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Afonso Benites: Parlamentares manobram para diminuir área de reserva ambiental em Roraima e Amapá

Deputados inseriram em uma Medida Provisória a permissão para aumentar área de exploração em propriedades rurais nos dois Estados. Ambientalistas temem aumento do desmatamento

Um lobby promovido pelas bancadas de Roraima e do Amapá no Congresso Nacional conseguiu encaminhar para votação uma medida provisória que poderá diminuir nos dois Estados as áreas de preservação obrigatórias, chamadas de reservas legais, nas propriedades rurais. Elas passariam de 80% do terreno para 50%. A alteração, segundo os produtores rurais, é necessária para aumentar a área produtiva. Mas, para ambientalistas e juristas, se implementada ela aumentará o desmatamento na região amazônica, que já vem em uma crescente, e poderá estabelecer um precedente para que outros Estados da Amazônia peçam a diminuição de suas áreas preservadas. O projeto, nomeado MP 901/2019, deve ir à votação na Câmara nas próximas semanas e depois passará pelo Senado.

A alteração da área das reservas legais dos dois Estados foi inserida em um texto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que tinha como objetivo oficializar a doação de terras da União para as duas unidades da federação. Ele não tratava especificamente da redução da área de reserva, apesar de o Governo Bolsonaro ser favorável a esse debate. Essa reserva é o nome técnico da área em que a mata nativa tem de ser preservada nas fazendas e chácaras, instituída pelo Código Florestal de 2012. Na prática, inserir mudanças no Código em uma MP que trata de questão fundiária é considerado uma espécie de contrabando legislativo, o que é chamado nos corredores do Congresso Nacional de jabuti. É colocar um artigo novo em uma proposta que trata de um tema diverso.

O assunto gera um intenso embate entre ambientalistas e ruralistas. De um lado, estão os que dizem que a medida incentivará o desmatamento desenfreado em um período de seguidos registros de alta. No último ano, o desflorestamento na Amazônia cresceu 30%. De outro, estão os que defendem que, sem uma expansão da área a ser utilizada por atividades econômicas, dificilmente os Estados se desenvolverão.

“Uma alteração de forma açodada, via contrabando legislativo, poderia resultar em graves danos não só ambientais, com o crescimento do desmatamento na Amazônia, mas também para a imagem do país e as relações econômicas”, critica o advogado Maurício Guetta, do Instituto Socioambiental (ISA). Presidente da Frente Parlamentar Ambientalista, o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP), diz que tentará evitar que essas emendas prosperem. “Desde o fim dos anos 1990 tentam alterar essa área de reserva legal na Amazônia. É algo recorrente que setores conservadores tentam fazer”.

Já o relator da proposta, o produtor rural e deputado federal Édio Lopes (PL-RR), diz que essas mudanças têm de ser feitas para ajudar na economia local. “Não estamos pedindo o fim do mundo, não estamos pregando o apocalipse, o caos. Estamos pregando o direito constitucional desses Estados sobreviverem economicamente”. Pelos cálculos dos defensores da mudança, as áreas possíveis de exploração rural em Roraima e no Amapá são, respectivamente, de 2% de 10% de sua extensão. Todos criticam a quantidade de terras indígenas e unidades de conservação, que são mais de cinquenta nos dois Estados. “Nós só queremos sobreviver economicamente”, reclamou o senador Mecias de Jesus (Republicanos/RR).

Pela legislação atual é possível reduzir a área de 80% para 50%, desde que haja um zoneamento econômico ecológico de todo o Estado e que 65% do território seja composto por unidades de conservação ambiental ou por terras indígenas. “Temos dificuldades em fazer esse zoneamento porque os índios não deixam”, reclamou o relator Lopes.

Não estamos pregando o apocalipse, o caos. Estamos pregando o direito constitucional desses Estados sobreviverem economicamente
ÉDIO LOPES, DEPUTADO

Uma das falhas apontadas pelos especialistas na nova redação da medida provisória é quando se deixa de tratar de biomas, para se debater a preservação de áreas em determinados Estados. A legislação nacional prevê que no bioma amazônico dois a cada dez hectares de terra podem ser explorados, os outros oito têm de ser preservados. No cerrado a reserva legal é de 35% e nos demais biomas, 20%. “A MP traz o benefício só para dois Estados, de maneira localizada e não pelo bioma, o que poderia gerar uma insegurança jurídica”, pondera o advogado Marcos Tiraboschi, que atua com direito ambiental.

Na visão desse especialista, os outros oito Estados com bioma amazônico podem pedir alterações localizadas também. “De repente, o Mato Grosso vai perguntar, ‘por que eu não posso reduzir minha área de reserva legal?’”, afirma Tiraboschi.

Além de tentarem diminuir as áreas protegidas das fazendas, os parlamentares ainda tentam doar da União para o Estado de Roraima 4.745 hectares de sua Floresta Nacional (Flona), que ao todo tem 169.628 hectares, para a reforma agrária. “Essa é uma mudança para beneficiar garimpeiros. Dizem que vai beneficiar assentamentos, mas é mentira. É um absurdo diminuir uma área protegida”, reclamou o deputado Agostinho. O deputado Lopes negou que haja essa intenção.

Em princípio, havia a previsão de que a MP fosse lida em plenário da Câmara nesta semana. Esse é o primeiro passo para o projeto seguir para a votação. Um grupo de parlamentares pediu ao presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para postergar a data e eles foram atendidos. A previsão é que a leitura ocorra daqui a duas semanas e a votação em seguida.


Carla Jiménez: Nunca um presidente foi tão vulgar com uma mulher. Espere o efeito bumerangue

O ataque de Bolsonaro à repórter Patrícia Campos Mello vai ajudá-lo a definhar a partir de agora num Brasil onde 52% do eleitorado é feminino e que não vai mais voltar atrás em sua luta pelas mulheres

Os covardes machistas podem fingir que não são covardes machistas, mas em algum momento eles se revelam. E não há momento mais oportuno para os atores públicos do Brasil mostrarem que não o são, longe de serem coniventes com a baixaria empreendida pelo presidente Jair Bolsonaro contra a repórter Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, na manhã desta terça-feira. Num país em que 52% do eleitorado é feminino, deputados e senadores deveriam ficar alertas. Eles têm a grande oportunidade de mostrar que não vão deixar a vulgaridade assumir o Brasil, rasgando todo e qualquer senso de decência do Estado em relação a uma mulher, deixando que se propague uma mentira orquestrada dentro do Congresso. Deixem de lado o fato de Patrícia ser jornalista. Ela é mulher. Poderia ser uma economista, uma copeira, uma faxineira, uma jogadora de futebol. Ela foi exposta com insinuações sexuais por um presidente, como nunca o Brasil viu. Ele não está na mesa de bar com amigos, está na frente das televisões dizendo que Patrícia queria “dar um furo a qualquer preço”, sugerindo sexo em troca de informação, o que é o mesmo que chamar uma mulher de prostituta. Só uma cabeça pervertida pode se sentir tão à vontade para dizê-lo em alto e bom som.

Nunca na democracia um chefe de Estado havia caído tão baixo apelando à vulgaridade para falsear a realidade. Quiçá no mundo. Nem Donald Trump chegou a tanto. O Congresso tem as provas à mão para admitir que Hans River do Rio Nascimento mentiu na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI). Parte dessas mentiras a insinuação asquerosa de Bolsonaro, pai de uma filha de 9 anos, que Patrícia faltou com a ética para ter uma informação. De qual referência parte Bolsonaro? Todo mundo sabia do que ele era capaz, desde que ele xingou uma repórter em abril de 2014. Mas editou a si próprio para fazer sua campanha e venceu. Legitimamente.

Desde então, empreende uma guerra grosseira, agressiva e mentirosa contra a realidade para esquivar-se de suas próprias capivarasA morte de Adriano da Nóbrega, que convenientemente morreu nas mãos da polícia da Bahia, governada pelo Partido dos Trabalhadores, foi um presente no colo de Bolsonaro que agora se tornou o maior defensor de presos assassinos, embora repetisse sempre que “direitos humanos era para humanos direitos”, e seja um dos que faz coro ao jargão “bandido bom é bandido morto”. De onde vem essa mudança?

Os homens públicos deste país, empresários e agentes da Justiça vão deixar que o que já se construiu em termos de sociedade vá para o ralo? Em nome de quê? Senhores deputados e senadores, vocês podem ter um papel tremendamente decisivo neste início de 2020. Pelas suas filhas, pelas suas mães, pelas suas eleitoras, pelas suas irmãs. Não desprezem a construção que mulheres têm feito até aqui por um país mais decente e menos violento. A violência das palavras de um chefe de Estado reverbera em todas as esquinas e rincões do Brasil. Já se matam uma mulher a cada duas horas aqui, um estupro acontece a cada 11 minutos. Tenham decência, coragem, de estancar esta sangria desatada que abriu as portas para uma perversidade gratuita. Vocês foram eleitos para que o Brasil fosse um país melhor, mais próspero, mais respeitado, mais ético. Não há melhora onde uma mentira é naturalizada na Casa em que vocês representam cada brasileira. Não há prosperidade num país onde se quer estabelecer o medo como forma de governo. Não há respeito por um país que fecha os olhos e silencia diante dos disparates que estamos assistindo. Isso também é corrupção. Corromper seu papel público em nome do poder.

Bolsonaro se cercou de ministros sem filtro, como Paulo Guedes ou Abraham Weintraub, e nos vemos agora tentando medir quais declarações foram mais ou menos canalhas que outras. O primeiro ano já havia sido execrável e neste 2020 ele dobrou a aposta. Brasil perverso. Estamos perto do dia 8 de março. Isso vai ter impacto. Foi assim que começaram grandes manifestações femininas pelo mundo. O presidente está dando farto material para as campanhas de seus adversários e dos inúmeros inimigos que está fazendo. Sabendo-se que é incorrigível e que está cego pelo poder, vai tropeçar em suas próprias palavras.


Ricardo Westin: O ano em que os militares sequestraram um avião com passageiros para derrubar JK

A tentativa fracassada de golpe contra o presidente, no ano de 1959, durou só dois dias e acabou conhecida como Revolta de Aragarças

Há 60 anos, um avião da Panair que havia decolado do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, rumo a Manaus, com escala em Belém, desapareceu durante a madrugada em pleno voo. A bordo, entre passageiros e tripulantes, viajavam 46 pessoas, incluindo o senador Remy Archer (PSD-MA).

Notícias desencontradas logo começaram a correr. Nas primeiras horas da manhã de 3 de dezembro de 1959, um desnorteado senador Victorino Freire (PSD-MT) subiu à tribuna do Palácio Monroe, a sede do Senado, no Rio, para expor sua aflição: “Preparava-me para sair de casa quando soube que havia desaparecido o Constellation da Panair em que viajavam o senador Remy Archer, meu amigo, e a filha do jornalista Carlos Castello Branco [importante colunista político da época]. Aqui permanecemos numa verdadeira tortura de espera e ansiedade. O Repórter Esso chegou a divulgar que o avião havia caído. A senhora Archer, com três filhinhos pequenos, em pranto, estava certa de que o marido havia morrido. No mesmo desespero se encontrava aqui nesta Casa o jornalista Castello Branco, também meu velho e querido amigo”.

A fala de Freire está catalogada no Arquivo do Senado. De acordo com documentos do mesmo acervo histórico, os senadores Otávio Mangabeira (UDN-BA) e Afonso Arinos (UDN-RJ) interromperam o colega e avisaram que haviam acabado de receber, de mensageiros anônimos, cópias mimeografadas de um manifesto que explicava tudo, assinado por um grupo que se intitulava Comando Revolucionário.

Não se tratava de desastre aéreo. O avião da Panair, na realidade, havia sido sequestrado no ar — o primeiro sequestro de avião da história do Brasil. Estava em curso uma tentativa de golpe de Estado para derrubar o presidente Juscelino Kubitschek, fechar o Congresso Nacional e instaurar uma ditadura militar. O Comando Revolucionário era formado essencialmente por oficiais da Aeronáutica e do Exército.

