anunciasse duas investigações, uma relacionada ao pré-candidato presidencial que lidera as pesquisas, Joe Biden, e seu filho, Hunter, pelos negócios deste último na Ucrânia quando o pai era vice-presidente; e outra sobre uma teoria desacreditada segundo a qual o país europeu havia planejado uma campanha de ingerência nas eleições de 2016 para favorecer a vitória democrata. O próprio presidente norte-americano pede explicitamente as duas investigações a seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, na conversa de 25 de julho, cujo conteúdo se tornou público. A acusação também afirma que ele usou o congelamento de ajudas militares e um convite à Casa Branca como moeda de troca.

O insistente pedido de Trump não só fica corroborado pela ligação de julho, como por múltiplos depoimentos e documentos que mencionam o interesse do republicano pelo assunto, mas os advogados o apresentaram no sábado como uma preocupação legitima pela corrupção e negaram o quid pro quo. Cipollone frisou que Trump não mencionou na conversa nenhuma moeda de troca e atribuiu a retenção de quase 400 milhões de dólares (1,7 bilhão de reais) em ajudas militares, que haviam sido aprovadas pelo Congresso, à irritação da Administração pelo escasso apoio vindo da União Europeia. Em relação à reunião entre Trump e Zelensky, os advogados lembraram que ela acabou não ocorrendo.

O encontro aconteceu, entretanto, em 25 de setembro em Nova York, quando o escândalo já havia explodido e com investigação na Câmara dos Representantes já em andamento. E Gordon Sondland, embaixador norte-americano na União Europeia, que recebeu de Trump um papel importante nas manobras com a Ucrânia, admitiu em seu depoimento na Câmara dos Representantes que, “na ausência de uma explicação crível”, acabou concluindo que as ajudas militares não seriam entregues “enquanto não ocorresse uma declaração pública da Ucrânia comprometendo-se com as investigações de 2016 e com a Burisma”. Em um relatório oficial, o Escritório de Controle do Governo, uma agência independente dentro da Administração, chamou o congelamento de ajudas de ilegal.

O advogado adjunto da Casa Branca, Mike Purpura, se expressou em linha semelhante a Cipollone em relação à teoria da conspiração sobre as eleições de 2016, frisando que “não há absolutamente nada de errado em pedir ajuda a um líder estrangeiro para se chegar ao fundo de qualquer forma de interferência nas eleições americanas”. Essa teoria da conspiração já não tinha fundamento quando o presidente pediu a Kiev que anunciasse as investigações. Toda essa campanha de pressão foi orquestrada através de uma espécie de diplomacia extraoficial e paralela, em que o advogado pessoal de Trump, Rudy Giuliani, desempenhou papel essencial.

Também pesa sobre o republicano a acusação de obstrução ao Congresso por obstruir a investigação. O congressista Adam Schiff, na liderança dos gestores nomeados pela Câmara dos Representantes para comandar a acusação, concluiu na sexta-feira três dias de argumentos com um pedido final aos republicanos: “Sabem que não podem confiar em que esse presidente faça o correto para o país”.

Vários veículos de comunicação norte-americanos adiantaram na sexta-feira que a defesa se centraria em aprofundar as suspeitas sobre os Biden como maneira de justificar as manobras de Trump. Pode ser que seja a bala reservada para segunda, quando o julgamento continuar. Cada parte possui 24 horas divididas em três dias, mas os advogados de Trump indicaram que não esgotarão seu tempo, ao contrário do que fez a acusação. O republicano, mais do que o prazo, se preocupa pelas horas, como bom animal midiático que é. “Meus advogados começarão no sábado, que é o que em televisão se chama o Vale da Morte”.


El País: Índia do conservador Modi estende tapete vermelho a Bolsonaro e anseia por acordos comerciais

Premiê indiano recebe brasileiro na data nacional mais importante do país, no domingo. Em comum, líderes enfrentam críticas por atacarem imprensa e minorias

Jair Bolsonaro chegou nesta sexta-feira à Índia como principal convidado para as comemorações do Dia da República, no domingo, dia 26, em Nova Délhi. A deferência de participar da festa mais importante do Estado indiano é lida com um aceno do primeiro-ministro Narendra Modi, que esteve no Brasil em novembro, ao ultradireitista brasileiro. Ambos os líderes das duas potências emergentes buscam melhorar a aliança estratégica diante do desafio comum da reativação econômica e em meio a críticas que recebem em âmbito doméstico e externo. Tanto Modi como Bolsonaro são criticados pelo acosso à mídia e por medidas e discursos que prejudicam as minorias dos dois países, também unidos por sua diversidade étnica e social. A agricultura e o meio ambiente são campos minados para ambos os líderes. Se Bolsonaro é criticado por negar a catástrofe dos incêndios na Amazônia, a passividade de Modi diante da poluição é denunciada por ativistas que os camponeses os apoiam em protestos nacionais.

“Enfrentamos as mesmas críticas", admitiu o embaixador brasileiro na Índia, André Aranha Correa do Lago, à televisão local. Em seguida, redirecionou a resposta ao escopo do encontro: "Nossas economias são tão profunda e tradicionalmente fechadas que, ao abri-las, descobre-se que há outros obstáculos a serem eliminados. Isso cria frustração no exterior”. Com um marcante caráter comercial, Bolsonaro visita a Índia com sete ministros e uma grande delegação de empresários que esperam assinar mais de 15 pactos com governos e instituições indianos, segundo Correa do Lago, que também afirmou que “os dois países firmarão um importante acordo sobre aceleração e proteção de investimentos ”.

Pioneiros na cooperação Sul-Sul e com agendas semelhantes no campo da parceria internacional, Índia e Brasil elevaram suas relações bilaterais a uma aliança estratégica em 2006, mas a separação geográfica e o fraco intercâmbio sociocultural entre estas duas potências regionais reduziram o alcance dos acordos. Para melhorar este aspecto, Bolsonaro aprovou a concessão de vistos gratuitos para turistas e empresários indianos, na última cúpula dos BRICs, num dos poucos resultados proveitosos do encontro multilateral realizado em novembro em Brasília. Modi correspondeu com este convite formal, durante o qual se esperam contratos importantes, especialmente em questões de energia, agricultura e defesa.

Fórum empresarial e queixa na OMC

Depois do desfile do Dia da República, Bolsonaro se reunirá com empresários de ambos os países no Fórum de Negócios Índia-Brasil para dar impulso a essas relações. O volume comercial bilateral foi de 8,2 bilhões de dólares (34 bilhões de reais) entre 2018 e 2019. Os investimentos indianos no Brasil são estimados em cerca de 6 bilhões de dólares (25 bilhões de reais), concentrados nos setores agrícola, farmacêutico, de energia, de mineração, de engenharia e de tecnologia. Já os de brasileiros na Índia são cerca de 1 bilhão (4,18 bilhões de reais), com foco na indústria automotiva, de tecnologia, de mineração e de biocombustíveis. A preocupação da Índia em matéria de energia direcionou seu interesse para o etanol brasileiro, após sanções dos EUA ao Irã e à Venezuela, o quarto maior exportador de petróleo bruto para a Índia.

