el país
El País: Rede de ‘fake news’ via WhatsApp é ativada para mobilizar base bolsonarista contra Congresso
Bolsonaro coloca Parlamento na mira do núcleo mais fiel de seguidores enquanto negocia com parlamentares manutenção de veto a Orçamento Impositivo. Entre as pautas, está a defesa de intervenção militar
Gil Alessi, do El País
Apoiadores do Governo Bolsonaro voltaram a usar a tática de disseminar notícias falsas e factoides para mobilizar o núcleo duro de seus seguidores contra um suposto inimigo. Com a ajuda dos grupos de Whatsapp, páginas em redes sociais e blogs de extrema direita elegeram o alvo da vez. Trata-se do Congresso Nacional, acusado por ministros de “chantagear” o presidente. Com o aval de Bolsonaro, que disseminou um vídeo sobre o tema, o Legislativo entrou na mira dos atos convocados para o dia 15 de março, cujas pautas incluem até o fechamento da Casas parlamentares via intervenção militar.
Oficialmente, nem movimentos nem parlamentares que apoiam a mobilização pró-Governo convocada falam em investida contra o Parlamento ou de intervenção militar. Mas vários materiais apócrifos em circulação vão neste sentido. “Nós temos que ir às ruas, mas pedindo intervenção militar já. Estamos cansados de ir às ruas só protestar, pois continua tudo na mesma. Esses bandidos esquerdistas só fazem rir do povo e continuam fazendo coisas ainda piores contra o Brasil.” “Os generais aguardam a ordem do povo”, diz um dos pôsters que usa imagens de generais da reserva que integram o Governo, como o vice Hamilton Mourão.
É difícil mensurar o alcance deste tipo de mensagem, uma vez que existem centenas de grupos de transmissão ligados ao bolsonorismo e boa parte deles replica conteúdo falso. Mas fica evidente que este movimento ganha força quando embalado pelo presidente e seu staff. Outro a aparecer nas mensagens que fazem alusão à ligação entre as Forças Armadas e o Governo é o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno. Heleno é uma peça-chave na mobilização. Ele foi gravado em conversa com colegas criticando o Congresso. “Nós não podemos aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo. Foda-se”, disse. Exaltado, o militar também orientou o presidente a “convocar o povo às ruas”.
Dias depois foi a vez de Bolsonaro dar seu recado e confirmar o Congresso como principal alvo para seus seguidores. O presidente compartilhou dois vídeos para seus contatos de whatsapp convocando a população para um protesto contra o Legislativo no dia 15 de março, segundo reportou a colunista do jornal O Estado de S. Paulo Vera Magalhães —posteriormente, ela foi alvo de ataques por parte da chamada “milícia virtual” de Bolsonaro—. O conteúdo do vídeo enviado, uma clara afronta ao Legislativo, gerou críticas da oposição e até de ministros do Supremo Tribunal Federal. A oposição fez circular que já pensava na possibilidade de pedir a abertura de um impeachment contra o presidente.
O discurso contra o Congresso levantado pelo presidente não é novo: com uma articulação política deficiente na Câmara e no Senado, o Planalto e membros de seu primeiro escalão costumam insuflar a tese de que os parlamentares não deixam Bolsonaro governar. Seriam todos defensores do “toma-lá-dá-cá”, da “velha política”. Dessa vez, o pano de fundo da fala de Heleno e de Bolsonaro é o chamado “orçamento impositivo”, aprovado pelo Parlamento em novembro passado. Pela medida, os parlamentares decidiram transferir do Executivo para o Legislativo a gerência sobre 30,1 bilhões de reais do Orçamento da União.
Bolsonaro vetou a medida e tentava chegar a um acordo para que o Parlamento mantivesse a sua versão nesta terça —embora nas redes sociais, no entanto, tenha mantido o discurso de que não havia negociação alguma com o Legislativo. Ao longo do dia, um acerto chegou a ser anunciado entre parlamentares e o Governo para manter o veto do presidente. O texto seria votado na sessão conjunta do Congresso nesta própria terça, mas acabou não acontecendo. O motivo foi a insegurança da cúpula do Senado sobre a futura regulamentação do orçamento impositivo enviada pelo Planalto.
O que havia sido combinado com o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, era que três projetos de regulamentação do orçamento impositivo seriam enviados pela manhã, para serem votados no fim do dia. Os textos, contudo, só chegaram no fim da tarde e geraram mais dúvidas do que certezas. Dois técnicos da Câmara ouvidos pela reportagem disseram que não era possível saber quais eram as mudanças efetivas. Assim, o presidente do Senado e do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), decidiu suspender a sessão e adiar a conclusão da votação para esta quarta-feira.
Retórica dos grupos
Se na vida real de Brasília há negociação para valer entre Congresso e Planalto, nos grupos de WhatsApp o que vale é o discurso de Bolsonaro. Na semana passada, o presidente mentiu sobre o endosso feito aos protestos de 15 de março com a pauta anti-Congresso. Em sua transmissão ao vivo na quinta-feira nas redes sociais, o presidente afirmou que o vídeo que ele havia compartilhado era de 2015, e não 2020, e que se tratava de uma convocatória para ato contra a então presidenta Dilma Rousseff. “É um vídeo que eu peço o comparecimento do pessoal no dia 15 de março de 2015, que, por coincidência, foi num domingo”, afirmou. No entanto, o presidente desconsiderou que o vídeo tem imagens suas, então candidato à Presidência, levando uma facada em Juiz de Fora (MG), episódio ocorrido em setembro de 2018. Ato contínuo, a mensagem foi repercutida em um grupo bolsonarista: “Urgente! Não caiam na nova jogada suja da esquerda. Pegaram um vídeo antigo no YouTube do então deputado federal Bolsonaro, onde ele pede para que a população compareça as manifestações do dia 15 de março. Só que essas manifestações eram sobre o impeachment da Dilma”, diz uma mensagem.
A máquina de propaganda bolsonarista no WhatsApp também resgata textos antigos de origem apócrifa e os faz recircular como se fossem novos. Uma mensagem atribuída ao major-brigadeiro Jaime Rodrigues Sanchez, da Aeronáutica, que já havia sido compartilhada no início de 2019, voltou à tona neste ambiente virtual tóxico. “Ele [o major Sanchez] citou uma ‘sucuri de duas cabeças’, representada ‘pelo Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional’, que ‘tramam e apertam seu abraço letal’ em torno do presidente”, diz a mensagem. A reportagem não conseguiu entrar em contato com o major, que está na reserva, para confirmar a autoria do texto replicado. Cerca de 12% do eleitorado, segundo pesquisa Datafolha divulgada em janeiro, acredita que a ditadura é o melhor para o Brasil.