LUTA DEMOCRÁTICA/BIBLIOTECA NACIONAL

 

A conspiração teve mais duas frentes. Na noite do dia 2 de dezembro, poucas horas antes de o piloto da Painair ser rendido quando atravessava a Bahia, outro grupo roubou da Base Aérea do Galeão, no Rio, três aviões da Aeronáutica repletos de armas e explosivos, e um terceiro grupo levou do Aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte, um teco-teco pertencente a uma empresa privada também carregado de armamento.

De posse dos cinco aviões, os rebeldes voaram para Aragarças, uma cidadezinha dos confins de Goiás, na divisa com Mato Grosso, assim chamada por localizar-se na confluência dos Rios Araguaia e das Garças. Aragarças seria o quartel-general da revolta. O plano mais imediato era bombardear o Palácio do Catete e matar JK. O movimento, que duraria só dois dias e acabaria fracassando, ficou conhecido como Revolta de Aragarças.

 

“Proclamo meu desacordo com essas situações violentas. Sejam quais forem as falhas do Governo, por mais graves e angustiosos que sejam os problemas brasileiros, não será à custa de movimentos de indisciplina, subversivos, revolucionários, que iremos ao encontro das legítimas aspirações do povo. Somente dentro da lei removeremos as dificuldades”, discursou o senador Lameira Bittencourt (PSD-PA), líder do Governo no Senado.

“Quero deixar patente a reprovação da bancada udenista a qualquer movimento subversivo. A nação precisa de paz e ordem para prosseguir no exercício da sua vida democrática. Qualquer perturbação trará profundos prejuízos não à política ou aos partidos, mas à pátria brasileira”, concordou o senador João Villasbôas (UDN-MT), líder da oposição ao Governo.

A aliança partidária PSD-PTB governava o Brasil desde 1946. Setores das Forças Armadas estavam insatisfeitos com a hegemonia ininterrupta do getulismo e do trabalhismo e ansiavam por ver no poder a UDN, partido oposicionista que havia perdido as três eleições presidenciais posteriores à ditadura do Estado Novo. Esses militares já haviam planejado golpes para destronar a dobradinha PSD-PTB em 1954, 1955 e 1956, nas três vezes sem sucesso.

Em dezembro de 1959, o estopim da Revolta de Aragarças foi a repentina decisão de Jânio Quadros, o presidenciável apoiado pela UDN, de renunciar à candidatura. A eleição estava marcada para outubro de 1960. Os militares que se aferravam a Jânio e à UDN entenderam que a desistência permitiria a JK eleger seu sucessor e perpetuar a chapa PSD-PTB no controle do Brasil.

Rebeldes eram contrários a JK e João Goulart e favoráveis ao candidato Jânio Quadros (reproduções)
Rebeldes eram contrários a JK e João Goulart e favoráveis ao candidato Jânio Quadros (reproduções)
AGÊNCIA SENADO

 

Antes da renúncia de Jânio, o autointitulado Comando Revolucionário já estava em alerta por causa de dois boatos fortes. O primeiro dava conta que JK negociava uma emenda constitucional que lhe permitiria a reeleição. O segundo boato dizia que o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, expoente do PTB, orquestrava um golpe para barrar a provável vitória de Jânio e da UDN e instaurar uma ditadura sindicalista no país. “Não tenhamos dúvida de que a revolução, a revolta, o motim ou golpe frustrado de Aragarças foi muito fruto da decepção causada pela retirada da campanha do senhor Jânio Quadros”, afirmou o senador Afonso Arinos.

O manifesto divulgado pelo Comando Revolucionário descrevia o Poder Executivo como corrupto, o Legislativo como demagógico e o Judiciário como omisso. E citava o risco de o Brasil cair nas garras do comunismo: “Em face desse estado de degeneração e deterioração, os adeptos do comunismo infiltrados nos mais variados setores, dentro e fora da administração pública, procuram tirar o máximo benefício da situação de miséria e de fome das populações para implantar o seu regime de escravidão do ser humano”.

A Revolta de Aragarças falhou porque os insurgentes não conseguiram o apoio imaginado. Eles esperavam que levas de militares de todos os cantos do Brasil se somariam ao movimento assim que o manifesto fosse divulgado. Entretanto, soldado nenhum saiu dos quartéis. Também contavam com a adesão de políticos da UDN. Os udenistas, contudo, calcularam que uma revolta militar nesse momento daria motivo para JK decretar estado de sítio, cancelar a eleição de 1960 e, aí sim, apossar-se de vez da cadeira presidencial.

No fim, Aragarças envolveu cerca de 15 rebeldes apenas, incluindo três civis. Dado esse pífio contingente, as forças militares do Governo sufocaram a insurreição rapidamente, já no dia seguinte ao sequestro do voo da Panair. Não houve mortes. Um dos aviões militares roubados foi metralhado na pista de pouso de Aragarças e pegou fogo. Os revoltosos que estavam a bordo se renderam e foram presos. Os demais usaram os outros aviões para fugir para a Bolívia, o Paraguai e a Argentina. Os reféns do avião da Panair, inclusive o senador Remy Archer, foram libertados em Buenos Aires, sãos e salvos.

Avião de rebeldes pega fogo em Aragarças
Avião de rebeldes pega fogo em Aragarças
CAMPANELLA NETO/DIÁRIO DE NOTÍCIAS

 

Apesar de o líder da UDN no Senado ter repudiado a Revolta de Aragarças, houve senadores do partido que não endossaram a condenação e, em vez disso, aplaudiram os insurretos. O senador Otávio Mangabeira afirmou que concordava plenamente com o diagnóstico da situação nacional descrito no manifesto do Comando Revolucionário: “Confesso que amo as rebeldias legítimas. O que eu detesto são as acomodações exageradas. A nação que se habitua a acomodar-se a tudo é uma nação que se educa na escola da fraqueza. No dia em que for chamada a defender a pátria, não estará moralmente habilitada a fazê-lo. Apesar de divergir deles no ponto em que pedem a demolição da estrutura constitucional e a implantação da ditadura militar, trago minha palavra de compreensão para aqueles jovens militares levados pelo arroubo de seu temperamento e pelo fogo natural de sua idade.”

O senador Afonso Arinos comparou Aragarças com a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, ocorrida em 1922: “Fui testemunha pessoal. Eu era adolescente e morava ao lado do Forte de Copacabana. Assisti na noite de 4 para 5 de julho àquele pugilo de jovens passar de réprobos [malvados] de uma repressão brutal à condição de heróis impolutos de uma geração. Não podemos agora saber se Aragarças se trata de uma Copacabana aérea. É melhor não tomarmos aqui uma atitude de condenação de que depois venhamos a nos arrepender."

Mangabeira gostou da comparação histórica e citou personagens inicialmente tidos como vilões e depois transformados em heróis: “Por que esquartejaram Tiradentes? E quem é Tiradentes hoje? Que fez Deodoro a 15 de novembro de 1889? Onde está ele agora? Que fez Getúlio Vargas a 3 de outubro de 1930? Ninguém, tampouco eu, tem autoridade para condenar golpistas só pelo fato de serem golpistas".

O senador Daniel Krieger (UDN-RS) acrescentou: “Sentir-me-ia diminuído perante mim próprio se assistisse calado tachar-se de covardes aqueles que, ainda que erradamente, dão exemplo de coragem e desprendimento a este país”.

Jornal noticia em 1959 o fim da Revolta de Aragarças, incluindo a libertação do senador Remy Archer
Jornal noticia em 1959 o fim da Revolta de Aragarças, incluindo a libertação do senador Remy Archer
ÚLTIMA HORA/BIBLIOTECA NACIONAL

 

A Revolta de Aragarças foi uma reedição de outro movimento militar bastante parecido, inclusive com o uso de aviões militares, que havia ocorrido em fevereiro de 1956, apenas duas semanas após a posse de JK: a Revolta de Jacareacanga, no sul do Pará. Em 1959, os senadores não puderam deixar de fazer comparações. Eles mencionaram o major-aviador Haroldo Veloso, que havia sido líder revoltoso de Jacareacanga e, após ser anistiado pelo presidente, voltou à cena em Aragarças.

“Da primeira loucura, a de Jacareacanga, disse eu [em 1956] nesta Casa e ao senhor presidente da República que o sistema de se conceder anistia a criminosos políticos antes de a Justiça se pronunciar era muito perigoso. Anistiados, foram endeusados, voltaram à Aeronáutica e foram promovidos! Agora fazem esse segundo movimento. Estamos verificando quão acertado eu estava”, criticou o senador Caiado de Castro (PTB-DF).

“Atos de sedição devem ser punidos com rigor. Se não o forem, ensejam a repetição a que agora assistimos”, concordou o senador Lima Teixeira (PTB-BA). “Fique a advertência para que não se deixe passar em branca nuvem um episódio que poderá ser mais grave da terceira vez. Que a punição se concretize, a fim de que o povo se tranquilize e confie na autoridade do chefe da nação”.

JK seguiu os conselhos. Ao contrário do que fizera em 1956, o presidente não concedeu anistia aos golpistas em 1959.

De acordo com o jornalista Wagner William, autor da biografia O Soldado Absoluto (Editora Record), sobre o marechal Henrique Lott, o ministro da Guerra que sufocou Aragarças, o presidente JK enxergou a malograda revolta como sinal de que o clima político se tornaria explosivo e o país ficaria ingovernável caso a sua adversária UDN não chegasse logo ao poder.

“Foi pensando dessa forma que Juscelino lançou Lott como o candidato presidencial do PSD na eleição de 1960. Ele sabia que o marechal não tinha chance de vencer. A estratégia de Juscelino era que a UDN o sucederia, mas, por causa da crise econômica do país, governaria com muita dificuldade e se desgastaria. Numa frente, Juscelino aplacaria o desejo de poder da UDN. Em outra, ele próprio se apresentaria na eleição de 1965 como o candidato da salvação nacional”, explica William.

Poucos dias depois de Aragarças, Jânio Quadros anunciou que era de novo candidato presidencial ― “Jânio renuncia à renúncia”, noticiou um jornal. Ele venceu a disputa eleitoral de 1960, marcando enfim a chegada da UDN ao poder e esfriando os ânimos conspiratórios das Forças Armadas. Mas a paz não duraria. A famigerada renúncia de Jânio à Presidência da República, em agosto de 1961, e a tumultuada posse do vice João Goulart, no mês seguinte, despertariam os golpistas. A resposta deles viria em 1º de abril de 1964. Dessa vez, não falhariam.

AGÊNCIA SENADO

A reportagem, publicada originalmente aqui, faz parte da seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre o Jornal do Senado, a Agência Senado e o Arquivo do Senado brasileiro. Reportagem e edição: Ricardo Westin | Pesquisa histórica: Arquivo do Senado | Edição de fotografia: Pillar Pedreira | Infográfico e vídeo: Diego Jimenez


El País: Com dificuldade para atrair médicos, Governo Bolsonaro prepara a readmissão de cubanos

Edital será lançado ainda em fevereiro e poderá contratar 1.800 profissionais de Cuba sem Revalida, a prova que valida no Brasil os diplomas obtidos no exterior

Os médicos cubanos que atuavam no programa Mais Médicos e decidiram permanecer no Brasil mesmo depois que Cuba rompeu o acordo de cooperação com o país, em novembro de 2018, deverão ser reincorporados na atenção básica a partir das próximas semanas. O Governo Bolsonaro prepara um edital, que será lançado ainda em fevereiro, que prevê a readmissão de 1.800 profissionais com contrato de permanência de dois anos. Eles não precisarão ter feito o Revalida —exame que permite a validação no Brasil de diplomas obtidos no exterior. Atualmente, segundo dados do Ministério da Saúde, existem 757 vagas de médicos ociosas por conta da constante desistência de substitutos nos municípios mais vulneráveis. Assim como pretendia o Mais Médicos da petista Dilma Rousseff, o plano é que os cubanos preencham essas vagas e reforcem a rede de atenção básica nas cidades de extrema pobreza e de difícil acesso, que historicamente têm mais dificuldades para fixar médicos.