Em meio à crescente polarização entre Estados Unidos, China e Rússia, as relações indo-brasileiras oferecem um horizonte para navegar sem receios das superpotências. Em 2016, o Brasil apoiou publicamente pela primeira vez a inclusão da Índia como membro do Grupo de Fornecedores Nucleares, abrindo espaço para cooperação nessa área. O Brasil tem em seu solo a terceira e a sexta reservas de urânio e tório, respectivamente. O país também tem terreno fértil para se beneficiar da cooperação técnica em questões espaciais, já que a Índia está se tornando uma plataforma de produção e lançamento de satélites, enquanto os países latino-americanos tradicionalmente dependem da especialização chinesa.

Há também terrenos escorregadios para explorar durante a visita, como os do setor agrícola, básico para a economia do Brasil e da Índia, primeiro e segundo produtor mundial de cana-de-açúcar, respectivamente. Os produtores indianos consideram inadmissível que o Brasil denuncie a Índia à Organização Mundial do Comércio pelos subsídios à produção e exportação.

Outro ponto de atenção são os protestos enfrentados por Modi. Desde o final de 2019, as grandes cidades da Índia abrigam grandes manifestações sociais contra o Governo, e as concentrações multitudinárias em Nova Délhi serão mantidas durante a visita de Bolsonaro à capital. Os manifestantes denunciam o nacionalismo hindu de Modi, acusado de discriminar os muçulmanos indianos e também criticado pela minoria cristã do país. Bolsonaro, por sua vez, representa a extrema direita aliada ao radicalismo evangélico brasileiro e coincide com o líder indiano em exibir um discurso populista nos tuítes e administrar seu país por meio de medidas que marginalizam minorias —os povos indígenas, no caso do Brasil. Uma maneira de fazer política que lhes deu vitórias eleitorais que lhes permitem levar adiante seus projetos nacionalistas conservadores. Ambos parecem apostar nos paralelismos no campo político-ideológico para driblar um certo isolamento internacional, o que também poderia ajudar a consolidar as relações econômicas em duas potências vistas há duas décadas como dominantes em suas regiões e cujas populações representam um quarto da população mundial.


El País: Fux suspende juiz de garantias e instala batalha no Supremo e com Congresso

"Transfere-se indevidamente ao Poder Judiciário as tarefas que deveriam ter sido cumpridas na seara legislativa”, argumenta o ministro do STF. Presidente da Câmara lamenta decisão “desrespeitosa”

Após ser aprovada, sancionada e adiada, a criação do juiz de garantias foi, enfim, suspensa por tempo indeterminado nesta quarta-feira. O ministro Luiz Fux, atualmente vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu paralisar a implantação da inovação, revogando decisão liminar da semana passada do presidente da Corte, Antonio Dias Toffoli, que havia dado seis meses de prazo para a entrada em vigor da medida. “Observo que se deixaram lacunas tão consideráveis na legislação, que o próprio Poder Judiciário sequer sabe como as novas medidas deverão ser adequadamente implementadas", argumentou o ministro. Sua decisão agradou o ministro da Justiça, Sergio Moro, mas contrariou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e reaviva a tensão entre os poderes Legislativo e Judiciário.

O despacho de Fux, que é relator de quatro ações que tratam do assunto, foi expedido dias após ele ter assumido o comando interino do Supremo —que está em recesso— no lugar de Toffoli. O vice-presidente do Supremo derrubou liminar que havia sido concedida pelo presidente da Corte sobre o tema. "O resultado prático dessas violações constitucionais [como o ministro classifica as medidas aprovadas pelo Congresso Nacional] é lamentável, mas clarividente: transfere-se indevidamente ao Poder Judiciário as tarefas que deveriam ter sido cumpridas na seara legislativa”, escreve Fux em sua decisão.

A figura do juiz de garantias está prevista no pacote anticrime aprovado pelo Congresso Nacional ―recentemente sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro― apesar de sugestão em contrário do ministro da Justiça, Sergio Moro, que já tinha se posicionado contra a medida. Ela estabelece que o juiz responsável por instruir e conduzir um inquérito criminal não será o mesmo que julgará o processo criminal do mesmo caso. “Sempre disse que era, com todo respeito, contra a introdução do juiz de garantias no projeto anticrime”, escreveu Moro nesta quarta em seu perfil no Twitter.

“Cumpre, portanto", segue o ministro, "elogiar a decisão do Min Fux suspendendo, no ponto, a Lei 13.964/2019. Não se trata simplesmente de ser contra ou a favor do juiz de garantias. Uma mudança estrutural da Justiça brasileira demanda grande estudo e reflexão. Não pode ser feita de inopino. Complicado ainda exigir que o Judiciário corrija omissões ou imperfeições de texto recém-aprovado, como se fosse legislador positivo. Excelente ainda a ideia de realização de audiências públicas na ação perante o STF, o que na prática convida a todos para melhor debate”, finalizou Moro, destacando como Fux pretende reabrir o debate legislativo, desta vez no âmbito jurídico.

“Desnecessária e desrespeitosa”

Já o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, protestou. “Acho que a decisão do ministro Fux é desnecessária e desrespeitosa com o Parlamento brasileiro e com o Governo brasileiro, com os outros Poderes”, disse ao jornal Folha de S.Paulo. “Não podemos entrar em fevereiro com uma boa expectativa de crescimento, com o STF dando uma sinalização muito ruim para o Brasil e para os investidores estrangeiros no nosso país”, reclamou o presidente da Câmara. Segundo Maia, contudo, “o principal atacado hoje” pela decisão de Fux foi Dias Toffoli. “Eu confio no STF, confio nos seus ministros e confio principalmente na presidência do presidente Dias Toffoli, que na sua volta [do recesso] eu tenho certeza de que vai restabelecer a normalidade na relação de equilíbrio entre os Poderes”, finalizou Maia.

Na decisão em que derrubou a liminar de Toffoli, Fux disse que é preciso esperar uma análise do plenário do Supremo sobre o caso. “Nesse ponto, salvo em hipóteses excepcionais, a medida cautelar deve ser faticamente reversível, não podendo produzir, ainda que despropositadamente, fato consumado que crie dificuldades de ordem prática para a implementação da futura decisão de mérito a ser adotada pelo tribunal, qualquer que seja ela”, escreveu. “A essência desta corte repousa na colegialidade de seus julgamentos, na construção coletiva da decisão judicial e na interação entre as diversas perspectivas morais e empíricas oferecidas pelos juízes que tomam parte das deliberações. Por isso mesmo, entendo que a atuação monocrática do relator deve preservar e valorizar, tanto quanto possível, a atuação do órgão colegiado”, completou.

Não é a primeira vez que o STF suspende e se debruça sobre uma legislação aprovada pelo Congresso Nacional, mas a nova tensão vem em um momento em que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário iam conseguindo pacificar uma relação bastante conturbada nos último meses. Maia lembrou nesta quarta-feira que foi Toffoli o responsável por essa pacificação.