O clima de hostilidade com o Congresso atingiu um patamar tão alto que até uma viagem do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para a Espanha, na semana passada, ganhou contornos de conspiração contra Bolsonaro. Um suposto tuíte da Embaixada da Espanha no Brasil feito na quinta-feira anunciava as reuniões do deputado com autoridades locais, e colocava na lista de tópicos abordados: “democracia, parlamentarismo e futuro do Brasil”. A inclusão da palavra “parlamentarismo” bastou para que os sites de extrema direita alinhados ao presidente noticiassem que Maia estava “tramando um golpe” contra o Planalto. Procurada, a Embaixada não quis se pronunciar sobre a polêmica, mas tuitou que “a visita de Rodrigo Maia teve só caráter institucional. Antes e depois da posse, o Governo de Jair Bolsonaro sabe que conta com o respeito, amizade e cooperação plena desta Embaixada”.
El País: Governo encurta prazo para aprovar agrotóxicos e provoca desconfiança até no setor agrícola
Especialistas e defensores do uso de químicos na agricultura criticam medida do Ministério da Agricultura, que aprovará qualquer registro que não seja analisado no prazo de 60 dias
O Ministério da Agricultura publicou na quinta-feira uma portaria que determina a autorização automática de agrotóxicos pela Secretaria da Defesa Agropecuária caso o produto não seja avaliado pelo órgão no período de 60 dias. A análise feita pela secretaria é a última etapa do processo de aprovação dos agrotóxicos, que também precisam passar pelo crivo do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Saúde. Atualmente, o prazo do órgão é de 120 dias. A medida, que passará a valer a partir do dia primeiro de abril, agiliza o processo de registros de defensores agrícolas, mas preocupa especialistas e até integrantes do próprio setor dedicado aos agrotóxicos.
Para um agrotóxico ser autorizado no Brasil, ele precisa receber um parecer favorável ambiental do Ministério do Meio Ambiente, através do Ibama, um toxicológico do Ministério da Saúde, feito através da Anvisa, e por fim uma aprovação agronômica da Secretaria da Defesa Agropecuária, uma vez que é o Ministério da Agricultura o responsável por expedir o registro do produto. Segundo o ministério, é essa última etapa que passará a ter o prazo limite de 60 dias, o que significa que a portaria não altera os prazos de Anvisa e Ibama, mas para especialistas da área, isso não está claro na medida aprovada. “Se o prazo é somente para a última etapa, após a manifestação de todos os órgãos, é o suficiente, já que expedir o registro é apenas uma questão burocrática que leva menos de 60 dias. Mas isso não ficou claro”, explica José Otávio Mentel, professor da Escola Superior de Agricultura da USP e presidente do Conselho Científico Agrosustentável.
A preocupação com o prazo se dá por conta da complexidade das análises feitas por Anvisa e Ibama. Os processos tocados pelos ministérios da Saúde e do Meio Ambiente, que acontecem simultaneamente, são mais demorados que a etapa final, que cabe ao Ministério da Agricultura. “Os analistas desses órgãos avaliam um conjunto muito grande de dados, com milhares de páginas para cada produto. O processo é inevitavelmente moroso pela quantidade de informação”, diz o toxicologista Claud Goellner. “É um trabalho de grande responsabilidade feito por pessoas que têm muito conhecimento”, completa ele. Se o prazo limite afetar as análises dos órgãos ambiental e toxicológico, a medida preocupa os especialistas. “A Anvisa definiu um prazo de quatro anos por produto a ser analisado, a secretaria colocou 60 dias e o Ibama não fixou nada. Não há harmonia entre os órgãos”, pontua Mentel, que defende uma regulamentação melhor do processo. “É preocupante que o agrotóxico seja aprovado se estourar os 60 dias mesmo sem um parecer dos órgãos que fazem o registro, porque eles precisam ser ouvidos. E não está claro em lugar nenhum quanto tempo Anvisa e Ibama precisam para que o estudo seja bem feito”.
A portaria tem como objetivo agilizar o processo de aprovação dos defensores agrícolas e atualizar o número de agrotóxicos permitidos no Brasil, mas preocupa até o diretor executivo da AENDA, a Associação Brasileira dos Defensores Genéricos, Túlio de Oliveira. “A maioria do setor de agroquímicos não quer [a nova regra] porque é um prazo muito curto para qualquer análise de agrotóxicos”, diz o diretor, que julga a decisão ruim para a imagem do setor uma vez que possibilita a entrada de “empresas aproveitadoras de qualidade discutível”. “Tem mais de 1.000 produtos há anos na fila para serem regularizados aqui. Se eu sou um diretor de uma empresa dessas, entro amanhã com um recurso para expedir o meu registro. Isso vai causar um tumulto”, se preocupa Oliveira. “A empresa poderá comercializar um produto enquanto a análise sobre o registro ainda está em andamento. Eu defendo os direitos dos genéricos agrícolas, mas isso vai trazer muitas críticas ao setor”, opina ele. “Acelerar o processo ajuda a agricultura, mas o rigor precisa ser mantido”, complementa Mentel.
Caso o prazo limite seja aplicado apenas à última etapa —onde o Ministério da Agricultura emite o registro aos agrotóxicos— conforme o Governo garantiu, os representantes da área de agrotóxico aceitam a medida. “Nesse caso, precisa ser mais enfatizado que os 60 dias começam a partir do momento que o ministério tem todos os pareceres favoráveis determinados pela legislação. Apesar de temerário, seria viável com a estrutura certa, ainda que o ideal seja uns 90 dias”, opina Claud Goellner. Mentel concorda ao presumir que o papel final do órgão seria apenas emitir o registro de acordo com as avaliações feitas por Anvisa e Ibama, sem necessidade de repetir as análises anteriores, o que seria cabível dentro do novo prazo limite.
Porém, ainda assim, a medida causa preocupação de ambientalistas diante de uma possível aprovação do que chamam de “PL do Veneno”. O Projeto de Lei 6299/2002, aprovado em 2018 em uma comissão especial na Câmara, pretende transferir o poder de aprovação dos agrotóxicos ao Ministério da Agricultura, tornando Anvisa e Meio Ambiente apenas órgãos consultivos. Por agora, ele está parado no Congresso.
Juan Arias: Por que choram os brasileiros
Choram os brasileiros não porque gostariam de ver o Congresso fechado, mas porque gostariam que fosse a casa do povo
O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), em polêmica com a jornalista de O Estado de S. Paulo Vera Magalhães, pelas manifestações anunciadas para o próximo dia 15 contra o Congresso e o STF, se perguntava irônico se os brasileiros chorariam no caso de “uma bomba H cair no Congresso”.