A atuação dos cubanos na atenção básica foi um tema controverso do programa federal petista e alvo de críticas do presidente Jair Bolsonaro desde que ele exercia mandato na Câmara dos Deputados. Bolsonaro questionava a capacidade desses profissionais, que tinham permissão para exercer a medicina exclusivamente Mais Médicos sem a validação de seus diplomas. "Vamos expulsar com o Revalida os cubanos do Brasil”, declarou o presidente em entrevista dada no aeroporto de Presidente Prudente (SP) durante a campanha presidencial. Bolsonaro afirmava ainda que esses profissionais estavam no Brasil para “formar núcleos de guerrilha” e comparava o modelo de contratação deles no país à “escravidão”. Os médicos cubanos atuavam no país por meio de um convênio com Cuba intermediado pela Organização Pan Americana da Saúde (OPAS), em que 70% da remuneração desses profissionais ia para o Governo da ilha e o restante ficava com os profissionais. Cuba mantém acordo semelhante com outros países, o que lhe rende 42 bilhões de reais por ano.

Com a reincorporação, os médicos cubanos deverão receber agora a bolsa integral do programa, que é de cerca de 12.000 reais. E, assim como na época em que foram desligados, continuarão sem a exigência de validação do diploma. O secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Erno Harzheim, explica que o certame a ser lançado nos próximos dias terá um novo formato, já que se trata de um chamamento público e não propriamente um edital. Será direcionado especificamente aos profissionais cubanos que estavam atuando na atenção básica pelo Mais Médicos no dia 13 de novembro de 2018 (quando Cuba anunciou a saída do programa após críticas do recém-eleito Bolsonaro). Outra exigência é que eles tenham permanecido no país até o dia primeiro de agosto de 2019, na condição de naturalizado, residente ou com pedido de refúgio. Essa data é referência porque é a data da Medida Provisória que criou o novo programa do Governo, Médicos para o Brasil.

“Não tem edital de concorrência. Todos os 1.800 médicos cubanos que atendem a esses critérios serão chamados”, diz Harzheim. O número de contratados dependerá da apresentação voluntária desses profissionais. Desde o fim da cooperação com Cuba, há um ano e três meses, centenas de médicos cubanos esperam um aceno de Bolsonaro para voltarem a exercer a profissão no país. Sem a realização do Revalida (a prova que valida o diploma e permite o exercício da medicina no país) desde 2017, eles vinham trabalhando em serviços gerais, que iam de terapias alternativas a vigia de posto de saúde. A luta para voltar ao programa esbarrava na resistência da classe médica, com forte influência na reformulação do programa de provimento de profissionais nesta gestão. O Conselho Federal de Medicina historicamente reivindica a exigência do Revalida e a oferta de vagas exclusivamente para os profissionais com CRM.

O Governo Bolsonaro tem feito uma migração gradual do antigo Mais Médicos para uma nova concepção do programa no Médicos para o Brasil, agora focado especificamente nas cidades mais vulneráveis. Com isso, os vários editais que têm sido lançados ao longo do último ano têm excluído os municípios maiores, capitais e regiões metropolitanas. Para repor as vagas deixadas pela decisão de Cuba de encerrar o convênio, o Governo abriu inicialmente editais exclusivamente voltados para médicos brasileiros. Como as vagas não foram completamente preenchidas, foram abertas convocatórias para médicos brasileiros formatos no exterior que também não haviam conseguido revalidar o diploma no país. As vagas não foram ofertadas aos profissionais estrangeiros, centro das críticas ao programa Mais Médicos. Agora, com pelo menos 757 vagas ainda ociosas somente nas cidades mais vulneráveis, o Governo decidiu reincorporar os médicos cubanos.


El País: Maduro acusa Bolsonaro e pede mediação de “países amigos” para conflito com os EUA

O líder chavista acusou o presidente brasileiro de querer provocar um “conflito armado” contra a Venezuela

Nicolás Maduro revelou ontem que pediu que a Espanha e “outros países amigos” criem um grupo de apoio para facilitar o diálogo diante das eleições parlamentares deste ano na Venezuela e que ajudem o regime em sua ofensiva contra as sanções dos EUA. “Oxalá o presidente argentino Alberto Fernández nos ajude com isso. Também fizemos saber à Espanha, ao Panamá, ao México e à União Europeia” que foi iniciada uma ofensiva internacional no Tribunal Penal Internacional, onde nesta semana o ministro das Relações Exteriores Jorge Arreaza interpôs uma ação contra o presidente Donald Trump pelas sanções contra a Venezuela, que qualificou como um “chamamento à guerra” por parte dos Estados Unidos. Maduro agora recorre a Haia, onde desde 2019 repousa uma ação interposta por seis países (Argentina, Chile, Peru, Colômbia, Canadá e Paraguai) contra ele, acusando-o de crimes contra a humanidade durante a violenta repressão às jornadas de protesto de 2014 e 2017, disse o líder chavista, que aproveitou para qualificar o conteúdo da conversa entre a número dois do regime, Delcy Rodríguez, e o ministro dos Transportes da Espanha, José Luis Ábalos, de “secreto”.

Em uma entrevista coletiva realizada no palácio de Miraflores, em Caracas, o líder chavista disse que entre esses “países amigos” estariam Argentina, México, Panamá, Rússia e também a União Europeia. O líder bolivariano ressaltou a importância de que esse diálogo, para o qual disse contar com a disposição do presidente argentino, aconteça antes das eleições legislativas para conseguir um Conselho Nacional Eleitoral (CNE) “de consenso”. A oposição rejeita a atual composição do órgão eleitoral dominado por chavistas e estão fora do diálogo novas eleições presidenciais que resolvam a crise institucional que o país enfrenta desde que Maduro tomou posse em seu segundo mandato, em 2019, depois de eleições consideradas fraudulentas. “Na Venezuela acontece uma das guerras mais importantes do século XXI e por isso divulgamos a verdade sobre o nosso país para exigir justiça ao mundo inteiro. Quando conseguimos um lote importante de medicamentos em algum país e estamos prontos para trazê-lo, chega uma ordem, retiram a carga e o paciente que está na Venezuela fica sem seu medicamento”, afirmou.

Esta seria a quarta rota de conversações e mediação que se abriria no último ano, depois do fracasso das reuniões do Grupo Internacional de Contato às quais se uniu o Grupo de Lima para promover uma transição política na Venezuela, da suspensão das negociações de Oslo e Barbados e da Mesa de Diálogo Nacional, à qual se juntou recentemente o ex-presidente do Governo (primeiro-ministro) espanhol José Luis Rodríguez Zapatero, que em 2016, 2017 e 2018 também liderou tentativas de diálogo.

Maduro considerou também que “esse processo de diálogo deveria conhecer todas as ações perante o Tribunal Penal Internacional (TPI) para exigir a cessação de todas as medidas coercitivas contra a Venezuela por parte do Governo dos Estados Unidos”. Maduro referiu-se à denúncia apresentada quinta-feira por seu ministro das Relações Exteriores, Jorge Arreaza, perante o TPI pelos supostos crimes contra a humanidade propiciados pelas sanções dos Estados Unidos contra a Venezuela. “Oxalá esse grupo de países amigos diga a ele e faça com que entenda e defenda perante o Governo dos Estados Unidos o direito da Venezuela ao seu desenvolvimento econômico sem medidas persecutórias, coercitivas e criminais”, sugeriu.

Durante a coletiva Maduro também abriu fogo contra o Brasil. “[O presidente] Jair Bolsonaro está por trás das ameaças terroristas contra a Venezuela e os está arrastando a um conflito armado com a Venezuela por amparar terroristas”, disse em referência aos militares venezuelanos que se asilaram no país vizinho depois de um ataque a um depósito de armas no sul da Venezuela. Lembrou que este fim de semana realiza um novo exercício militar com mais de dois milhões de soldados e milicianos para o qual a artilharia foi mobilizada. Mísseis russos BUK foram expostos na base militar de La Carlota, em Caracas.

O líder chavista disse também que na Espanha há uma campanha contra a Venezuela, mas que as pesquisas realizadas no país atestam que a maioria o considera presidente constitucional. Às perguntas de um correspondente e na presença de sua número dois, a vice-presidenta Delcy Rodríguez, Maduro se referiu pela primeira vez ao incidente no Aeroporto de Barajas, em 24 de janeiro, em torno do encontro entre Rodríguez e o ministro dos Transportes da Espanha, José Luis Ábalos, que provocou uma tempestade no panorama político espanhol. A vice-presidenta venezuelana está proibida de entrar no território Schengen devido às sanções impostas pela União Europeia.

Maduro brincou, entre risos da própria Rodríguez e de outros ministros, sobre o conteúdo da conversa e disse que inventaram uma novela. “Na Espanha fizeram uma novela, a Delcygate. Isso é secreto. Ela terá de contar”, disse. “Delcy passou pelo aeroporto da Espanha e seguiu seu rumo. Deixou lá nosso ministro do Turismo [Félix Plasencia], que cumprimentou o Rei, empresários e ministros espanhóis. Mas a direita espanhola queria prendê-la e humilhá-la. Delcy morou seis anos em Londres e cinco em Paris, é quase europeia, fala bem inglês e francês. Os amigos dela são europeus. Parem de perseguir a Venezuela.”

Ábalos teve que dar explicações sobre sua reunião no Aeroporto de Barajas nesta quarta-feira no Congresso, na sessão de controle do Executivo. Quando a reunião foi revelada, o ministro dos Transportes negou que tivesse acontecido. Depois mudou sua versão e reconheceu que houve “uma saudação que durou entre 20 e 25 minutos”. Um relatório policial ao qual o EL PAÍS teve acesso confirmou que Rodríguez não entrou em território europeu, mas detalhou que a reunião durou “aproximadamente uma hora”.

O líder chavista reiterou sua disposição de realizar eleições parlamentares, que por mandato constitucional devem acontecer até o fim deste ano. Disse estar disposto a dar algumas garantias, como a eleição de um novo Conselho Nacional Eleitoral, que deixaria a cargo da atual Assembleia Nacional, mas aquela dirigida pela junta paralela de Luis Parra, a que Maduro reconhece.

Por outro lado, voltou a lançar ameaças de prisão contra o presidente encarregado reconhecido por 60 países e chefe do Parlamento, que voltou a desafiar as proibições de saída do país impostas pela Justiça venezuelana para fazer uma turnê internacional. “No dia em que os tribunais expedirem o mandato de prender Juan Guaidó por todos os crimes que cometeu, ele será detido. Esse dia ainda não chegou, mas chegará.”

Por último, e em referência ao retorno do presidente encarregado Juan Guaidó à Venezuela depois de sua turnê internacional, Maduro disse que estão sendo avaliadas as medidas que serão tomadas contra membros do corpo diplomático credenciado no país, que voltaram a acompanhar o líder da oposição em seu retorno ao país “O embaixador da França [Romain Nadal] se imiscuiu mais uma vez em assuntos internos. Estamos avaliando a resposta e vamos avaliar os casos um por um e veremos se nossa resposta é que nossos embaixadores convoquem mobilizações em oposição aos Governos desses países, se transformarmos em um caos em relações diplomáticas e políticas no mundo ou que respeitem” advertiu.


El País: 'Congresso não consegue conter todo o avanço autoritário do Governo Bolsonaro', diz Claudio Ferraz

Economista avalia que Governo enfraquece democracia no Brasil e diz que principal falha da equipe de Paulo Guedes é ignorar o debate sobre desigualdade no país

O Brasil voa hoje às cegas com o Governo de Jair Bolsonaro, em que vigoram políticas públicas baseadas em achismos, contrárias à ciência e à evidência empírica. A cada ataque diário à imprensa, às minorias ou a cada recusa a prestação de contas e manipulação de dados, a atual gestão vai minando a democracia. A avaliação é do economista brasileiro Claudio Ferraz, professor da Universidade de British Columbia, em Vancouver no Canadá. Ferraz, que também é professor da PUC-Rio e especialista em medir o impacto da implementação de medidas e programas, diz que, em sua visão, nem o contrapeso do Congresso é capaz de conter todo o avanço autoritário imposto pelo Planalto. “Não acho que estamos em um momento em que você possa acordar e achar que a democracia não sofre perigo nem probabilidade sofrer algo mais drástico”, pontua.