El País: MPF usa contra Greenwald áudio que PF havia julgado favorável ao jornalista

Procurador denunciou fundador do ‘The Intercept’ sob acusação de que ele teria aconselhado os hackers. Vazamentos originaram série de reportagens, com participação do EL PAÍS

O Ministério Público Federal (MPF) em Brasília denunciou nesta terça-feira o jornalista Glenn Greenwald, fundador do The Intercept, e outros seis investigados por envolvimento na invasão de celulares de autoridades como o ministro Sergio Moro e o Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Operação Lava Jato. As mensagens privadas repassadas a Greenwald originaram série de reportagens feitas pelo The Intercept Brasil e um grupo de veículos, incluindo o EL PAÍS, que revelaram a proximidade entre Moro, então juiz da Lava Jato, e os procuradores e puseram em xeque a imparcialidade da operação. O jornalista norte-americano sempre rechaçou ter participação do hackeamento e tem evocado o sigilo de fonte para defender a utilização do material.

Na denúncia, que foi alvo de críticas de entidades de imprensa nacionais e internacionais, o procurador Wellington Oliveira utiliza um diálogo entre Greenwald e um dos acusados que confessou ter roubado as mensagens das autoridades para dizer que o jornalista "de forma livre, consciente e voluntária, auxiliou, incentivou e orientou, de maneira direta, o grupo criminoso, durante a prática delitiva, agindo como garantidor do grupo, obtendo vantagem financeira com a conduta aqui descrita”. Oliveira não dá mais detalhes. A conclusão do Ministério Público Federal, porém, vai na contramão da Polícia Federal, que não viu nada inadequado na conduta do jornalista. Em dezembro, relatório da PF sobre o caso afirmou, com base no mesmo material investigado e no exato áudio referido por Oliveira, que a troca de mensagens era uma "evidência da adoção por Glenn Greenwald de uma postura cuidadosa e distante em relação à execução das invasões, bem como da escolha de eventuais alvos pelos criminosos”.

“O Governo Bolsonaro e o movimento que o apoia deixaram repetidamente claro que não acreditam em liberdade de imprensa”, protestou Greenwald em nota enviada à Folha de S. Paulo. Seus advogados disseram que vão tomar as medidas cabíveis e que pretendem acionar a Associação Brasileira de Imprensa. A nota The Intercept seguiu a mesma linha e viu na ação como uma tentativa de “criminalizar o jornalismo brasileiro”, e não apenas o site. No Twitter, Edison Lanza, relator da OEA para a Liberdade de Expressão, disse enxergar “preocupantes implicações para a liberdade de expressão” no procedimento movido contra Greenwald. Já a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) divulgou uma nota em que analisa trechos da denúncia e chega a conclusão de que ela foi feita “como único propósito constranger" o jornalista. “A denúncia contra Glenn Greenwald é baseada em uma interpretação distorcida das conversas do jornalista com sua então fonte”, afirma. “É um absurdo que o Ministério Público Federal abuse de suas funções para perseguir um jornalista e, assim, violar o direito dos brasileiros de viver em um país com imprensa livre e capaz de expor desvios de agentes públicos”, prossegue. A ONG Anistia Internacional afirmou, por sua vez, que a denúncia “é profundamente grave e representa uma escalada na ameaça à liberdade de imprensa no Brasil”, uma vez que “se soma a uma série de agressões que o presidente Jair Bolsonaro tem praticado contra repórteres, além de medidas que soam como ameaçadoras contra veículos de comunicação nos últimos meses”.

No mesmo áudio e Supremo

Além da rejeição de entidades e políticos, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o caso também reverberou no Supremo Tribunal Federal. Em agosto, o ministro do STF, Gilmar Mendes, vetou a implicação de Greenwald no caso, evocando a proteção ao direito de fonte. Por causa disso, o jornalista não poderia ser investigado. Porém, segundo o MPF, ao longo das análises do material apreendido foi encontrado um áudio em que o jornalista conversa com um dos investigados, Luiz Molição, que justificaria a acusação. A conversa teria ocorrido depois que a imprensa já havia noticiado a invasão ao celular de Moro, segundo a Procuradoria. “Nesse momento, Molição deixa claro que as investigações e o monitoramento das comunicações telefônicas ainda eram realizadas e pede orientações ao jornalista sobre a possibilidade de baixar o conteúdo das contas do Telegram de outras pessoas antes da publicação de matérias pelo site The Intercept”, diz a denúncia, ainda que, apenas pela descrição dos áudios no documento seja difícil inferir que os hackeamento seguissem em curso.

O procurador Wellington Oliveira entendeu que Greenwald teria orientado o grupo, “caracterizando clara conduta de participação auxiliar no delito, buscando subverter a ideia de proteção à fonte jornalística em uma imunidade para orientação de criminosos”, segundo a denúncia. Em um momento, o jornalista diz: “Difícil porque eu não posso te dar conselho, mas eu tenho a obrigação para proteger meu [minha] fonte”. A transcrição do áudio ao qual o MPF teve acesso é idêntica à que consta no relatório da PF de dezembro, que conclui que o jornalista não teve relação com o hackeamento.

Além de Greenwald, os outros denunciados são Walter Delgatti Neto, que já havia confessado ter invadido as contas de Telegram de pessoas públicas, e Thiago Eliezer Martins Santos, apontados como líderes do grupo. Além deles, Danilo Cristiano Marques, suposto “testa-de-ferro” de Delgatti, Gustavo Henrique Elias Santos, que teria desenvolvido técnicas que permitiram a invasão, a esposa dele, Suelen Oliveira, apontada como laranja, e Luiz Molição, que teria sido o porta-voz do grupo nas conversas com Greenwald, também foram denunciados. Se a Justiça aceitar a denúncia, as sete pessoas responderão por organização criminosa, lavagem de dinheiro —exceto para Greenwald— e interceptações telefônicas ilegais. Para a Procuradoria, os suspeitos utilizariam as invasões para ganhar dinheiro.

A denúncia é mais um capítulo da novela política que começou com a publicação da série de reportagens originadas nas mensagens privadas, batizadas de Vaza Jato pelo The Intercept. O material marcou a agenda política brasileira desde junho de 2019 e abalou a percepção pública da Operação Lava Jato. Após as primeiras reportagens, o presidente Jair Bolsonaro chegou a sugerir que Greenwald poderia ser preso. As declarações provocaram protestos de entidades em defesa da liberdade de expressão no Brasil e no exterior.

EL PAÍS, que assim como Folha, a Veja e outros veículos utilizou as mensagens para fazer reportagens, reitera que não paga para conseguir informações sigilosas nem estimula atos criminosos para tal, mas não se furta de apresentar a seus leitores um cabedal de notório interesse jornalístico, independentemente da forma que tenha chegado à imprensa protegido pelo sigilo de fonte.


El País: Falha no Enem enfraquece ministro Weintraub

Governo afirma que erro em gabarito, que afetou quase 6.000 candidatos, aconteceu em gráfica. Inscrições para Sisu são prorrogadas até domingo, mas MPF quer suspensão da seleção

A falha identificada no primeiro Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) da era Bolsonaro tirou o sono nos últimos dias de quase 6.000 estudantes e contribuiu para o desgate do ministro Abraham Weintraub à frente da Educação, uma pasta que enfrenta descontinuidade administrativa e troca de postos-chave desde o início da gestão. Na noite desta segunda-feira, Alexandre Pereira Lopes, o presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável por organizar a prova, confirmou que um total de 5.974 alunos foram prejudicados pelos erros na correção do exame, a mais abrangente avaliação do gênero no país, que serve como vestibular para mais de 500 universidades públicas e particulares do país. Essa quantidade de resultados com problemas representa 0,15% dos 3,9 milhões de inscritos que fizeram as provas.