A verdade é que o pranto dos brasileiros seria outro diferente do sonho dos bolsonaristas mais radicais que prefeririam a volta da ditadura militar ao Brasil. Tanto é assim que uma pesquisa internacional acaba de revelar que entre os brasileiros está crescendo o amor pelos valores da democracia, talvez porque os vejam ameaçados.
Os brasileiros choram sim, em relação ao Congresso e há tempos, não porque prefeririam fechá-lo como gostaria esse punhado de bolsonaristas, e sim porque os que o ocupam, que deveriam responder somente e com o exemplo dos que os elegeram, se mostram tantas vezes indignos do cargo.
Choram os brasileiros não porque gostariam de ver o Congresso fechado, mas porque gostariam que fosse o que deveria ser pela Constituição, a casa do povo, com todos os sentidos abertos para ouvir os desejos e as dores das pessoas.
Choram porque em vez de oferecer um serviço à população dando exemplo de austeridade, porque o dinheiro gasto é das pessoas, fruto de seu trabalho às vezes pesado e mal remunerado, utilizam o cargo para aumentar seus privilégios, para enriquecer e enriquecer os seus. Choram porque parecem estar lá para pensar mais nos interesses pessoais e partidários do que nos problemas reais da nação.
Choram porque o que custam ao Estado, entre salário e privilégios, a maioria desnecessária e injustificável, acaba escandalizando os que precisam trabalhar duro para quase não chegar ao final do mês. Li que somente a lavagem dos carros oficiais dos deputados custa mais caro do que o orçamento separado ao Museu Nacional do Brasil.
Choram porque se perguntam se é necessário um Congresso com gastos bilionários com mais de 500 deputados quando na realidade os que estão verdadeiramente preparados à delicada tarefa de legislar à sociedade são uma pequena minoria. O restante passa anos sem produzir uma só lei importante, como foi o caso dos quase 30 anos como deputado do hoje presidente da República, Jair Bolsonaro, que já peregrinou por nove partidos menores e que sempre fez parte desse baixo clero que desprestigia a função sagrada do Congresso com suas maracutaias.
Choram porque gostariam que algum Governo tivesse a coragem de fazer uma profunda reforma da instituição sagrada do Congresso que representa os anseios de toda a sociedade. Uma reforma política séria, discutida com a nação, que reduzisse, por exemplo, a uma dezena os partidos políticos e não essa loucura de partidos sem identidade.
É o que estão pedindo os chilenos nas ruas contra os abusos dos políticos injustos e aburguesados mais preocupados em agradar o novo capitalismo excludente do que suas vítimas.
Choram os brasileiros porque gostariam de poder elegê-los com outro sistema eleitoral para que não chegassem ao Congresso candidatos que eles nunca teriam escolhido.
Querem um Congresso que seja capaz de escutar os gritos das ruas, os anseios mais verdadeiros das pessoas, de todos, não só de uma minoria de privilegiados.
Sim, choram os brasileiros porque gostariam de um Congresso mais sintonizado com os que mais sofrem, os sem trabalho, os das filas de espera da Bolsa Família, nos corredores dos hospitais, os que voltaram a cair na pobreza e até na miséria.
Choram os brasileiros das comunidades periféricas das cidades, carne de canhão de todas as violências juntas, a da pobreza e a do Estado incapaz de tirá-los de seu inferno e do da polícia, cada vez mais com carta branca para matar impunemente.
Choram os heroicos professores com salários de fome e seu assédio para que ensinem de acordo com as ordens do Governo e não com os critérios da moderna pedagogia para formar homens livres, capazes de se defender na vida contra a tirania das ideologias totalizantes.
Choram os trabalhadores que veem impotentes como perdem direitos conseguidos com tanta dor e tantas lutas ao longo de sua vida.
Choram os aposentados que precisarão trabalhar mais anos para compensar as aposentadorias dos privilegiados que continuarão aproveitando-as.
Choram os indígenas aos que pretendem expulsar de suas terras sagradas, de suas tradições, de sua sabedoria milenar para lançá-los ao inferno da alienação das periferias modernas.
Choram os artistas, os pensadores, os que fazem cultura, a quem desejariam castrar e domesticar sua criatividade que é o coração da democracia.
Choram as mulheres e todos os diferentes que não se encaixam nos modelos pré-fabricados pelo poder. Por que costumam ser eles os mais desprezados por todos os ditadores da história? Não será pelo medo que causam ao deixar a descoberto suas frustrações e misérias ocultas e inconfessáveis?
Esse é o pranto dos brasileiros que, apesar de ser vítimas de tantas injustiças, continuam confiando nas instituições e nos valores da democracia porque, os pobres, melhor do que ninguém, sabem que têm pouco a esperar da tirania dos ditadores.
Que não se iluda essa minoria de exaltados e saudosos do autoritarismo barato com vontade de voltar aos tempos das trevas que o Brasil já sofreu e condenou.
Não, os brasileiros não querem uma bomba H contra o Congresso como ironiza com raiva o filho deputado frustrado de Bolsonaro. Querem, pelo contrário, que alguém tenha a coragem de devolver a essa casa do povo sua verdadeira sacralidade para que deixe de ser, em expressão dura do evangelho, um “covil de ladrões”.
Que não se iludam Bolsonaro e família que os brasileiros sonhem como eles com modelos políticos autoritários. Essa país já viveu a atroz ditadura da escravidão e mais tarde a ditadura dos que fizeram da política um instrumento de domínio dos poderosos contra os mais fracos. Os brasileiros aprenderam a pensar e não querem ser transformados nos novos escravos dos modernos tiranos do momento.
Vladimir Safatle: Para a esquerda, morrer é só o começo
Em uma época em que até Armínio Fraga se diz de esquerda, o melhor a fazer é dizer que ela morreu, para poder salvá-la
"Há duas semanas escrevi neste jornal um artigo sobre o colapso da esquerda nacional (“Como a esquerda brasileira morreu”) que foi objeto de vários comentários e críticas. Um dia após a publicação do artigo, o mesmo EL PAÍS publicou uma pesquisa que mostrava como, caso a eleição fosse hoje, Bolsonaro venceria em todos os cenários. Creio que tal coincidência seja uma boa resposta para quem procura desprezar a gravidade da situação.