Morando há mais de seis meses fora do país e sem data para voltar, o professor acredita que a visão atual do exterior é que o Brasil hoje é governado por um presidente autoritário com políticas esdrúxulas, o que afugenta os investidores estrangeiros em um momento em que a economia brasileira caminha para sua recuperação em passos lentos. O economista, que se declara como de centro-esquerda, acredita que parte do discurso da equipe econômica vai na direção correta, mas critica a falta de uma discussão sobre desigualdade na pasta comandada pelo Paulo Guedes, que nesta semana chocou mais uma vez o país com suas declarações sobre empregadas domésticas e consumo.

Pergunta. Muito se discute se o Governo de Jair Bolsonaro representa hoje um risco para a democracia brasileira. Qual a sua avaliação?

Resposta. A dificuldade de conversar sobre risco à democracia é conseguir medir o que significa exatamente esse risco. Se levarmos em conta as perguntas que cientistas políticos usam para medir índices de democracia —se há eleições livres, se há liberdade de imprensa, de formar partidos etc.—, o Brasil não está em risco. Mas é uma forma de ver muito ruim e tosca, porque mesmo se você olhar para países onde claramente a democracia já está ameaçada e tem sido deturpada constantemente, como Hungria e Turquia, percebemos que esses índices não capturam esses fenômenos. Muitos analistas e acadêmicos estão chegando à conclusão que, desde que Donald Trump e outros populistas de direita chegaram ao poder ao redor do mundo, a democracia já não se rompe como antes, com um grande golpe de Estado em que chegam militares ao poder ou algum outro grupo. A democracia vai se enfraquecendo devagar, com pequenos desvios, usurpação de poder, com quebras institucionais, que, muitas vezes, você não consegue nem perceber. Em um ano de poder de Bolsonaro há vários quesitos em que isso está acontecendo. Desde ataques contínuos à imprensa, manipulação para quem se dá a informação, negação de prestação de contas, manipulação de quem vai estar à frente da Polícia Federal. Podemos ver ataques a grupos minoritários feitos diretamente pelo presidente e por vários ministros do Governo, sejam ataques diretos ou indiretos que têm efeitos nas políticas públicas. Todos são exemplos de ataques à democracia diários.

P. Mas todos eles representam um perigo real à democracia brasileira ou ela é forte o suficiente para aguentar?

R. As opiniões diferem. Algumas pessoas interpretam, por exemplo, algumas falas do Rodrigo Maia e o papel que o Congresso tem tido em contrabalancear algumas das loucuras do presidente e dos ministros como um sinal de que a democracia está funcionando. Ou seja, que hoje temos uma separação de poderes de forma que o Legislativo consegue conter alguns avanços do Executivo contra a democracia. A minha percepção é que isso funciona em algumas dimensões, principalmente nas políticas grandes, que geram grandes impactos. Mas existem mais políticas e medidas adotadas diariamente que não passam pelo Congresso. Funciona em parte, não controla todo o avanço autoritário. Observar o que está acontecendo agora também não quer dizer que, eventualmente, em algum momento essa corda não vá se romper de uma forma ou outra. Acho que foi o [cientista político] Cláudio Couto que usou essa analogia de você descer a serra de carro e ir freando até que em um dado ponto o freio já não funciona. Acho que o grande perigo é que tudo que aconteceu até agora foi em apenas um ano. São quatro de Governo. Até quando a democracia brasileira sustenta esses constantes puxões? Eu não acho que estamos em um momento que você possa acordar e achar que está tudo ótimo e que a democracia não sofre perigo nem probabilidade sofrer algo mais drástico.

P. Você estuda bastante sobre os impactos de políticas públicas. Uma das que gerou bastante crítica recentemente foi a campanha da ministra Damares Alves que incentiva abstinência sexual para a prevenir a gravidez na adolescência. Quais os efeitos práticos de uma medida como essa?

R. Há algo muito ruim nesse Governo, que é uma visão do mundo onde ciência e evidência empírica não são importantes para a tomada de decisões de políticas públicas. Não estou falando só da Damares. É algo mais amplo, que passa pelo Ministério da Educação, pela forma de combate ao crime, pela posição sobre a Amazônia e a mudança climática, o papel de radares de velocidade de reduzir mortes no trânsito. As políticas públicas deste Governo, com muitas raras exceções, como as do Ministério da Economia, são uma falta completa de diagnóstico de problemas, de estudos do que pode ser feito olhando para outras experiências exitosas, tanto realizadas em municípios e Estados brasileiros como em outros países. No final, há uma falta completa de avaliação para essas políticas públicas. No momento em que você não acredita em ciência e números verdadeiros, não tem porque avaliar uma política pública. O grande perigo é você voar num avião cego, sem nenhum mapa sobre o que fazer. Vira uma política pública de achismos. E o mais grave é que é um Governo conservador, com uma grande influência de ideias religiosas. Em várias dimensões que pode vir desde “a gente não deve ter educação sexual dentro de escola" ou abstinência ou como pensar em Amazônia. A grande gravidade em termos de políticas públicas é essa visão totalmente ideológica em relação ao que fazer.

P. Você elogiou o Ministério da Economia. Acredita que a equipe de Paulo Guedes está na direção correta, apesar da verborragia do ministro?

R. Não sei se correta. Tanta proposta já foi feita e tão pouca coisa implementada no sentido do que se fala e do que se fez. A minha visão de fora é que existem duas coisas, o que acho que o ministro e o Ministério da Economia querem fazer e, por outro lado, o que muita gente já imaginava que ia acontecer, que o presidente não tem muito de liberal. Se você olhar o histórico como deputado e mesmo diversas falas ao longo da história, ele está muito longe de liberal. Acho que esse conflito entre favores para grupos específicos da sociedade vis à vis liberalismo vai estar intrínseco no Governo durante o tempo que existir um ministro como o Guedes e um presidente como o Bolsonaro. No final, vai ser um equilíbrio político, um toma lá, dá cá. Alguma concessão de um lado em troca de outras políticas de outro lado. Eu acho que em termos de algumas ideias e políticas do Ministério da Economia a visão é acertada.

P. Quais?

R. Por exemplo, o aumento de concorrência, no sentido da necessidade de liberalização comercial no Brasil. Hoje o país é um dos mais fechados do mundo. A necessidade de aumento da produtividade na economia, de reduzir má alocação de recurso, de simplificação tributária. Todas essas propostas vão eventualmente na direção correta.

P. A recuperação econômica em curso é a mais lenta da história e oferece um paradoxo. Fatores muito positivos são insuficientes para estimular o crescimento. A inflação e os juros estão baixos, a nova Previdência foi aprovada no ano passado. O desemprego ainda segue alto. Quais políticas faltam para reativar a economia?

R. É complicado. As políticas de criação de emprego muitas vezes no curto prazo podem ser inimigas das políticas de geração de crescimento e desenvolvimento no longo prazo. A desoneração é um exemplo disso. A gente sabe que no Governo de Dilma Rousseff foi tentado, mas não deu certo e continua no menu. Porque existe uma percepção de que se você reduzir a carga tributária de empresas específicas e incentivar a contratar mão de obra, vão contratar gente. No longo prazo, o que a gente precisa são de políticas que aumentem a produtividade da economia brasileira. Nenhum país cresce no longo prazo de forma sustentável sem aumento da produtividade. Uma política que aumente emprego no curto é a melhor para o país crescer no médio. E é onde essa pressão populista de entregar resultado no curto pode ser complicada. Você pode pensar a mesma coisa sobre a discussão de liberalização comercial, ela é complexa. Apesar dos economistas gostarem dessa ideia como um choque na economia pelo aumento da concorrência, por outro lado há evidências bastante concretas que aberturas de mercado criam desempregos em algumas áreas e quebram empresas. Ela pode, inclusive, no curto prazo, aumentar a desigualdade. Então políticas boas no longo prazo têm um custo de transição no curto. Em um momento em que você possui uma alta taxa de desemprego e está saindo lentamente da crise, os incentivos e as pressões políticas para não adotarem algumas dessas políticas é ainda mais forte. Acho que o que falta na verdade na equipe econômica é uma discussão de que a desigualdade importa. Falta comunicação entre Ministério da Economia e da Educação, de proteção social. A princípio você gostaria de ter um Governo em que essas coisas caminhassem juntas.

P. Acredita que desigualdade no país também emperra o crescimento?

R. Essas coisas estão ligadas, porque parte da desigualdade brasileira —e existe um mea culpa a ser feito pelo Governo do PT— é que a política industrial implementada no Brasil desde a crise de 2008 favoreceu grandes empresas. Grandes grupos, campeões nacionais se beneficiaram de forma desproporcional comparado a pequenas e micro empresas que poderiam ter ativado a dinâmica econômica e gerar redistribuições. Apesar das pessoas falaram que a JBS, por exemplo, cria milhares de empregos, proporcionalmente o custo para o Governo da política industrial e de crédito do BNDES para criar esses empregos é altíssimo e ineficiente. Não faz o menor sentido. E outro lado que é uma das grandes causas de desigualdade no Brasil e que, eventualmente, também gera grandes ineficiências é o setor público com alguns salários exorbitantes, como no caso do Judiciário. Mas não é só o Judiciário.

P. O próprio Banco Mundial mostrou em estudo que hoje muitos dos salários públicos não são compatíveis com o da iniciativa privada...

R. Com certeza. Mas o grande perigo é que também não podemos ir para o outro lado. Existe uma grande correlação entre a qualidade da burocracia, a qualidade de implementação de políticas e o desenvolvimento e crescimento econômico. Esse Governo, depois de um ano, é um estudo de caso de diversos ministérios. Não estou só falando da catástrofe do Enem, mas existem vários exemplos que ter gente ruim no Governo tem impacto direto e custosíssimo para a implementação de políticas públicas. Então não adianta dizer que vai cortar salário de todo mundo do Governo. Não é só cortar salário. É gerar responsabilização, criar incentivo dentro do Governo para as pessoas trabalharem, melhorar salário baseado em produtividade e mérito. Mas mais uma vez se entra em choque. Há o que o ministério quer, com proposta de reforma administrativa, mas que politicamente é muito custosa.

Não é só cortar salário. É gerar responsabilização, criar incentivo dentro do Governo para as pessoas trabalharem, melhorar salário baseado em produtividade e mérito

P. O investimento público baixo é inevitável dado o momento crítico das contas públicas?

R. Eu acho que não tem como fugir. Investimento baixo é uma consequência do momento, mas mesmo dentro do investimento público existem escolhas que sempre são feitas. Há como escolher na margem onde colocar o dinheiro. Você ter na cabeça que há restrição orçamentária é importante também, não dá para fingir que ela não existe. Existe uma discussão eterna sobre quanto o investimento público faz a economia girar ou não. Se está investindo pouco ou se você deveria estar investindo mais para gerar emprego, que é uma discussão controversa. Dentro dos gastos públicos existem escolhas e ela deveria ser feita com base em onde na margem seu dinheiro dá mais retorno em termos de política pública. Em vários ministérios, essa escolha não está sendo feita dessa forma.

A polarização dá uma carta branca pra quem está no poder e ela acaba fazendo coisas que em outras circunstâncias não seriam admitidas.

P. Estamos mergulhados em uma polarização gigante no Brasil. O quanto isso afeta o momento político econômico?

R. Acho que afeta muito, é péssimo. A polarização faz com que você se permita fechar os olhos e passar o pano sobre absurdos que acontecem porque caso contrário o outro time chegaria ao poder. Os republicanos passam pano sobre os absurdos do Trump porque senão corre o perigo de chegar um comunista como Bernie Sanders ao poder. A mesma coisa no Brasil. Muitas pessoas que não se consideram bolsonaristas de carteirinha, mas ignoram os absurdos do presidente em relação gênero, LGBTs, indígenas e o que for, porque, caso contrário, Lula, o grande corrupto, irá voltar ao poder e o que será de nós? A polarização dá uma carta branca pra quem está no poder e ela acaba fazendo coisas que em outras circunstâncias não seriam admitidas. E, de certa forma, ela tem um efeito forte na economia, porque gera muito incerteza. O mundo polarizado é um mundo em que quem está no poder importa muito. As políticas variam muito. Se o Trump ganhar ou perder tem um efeito enorme nas políticas públicas e na economia dos EUA.