Os casos de erros se concentraram, segundo o Inep, principalmente em quatro municípios: Viçosa, Ituiutaba e Iturama, em Minas Gerais, além de Alagoinhas, na Bahia. Essas cidades concentraram 96,7% dos equívocos. Segundo o instituto, todos gabaritos foram corrigidos e as notas corretas já estão disponíveis para os candidatos. Conforme o Inep, houve casos em que as notas aumentaram e casos em que as notas foram reduzidas. “Vamos revisar e implementar novos testes para evitar essas inconsistências no futuro", afirmou Lopes, que prometeu fortalecer os procedimentos de segurança. Há dois processos licitatórios abertos para a impressão dos próximos exames.

Ainda que tenha havido essas falhas, o Inep manteve para essa terça-feira a data de início das inscrições do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que é o meio utilizado pela União pelo qual as universidades oferecem suas vagas. Os candidatos com melhor classificação no Enem são selecionados por essas instituições. A diferença é que o prazo final para a inscrição no Sisu foi ampliado para o dia 26 de janeiro, antes, era o dia 24. No fim da noite, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, pediu, via ofício, que o começo do Sisu seja suspenso até que todas as dúvidas e inconsistências sejam sanadas.

Falha pressiona ministro

Desde o início do Governo Jair Bolsonaro, há um ano, o Inep teve três presidentes diferentes, sendo que por cinco meses ficou sem qualquer dirigente no cargo máximo da entidade. No último dia 17, quando os resultados da prova foram divulgados pelo MEC e pelo Inep, o ministro Abraham Weintraub chegou a dizer que esse tinha sido “o melhor Enem de todos os tempos”. Indagado por meio de sua assessoria, nesta segunda-feira, se mantinha essa opinião, o responsável pela Educação não respondeu à reportagem.

No fim do ano passado, sem alcançar resultados expressivos em avaliações internacionais, pressionado por parlamentares que cobravam projetos para a pasta e depois de se envolver em uma série de polêmicas nas redes sociais nas quais discutia com internautas ou escrevia palavras com a grafia errada —como imprecionante ou paralização—, Weintraub era tido como o próximo ministro a cair do Governo. Foi mantido pelo presidente, dentro da chamada cota ideológica, que tem o apoio do guru do bolsonarismo, o escritor Olavo de Carvalho. Com essa falha no Enem, ele perde forças e, no Planalto, sua demissão volta a ser analisada. O presidente, contudo, resiste em demiti-lo porque entende que seria ceder à pressão da imprensa.

A falha no Enem, conforme o Inep, ocorreu porque alguns dos gabaritos usados na correção das avaliações realizadas em novembro do ano passado, eram distintos das provas que foram aplicadas a esses alunos. Por exemplo, um aluno respondeu as questões da prova azul, mas o gabarito usado para a correção dela foi o de uma amarela. Os cadernos de provas têm cores diferentes para evitar que um candidato/aluno copie as repostas de outro concorrente na mesma sala. O erro teria sido ocasionado, de acordo com o Governo, por uma falha da gráfica Valid, que foi contratada de maneira emergencial para imprimir o Enem.

Pelo trabalho para o exame, a empresa foi contratada por 151,7 milhões de reais. A mesma Valid ainda tem um outro contrato com a União no valor de 143,1 milhões. Esse último para aplicar as provas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) e do Exame Nacional para Certificação de Competência de Jovens e Adultos (Encceja). Agora, ela será notificada para se explicar. Há a possibilidade de punições para a empresa. O Inep não soube precisar quais seriam essas sanções previstas nos contratos.

A confusão envolvendo as provas do Enem começaram em março do ano passado, quando a empresa que era responsável pela impressão das provas desde 2009, a RR Donnelley, declarou falência. Foi então que a Valid, a segunda qualificada em um certame de 2016 vencido pela RR Donnelley, foi contratada sem licitação alguma. A contratação teve o aval do Tribunal de Contas da União.

Em 2009, o Enem também teve outra falha, quando três pessoas furtaram as provas da gráfica que a imprimia, a Plural, e tentaram vendê-la. O caso resultou no adiamento na realização das provas e na demissão do então presidente do órgão. Foi a partir de então que a RR Donnelley passou a prestar o serviço ao Governo.

Quando decretou a falência, a gráfica então responsável pelas provas já deveria estar começando seu processo de impressão. No mercado editorial havia a sinalização de que haveria problemas no Enem, que acabaram se confirmando neste fim de semana, quando alunos se queixaram das falhas nas redes sociais e o MEC as admitiu publicamente, dizendo que montaria uma força-tarefa com o Inep para analisar os casos. “A manifestação das pessoas nas redes sociais, junto com nosso 0800, permitiu que nós pudéssemos notar essas inconsistências e corrigi-las a tempo", afirmou Lopes. Ele considerou positivo o resultado final do exame. “Quando se corrige a tempo, considero que é uma vitória”.

Um dos trabalhos dessa força-tarefa, formada por 300 servidores públicos e funcionários do consórcio que elaborou as provas, era checar os relatos dos candidatos que enviaram mensagens para o Inep. As reclamações foram encaminhadas por e-mail e o prazo para fazê-las era de menos de 24 horas. Esgotou-se na manhã desta segunda-feira, quando 172.000 queixas foram enviadas. Conforme o presidente do Inep, todos os 3,9 milhões de candidatos tiveram suas notas revisadas. “Não foi apenas quem mandou o e-mail ”, afirmou Lopes.


Eliane Brum: Do centro do mundo ao fim do mundo

O que significa partir da maior floresta tropical do planeta rumo à Antártida? É o que Eliane Brum conta em um diário a bordo de um navio do Greenpeace que zarpou neste sábado

O que significa partir da maior floresta tropical do planeta para àquela que foi considerada a última fronteira? Da Amazônia à Antártida, esta é a viagem que conto neste diário a bordo do navio Arctic Sunrise, do Greenpeace. Organizada para pesquisar o impacto do colapso climático sobre o continente gelado, em especial sobre as colônias de pinguins, a expedição reúne nove cientistas, alguns com 25 anos de experiência na Antártida. No início do século 20, a corrida para o polo sul marcava o olhar do conquistador que precisava fincar sua bandeira sobre a terra que desbravava. Hoje, no século 21, nosso desafio é dimensionar o impacto da ação humana que alterou o clima do planeta e buscar caminhos para reduzi-lo. Deixo uma floresta em convulsão, cada vez mais perto do ponto de não retorno, para me embrenhar num universo que literalmente derrete.

Dia zero | Há aliens embaixo da sola dos meus sapatos?