De toda forma, gostaria inicialmente de agradecer grande parte das críticas que recebi. Mesmo sendo as vezes duras, muitas levantaram questões absolutamente relevantes que me levaram a considerar pontos que não havia relevado. Há outra parte de críticas que se compraz em abusar de certos estereótipos que apenas mostram mais sobre o espírito de quem fala do que sobre o objeto analisado. Não há como responder a este grupo. Gostaria pois de levar em conta algumas das críticas relevantes a fim de dar sequência a um debate que creio ser necessário prosseguir.
Primeiro, alguns creem ser sintoma de melancolia e “desabafo” falar em morte da esquerda nacional. Até mesmo ironias a respeito do fato de eu ter anteriormente insistido no esgotamento de outros processos históricos, como a Nova República e os acordos imanentes à democracia liberal foram levantados como marcas de uma fixação necrofílica. Bem, não é de hoje que se insiste haver em certos setores desse país uma espécie de déficit de negatividade, ou seja, certa dificuldade estrutural de assumir a necessidade de afirmar esgotamentos, recusas e términos (se alguém ainda está disposto a afirmar que a Nova República vive, por exemplo, eu realmente gostaria de saber onde os argumentos foram encontrados).
Lembraria que clinicamente “melancolia” é exatamente a incapacidade de se liberar da fixação a objetos perdidos, não a decisão de se recusar a carregar o que está morto. Por mais que alguns se comprazem com as máscaras da euforia, há mais melancolia neste entusiasmo do que poderia aparentar. É, na verdade, sintoma de melancolia não encarar as derrotas quando elas ocorrem, não querer ir até o fundo das derrotas a fim de compreender sua real extensão. Contra essa leitura, há de se lembrar que, em uma vida, morre-se várias vezes. Um dos piores erros é acreditar que só se morre no fim. Morre-se várias vezes e esta é, muitas vezes, a condição de realmente continuar e se transformar.
Nesse sentido, afirmar que a esquerda nacional morreu não é expressão alguma de prazer infantil de contenda. Antes, é fruto da compreensão de que a sobrevivência da esquerda nacional depende do reconhecimento de sua morte. Dizer claramente “nós morremos” é a primeira condição para nos livrarmos do que nos matou. Quem se recusa a pensar dialeticamente nessas circunstâncias desconhece a dinâmica de processos históricos. E nossa morte não foi apenas um acidente externo, ela tem causas internas. O jogo do “estamos sendo atacados por fascistas, agora não é hora de assumir nossa auto-crítica” é suicida, é o verdadeiro suicídio. Se o fascismo nacional voltou, se ele teve força para voltar, foi porque ele foi o primeiro a sentir o cheiro de nossa morte. De toda forma, em uma época em que até Armínio Fraga se diz de esquerda, o melhor a fazer é dizer que ela morreu, para poder salvá-la.
Diria ainda que há um fenômeno brasileiro aqui. Não creio ser correto colocar a conta do colapso da esquerda nacional na conquista do imaginário social pela indústria cultural, pela sociedade de consumo e suas formas de regressão. Esse diagnóstico já existia desde os anos cinquenta pelas mãos dos frankfurtianos e muita coisa ocorreu depois. Por outro lado, sendo esse fenômeno algo mundial, seria difícil explicar por que a esquerda reabre caminhos promissores no Chile, mostra-se viva no Líbano e, pasmem, começa a levantar a cabeça nos EUA.
Mas poderíamos nos perguntar se estamos realmente diante de uma morte, ao invés de uma simples derrota. Gostaria de insistir que o que ocorre agora não é simplesmente uma derrota. É o esgotamento de um ciclo hegemônico que se confunde com a história da esquerda nacional. A esquerda já conheceu várias derrotas, mas nunca conheceu um esgotamento semelhante a este. Nossas derrotas eleitorais, ou mesmo nossa derrota histórica diante do golpe de 64, não implicaram na incapacidade de projetar alternativas globais no futuro. A esquerda nacional conseguiu preservar durante décadas essa força de projeção, levando setores expressivos da sociedade a sonharem com um futuro radicalmente distinto do presente. Quando, ao contrário, nosso horizonte de expectativas foi submetido a uma retração cada vez maior (tema tratado inicialmente por Paulo Arantes), ficou claro que estávamos a entrar em algo de outra natureza. O nome desta “outra natureza” chama-se, infelizmente, “morte”.
Neste sentido, não é correto falar de precipitação, como se afinal estivéssemos jogando a toalha depois de apenas um ano de Governo Bolsonaro. Primeiro, não se trata de jogar toalha alguma, mas de saber qual o trabalho crítico necessário para não nos satisfazermos com ações desprovidas de força efetiva. Segundo, não se trata de algo ligado ao Governo Bolsonaro, mas à incapacidade da esquerda nacional reagir com uma mobilização compacta de ações, práticas de governo e conceitos que apontem efetivamente para uma sociedade globalmente distinta dessa que vemos no presente. Qual é a política econômica alternativa da esquerda nacional? Qual seu horizonte de reconstituição institucional? Nada disso é claro e nós nos recusamos a aprofundar tais debates.
É sabido que muitos se insurgem contra o uso de palavras no singular. Esses insistem que sempre houve “esquerdas”, que não faz sentido algum em falar do destino de alguma entidade quase dotada de unidade metafísica como a “esquerda”. No entanto, há um precisão necessária aqui. Ninguém negaria que a história da esquerda nacional é múltipla e internamente conflituosa. Mas isto não significa a inexistência de um modelo hegemônico que não apenas incarna-se periodicamente em múltiplos atores distintos, mas que organiza todos os outros a partir da relação a si, produzindo dois movimentos possíveis: a aproximação articulada que reforça o campo hegemônico (como um planeta que atrai corpos menores) ou o distanciamento que equivale a assunção de uma posição radicalmente minoritária. A história da esquerda brasileira realmente se confunde com os modelos de governabilidade e mobilização próprios ao populismo de esquerda. Este populismo não conseguirá mais ser reeditado porque agora temos um fascismo popular produzido pela duplicação do tipo de liderança que o lulismo representou. A tentativa de reeditar seus modelos heteróclitos de aliança não é astúcia de governabilidade. É só a expressão de que o que faremos é o que já fizemos, que nosso futuro é igual nosso passado. É possível desconfiar desse diagnóstico vendo nele apenas a milésima reedição do mantra uspiano contra o populismo. Algo que expressaria o verdadeiro DNA anti-varguista do setor paulista da intelectualidade nacional, setor no fundo impulsionado pela nostalgia da perda da hegemonia paulista na política brasileira. No entanto, seria intelectualmente mais honesto compreender esta longa luta contra o populismo como o sintoma da
consciência do sistema de paralisia que aprisiona as forças transformadoras deste país há décadas, como o sintoma do movimento de repetição histórica que nos subsume (mesmo que seja verdade que há impactos regionais distintos da mesma política, como mostra Patricia Valim, e isto precisa ser melhor pensado). Um sintoma que ganhou realidade mundial a partir do momento que várias forças de transformação no mundo assumiram para si estratégias populistas de esquerda. Eu mesmo acreditei, no passado, que elas poderiam ser localmente úteis em casos como na Grécia (Syriza) e Espanha (Podemos). Há de se reconhecer atualmente que os resultados foram decepcionantes. Ninguém precisa de uma versão hypster do PSOE ou de uma esquerda que finge fazer consultas populares para depois esquecê-las.