P. No caso do Brasil é um ingrediente a mais para esse momento de lenta recuperação?

R. Acho que sim. Não sei se a polarização em si, mas certamente essas atitudes autoritárias do Governo elas afugentam investidores estrangeiros. Em geral, as pessoas sentem medo das loucuras do Bolsonaro. Isso afeta a percepção de estrangeiros. Se ele é louco em diversas coisas, como vou saber que amanhã ele não fará algo que irá me afetar. A visão internacional hoje é que o Brasil tem um presidente autoritário com políticas esdrúxulas em relação a várias áreas: educação, passando por meio ambiente e Amazônia, até cultura, minorias.

P. Você defende mais as análises dos dados micro para responder às grande questões da macroeconomia brasileira. O que o país ou os economistas deveriam estar discutindo?

R. Infelizmente, essa revolução da macroeconomia aqui fora de usar dados micros para responder questões macros ainda não chegou no Brasil. São poucos os acadêmicos que usam microdados de empresas de empregos etc. para responder perguntas. Acho que há muitos questionamentos em aberto, desde impacto de políticas implementadas até perguntas como por que o país está demorando tanto para sair da crise. Para isso seria preciso aprofundar em microdados do IBGE de empresas. Quais são as companhias que sobreviveram tanto tempo em épocas de bonança de crédito de bancos públicos? Será que são as mais ineficientes? Será que em parte porque as mais ineficientes sobreviveram elas não conseguem contratar porque não conseguem vender seus produtos? Quem está contratando agora? Maiores ou menores? Há várias coisas da dinâmica de produtividade e dinâmica de emprego no Brasil que não são discutidas. Não é porque o pesquisador brasileiro é pior em nenhuma dimensão, mas sim porque no país temos menos dados e são mais difíceis de acessar. Para ver os microdados do IBGE é complexo, você precisa estar lá, há uma sala de sigilo, você precisa apresentar um projeto, demora. O acesso é mais difícil.

P. Entre economistas heterodoxos e ortodoxos, onde o senhor se posiciona? E no espectro político, esquerda ou direita?

R. Honestamente, essa discussão dos economistas é inexistente aqui fora. No Brasil, ela também é deturpada. O que muita gente chama de economista ortodoxo no Brasil é o que usa modelos neoclássicos e matemáticos e que utiliza técnicas estatísticas e econométricas. Essa coisa do heterodoxo no Brasil surgiu um pouco contra o uso de modelos matemáticos. E as críticas são deturpadas. “Os economistas heterodoxos acreditam que os agentes são racionais e é só isso que você olha” ou “O economista ortodoxo não olha para a desigualdade”. Eu me posiciono como centro esquerda. Acho que existe uma confusão no Brasil que se você é um economista ortodoxo e usa modelos matemáticos, você é de direita, e se você é heterodoxo, você é de esquerda e não usa estatística. Existe uma série de economistas que se consideram ortodoxos no sentido da metodologia que usam, mas podem ser considerados de centro esquerda, no sentido de preocupações sociais e desigualdade. E esse tipo de economista no Brasil é mal visto. As pessoas pedem essa polarização entre esquerda e direita, ortodoxo e heterodoxo. Eu acho que isso é uma deturpação ruim para economistas, onde as pessoas não vêem que você pode usar métodos neoclássicos, estatísticos, econometria e mesmo assim fazer trabalhos importantes para pensar em grandes questões que tem a ver com igualdade de oportunidades, desenvolvimentos e coisas afins.


Eliane Brum: Precisamos saber quem está no poder

O silenciamento da pessoa-chave para elucidar crimes, que podem estar ligados ao clã Bolsonaro, aprofunda a pergunta mais perigosa da República

Na semana em que completou 700 dias que Marielle Franco foi assassinada, a notícia não é a elucidação do crime – e, sim, o assassinato da pessoa-chave para elucidar o crime. A execução de Marielle, uma vereadora do Rio de Janeiro e uma ativista dos direitos humanos, assinalou o momento em que um limite foi superado no Brasil. O não esclarecimento até hoje, quase dois anos depois, de quem foi o mandante e por que ela foi morta aponta a crescente e cada vez mais perigosa incapacidade das instituições de proteger a democracia no país. O silenciamento de Adriano da Nóbrega, premeditado ou não, no domingo, 9/2, mostra que o Brasil é um país em que os limites entre lei e crime foram borrados num nível sem precedentes. Não sabemos quem está no Governo. E precisamos saber.

A maioria já conhece os fatos. Mas é preciso reafirmá-los. Adriano da Nóbrega poderia esclarecer o esquema de “rachadinha”, desvio dos salários de servidores, no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, hoje senador e filho do presidente Jair Bolsonaro. Poderia esclarecer qual é a profundidade das relações da família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro. Poderia ajudar a esclarecer o assassinato de Marielle Franco.

Poderia, mas não pode mais. Foi morto numa suposta troca de tiros durante uma operação conjunta da Polícia Militar da Bahia e da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Dezenas de policiais treinados foram supostamente incapazes de prender, numa casa isolada, uma pessoa considerada essencial para a elucidação de crimes que assombram a República. Foram capazes apenas de matá-lo. Segundo o advogado do morto, Paulo Emílio Catta Preta, Adriano teria afirmado dias antes que, caso fosse encontrado pela polícia, seria eliminado como “queima de arquivo”. Quando foi assassinado, estava escondido na casa de um vereador do PSL, num sítio no município de Esplanada, na Bahia. O PSL até há pouco era o partido do presidente e também de seu primogênito.

Quem era Adriano da Nóbrega?

Ex-capitão do BOPE, elite da polícia militar carioca, Adriano estava foragido havia um ano, suspeito de chefiar a milícia de Rio das Pedras, a mais antiga do Rio, e também o Escritório do Crime, um grupo de matadores de aluguel. Formado por policiais e ex-policiais civis e militares, o Escritório do Crime está relacionado pelas investigações à execução de Marielle Franco. Adriano já havia sido preso três vezes, por homicídio e tentativas de homicídio, e liberado. Sua mulher e sua mãe trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro até novembro de 2018.

Adriano era próximo de Fabrício Queiroz, suspeito de comandar o esquema da rachadinha para Flávio Bolsonaro e de envolvimento com a milícia de Rio das Pedras. Queiroz, por sua vez, era não só funcionário, mas amigo pessoal de Jair Bolsonaro desde os anos 1980. Também era policial militar aposentado. Um cheque de Queiroz, no valor de 24 mil reais, foi depositado na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

O homem que foi morto era publicamente respaldado pela família Bolsonaro no exercício de seus mandatos como parlamentares. Como deputado, Flávio deu ao então policial a Medalha de Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa do Rio. Naquele momento, 2005, Adriano cumpria prisão pelo assassinato de um guardador de carros que havia denunciado policiais. Era a segunda vez que o filho mais velho do presidente homenageava o PM. Também em 2005, Jair Bolsonaro, então deputado federal, fez um discurso na Câmara dos Deputados, defendendo Adriano e protestando contra a sua condenação por homicídio. Segundo o Ministério Público do Rio, as contas de Adriano foram usadas por Queiroz para transferir o dinheiro do esquema de “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro.

Os dois acusados pelo assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes são o policial reformado Ronnie Lessa, que teria dado os tiros, e o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, que teria dirigido o carro. Ambos são suspeitos de pertencer ao Escritório do Crime, que seria chefiado por Adriano da Nóbrega. Ronnie Lessa, por sua vez, vivia no mesmo condomínio de Jair Bolsonaro, na Barra da Tijuca.

Neste mapa de coincidências e suspeições, Adriano da Nóbrega era a pessoa capaz de juntar os pontos e preencher as lacunas. Mas está morto.

O que não é possível

Todas as coincidências podem ser apenas coincidências. É possível que a família Bolsonaro seja apenas ingênua ao escolher amigos e colaboradores. É possível que Flávio Bolsonaro estivesse apenas distraído demais para notar o que, suspeita-se, estava acontecendo no seu gabinete sob o comando de seu amigo Queiroz. É possível que Bolsonaro não tivesse tido relações com este vizinho chamado Ronnie Lessa. É possível que o grupo de policiais da Bahia e do Rio que foram prender Adriano sejam apenas incompetentes. É possível que essa quantidade de policiais militares e ex-policiais suspeitos de crimes seja apenas ocasional e não revele nada sobre o que a instituição Polícia Militar se tornou.

O que não é possível é continuarmos sem saber se há ou não envolvimento de Bolsonaro e seu clã com criminosos. Se há ou não envolvimento de Bolsonaro e seu clã com as milícias. Se houve ou não o esquema de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro. O que não é possível é 700 dias depois do assassinato de Marielle Franco o Brasil – e o mundo – não saber quem mandou matá-la. E por quê.

Nada é normal no Brasil de hoje

Há um esforço para tratar o que hoje vive o Brasil como normalidade. Como se houvesse apenas anomalias que pudessem ser corrigidas no curso do processo eleitoral e sob a vigilância de instituições robustas. Como se o que está em curso fosse do jogo da democracia. Não há, porém, nada de normal no que acontece hoje no Brasil.

Há forte desconfiança de que Adriano da Nóbrega foi executado para não poder contar o que sabia. Ainda que tenha sido incompetência da polícia, como achar que é normal uma parte significativa da população brasileira ter certeza de que as PMs trabalham para si mesmas ou para interesses que não são os da população nem da justiça? Como achar normal que esta rede de suspeitos sejam policiais ou ex-policiais? Como achar normal conviver com o poder das milícias, que são formadas por integrantes das forças de segurança formais dos estados? E como achar normal o DNA de milicianos marcarem atos e fatos do presidente da República, de um senador da República que é filho do presidente e de outros familiares do clã? Este Brasil não nasceu agora, mas só hoje temos um presidente e uma família presidencial envolvida em tantas coincidências criminosas, que produzem cada vez mais sangue e parecem estar cada vez mais longe de serem esclarecidas.

Bolsonaro e as instituições

A trajetória de Jair Bolsonaro pode ser contada pela ação e também pela inação das instituições brasileiras. Se o então capitão tivesse sido condenado pelo Superior Tribunal Militar, em vez de absolvido, por planejar colocar bombas em unidades militares para protestar contra os baixos salários, o país seria diferente hoje? Se o então deputado federal Jair Bolsonaro tivesse sido julgado e condenado por cada declaração racista e de incitação à violência que pronunciou durante seus quase 30 anos de Congresso, o Brasil seria diferente hoje? Se o então parlamentar Jair Bolsonaro tivesse respondido na Justiça e sido cassado pelos seus pares por homenagear um torturador durante o impeachment de Dilma Rousseff, o Brasil seria diferente hoje?

O exercício do “e se” vale apenas como isso mesmo, um exercício para iluminar melhor o que aconteceu de fato. Ou não aconteceu de fato. O que está diante de nós, hoje, é o que fazer diante desta realidade agora. Não que país seria o Brasil, mas sim que país será o Brasil caso não descobrirmos por que não podemos descobrir quem mandou matar Marielle Franco.

A pergunta mais perigosa

A aparente impossibilidade de elucidar a morte de Marielle, que já provocou alarmantes declarações de autoridades públicas no passado recente, nos lança em perguntas cada vez mais perigosas. As perguntas perigosas costumam ser as mais importantes.

Sabemos há muito que há um poder paralelo no Brasil. Um poder do crime que, em diferentes momentos, teve e tem ramificações na estrutura do Estado. As milícias cariocas, herdeiras dos esquadrões da morte formados por policiais, são o exemplo mais bem acabado desta distopia que virou realidade. E também de sua evolução ainda mais perversa, ao confundirem-se nas últimas décadas com o próprio Estado, na medida em que são agentes do Estado usando a estrutura do Estado para controlar as comunidades, lucrar com esse domínio e executar quem se opõe ao seu poder. Começaram a atuar com a desculpa de proteger as favelas e periferias do tráfico de drogas. E se tornaram ainda piores do que o tráfico. Em alguns casos são sócias dos traficantes, na maioria dos casos mais poderosas.