Em algumas horas estarei a bordo do Arctic Sunrise, um navio mítico da organização ambiental Greenpeace, usado para pesquisas científicas e ações de denúncia pelo mundo. Numa delas, na Rússia, em 2013, os 28 ativistas e dois jornalistas que os acompanhavam foram abordados, detidos e levados à prisão onde permaneceram por dois meses. Eles faziam um protesto pacífico contra a exploração de petróleo no Ártico. A abordagem policial foi cinematográfica, o vídeo na Internet viralizou. Nesta sexta-feira, 17 de janeiro, descobriu-se que a polícia britânica incluiu o Greenpeace na lista de “alerta antiextremismo”, um guia de 24 páginas da unidade de contraterrorismo para “identificar possíveis autores de atos terroristas e prevenir situações limite”. Será que o Governo de Boris Johnson nos consideraria “piratas”? Nos tornaríamos “suspeitos de terrorismo” por investigar o que está acontecendo com pinguins e baleias devido à crise climática?

É num planeta governado por criaturas como Johnson, Vladimir Putin, Donald Trump e, claro, Jair Bolsonaro que nossa espécie enfrenta o maior desafio de sua trajetória na Terra: o superaquecimento global provocado por ação humana. Dito de outro modo, os humanos se tornaram uma força de destruição capaz de alterar o clima do planeta. Felizmente, e essa é parte da minha profunda emoção por acompanhar essa expedição do Arctic Sunrise, a Antártida não tem dono. Diversos países mantêm bases de pesquisa científica naquele que é chamado de “continente gelado”, mas nenhum deles têm direito de propriedade. É fascinante estar num lugar do planeta em que nenhum dos déspotas eleitos que hoje circulam livremente por aí possam reivindicar a posse da natureza.

Quando começa uma viagem? Possivelmente na hora em que decidimos realizá-la. Eu estava na minha casa, em Altamira, uma cidade que é epicentro da destruição da Amazônia. Era ainda dezembro e meu primeiro reflexo foi negar: por mais fascinante que a viagem pudesse ser, seria impossível deixar a Amazônia naquele momento. Desde que Bolsonaro anunciou a medida provisória que permite que grileiros (ladrões de terras públicas) possam legalizar pedaços da floresta roubados até dezembro de 2018, as ameaças contra agricultores familiares que disputam a área para reforma agrária e contra os povos da floresta que nela vivem se multiplicaram. Alguns foram mortos. Neste Natal e Ano Novo, várias lideranças tiveram que abandonar suas famílias e se esconder. “Envenenaram minhas galinhas, quebraram as pernas dos meus bezerros, esfaquearam meus cachorros”, avisou uma delas, na forma de pedido de socorro, quando voltou para casa dias atrás. É assim que se vive na Amazônia desde que Bolsonaro assumiu o poder.

Me mudei de São Paulo, a maior cidade do Brasil, para Altamira, a cidade mais violenta da Amazônia, em agosto de 2017, por compreender que a Amazônia deve ser a grande causa de nossa época, para além das nacionalidades e também das identidades. Sem a maior floresta tropical do mundo, não há como controlar o superaquecimento do planeta. E, desde lá, participo do movimento global Amazônia Centro do Mundo, que reivindica a urgência de reconhecer a centralidade da floresta se quisermos ter um futuro possível. Caso a população mundial não perceba que precisa colocar seu corpo na batalha decisiva deste momento histórico, possivelmente a floresta chegará ao ponto de não retorno nos próximos anos. E o futuro de nossos filhos e netos será um planeta hostil.

Cheia de dúvidas, escrevi para Antonio Nobre. Cientista da Terra, ele lançou em 2014 o relatório Futuro Climático da Amazônia, disponível em português, inglês e espanhol, que apontava a urgência de transformar a Amazônia numa causa de todos. Esse relatório mudou a minha vida. Foi com ele que aprendi sobre os rios voadores lançados pela floresta todos os dias: a floresta sua, transpira, e coloca cerca de 20 trilhões de litros de água na atmosfera a cada 24 horas. Esse volume de água é mais do que o Amazonas, um dos maiores rios do mundo, leva ao Oceano Atlântico. Como já escrevi inúmeras vezes, essa apoteose da natureza, hoje ameaçada, é mais extraordinária do que um poema de Fernando Pessoa, uma pintura de Picasso ou um concerto de Villa-Lobos.

Antonio Nobre me respondeu que seria importante estabelecer as conexões entre a Amazônia e a Antártida ―ou como o desmatamento da floresta poderia impactar o continente gelado. E esse foi também meu primeiro aprendizado ao chegar ao Chile. Desde Santiago, onde participei de um evento anual chamado Congresso do Futuro, que reúne pessoas de todas as áreas e de diversos países, pude comprovar, mais uma vez, o quanto cada gesto impacta todo o planeta. Sobre a cordilheira andina que escolta a cidade, um observador atento poderia avistar um contorno mais escuro. Era a fumaça dos incêndios da Austrália que chegava até ali.

Ao desembarcar em Punta Arenas, na Patagônia, a notícia é de que a fumaça da Austrália comprovadamente já alcançou a Antártida. “A Antártida sempre foi chamada de ‘o continente isolado”, nos contava ontem Marcelo Leppe, diretor do Instituto Antártico Chileno. “É um mito. A Antártida não está isolada. Tudo está conectado.” Ficará fácil para os cientistas saber qual é a marca da neve de 2020: uma linha preta. Marcelo Leppe segue: “há microplásticos por toda a Antártida”.

Da Amazônia à Antártida, da Antártida à Austrália, da Austrália à Sibéria, da Sibéria à Califórnia, sabemos que 2020 não começa bem. Este será um ano decisivo. O meu começou com as ameaças a lideranças em toda a região amazônica por parte de grileiros e segue agora nesta expedição Antártida em que acompanharemos uma equipe de nove cientistas em sua investigação sobre o impacto da crise climática sobre as colônias de pinguins. Também baleias, esses animais fabulosos que fertilizam os oceanos, estão no horizonte antártico de nossa expedição.

Antes de embarcar, porém, minha preocupação é com criaturas vivas infinitamente menores. A Antártida tem sido alterada por humanos que carregam nas roupas, na sola dos sapatos e nos objetos seres alienígenas como sementes, esporos e vírus que podem corromper um ecossistema tão delicado. Preciso escovar a sola de todos os sapatos, usar roupas que não soltam fibras. Sei que quanto menos gente na Antártida, melhor. A pesquisa mais responsável hoje é, sempre que possível, que os estudos sejam feitos com amostras retiradas da Antártida, mas fora dela. Pergunto a Leppe se devemos entrar neste majestoso mundo branco, hoje cada vez mais verde por conta do superaquecimento global. Ele diz que é importante que possamos contar ao mundo o que está acontecendo. Mas que a delicadeza de pisar na Antártida nos dá uma enorme responsabilidade de fazer ainda melhor o nosso trabalho.

Todos os meus sentidos estão entregues à tarefa de contar a vocês o que tenho o privilégio de testemunhar nesta expedição que se inicia em algumas horas. Mas o meu contar só se completa na leitura de cada um. E no gesto que cada um possa fazer a partir da leitura deste diário de bordo.