Isto não significa dizer que não há lutas, que as lutas atuais não são decisivas e importantes. Todos nós estamos envolvidos em várias lutas, em várias frentes, em um ritmo muitas vezes frenético. Todas elas são grandiosas. Mas a questão é outra. As múltiplas lutas não conseguem mais entrar em um processo de acumulação e unificação. Elas não entram em constelação. Conseguimos colocar um milhão de pessoas nas ruas em defesa da educação pública, mas não há sequência. Não há dia seguinte, não há acúmulo de lutas e, com isto, capacidade de bloquear as políticas destrutivas do governo. Um milhão de pessoas na rua transforma-se em uma resistência pontual. Seria o caso de se perguntar a razão para tanto.
Isso nada tem a ver com alguma contraposição entre luta de classe e lutas por reconhecimento (que alguns infelizmente insistem em chamar de “lutas identitárias”). É verdade que há os que, de forma equivocada, insistem na pretensa morte da “velha” esquerda ligada à centralidade do trabalho e da luta global contra o capitalismo. Mas temo que, em um momento histórico no qual assistimos a intensificação dos regimes de trabalho e o achatamento geral dos salários, falar que o trabalho perdeu sua centralidade e relevância só pode ser fruto de um delírio acadêmico que alguns compram como a última moda.
Se há algo que as manifestações vitoriosas no Chile mostram bem é que lutas de reconhecimento como as lutas feministas, indigenistas, anti-racistas são um desdobramento necessário e decisivo da luta de classe. Elas são figuras da luta de classe. Não há contraposição alguma aqui, a não ser no sonho macabro de alguns liberais (assumidos ou não) que querem retirar dessas lutas sua potência efetiva de transformação global. Concretamente, isto significa, por exemplo, que a derrota na luta contra a reforma da previdência é, imediatamente, uma derrota da luta anti-racista. Pois são os negros e negras um dos setores mais espoliados e precários do mundo do trabalho. São elas e eles que sentirão de maneira mais forte as consequências dessas políticas de concentração e destruição dos direitos trabalhistas. As derrotas na flexibilização dos direitos trabalhistas são derrotas da luta feminista, pois as mulheres serão as primeiras a sentir de forma violenta o significado de tal “flexibilização”. O que o Chile nos mostrou é que, por exemplo, a luta feminista demonstra sua força máxima quando ela expõe sua dimensão de luta de classe contra o modelo econômico que nos destrói.
Ou seja, o fato de que a multiplicidade das lutas no Brasil não consigam convergir em um campo comum de combate às forças que espoliam os 99% é um signo fundamental da atrofia que ocorre quando um modelo hegemônico morre. Pois isto ocorre devido ao fato da esquerda brasileira ter usado, até agora, as lutas de reconhecimento de forma compensatória. Como ela não tem nenhum horizonte concreto de transformação econômica, como ela teme dizer em alto e bom som que é anti-capitalista, como ela é a última a realmente defender a necessidade de refundação da institucionalidade política nacional, como ela não consegue criar estruturas e organizações que sejam radicalmente democráticas, como ela não consegue mais criar solidariedade genérica com aqueles que “não são como nós”, a esquerda nacional se viu obrigada a expor de forma isolada o único setor no qual ela tem capacidade de transformação, a saber, este ligado às dinâmicas sociais de reconhecimento. Assim, ela acabou por limitar a força efetiva dessas lutas.
Isso não significa estar fixado em um paradigma de ação revolucionária que seria, ao mesmo tempo, inefetivo e perigoso. De toda forma, é realmente engraçado como vivemos em uma era de sinais trocados. A extrema-direita no mundo inteiro não teme em dizer que estão a lutar por uma “revolução” que possa dar ao povo a voz que eles nunca tiveram. E, com esta revolução conservadora, eles ganham eleições que constroem adesão popular real. Só certos setores hegemônicos da esquerda acredita que isto é uma conversa de centro acadêmico ou que a verdadeira revolução é esta de novas subjetividades que estaria pretensamente a ocorrer enquanto a espoliação é cada vez mais brutal e o horizonte anti-capitalista encontra-se, em larga medida, recalcado e vergonhosamente intocado.
Por fim, seria o caso de levar em conta as acusações de que intervenções públicas desta natureza são contra producentes porque não indicam caminhos concretos a serem seguidos, por se contentarem com chamados abstratos a “rupturas”. É difícil ouvir tais colocações sem lembrar de dois fenômenos. Primeiro, essa luta contra as “ideias abstratas” era, na verdade, um tema conservador. Lembrem, por exemplo, de Edmund Burke a discursar contra as “ideias abstratas” de igualdade vindas da cabeça de filósofos ociosos que acabaram por criar caos revolucionário no mundo do final do século XVIII e começo do XIX. Ou seja, a história demonstra, e isto os conservadores sabem muito bem, que “abstrações” tem muito mais força do que alguns estão dispostos a acreditar. Seria melhor que os setores progressistas da sociedade brasileira parassem de mimetizar o anti-intelectualismo dos conservadores.
Segundo, peço licença para lembrar do que aconteceu um dia com Sigmund Freud. Diante de uma paciente histérica, que passou a história com o nome de Dora, Freud não teve ideia melhor do que dizer a ela o que ela realmente desejava, esperando que isso a levasse a suspender sua forma de destruir seu próprio desejo. O resultado não poderia ser outro que um fracasso. Dora não precisava de alguém para dizer o que fazer ou para enunciar seu próprio desejo. Ela precisava de alguém que pudesse ajudá-la a produzir um processo que lhe permitisse alcançar por si mesma a enunciação de seu desejo. Ao falar em seu nome, Freud destruiu toda possibilidade de experiência para Dora. Lembro disso apenas para insistir que não há sentido algum em enunciar “propostas” em artigos de jornal. Não é de propostas que necessitamos, mas de processo. Ou seja, de um processo aberto que permita a implicação popular na constituição coletiva de um campo de ações concretas de governo. É ele que nos falta. Nos falta suas estruturas, seu tempo, suas transversalidades.