Como o cidadão pode se contrapor a um poder que controla ao mesmo tempo o crime e as forças de repressão ao crime, a usurpação dos serviços públicos e os próprios serviços públicos, um poder que comercializa até mesmo lotes de votos numa eleição, como fazem algumas milícias? As muitas comunidades que hoje são reféns das milícias no Rio podem contar como é viver sob o jugo da lei que corrompe a lei, da polícia que é bandida.

O que Adriano da Nóbrega poderia esclarecer é se este poder já deixou de ser paralelo. Se chegamos a um ponto em que um e outro são o mesmo também no Planalto. Poderia, mas não pode mais. E nós, que (ainda) estamos vivos, o que podemos? E, mais importante, o que faremos?

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de RuínasColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum


Afonso Benites: Bolsonaro fortalece núcleo militar e cogita segunda chance a Onyx no Bolsa Família

Presidente convida general que foi interventor militar no Rio para assumir a Casa Civil. Reacomodação daria novo direcionamento a programa contra miséria, que acumula demanda reprimida

Depois de tanto negar que o faria, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) começa a fazer, a conta-gotas, sua minirreforma ministerial. Ao mesmo tempo, reforça o núcleo militar, como forma de tentar manter o apoio da cúpula das Forças Armadas. A nova troca de ministérios deve atingir dois ministros que estão desgastados em seus cargos: Onyx Lorenzoni (DEM), na Casa Civil, e Osmar Terra (MDB), na Cidadania, o ministério responsável pelo programa Bolsa Família. Lorezoni deverá substituir Terra, que pode ser realocado em alguma embaixada. Confirmando essa movimentação, o novo chefe da Casa civil será o general Walter Braga Netto, atual número dois do Exército Brasileiro. Será a terceira troca em uma semana. No dia 6, o presidente demitiu Gustavo Canuto do Desenvolvimento Regional e o substituiu por Rogério Marinho (PSDB), então secretário especial de Previdência e Trabalho. Canuto foi para a Dataprev, a estratégica empresa de tecnologia de informação da Previdência Social que o Governo pretende privatizar em breve.

Até a conclusão dessa reportagem, o Governo não havia se manifestado oficialmente sobre as demissões e novas nomeações. Mas diversas reuniões ocorreram ao longo do dia para tratar do tema. Só se pode considerar ministro, de fato, quem tiver seu nome publicado no Diário Oficial da União, o que não ocorreu até o fim da tarde desta quarta-feira.

Ao ser realocado na Cidadania, Onyx será responsável por comandar um orçamento de 1,9 bilhão de reais. Sob sua alçada está a execução do programa Bolsa Família e as ações voltadas para o esporte. Sua missão será dar uma nova cara ao programa que concede bolsas à população mais pobre, parar de se fechar a quem necessita e tentar reduzir a fila, que tem crescido exponencialmente. Como revelou o EL PAÍS em 31 de janeiro, a gestão Bolsonaro não explica detalhes sobre a real demanda reprimida do principal programa de combate à miséria do país. Cálculos da reportagem, com base em dados públicos de beneficiados, aponta que a fila para receber o programa pode ser até três vezes maior do que o Governo divulga oficialmente, que é de 500.000 famílias. Nesta quarta-feira, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, deu um prazo de cinco dias para que o Ministério da Cidadania informe as providências que estão sendo adotadas para assegurar que todo o público apto a acessar o programa Bolsa Família seja atendido.

O posto no comando do programa é estratégico em termos políticos. Em meio à crise na gestão do Bolsa Família, a avaliação no Planalto é de que apenas o discurso de que se estão combatendo as fraudes no benefício social, tão propalado por Osmar Terra, não basta. O presidente quer, de alguma maneira, deixar sua marca nesse programa, que foi criado nos governos do PT, o principal partido de oposição.

O novo chefe da Casa Civil, Braga Netto ficou nacionalmente conhecido ao ser declarado interventor federal na área de segurança do Rio de Janeiro no ano de 2018, durante a presidência de Michel Temer e o Governo de Luiz Fernando Pezão, ambos do MDB. Ele é avesso à imprensa e já impediu que repórteres acompanhassem seu discurso em evento público. Sua ascensão ao ministério é uma tentativa de Bolsonaro de se cercar de militares em quem confia dentro do Palácio do Planalto.

Além da Casa Civil, os outros três ministérios instalados no Palácio do Planalto serão ocupados por militares. O Gabinete de Segurança Institucional, com o general da reserva Augusto Heleno, a Secretaria-Geral da Presidência, com o capitão reformado da Polícia Militar, Jorge Antônio de Oliveira, e a Secretaria de Governo, com o general da ativa Luiz Eduardo Ramos.

Uma outra sinalização de apoio aos militares, foi o de conceder ao vice-presidente da República, o general Hamilton Mourão (PRTB), a coordenação do Conselho da Amazônia, um órgão consultivo que trata dos temas de meio ambiente e defesa na principal floresta brasileira. Antes, o organismo era vinculado ao Ministério do Meio Ambiente.

Os demitidos
Mesmo sabendo que seria demitido, Onyx seguiu cumprindo sua agenda normalmente na Casa Civil. Pela manhã, após participar de um seminário que tratava das prioridades do Governo no Congresso Nacional, o ministro declarou ser um servo leal ao chefe do Executivo. “O presidente Bolsonaro é o meu líder. O que ele decidir, eu cumpro”, disse ao responder a repórteres qual seria o andamento de uma das reformas que a gestão Bolsonaro pretende apresentar neste ano.

Desde o ano passado Bolsonaro já demonstrou estar descontente com a atuação de Onyx na pasta. Aos poucos foi minando seu poder. Retirou de sua competência a articulação com o Congresso, a análise jurídica de projetos de lei e o programa de privatizações. Restou ao ministro participar de eventos que o presidente não queria comparecer, como a abertura do ano legislativo, e coordenar reuniões de grupos interministeriais.

A gota d’água ocorreu no fim de janeiro, quando o então número dois de Onyx, Vicente Santini, usou um jatinho da força aérea para voar entre a Suíça e a Índia para participar da comitiva presidencial que visitava Mumbai. Santini ocupava interinamente o ministério, porque o titular estava em férias, nos Estados Unidos. O presidente se irritou com a viagem porque outros ministros, efetivos, tinham ido ao país asiático em voos comerciais, o que gerou menos custos aos cofres públicos. Santini foi demitido e, em seu esteio, ao menos outros três assessores caíram.

Onyx só não foi completamente retirado do Governo porque o presidente tem uma espécie de dívida de gratidão com ele. Ainda em 2017, Onyx foi o primeiro deputado a declarar apoio à candidatura de Bolsonaro à presidência e promoveu dezenas de reuniões em sua casa em Brasília em busca de aliados dentro do parlamento.

Já Osmar Terra deve ser realocado em alguma embaixada. Além das falhas no Bolsa Família, ele perdeu força na função porque seu ministério assinou um contrato sem licitação com uma empresa de tecnologia da informação (a Bussiness Tecnology) mesmo tendo sido alertado por órgãos de controle de que a companhia tinha indícios de fraude. A empresa foi alvo de uma operação da Polícia Federal no início do mês. O caso foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo no último dia 10 de fevereiro.

Tanto Onyx como Terra são deputados federais pelo Rio Grande do Sul. Estão licenciados de seus cargos. Se voltassem à Câmara, não teriam destaque, já que os cargos de liderança estão ocupados. Além disso, no caso de Terra, seu retorno retiraria da função de vice-líder Darcísio Perondi, que é o primeiro suplente do MDB gaúcho na Casa e vice-líder do Governo.


El País: Bolsonaro lidera pesquisa para reeleição em todos os cenários, inclusive contra Lula

Alento na economia faz reprovação de presidente ter queda de 5 pontos percentuais, aponta levantamento da consultoria Atlas Político. Sem Lula e Moro, ele aparece com 41% das intenções de voto

A aprovação do Governo de Jair Bolsonaro se mantém estável, sua reprovação caiu e, se as eleições fossem hoje, o presidente largaria na frente em todos os cenários. É o que mostra levantamento realizado pela consultoria política Atlas Político entre os dias 7 e 9 de fevereiro. A pesquisa aponta que, até o momento, os principais rivais de Bolsonaro são o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-juiz Sergio Moro. Sem o petista e o ministro da Justiça na disputa, o presidente aparece com 41% das intenções de voto, com larga distância entre o segundo colocado, o apresentador Luciano Huck (sem partido), com 14% dos votos. Atrás deles estão o governador do Maranhão, Flavio Dino (PCdoB), com 13%, e o governador de São Paulo João Doria (PSDB), com 2,5%.

A quantidade de eleitores indecisos ou que declararam voto branco ou nulo é expressiva, chegando a 27%. O percentual é muito próximo da realidade das presidenciais de 2018, quando essa faixa do eleitorado bateu 30%. Por outro lado, as abstenções diminuem significativamente quando Lula e Moro entram na disputa. Neste cenário, o total de votos brancos, nulos e indecisos fica em 9%. Bolsonaro e Lula brigam pelo primeiro lugar, com 32% e 28% das intenções de voto, respectivamente. Moro, que tem refutado oficialmente qualquer intenção de disputar a presidência como rival do atual presidente, segue logo atrás, com 20%, seguido de Huck (6%), Dino (3%) e Doria (0,6%). A pesquisa foi realizada na Internet via convites randomizados com 2.000 pessoas, entre os dias 7 e 9 de fevereiro, em todas as regiões do país. A margem de erro é de 2% para mais ou para menos e o nível de confiança é de 95%.

O cenário em que Lula disputa a eleição é meramente hipotético hoje. Condenado em segunda instância no processo do tríplex, mesmo solto desde novembro, o petista não pode se candidatar, já que se enquadra na Lei da Ficha Limpa. Seus advogados, no entanto, tentam anular a condenação, questionando a atuação do então juiz Sergio Moro no caso. O pedido começou a ser julgado no Supremo Tribunal Federal no ano passado, mas foi interrompido por um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Caso a maioria dos ministros do STF decidam que Moro atuou de forma parcial, a condenação do ex-presidente no caso do tríplex volta à estaca zero, retornando para a primeira instância. Neste caso, Lula deixaria de ser ficha suja e estaria livre para se candidatar.

Em linhas gerais, a pesquisa do Atlas Político de agora mostra cenários bastante parecidos com o de 2018. Naquele ano, o PT lançou Lula candidato enquanto o petista ainda estava preso. Os levantamentos mostravam que ele liderava com folga em todos os cenários. Mas, impedido de disputar, o ex-presidente acabou substituído no último instante do prazo para o registro de candidaturas pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad. As intenções de voto no “candidato de Lula” despencaram, mas ainda assim Haddad foi para o segundo turno. Bolsonaro foi eleito com 55% dos votos, contra 44% do ex-prefeito paulistano.

Esse cenário se repete nesta pesquisa. Se o segundo turno das eleições fosse hoje, um candidato apoiado por Lula —qualquer que fosse ele—também ficaria em segundo lugar nos dois cenários criados pelos pesquisadores. Contra Jair Bolsonaro (45%), um candidato apoiado por Lula teria 35% dos votos. O percentual do indicado pelo petista permanece parecido (36%) quando a disputa é contra Sergio Moro. O que muda, no entanto, é que o ministro ganharia com ainda mais folga, com 54% das intenções de voto.

Otimismo com a economia

O levantamento também mediu a aprovação do Governo Bolsonaro, que se manteve estável: 29% agora, contra 27% em novembro de 2019. Enquanto isso, a reprovação registrou uma queda de cinco pontos percentuais, de 42% em novembro, para 37% agora. O otimismo com a gestão Bolsonaro também se reflete sobre as expectativas para a economia: metade da população diz acreditar que a situação econômica do país deve melhorar nos próximos seis meses. Ainda houve uma ligeira melhora na percepção sobre a criminalidade e a corrupção. Trinta por cento dos brasileiros dizem acreditar que a criminalidade está diminuindo —contra 27% em novembro do ano passado— e 26% disseram o mesmo sobre a corrupção, contra 17% em novembro.