Volto o mais breve que conseguir – e que o quase certo enjoo provocado por ondas com vários metros de altura permitir.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum


El País: Bolsonaro e a arte de ignorar denúncias de corrupção contra seu Governo

Planalto atual não se constrange com investigações, como nas gestões passadas, mostra de novo o caso de Fábio Wajngarten, da Secom. São os ataques à imprensa cada vez mais virulentos que prevalecem

Jair Bolsonaro inaugura no Planalto a arte de ignorar solenemente investigações ou denúncias de má conduta contra seus assessores. Pouco importa o que a imprensa, tida como inimiga de antemão, publica ou mesmo o que as autoridades apontam. Não era assim nas gestões anteriores, quando havia diferentes graus de constrangimento, pressão da base, preocupação “com a opinião pública”. Sob Bolsonaro, que fez campanha tendo como bandeiras a ética e o combate à corrupção, só perde a função quem não tiver mais a confiança do presidente ou a de seus três filhos que estão na política. Essa é a única regra que vale, como mostram a saída de Gustavo Bebbianno e o general Carlos Alberto dos Santos Cruz (sem falar do descarte de Joice Hasselmann da liderança do Governo na Câmara).

É seguindo a toada que Bolsonaro decidiu manter na ativa, ao menos por ora, mais um de seus assessores contra quem pesa dúvidas: o secretário de Comunicação da Presidência da República, Fábio Wajngarten. Nesta semana, o jornal Folha de S. Paulo revelou que a empresa da qual Wajngarten detém 95% das ações, a FW Comunicação, recebe dinheiro de pelo menos duas emissoras de TV (Record e Band) e de três agências de publicidade contratadas pela Secretaria de Comunicação, por ministérios e por estatais federais. Cabe à Secom distribuir a verba de propaganda da Presidências e criar as normas para as contas dos demais órgãos da União. Além disso, o secretário nomeou como seu número dois na secretaria o irmão do profissional que o substituiu na administração da FW assim que assumiu o cargo público.

Em sua defesa, Wajngarten diz que não há conflito de interesses porque os contratos eram anteriores ao cargo que ocupa. O secretário recorreu à fórmula tão usada por seu chefe Bolsonaro: quando emparedado, atacar a imprensa e tentar desacreditá-la. Nesta semana, o presidente mandou até uma repórter calar a boca, numa escalada de virulência sem precedentes. Um levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) mostra que 2019 registrou 208 ataques a veículos de comunicação, sendo que 58% deles, ou 121, foram feitos pelo presidente. Em 114 dessas ocasiões Bolsonaro tentou desacreditar o trabalho dos jornais e dos jornalistas.

Um dos motivos da desenvoltura é o que discurso contra a imprensa reverbera entre seus apoiadores, uma base longe de ser a maioria, mas bastante inflamada, constantemente estimulada e coesa. Uma amostra são os que aplaudem qualquer grosseria que sai da boca presidencial na frente do Palácio da Alvorada quase diariamente.

No plano político, também há explicações para esse novo modus operandi. Antes, na hora de compor seu gabinete, qualquer ocupante da cadeira presidencial levava em conta a coalizão que lhe dava suporte. Se um ministro de um partido X ou Y era investigado ou denunciado por determinado delito, começava seu processo de fritura e algum tempo depois, ele caía. Agora, numa gestão sem base congressual, sem partidos políticos para agradar, o presidente se vê livre para fazer o que bem entender com quem lhe serve. Ainda que para isso se baseie em teorias conspiratórias e ignore fatos claros, documentados.

Antes de Fábio Wajngarten, o presidente já havia garantido no ministério Marcelo Álvaro Antônio (Turismo), denunciado pelo Ministério Público por um esquema de candidaturas laranjas do PSL em Minas Gerais. Há um reconhecimento quanto à lealdade de Marcelo. Quando foi esfaqueado, em Juiz de Fora, o ministro estava ao seu lado e ajudou a socorrê-lo.

O caso de Sergio Moro (Justiça), cuja atuação na Lava Jato foi questionada após vazamentos publicados pelo site The Intercept mostrarem uma incomum proximidade com procuradores, é diferente. O presidente o manteve por perto porque sabe que boa parte do apoio que possui depende do ex-juiz, um dos políticos mais populares do país atualmente. Mais do que isso, Moro é um dos ativos que Bolsonaro ainda tem para se apresentar como um paladino anticorrupção —um equilíbrio que só durará, claro, enquanto o ex-juiz estiver disposto a dar demonstrações públicas de lealdade quase cega.

Wajngarten parece possuir essas credenciais. Apoiador da campanha presidencial em 2018, o secretário chegou ao cargo sustentado pelo vereador Carlos Bolsonaro, que queria destituir da função Floriano Amorim, um antigo assessor de seu irmão, o deputado Eduardo Bolsonaro. Carlos é o ideólogo do presidente nas redes sociais e sempre teve influência sobre o pai. Nos últimos meses, contudo, Wajngarten perdeu apoio de Carlos porque se aproximou do advogado Frederick Wassef, defensor do senador Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas” na Assembleia do Rio de Janeiro. Carlos e Flávio não se dão bem. Consecutivamente, o secretário se aproximou de Flávio e ouviu as seguintes palavras do presidente: “O que eu vi até agora, está tudo legal com o Fábio. Vai continuar. É um excelente profissional. Se fosse um porcaria igual alguns que tem por aí, ninguém estaria criticando ele”. No bolsonarismo pode se considerar quase uma comenda.


El País: HRW cobra de Moro inclusão da Amazônia nas políticas de combate ao crime organizado

Relatório anual da ONG internacional afirma que política ambiental de Bolsonaro deu “carta branca” às redes criminosas que atuam na destruição da floresta e pede sua inclusão nas políticas de segurança

Amazônia protagonizou uma das maiores tragédias ambientais no ano passado. Cenário histórico de disputas de terra —seja para a extração ilegal de madeira ou grilagem—, a região viu seus conflitos se agravarem no último ano e ardeu em incêndios criminosos. Com o desmatamento (que aumentou em mais de 80% entre janeiro e outubro de 2019 em relação ao mesmo período de 2018), cresceu também a violência contra os defensores da floresta. Ao menos 160 casos de extração ilegal de madeira, invasões e outras infrações foram contabilizados nos territórios indígenas entre janeiro e setembro do ano passado. Essa conjuntura colocou a Amazônia em destaque no 30º relatório mundial da Human Rights Watch (HRW), ONG internacional que atua em defesa aos direitos humanos. Embora o Brasil já fosse considerado o país mais perigoso do mundo para ambientalistas antes de o presidente Jair Bolsonaro assumir o poder, a entidade afirma em seu texto, publicado nesta terça-feira, que a atual política ambiental brasileira dá “carta branca” às redes criminosas que atuam na região e requer que o problema não seja tratado apenas no âmbito ambiental. Para isso, pressiona o ministro de Segurança Pública e Justiça, Sergio Moro, a incluir a crise da Amazônia nas políticas prioritárias de sua pasta.