A cada dia que passa, fica mais claro que o Brasil é um laboratório mundial para um modelo de articulação entre neoliberalismo e fascismo. O termo “fascismo” não é, aqui, uma concessão retórica. Ele é o nome de um processo em curso que paulatinamente ganha forma. Um processo dessa natureza só pode ser parado de duas formas: através de uma catástrofe (como uma guerra) ou através da consolidação de uma real força de contraposição radical. Uma força que possa contrapor à revolução conservadora uma revolução real. Mas, para tanto, essa força precisa atuar na duas frentes que sustentam o modelo, ou seja, ela precisa desmontar o necroestado que agora não tem medo de dizer seu nome nem de esconder suas técnicas reais. Necroestado que vulnerabiliza os mais vulneráveis, que elimina os que nunca foram realmente reconhecidos pela sociedade brasileira como sujeitos. Mas ela precisa também destruir o modelo econômico que o financia e necessita dele para amedrontar a sociedade enquanto garante ao sistema financeiro nacional lucros nunca dantes vistos na história deste país. Os mesmos grupos, bancos e empresas que atualmente aplaudem a política econômica em curso fingindo não ver a violência e a destruição próprias a esse Governo são aquelas que há quarenta anos atrás forneceram dinheiro para a ditadura montar aparatos de crimes contra a humanidade, tortura, desaparecimento e estupro. Ou seja, não é exato dizer que eles são indiferentes à violência estatal. Na verdade, eles sabem muito bem que necessitam de tal violência para conseguir os lucros que hoje recebem. Sem ela, a sociedade se voltará contra os interesses de sua elite rentista e seus operadores.
Mas essa força que usa a organização compacta e a imaginação política convergente para traçar um horizonte de desejos e lutas para fora do capitalismo, digamos claramente, ainda não existe. Ela só existirá se aceitarmos fazer o luto de nós mesmos, o luto do que fomos até agora.
Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP
El País: Da indústria ao mercado de turismo, disseminação do coronavírus já cobra fatura na economia brasileira
Sem receber componentes importados da China, fabricantes de eletrônicos reduzem produção no Brasil. Agências de viagem lidam com preocupação dos clientes e cancelamentos de viagens
A disseminação de casos do novo coronavírus (Covid-19) pelo mundo, inclusive no Brasil, tem elevado a preocupação sobre os possíveis efeitos que a doença terá sobre a economia global. Já se fala em uma redução do crescimento do mundo neste ano, mas ainda é cedo para mensurar qual será o tamanho da queda. No caso do Brasil, que tem como maior parceiro comercial a China ― epicentro da doença ― os impactos não devem ser pequenos. Em 2019, quase 30% das exportações brasileiras tiveram como destino o país asiático, com destaque para a soja, o minério de ferro e o petróleo. Diante da paralisia da economia chinesa neste início de ano, o quadro deve, no entanto, mudar. Segundo José Augusto Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), ainda não há dados concretos para dar a dimensão do problema atual. “O que já sabemos é que, infelizmente, teremos queda na quantidade de exportação e nos preços das commodities, como soja e minério. Para o Brasil é uma perda dupla”, explica.
A equipe econômica do Governo de Jair Bolsonaro ainda avalia os efeitos do coronavírus para uma eventual revisão nas projeções de crescimento neste ano, segundo declaração do secretário do Tesouro, Mansueto Almeida. O secretário avalia que o risco é tanto no preço de commodities quanto no crescimento menor do mundo. “Se tivermos queda muito forte no crescimento mundial, afeta todo mundo e, claro, o Brasil também”, afirmou Mansueto. Por ora, a estimativa do Governo é que o PIB brasileiro crescerá 2,4% em 2020.
Fábricas reduzem produção
Além de ser um relevante comprador, a China é um grande fornecedor de insumos da indústria brasileira, especialmente a de eletroeletrônicos, que já sente os efeitos do surto da doença. Fabricantes de celulares, como a Motorola, por exemplo, tiveram que reduzir a produção de aparelhos devido a dificuldade de receber os componentes importados do país asiático. Segundo o Sindicato dos Metalúrgicos de Jaguariúna (SP), cerca de 80% dos funcionários da Flextronics, responsável pela produção de celulares da Motorola, receberam um aviso de férias coletivas de 15 dias que termina nesta sexta-feira. Sem perspectiva de mudanças no curto prazo, a Flextronics prevê outro aviso de férias coletivas para parte dos funcionários no período de 9 de março até o dia 28.
O cenário de falta de componentes eletrônicos para abastecer os estoques da indústria brasileira se agravou nas últimas semanas, conforme levantamento Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee). De acordo com uma sondagem sobre o impacto do coronavírus Covid-19 na produção, 57% das 50 indústrias pesquisadas afirmaram enfrentar neste momento problemas no recebimento de materiais, componentes e insumos provenientes do gigante asiático. Há duas semanas, 52% disseram ter problemas.
As dificuldades do setor concentram-se principalmente entre os fabricantes de produtos de tecnologia da informação (celulares, computadores, entre outros). “O momento é delicado e devemos ter diversas paralisações daqui para frente”, explica Humberto Barbato, presidente executivo da entidade, em nota. A associação afirma que 4% das indústrias pesquisadas registram algum tipo de paralisação motivada pelos impactos do surto de Covid-19, e que 15% programam parar nos próximos dias, de forma parcial.
Outro setor que já sofre as consequências do avanço da doença pelo mundo é o do turismo. Agências de viagens reconhecem que a disseminação da doença para países europeus, como o caso da Itália, preocupa os brasileiros, que já se informam sobre a possibilidade de cancelar passagens já compradas para a Europa. Nesta quinta-feira, a Itália confirmou mais mortes pelo vírus, levando o número de vítimas fatais no país para 17. São 528 casos confirmados, o maior número no continente europeu.
O italiano Leonardo Bonella, proprietário da Genus Europa Tour, explica que a busca por viagens para a Itália, o décimo destino preferido dos brasileiros no ano passado, caiu muito depois do aumento de casos da doença no país. Bonella ainda não teve que cancelar nenhum pacote, mas já precisou acalmar alguns clientes sobre a situação da sua terra natal. "Acho que como sou italiano, eles ficam um pouco mais confiantes quando explico que apenas algumas regiões estão afetadas. É claro que é necessário precaução, mas algumas notícias são alarmistas", diz.