O ciclo de deterioração do ministro Sergio Moro, observado desde as revelações dos diálogos entre ele e os procuradores da Lava Jato pelo The Intercept Brasil, também parece que está se revertendo. A aprovação do ex-juiz cresceu seis pontos de novembro para cá, batendo 54%. Em maio do ano passado, no entanto, ele era avaliado positivamente por 60% dos entrevistados. No mês seguinte, as mensagens começaram a ser reveladas, em reportagens de diversos veículos, dentre eles, o EL PAÍS, e a aprovação de Moro chegou a cair para 50%.

A pesquisa também avaliou a imagem de outros políticos e personalidades junto aos entrevistados. Enquanto Moro lidera o ranking dos que tiveram maior avaliação positiva (54%), seguido de Bolsonaro (43%) e Paulo Guedes (43%), o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM) aparece com o maior índice de avaliação negativa (66%), seguido de João Doria (64%) e Fernando Haddad (59%).


El País: Federalização do caso Marielle Franco tem oposição de Moro e segue indefinida no STJ

Governos do Rio e da Bahia defendem ação que matou Adriano da Nóbrega, que tinha ligação com o senador Flávio Bolsonaro. Acusado poderia ajudar esclarecer execução da vereadora

morte de Adriano Magalhães da Nóbrega, acusado de ser integrante da milícia carioca Escritório do Crime, foi um desfecho violento de uma ação policial no interior da Bahia ou “queima de arquivo”, como sugere seu advogado? Os responsáveis pela operação das polícias da Bahia e do Rio a defendem —o governador fluminense, Wilson Witzel (PSC), disse que a operação “obteve o resultado que se esperava” enquanto o secretário de Segurança Pública da Bahia, Maurício Barbosa, criticou quem tenta, segundo ele, levar a questão para o “lado político”. Mas o desaparecimento do ex-policial, que tinha laços com o senador Flávio Bolsonaro, pode significar a perda de uma peça importante para ajudar a desvendar o assassinato de Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, em 2018. A polícia trabalha com a hipótese de que foi obra do Escritório do Crime a operacionalização da morte da vereadora. A esperança agora reside em rastrear a mais de uma dezena de celulares usados por Nóbrega para esclarecer que conexões ele manteve no ano em que esteve foragido. Enquanto isso, o caso de Marielle Franco enfrenta outras zonas cinzentas: a decisão sobre federalizar ou não parte da investigação segue nas mãos do STJ (Superior Tribunal de Justiça).

“Não podemos deixar de agradecer à Polícia Civil do Rio de Janeiro. Ontem [domingo] tivemos duas importantes operações em parceria com outra polícia, a polícia da Bahia, e obteve o resultado que se esperava. Chegamos ao local do crime para prender, mas, infelizmente, o bandido que ali estava não quis se entregar. Trocou tiros com a polícia e infelizmente faleceu”, afirmou Wilson Witzel, um ex-aliado de Jair Bolsonaro. Ao elogiar seus policiais, Witzel disse que a Polícia Civil do Rio “mostrou que está em um outro patamar”, uma referência quase jocosa, já que cita uma frase que virou mote entre torcedores do Flamengo no ano passado.

O secretário de Segurança Pública da Bahia, por sua vez, divulgou vídeo à imprensa. Nele, Maurício Barbosa pediu respeito ao trabalho dos cerca de 70 policiais envolvidos na operação e disse que não há “nenhuma intenção” de esconder crimes cometidos por Adriano e criminosos ligados a ele. “Colocamos a investigação à disposição de quem quer que seja, para refutar o aspecto político que estão querendo dar a uma ação típica de polícia”, afirmou o secretário, que serve ao governador do PT, Rui Costa.

A controvérsia em torno do episódio está longe de acabar. A Corregedoria da PM da Bahia vai investigar as circunstâncias da morte de Adriano Nóbrega, cujo corpo segue no Instituto Médico Legal de Alagoinhas, na Bahia, à espera da família. O Ministério Público baiano, que deu apoio ao promotores do Ministério Público do Rio nas apurações sobre o paradeiro do miliciano, informou, em nota, que vai aguardar o resultado do inquérito da Corregedoria para definir se vai abrir procedimento para investigar a conduta dos policiais.

Sem comentário de Bolsonaro e Moro

Em Brasília, reinou o silêncio. Conhecido por comentar assuntos diversos em suas declarações matinais à imprensa na porta do Palácio da Alvorada ou nas redes sociais, o presidente Bolsonaro, dessa vez, nada falou sobre a morte de um miliciano por policiais. “[Queria] compartilhar com vocês, mas tudo será deturpado. Então lamento, mas não vou conversar com vocês. O dia em que vocês, com todo o respeito, transmitirem a verdade, será muito salutar conversar meia hora com vocês”, disse a um grupo de jornalistas, segundo o jornal Folha de S. Paulo. Ele não respondeu a questionamentos.

Nóbrega, conhecido como capitão Adriano por ter sido oficial da Polícia Militar do Rio, foi morto na madrugada de domingo após uma suposta troca de tiros com policiais do Rio e da Bahia na cidade de Esplanada. Ele estava foragido da Justiça havia um ano e os policiais estavam em seu encalço desde o início do mês, quando quase o prenderam em um condomínio de luxo da Costa do Sauípe (BA).

O acusado tinha vínculos conhecidos com Flávio Bolsonaro. O gabinete do então deputado estadual, investigado pela suposta prática de confiscar parte dos salários dos servidores por meio de um antigo assessor, o ex-PM Fabrício Queiroz, contratou a mãe e a ex-mulher de Nóbrega. Além disso, Flávio Bolsonaro lhe concedeu duas homenagens públicas oficiais enquanto era parlamentar no Rio. A polícia suspeita que o capitão Adriano faça parte de um grupo de sicários vinculados a outros dois ex-policiais que foram acusados pelo assassinato de Marielle e Anderson, Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz, ambos presos. Preso, Nóbrega poderia ajudar a esclarecer dois crimes: a morte de Marielle e Anderson e o suposto esquema de rachadinhas no gabinete de Flávio.

Federalização da investigação e posição de Moro

Enquanto a investigação sobre as pistas deixadas por Nóbrega seguem, outras indefinições rondam um a investigação da execução política mais ousada do país na história recente. O Superior Tribunal de Justiça ainda não definiu qual é a seara adequada para a apuração dos crimes envolvendo o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes.

Se o caso for federalizado, as investigações sairão da responsabilidade da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que está sob a alçada do governador Witzel, e passariam para a Polícia Federal, de responsabilidade do Governo Bolsonaro (sem partido). O STJ não colocou o caso em sua pauta do dia 12 de fevereiro. A próxima reunião do colegiado que analisa esse processo ocorrerá em 11 de março, mas ainda não foram definidos quais processos serão analisados pelos magistrados. O processo está com a relatora, Laurita Vaz, que havia feito uma série de questionamentos às partes. As respostas já foram entregues.

Tudo começou porque, em setembro do ano passado, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, usou um instrumento jurídico chamado Incidente de Deslocamento de Competência para pedir a federalização do caso por entender que a polícia local não estava dando o andamento adequado. Dodge acusou diretamente a polícia de estar infiltrada por criminosos. Dois meses depois, seu substituto no cargo, Augusto Aras, reforçou a necessidade de federalização. Contou com o apoio do ministro da Justiça, Sergio Moro.

Um mês após se declarar favorável à federalização, o ministro Moro mudou de ideia. Questionado nesta segunda-feira pelo EL PAÍS sobre qual seria seu entendimento hoje, ele afirmou que retirou seu apoio à transferência de esfera do processo atendendo a um pedido da família de Marielle. Antes, contudo, se queixou das críticas dos familiares da vereadora. “Os familiares de Marielle Franco disseram, por meio de entrevistas, que a federalização serviria para que o Governo federal, de alguma forma, obstruísse as investigações, o que era absolutamente falso. Foi o próprio Governo Federal, com a investigação na Polícia Federal, que possibilitou que a investigação tomasse o rumo correto”, afirmou Moro em nota. A PGR manteve seu pedido de federalização do caso e aguarda a decisão do STJ. A oposição ao Governo Jair Bolsonaro, que antes defendia a federalização do caso, também mudou de ideia e passou a lutar para que o caso ficasse no Rio de Janeiro.


Vladimir Safatle: Como a esquerda brasileira morreu

É um sintoma de que o grupo não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político e só conhece um horizonte de atuação, o “populismo”

Este é um artigo que gostaria de não ter escrito e não tenho prazer algum em fazer enunciações como a que dá corpo ao título. No entanto, talvez não haja nada mais adequado a falar a respeito da situação política brasileira atual, depois de um ano de Governo Jair Bolsonaro e a consolidação de seu apoio entre algo em torno um terço dos eleitores. Aqueles que acreditavam em alguma forma de colapso do Governo e de sua base precisam rever suas análises. O que vimos foi, na verdade, outro tipo de fenômeno, a saber, a inoperância completa do que um dia foi chamado de “a esquerda brasileira” enquanto força opositora. Não que se trate de afirmar que ela está diante do seu fim puro e simples. Melhor seria dizer que um longo ciclo que se confunde com sua própria história termina agora. O pior que pode acontecer nesses casos é “não tomar ciência de seu próprio fim” repetindo assim uma situação que lembra certo sonho descrito uma vez por Freud na qual um pai morto continua a agir como se estivesse vivo. A angústia do sonho vinha do fato do pai estar morto e nada querer saber disto. Se a esquerda brasileira não quiser ver sua morte definitiva como destino, seria importante se perguntar sobre qual é esse ciclo que termina, o que ele representou, quais seus limites.

Signos não faltaram para tal diagnóstico terminal. Contrariamente ao discurso de que o Governo Bolsonaro estaria paralisado, vimos ao contrário a aprovação de medidas até pouco tempo impensáveis, como a reforma previdenciária, isso sem nenhuma resistência digna deste nome. Ou seja, a maior derrota da história da classe trabalhadora brasileira foi feita sem que anotassem sequer o número da placa do carro responsável pelo atropelamento. Uma reforma da mesma natureza, mas menos brutal, está a tentar ser imposta na França. O resultado é uma sequência de greves e manifestações de vão já para o seu terceiro mês. Na verdade, o que vimos no Brasil foi o contrário, a saber, governos estaduais pretensamente de esquerda a aplicarem reformas estruturalmente semelhantes. Como se fosse o caso de dizer que, no final, governo e oposição comungam da mesma cartilha, sendo distinta apenas a forma e a intensidade de sua implementação. Fato que já havíamos visto com o segundo Governo Dilma e sua guinada neoliberal capitaneada por Joaquim Levy.

Isso é apenas um sintoma de que a esquerda brasileira não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político. Durante todo o ano de 2019, diante de um Governo cujas políticas visam a retomada, em chave autoritária, dos processos de concentração de renda, de acumulação primitiva e de extrativismo colonial, não foram poucos aqueles que esperaram da esquerda brasileira (todos os partidos e instituições inclusas) a expressão de outro tipo de política. A esquerda governa estados, municípios grandes e pequenos, mas de nenhum deles saiu um conjunto de políticas que fosse capaz de indicar a viabilidade de rupturas estruturais com o modelo neoliberal que nos é imposto agora. Houve época que a esquerda, mesmo governando apenas municípios, conseguia obrigar o país a discutir pautas sobre políticas sociais inovadoras, partilha de poder e modificação de processos produtivos. Não há sequer sobra disto agora.

Talvez seja o caso de insistir neste ponto porque, como dizia Maquiavel, o povo prefere um governo ruim a governo nenhum. Não são as qualidades do Governo Bolsonaro que dão a ele certa adesão popular. É o vazio, é o fato de não haver nenhuma outra alternativa realmente crível neste momento. E a razão disso é simples: a esquerda brasileira morreu, ela tocou seu limite e demonstrou não ser capaz de ultrapassá-lo. Isso vale tanto para partidos, sindicatos quanto para a classe intelectual (na qual me incluo). Nossas ações até agora não se demonstraram à altura dos desafios efetivos. O melhor a fazer seria começar a se perguntar pela razão de tal situação.