O relatório, que revisa anualmente as práticas de direitos humanos em mais de 100 países, também confirma uma preocupação apresentada no informe do ano passado com relação ao aumento de mortes por policiais no Brasil, após novo recorde no Rio de Janeiro. A HRW define a agenda do primeiro ano do Governo Bolsonaro como “contrária aos direitos humanos” pela adoção de uma série de medidas que colocam em risco populações vulneráveis, em especial os indígenas. Em um contexto de aumento da degradação na Amazônia e de debilidade na fiscalização ambiental, a entidade destaca que redes criminosas que lucram com o desmatamento ilegal estão não apenas destruindo a floresta, mas ameaçando e atacando os que a defendem, inclusive chegando a assassiná-los. Por isso, pede respostas enérgicas em políticas de segurança na região ao Governo Federal. "O ministro Sergio Moro determinou como prioridade de sua gestão o combate ao crime organizado e à corrupção. Esses crimes são elementos centrais da dinâmica que está impulsionando a destruição desenfreada da Amazônia”, justifica a diretora do escritório do Brasil da Human Rights Watch, Maria Laura Canineu. A HRW afirma que tem encontro marcado com Moro e com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para discutir como combater a criminalidade na Amazônia.

A entidade critica o presidente Bolsonaro por sugerir que não cumprirá os compromissos do país com a emergência climática, além de, internamente, enfraquecer as agências ambientais, reduzir orçamentos para a área e restringir a capacidade dos fiscais ambientais de atuarem em campo. O relatório aponta que o número de multas por desmatamento ilegal emitidas pelo Ibama, por exemplo, caiu em 25% entre janeiro e setembro de 2019 comparado ao mesmo período de 2018. E que as audiências de conciliação pactadas em outubro para todos os processos administrativos por infrações das leis ambientais não estão sendo realizadas, conforme resposta do próprio Governo à ONG por meio da Lei Geral de Acesso à Informação. Sem as audiências, o prazo para pagamento das multas ambientais, assim como todos os processos administrativos contra pessoas ou empresas que praticaram infrações, ficam suspensos. “O ataque do presidente Bolsonaro às agências de fiscalização ambiental está colocando em risco a Amazônia e aqueles que a defendem”, afirma Maria Laura Canineu. Em novembro e dezembro do ano passado, três indígenas foram assassinados. Além disso, dados do Inpe apontam que o crescimento do desmatamento tem sido constante. No último mês de dezembro, cresceu 183% em comparação ao mesmo mês do ano anterior, conforme apontam dados do Deter (Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real).

Novos recordes de má conduta policial

As questões relacionadas à liberdade de expressão, à violência policial e à violência de gênero foram outros destaques negativos desta edição do relatório. Sob o argumento de que os criminosos deveriam “morrer na rua igual a baratas”, Bolsonaro enviou ao Congresso o pacote anticrime, que ficou conhecido como uma espécie de licença para matar por permitir o excludente de ilicitude, que consideraria automaticamente determinadas mortes causadas por policiais e militares em serviço como atos de legítima defesa. Essa retórica, já usada pelo presidente desde a campanha eleitoral, havia sido considerada no relatório anterior da HRW, que anunciava preocupação de que a violência policial crescesse no país diante do que considerava uma “carta branca” do presidente.

Um discurso semelhante foi adotado pelo governador Wilson Witzel no Rio de Janeiro, que entre janeiro e novembro de 2019 contabilizou 1.686 mortes por policiais, um novo recorde para o Estado. O número é maior do que o registrado no mesmo período de 2018, quando o Rio de Janeiro esteve quase todo o ano sob intervenção militar. Os dados de mortes por policiais em São Paulo também chamam atenção da ONG internacional: houve um aumento de 8% de janeiro a setembro de 2019 em relação ao mesmo período do ano anterior. Esses números incluem tanto as mortes em legítima defesa quanto àquelas decorrentes do uso da força. Fora do eixo Rio-São Paulo, as cifras também não são otimistas. Em 2018, as mortes cometidas por policiais aumentaram 20% e atingiram 6.220 óbitos no país, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Os abusos policiais dificultam o combate à criminalidade porque desencorajam as comunidades a denunciarem crimes”, alerta a entidade.

O relatório também dá destaque ao não cumprimento da determinação do Supremo Tribunal Federal de conceder prisão domiciliar a mulheres grávidas, mães de crianças de até 12 anos ou de crianças ou adultos com deficiência, presas preventivamente por crimes não violentos, exceto em situações “excepcionalíssimas”. Apesar de 5.100 detentas estarem aptas para progredir à prisão domiciliar, 310 delas grávidas, elas ainda aguardam julgamento atrás das grades. Outro problema apontado pela ONG é que, embora o Conselho Nacional de Justiça tenha determinado em 2016 que todos os detidos tivessem uma audiência em um prazo de até 24 horas para avaliar se deveriam continuar presos, até setembro de 2019 pelo menos sete estados não realizavam as audiências de custódia em todo o seu território. Isso faz com que os presos precisem esperar meses na prisão antes de ver o juiz e ter sua situação avaliada, contribuindo também para um problema grave no Brasil, a superlotação dos presídios.

Na esteira desses problemas, ainda está a precarização da política de combate à tortura no Brasil, um ponto que também foi evidenciado pela HRW. Em junho do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro exonerou todos os onze cargos de peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão responsável por fiscalizar abusos nos presídios brasileiros. A Procuradoria Geral da República declarou que o decreto de Bolsonaro violava direitos fundamentais e solicitou ao Supremo Tribunal Federal que declarasse sua inconstitucionalidade. Um juiz federal suspendeu liminarmente o decreto que exonera os peritos do Mecanismo no último mês de agosto.


El País: Brasileiro ‘Democracia em vertigem’, de Petra Costa, disputa o Oscar 2020

Filme que reconta o processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff concorre a uma estatueta de melhor documentário

A crise democrática do Brasil e o turbilhão político dos últimos anos desfilarão no tapete vermelho do Oscar 2020, no dia 9 de fevereiro. Democracia em vertigem, de Petra Costa, concorre à estatueta dourada na categoria de melhor documentário, conforme anunciado pela Academy Awards na manhã desta segunda-feira. A produção brasileira concorrerá com American factoryThe caveFor Sama e Honeyland.

Todos os indicados ao Oscar 2020

O longa, que estreou na Netflix em 19 de junho, mostra o agitado mar dos últimos anos da pós-redemocratização brasileira, cujo ato central é o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016 —e a despedida do Partido dos Trabalhadores (PT) do poder, lugar que a sigla de Luiz Inácio Lula da Silva ocupava havia 13 anos— e que culminou na eleição do ultradireitista Jair Bolsonaro em 2018.

A diretora usou o Twitter para dizer que ela e sua equipe estão “extasiados” com a indicação. “Numa época em que a extrema direita está se espalhando como uma epidemia esperamos que esse filme possa ajudar a entender como é crucial proteger nossas democracias”, escreveu.

 

Petra Costa

@petracostal

Estamos extasiados pela @TheAcademy ter reconhecido a urgência de . Numa época em que a extrema direita está se espalhando como uma epidemia esperamos que esse filme possa ajudar a entender como é crucial proteger nossas democracias. Viva o cinema Brasileiro!

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Em Democracia em vertigem, Costa constrói uma narrativa com uma sequência de fatos organizados para além dos fragmentos dos jornais, como contou Talita Bedinelli, e cujos elementos se aproximam até dos gêneros da ficção: há vilões, mocinhos, traidores e muitas reviravoltas. Além de capturar o retrato do Brasil do impeachment, a cineasta mergulha em fatos políticos do passado para entender como o país chegou até seu momento atual. Essa análise começa nos anos 1970, com a transformação de um país que ainda lutava para desvencilhar-se de uma ditadura militar sangrenta, enquanto alçava à liderança política um metalúrgico sindicalista, Lula, que 30 anos mais tarde se tornaria presidente.