Com muitas ofertas de pacotes com destino para Ásia, Luiz Alvarenga, franqueado da Travelmate Intercâmbio e Turismo em Belo Horizonte, avalia que as decisões dos clientes têm variado. “Tenho uma cliente que fará um curso de três meses em Seúl, na Coreia do Sul, em abril, e ainda quer esperar o desenrolar do caso do coronavírus. Já um grupo que sairia em março para um tour na Ásia teve a viagem cancelada pela própria operadora. Mesmo que os locais não fossem epicentro da doença, não vale a pena ficar com medo de passear na rua”, explica.
Márcio Nakane, gerente da agência de turismo Flaptur, reconhece que a preocupação tem rondado os clientes, mas que os cancelamentos estão concentrados em viagens corporativas. “Os próprios eventos e cursos estão sendo cancelados”, diz. O Procon-SP orienta os consumidores que compraram passagens para países em que casos da doença foram comprovados, a procurarem o órgão se optarem por cancelar a viagem em razão da preocupação com o coronavírus. “Isso porque, nessa hipótese específica, que não tem previsão legal, faz-se necessário negociar com a empresa que não pode se recusar a oferecer alternativas ao consumidor”, explica a nota do Procon-SP.
Eliane Brum: O golpe de Bolsonaro está em curso
Já está acontecendo: a hora de lutar pela democracia é agora
Só não vê quem não quer. E o problema, ou pelo menos um deles, é que muita gente não quer ver. O amotinamento de uma parcela da Polícia Militar do Ceará e os dois tiros disparados contra o senador licenciado Cid Gomes (PDT), em 19 de fevereiro, é a cena explícita de um golpe que já está sendo gestado dentro da anormalidade. Há dois movimentos articulados. Num deles, Jair Bolsonaro se cerca de generais e outros oficiais das Forças Armadas nos ministérios, substituindo progressivamente os políticos e técnicos civis no Governo por fardados – ou subordinando os civis aos homens de farda nas estruturas governamentais. Entre eles, o influente general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, segue na ativa, e não dá sinais de desejar antecipar seu desembarque na reserva. O brutal general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, chamou o Congresso de “chantagista” dias atrás. Nas redes, vídeos com a imagem de Bolsonaro conclamam os brasileiros a protestar contra o Congresso em 15 de março. “Por que esperar pelo futuro se não tomamos de volta o nosso Brasil?”, diz um deles. Bolsonaro, o antipresidente em pessoa, está divulgando pelas suas redes de WhatsApp os chamados para protestar contra o Congresso. Este é o primeiro movimento. No outro, uma parcela significativa das PMs dos estados proclama sua autonomia, transformando governadores e população em reféns de uma força armada que passa a aterrorizar as comunidades usando a estrutura do Estado. Como os fatos já deixaram claro, essas parcelas das PMs não respondem aos Governos estaduais nem obedecem a Constituição. Tudo indica que veem Bolsonaro como seu único líder. Os generais são a vitrine lustrada por holofotes, as PMs são as forças populares que, ao mesmo tempo, sustentam o bolsonarismo e são parte essencial dele. Para as baixas patentes do Exército e dos quartéis da PM, Bolsonaro é o homem.
É verdade que as instituições estão tentando reagir. Também é verdade que há dúvidas robustas se as instituições, que já mostraram várias e abissais fragilidades, ainda são capazes de reagir às forças que já perdem os últimos resquícios de pudor de se mostrarem. E perdem o pudor justamente porque todos os abusos cometidos por Bolsonaro, sua família e sua corte ficaram impunes. De nada adianta autoridades encherem a boca para “lamentar os excessos”. Neste momento, apenas lamentar é sinal de fraqueza, é conversinha de sala de jantar ilustrada enquanto o barulho da preparação das armas já atravessa a porta. Bolsonaro nunca foi barrado: nem pela Justiça Militar nem pela Justiça Civil. É também por isso que estamos neste ponto da história.
Essas forças perdem os últimos resquícios de pudor também porque parte do empresariado nacional não se importa com a democracia e a proteção dos direitos básicos desde que seus negócios, que chamam de “economia”, sigam dando lucro. Esta mesma parcela do empresariado nacional é diretamente responsável pela eleição de um homem como Bolsonaro, cujas declarações brutais no Congresso já expunham os sinais de perversão patológica. Estes empresários são os herdeiros morais daqueles empresários que apoiaram e se beneficiaram da ditadura militar (1964-1985), quando não os mesmos.
Uma das tragédias do Brasil é a falta de um mínimo de espírito público por parte de suas elites financeiras. Elas não estão nem aí com os cartazes de papelão onde está escrita a palavra “Fome”, que se multiplicam pelas ruas de cidades como São Paulo. Como jamais se importaram com o genocídio dos jovens negros nas periferias urbanas do Brasil, parte deles mortos pelas PMs e suas “tropas de elite”. Adriano da Nóbrega – aquele que, caso não tivesse sido morto, poderia dizer qual era a profundidade da relação da família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro e também quem mandou assassinar Marielle Franco – pertencia ao BOPE, um destes grupos de elite.
Não há nada comparável à situação vivida hoje pelo Brasil sob o Governo de Bolsonaro. Mas ela só é possível porque, desde o início, se tolerou o envolvimento de parte das PMs com esquadrões da morte, na ditadura e além dela. Desde a redemocratização do país, na segunda metade dos anos 1980, nenhum dos governos combateu diretamente a banda podre das forças de segurança. Parte das PMs se converteu em milícias, aterrorizando as comunidades pobres, especialmente no Rio de Janeiro, e isso foi tolerado em nome da “governabilidade” e de projetos eleitorais com interesses comuns. Nos últimos anos as milícias deixaram de ser um Estado paralelo para se confundir com o próprio Estado.
A política perversa da “guerra às drogas”, um massacre em que só morrem pobres enquanto os negócios dos ricos aumentam e se diversificam, foi mantida mesmo por governos de esquerda e contra todas as conclusões dos pesquisadores e pesquisas sérias que não faltam no Brasil. E seguiu sustentando a violência de uma polícia que chega nos morros atirando para matar, inclusive em crianças, com a habitual desculpa de “confronto” com traficantes. Se atingem um estudante na escola ou uma criança brincando, é “efeito colateral”.
Desde os massivos protestos de 2013, governadores de diferentes estados acharam bastante conveniente que as PMs batessem em manifestantes. E como ela bateu. Era totalmente inconstitucional, mas em todas as esferas, poucos se importaram com esse comportamento: uma força pública agindo contra o cidadão. Os números de mortes cometidas por policiais, a maior parte delas vitimando pretos e pobres, segue aumentando e isso também segue sendo tolerado por uns e estimulado por outros. É quase patológica, para não dizer estúpida, a forma como parte das elites acredita que vai controlar descontrolados. Parecem nem desconfiar de que, em algum momento, eles vão trabalhar apenas para si mesmos e fazer os ex-chefes também de reféns.