Coloquemos uma hipótese de trabalho: a esquerda brasileira conhece apenas um horizonte de atuação, este que atualmente chamaríamos de “populismo de esquerda”. Foi ele que se esgotou sem que a esquerda nacional tenha se demonstrado capaz de passar para outra fase ou mesmo de imaginar o que poderia ser “outra fase”. Entende-se por populismo de esquerda um modelo de construção de hegemonia baseado na emergência política do povo contra as oligarquias tradicionais detentoras do poder. Este povo é, na verdade, produzido através da convergência de múltiplas demandas sociais distintas e normalmente reprimidas. Demandas contra a espoliação de setores sociais, contra a opressão racial, contra os legados do colonialismo: todas elas devem convergir em uma figura que seja capaz de representar e vocalizar esta emergência de um novo sujeito político.

No entanto, o caráter nacionalista do populismo permite também a inclusão de setores descontentes da oligarquia, grupos da burguesia nacional dispostos a ter um papel “mais ativo” nas dinâmicas de globalização. Assim, o “povo”, neste caso, nasce como uma monstruosa entidade meio burguesia, meio proletariado. Uma mistura de JBS Friboi com MST.

Este é o modelo que a esquerda nacional tentou implementar em sua primeira tentativa de governar o Brasil: a que termina com o golpe militar contra o Governo João Goulart. Na ocasião, um dos personagens mais lúcidos de então, Carlos Marighella, faz um diagnóstico preciso: a esquerda havia apostado na conciliação com setores da burguesia nacional e com setores “nacionalistas” das forças armadas dentro de governos populistas de esquerda. Ela colocou toda sua capacidade de mobilização a reboque de uma política que parecia impor mudanças seguras e graduais. Ao final, tudo o que ela conseguiu foi estar despreparada para o golpe, sem capacidade alguma de reação efetiva diante dos retrocessos que se seguiriam.

A lição de Marighella não foi ouvida. Tanto que a esquerda brasileira fará o mesmo erro com o final da ditadura militar e com o advento da Nova República. A história será simplesmente a mesma: o movimento em direção a um jogo de alianças entre demandas sociais e interesses de oligarquias locais descontentes tendo em vista mudanças “graduais e seguras” que serão varridas do mapa na primeira reação bem articulada da direita nacional.

Nesse sentido, nossa história segue os passos da história argentina: outro campo de ensaio do populismo de esquerda. Mas há um diferença substancial aqui. Depois da experiência ditatorial, a Argentina soube criar um linha de contenção de impulsos golpistas. Hoje, quase mil pessoas ainda se encontram nas cadeias argentinas por crimes da ditadura. No Brasil, ninguém foi preso. A resposta argentina produziu uma linha de contenção, inexistente entre nós, que permitiu ao peronismo ter ressureições periódicas. Dificilmente, essa será a história brasileira daqui para frente, pois o risco de deriva militar é real entre nós.

Mas há ainda um outro fator decisivo. O colapso do lulismo não foi seguido apenas de um golpe parlamentar apoiado em práticas criminosas de setores do poder judiciário. Ele foi seguido da criação de uma espécie de antídoto à reemergência do corpo político populista. O que vimos, e agora isto está cada vez mais claro, foi a emergência de um corpo fascista. Mas o corpo político fascista é normalmente a versão terrorista e invertida de um corpo político anterior, marcado pela emergência do povo e pelas promessas de transformação social. Dessa forma, ele acaba por bloquear sua ressurgência. Já se disse que todo fascismo nasce de uma revolução abortada. Nada mais justo.

Theodor Adorno um dia descreveu o líder fascista como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio (certamente pensando no Chaplin de O grande ditador). Essa articulação entre contrários é fundamental. A pretensa onipotência do líder fascista deve andar juntamente com sua fragilidade. O líder fascista deve ser “alguém como nós”, com a mesma falta de cerimônia, a mesma simplicidade e irritação que nós. A identificação é feita com as fraquezas, não com os ideais. Ele deve ser alguém que come miojo em banquetes presidenciais, que se veste de maneira desajeitada como alguém do povo. Ele deve a todo momento dizer que está a combater as elites que sempre governaram esse país (que agora serão os artistas, as universidades, os “cosmopolitas” e “globalistas”). Ele deve mostrar que não é alguém da elite política, que na verdade tal elite o detesta. Pois se trata de criar um antídoto para toda forma de tentativa de recuperar a produção do povo como processo de emergência de dinâmicas de transformação social.

Dessa forma, tudo se passa como se Bolsonaro fosse uma versão militarizada de seu oposto, a saber, Lula. Não se trata com isso de afirmar que estamos presos em uma polaridade. Ao contrário, trata-se de dizer que tudo foi feito para anular a polaridade real, criando um duplo imaginário. Nunca entenderemos nada das regressões fascistas se não compreendermos estas lógicas dos duplos políticos. Se há algo que nos falta é exatamente polaridade. Temos pouca polaridade e muita duplicidade.

O fato é que tal dinâmica demonstrou-se eficaz. Ela quebrou os processos de incorporações populistas que foram, até agora, a alma da esquerda brasileira. Por isso, o que vemos agora é uma esquerda sem capacidade de ação, pois atordoada com o fato de a direita brasileira ter, enfim, produzido a sua figura com capacidade de incorporação do povo, agora sem o erro de apostar em um egresso da elite político-econômica (Collor) ou em alguém sem vínculos orgânicos com o militarismo fascista (Jânio).

Numa situação como essa, a esquerda nacional ainda paga o preço de ter sido formada para a coalizão e para a negociação. Esse é seu DNA, desde a política de alinhamento do PCB aos ditames anti-revolucionários do Soviete Supremo. Por isso, ela não sabe o que fazer quando precisa mudar o jogo e caminhar para o extremo. Sua inteligência não age nesse sentido, suas estruturas não agem nesse sentido, sua classe política não age nesse sentido. Seus movimentos de revolta perdem-se no ar por não ter nenhuma sustentação ou coordenação de medio e longo prazo. Foi assim que ela morreu. Se ela quiser voltar a viver, toda essa história tem que chegar a um fim. Ela deverá tomar ciência de seu fim.


El País: Censura de livros expõe “laboratório do conservadorismo” em Rondônia

Governo do PSL apoiado pela tríade “bíblia, boi e bala” manda recolher livros “inadequados”. Medida, depois revertida, não é um fenômeno isolado na política local

Rubem Alves, Mário de Andrade, Machado de Assis, Franz Kafka, Euclides da Cunha. Esses autores clássicos voltaram aos holofotes ao figurarem em uma lista de 43 livros considerados “inadequados às crianças e adolescentes” a serem recolhidos das escolas, por orientação do Governo de Rondônia. A informação, em princípio chamada de fake news pelo secretário de Educação do Estado, Suamy Vivecananda Lacerda Abreu, acabou corroborada por um áudio atribuído à gerente de Educação Básica de Rondônia, Rosane Seitz Magalhães. Na mensagem do WhatsApp, ela diz que o recolhimento foi "um pedido do nosso secretário”.

A notícia de que Rondônia planejava estabelecer um índex de livros proibidos viralizou e não foram poucas as críticas ao Governo do ultradireitista Marcos Rocha, um ex-coronel da Polícia Militar que se filiou ao PSL, então partido de Jair Bolsonaro, e chegou ao poder na onda conservadora das eleições de 2018. Ao EL PAÍS, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Antonio Dias Toffoli, classificou a iniciativa de “inacreditável”. “Se um caso desse chegar ao Supremo, cai na mesma hora. É absolutamente inacreditável que no século XXI alguém tente censurar livros como esses”, afirmou o magistrado nesta sexta-feira em Brasília. A Academia Brasileira de Letras (ABL), por sua vez, chamou a ação de “deplorável”, uma vez que desrespeita a Constituição de 1988. “É um despautério imaginar, em pleno século XXI, a retomada de um índice de livros proibidos”, afirmou a ABL em nota.

Mas a tentativa de censura não surpreendeu quem acompanha as peculiaridades do Estado, que funciona como uma espécie de farol para tendências conservadoras. No Estado do Norte prospera um Governo regido pela tríade “bíblia, boi e bala”, influenciado pela forte concentração de militares na região fronteiriça e o maior percentual de evangélicos do país (cerca de 34%). “Rondônia é extremamente conservadora e funciona como um grande laboratório de experiências da modernidade, seja na sua visão particular de liberalismo, seja na imposição de um certo olhar sobre a nação e o nacionalismo, ou mesmo sobre questões de gênero”, explica Estevão Fernandes, professor do Departamento de Ciências Sociais da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

Falta de transparência

O EL PAÍS tentou conversar com educadores locais a respeito do ensaio de veto a livros clássicos, mas muitos preferiram não se manifestar por medo de retaliação. “Este é um lugar em que se mata jornalista no meio da rua”, disse um professor, em referência ao assassinato do comunicador Ueliton Brizon, presidente do Partido Humanista da Solidariedade (PHS) em Cacoal, morto a tiros em janeiro de 2018.

Em nota, a Secretaria de Estado da Educação de Rondônia esclareceu que recebeu uma denúncia de bibliotecas das escolas estaduais sobre a suposta existência de livros paradidáticos com conteúdos inapropriados para alunos do ensino médio. A equipe técnica afirma que analisou as informações, mas não levou a adiante qualquer ação, por considerar a acusação inapropriada. “São obras de autores consagrados mundialmente e cumprem um papel importante para uma construção social”, afirma a nota.

O áudio vazado de Rosane Magalhães, porém, traz outra versão. “Se estiverem na CRE [Coordenação Regional de Educação] ainda esses livros, não mande para a escola (...) pegue os técnicos, pegue esses livros que estou mandando aqui na lista, coloque numa caixa, lacre e envie para mim aqui a gerência de Educação Básica (...) O núcleo do livro didático fica do lado, eu vou passar para eles porque a editora vai providenciar a troca”, afirmou a gerente na mensagem compartilhada no WhatsApp.

O EL PAÍS perguntou à assessoria de imprensa do Estado quais livros substituiriam o lote considerado inadequado, como mencionado no áudio, mas não obteve resposta. “O recolhimento de obras, de forma indistinta, sem prévio debate com a sociedade, já demonstra o desprezo pelo diálogo e a incapacidade de respeitar a diversidade”, afirma Vinicius Miguel, advogado e professor universitário da UNIR, que concorreu ao Governo do Estado pela Rede, em 2019.

Após a repercussão, o Estado decretou sigilo sobre os documentos da Secretaria de Educação. “A inserção de sigilo na documentação não pode ser interpretada como um mero erro. É um exemplo claro do ódio à transparência e de uma tentativa de ocultamento da prática de censura”, afirma Miguel.

Raízes do conservadorismo

Essa não é a primeira vez que o Estado ganha o noticiário nacional com controvérsias sobre a educação. Em 2017, um grupo de 150 pais do município de Ji-Paraná, o segundo mais populoso do Estado, acionou o Ministério Público para tentar proibir um livro de ciência da 8ª série, que tinha fotos de pênis no capítulo reservado ao corpo masculino. No mesmo ano, a Prefeitura de Ariquemes mandou “suprimir” dos livros didáticos páginas que falassem de diversidade sexual.

O impulso do conservadorismo na região, no entanto, não é um fenômeno que pode ser explicado apenas com a polarização das eleições presidenciais. “Porto Velho tem uma série de obras abandonadas da época do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento do Governo Dilma Rousseff]. Muitos viadutos começaram a ser construídos em 2007 e estão sendo terminados agora. O bolsonarismo apenas agregou pessoas que queriam mudança e compartilhavam os mesmos valores”, explica Fernandes. “A floresta ainda é vista como um obstáculo ao desenvolvimento. Aqui o crescimento se dá apesar da floresta e dos indígenas”, critica Fernandes, citando como exemplo a audiência pública realizada na região em 2019 para discutir o projeto de lei para permitir garimpo em terra indígena, para a qual os indígenas não foram convidados.

Colaborou Luciana Oliveira.