Com sua já característica maneira de dirigir, Costa torna-se também protagonista do documentário —como já havia feito em Elena— ao contar as mudanças advindas das políticas sociais do PT, os erros do partido em sua relação com o Congresso e com as bases nas ruas e a eleição de Rousseff, uma “candidata por acaso”, passando pelos protestos que tomaram as principais cidades brasileiras entre 2013 e 2016 e pela Operação Lava Jato. Em meio à vertigem de acontecimentos, aparecem também personagens coadjuvantes, como Eduardo Cunha, o presidente da Câmara que autorizou o processo de impeachment e, meses depois, acabou preso por corrupção, e Michel Temer.

Antes de chegar ao Oscar, Democracia em vertigem já havia sido aclamado em Sundance, em janeiro de 2019, quando abriu o festival e foi ovacionado pelo público. Para a audiência estrangeira, o documentário tornou-se uma espécie de espelho do contexto político contemporâneo global, com a extrema direita ganhando terreno mesmo em democracias consolidadas, na era das fake news e do BrexitEm dezembro, o documentário foi incluído na lista de melhores filmes do ano do The New York Times. “Ánálise cuidadosa dos eventos que levaram à eleição de Jair Bolsonaro, o presidente populista do Brasil, este documentário angustiante é o filme mais assustador do ano”, definiu o jornal norte-americano.


El País: Bolsonaro acelera deterioração da democracia no Brasil

Presidente aprofunda a polarização com um discurso hostil e ameaças aos seus adversários enquanto o Congresso e o STF impedem suas iniciativas mais radicais

A chegada ao poder no Brasil de Jair Bolsonaro — o primeiro presidente ultradireitista desde o retorno à democracia em 1985 — veio acompanhada de grandes temores por parte de seus adversários e das minorias. O primeiro ano de mandato incluiu confrontos com outros poderes do Estado, ataques à imprensa, à ciência, à história... decisões controvertidas e infinitas polêmicas. O militar reformado, que mantém vivo o discurso de nós contra eles da campanha e é abertamente hostil à esquerda, testou as instituições do Brasil.

O apoio à democracia caiu sete pontos, a 62% desde sua posse, os indiferentes ao formato de Governo aumentam enquanto se mantém em 12% a porcentagem dos que acreditam que em certas circunstâncias a ditadura é melhor, de acordo com a pesquisa do Datafolha divulgada no Ano Novo.

O Congresso, no qual não tem maioria, deteve suas iniciativas legislativas mais radicais como eximir policiais e militares de responsabilidade em tiroteios com bandidos e purgar os livros escolares de esquerdismo. O Supremo também foi uma barreira. Mas em áreas como a política cultural, destruiu tudo aquilo que não bate com sua visão. Os editoriais contra seus instintos autoritários são frequentes.

A ONU ligou os alarmes já em setembro, através de sua alta comissária para os Direitos Humanos, a ex-presidenta Michele Bachelet, que após criticar o aumento de mortos por disparos policiais afirmou: “Nos últimos meses observamos uma redução do espaço cívico e democrático, caracterizado por ataques contra os defensores dos direitos humanos e restrições impostas ao trabalho da sociedade civil”. Bolsonaro respondeu cruelmente ao ofender a memória do pai da chilena, um militar assassinado pela ditadura a quem acusou de comunista.

O último relatório anual sobre a qualidade da democracia no mundo do V-dem, um instituto da Universidade de Gotemburgo, coloca o Brasil no top 30% dos mais democráticos, mas alerta sobre sua guinada à autocracia (e a dos EUA, entre outros). O balanço de 2018, antes de Bolsonaro, já apontava uma deterioração desde os anos conturbados do impeachment da esquerdista Dilma Rousseff.

Ainda que o relatório sobre 2019 só fique pronto em alguns meses, o diretor do V-dem, o professor Staffan I. Lindberg, alerta que, baseado em suas observações, o Brasil vive “uma guinada à autocracia das mais rápidas e intensas do mundo nos últimos anos”.

O que mais preocupa esses acadêmicos, diz por telefone da Suécia, são os esforços do presidente e seu Governo para calar os críticos, sejam adversários políticos, juízes que investigam a corrupção, jornalistas, acadêmicos e membros da sociedade civil. “Foi o que fez (Recep Tayyip) Erdogan quando levou a Turquia da democracia à ditadura, o que faz (Viktor) Orban na Hungria, que está prestes a deixar de ser uma democracia, e exatamente o que (Narendra) Modi faz na Índia”, alerta Lindberg.

Os exemplos são inúmeros. Bolsonaro destituiu o diretor do órgão que realiza a medição oficial do desmatamento na Amazônia, pediu um boicote ao jornal Folha de S.Paulo e às empresas anunciantes, sugeriu que o jornalista norte-americano Glenn Greenwald possa ser preso no Brasil por revelações jornalísticas, em um discurso no Chile elogiou Pinochet e no Paraguai, Stroessner. A lista continua e é longa.

O diretor do V-dem afirma que “Bolsonaro é o presidente com menos restrições (das instituições democráticas) desde o final do regime militar” porque quando assumiu a Presidência as instituições — do Congresso à Promotoria Geral da União — já sofriam um enfraquecimento. De fato, desde 2017 o instituto de análise não considera o Brasil uma democracia liberal, e sim uma democracia eleitoral.

A visão da advogada constitucionalista Vera Chemim é menos sombria. Afirma que o presidente “não significa uma ameaça real à democracia ainda que continue atirando no próprio pé” com polêmicas desnecessárias que podem se tornar contraproducentes para seus interesses porque reforçam a esquerda e ofuscam a ação de seu Governo.

Chemim afirma que “o Estado de direito democrático é suficientemente sólido e relativamente maduro para sobreviver a qualquer tentativa de intervenção político-ideológica que possa desconstruir o regime democrático conquistado a duras penas em 1985” e consagrado na Constituição. Diz que o presidente “não afetou as instituições democráticas ainda que tenha de fato agitado a conjuntura política e jurídica quando se expressa e age de maneira impulsiva e explosiva, alimentando ainda mais a profunda polarização ideológica entre as supostas direita e esquerda”.

Bolsonaro faz referências constantes à necessidade de governar para a maioria e eliminar até o último vestígio de seus antecessores esquerdistas, como frisou dias atrás ao mencionar os livros de texto. Abordou o assunto sem ser perguntado por nenhum dos jornalistas que o esperavam diante de sua residência em Brasília, seu local favorito para se comunicar com a imprensa. “A partir de 2021, todos os livros serão nossos, feitos por nós. Os pais irão adorar. Terão a bandeira na capa. Terão o hino. Hoje, como regra, os livros são um monte de coisas escritas, é preciso suavizar (...) Não pode ser como esse lixo que hoje é a regra”.

O especialista sueco alerta sobre dois assuntos: uma vez calados os críticos e a imprensa, os Governos têm o domínio absoluto da informação. E “não são necessárias mudanças legais para que um país se transforme em uma autocracia eleitoral. Veja a Bielorrússia”.