Bolsonaro compreende essa lógica muito bem. Ele é um deles. Foi eleito defendendo explicitamente a violência policial durante os 30 anos como político profissional. Ele nunca escondeu o que defendia e sempre soube a quem agradecer pelos votos. Sergio Moro, o ministro que interditou a possibilidade de justiça, fez um projeto que permitia que os policiais fossem absolvidos em caso de assassinarem “sob violenta emoção”. Na prática é o que acontece, mas seria oficializado, e oficializar faz diferença. Essa parte do projeto foi vetada pelo Congresso, mas os policiais seguem pressionando com cada vez mais força. Neste momento, Bolsonaro acena com uma antiga reivindicação dos policiais: a unificação nacional da PM. Isso também interessa – e muito – a Bolsonaro.
Se uma parcela das polícias já não obedece aos governadores, a quem ela obedecerá? Se já não obedece a Constituição, a qual lei seguirá obedecendo? Bolsonaro é o seu líder moral. O que as polícias militares têm feito nos últimos anos, ao se amotinarem e tocarem o terror na população é o que Bolsonaro tentou fazer quando capitão do Exército e foi descoberto antes: tocar o terror, colocando bombas nos quartéis, para pressionar por melhores salários. É ele o precursor, o homem da vanguarda.
O que aconteceu com Bolsonaro então? Virou um pária? Uma pessoa em que ninguém poderia confiar porque totalmente fora de controle? Um homem visto como perigoso porque é capaz de qualquer loucura em nome de interesses corporativos? Não. Ao contrário. Foi eleito e reeleito deputado por quase três décadas. E, em 2018, virou presidente da República. Este é o exemplo. E aqui estamos nós. Vale a pergunta: se os policiais amotinados são apoiados pelo presidente da República e por seus filhos no Congresso, continua sendo motim?
Não se vira refém de uma hora para outra. É um processo. Não dá para enfrentar o horror do presente sem enfrentar o horror do passado porque o que o Brasil vive hoje não aconteceu de repente e não aconteceu sem silenciamentos de diferentes parcelas da sociedade e dos partidos políticos que ocuparam o poder. Para seguir em frente é preciso carregar os pecados junto e ser capaz de fazer melhor. Quando a classe média se calou diante do cotidiano de horror nas favelas e periferias é porque pensou que estaria a salvo. Quando políticos de esquerda tergiversaram, recuaram e não enfrentaram as milícias é porque pensaram que seria possível contornar. E aqui estamos nós. Ninguém está a salvo quando se aposta na violência e no caos. Ninguém controla os violentos.
Há ainda o capítulo especial da degradação moral das cúpulas fardadas. Os estrelados das Forças Armadas absolveram Bolsonaro lá atrás e hoje fazem ainda pior: compõem sua entourage no Governo. Até o general Ernesto Geisel, um dos presidentes militares da ditadura, dizia que não dava para confiar em Bolsonaro. Mas aí está ele, cercado por peitos medalhados. Os generais descobriram uma forma de voltar ao Planalto e parecem não se importar com o custo. Exatamente porque quem vai pagar são os outros.
As polícias são a base eleitoral mais fiel de Bolsonaro. Quando essas polícias se tornam autônomas, o que acontece? Convém jamais esquecer que Eduardo Bolsonaro disse antes da eleição que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal”. Um senador é atingido por balas disparadas a partir de um grupo de policiais amotinados e o mesmo filho zerotrês, um deputado federal, um homem público, vai às redes sociais defender os policiais. Não adianta gritar que é um absurdo, é totalmente lógico. Os Bolsonaros têm projeto de poder e sabem o que estão fazendo. Para quem vive da insegurança e do medo promovidos pelo caos, o que pode gerar mais caos e medo do que policiais amotinados?
É possível fazer muitas críticas justas a Cid Gomes. É possível enxergar a dose de cálculo em qualquer ação num ano eleitoral. Mas é preciso reconhecer que ele compreendeu o que está em curso e foi para a rua enfrentar com o peito aberto um grupo de funcionários públicos que usavam a estrutura do Estado para aterrorizar a população, multiplicando o número de mortes diárias no Ceará.
A ação que envergonha, ao contrário, é a do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), que, num estado em dificuldades, se submete à chantagem dos policiais e dá um aumento de quase 42% à categoria, enquanto outras estão em situação pior. É inaceitável que um homem público, responsável por tantos milhões de vidas de cidadãos, acredite que a chantagem vai parar depois que se aceita a primeira. Quem já foi ameaçado por policiais sabe que não há maior terror do que este, porque além de terem o Estado na mão, não há para quem pedir socorro.
Quando Bolsonaro tenta responsabilizar o governador Rui Costa (PT), da Bahia, pela morte do miliciano Adriano da Nóbrega, ele sabe muito bem a quem a polícia baiana obedece. Possivelmente não ao governador. A pergunta a se fazer é sempre quem são os maiores beneficiados pelo silenciamento do chefe do Escritório do Crime, um grupo de matadores profissionais a quem o filho do presidente, senador Flavio Bolsonaro, homenageou duas vezes e teria ido visitar na cadeia outras duas. Além, claro, de ter empregado parte da sua família no gabinete parlamentar.
Não sei se pegar uma retroescavadeira como fez o senador Cid Gomes é o melhor método, mas era necessário que alguém acordasse as pessoas lúcidas deste país para enfrentar o que está acontecendo antes que seja demasiado tarde. Longe de mim ser uma fã de Ciro Gomes, mas ele falou bem ao dizer: “Se você não tem a coragem de lutar, ao menos tenha a decência de respeitar quem luta”.
A hora de lutar está passando. O homem que planejava colocar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários é hoje o presidente do Brasil, está cercado de generais, alguns deles da ativa, e é o ídolo dos policiais que se amotinam para impor seus interesses pela força. Estes policiais estão acostumados a matar em nome do Estado, mesmo na democracia, e a raramente responder pelos seus crimes. Eles estão por toda a parte, são armados e há muito já não obedecem ninguém.
Bolsonaro têm sua imagem estampada nos vídeos que conclamam a população a protestar contra o Congresso em 15 de março e que ele mesmo passou a divulgar por WhatsApp. Se você não acha que pegar uma retroescavadeira é a solução, melhor pensar logo em outra estratégia, porque já está acontecendo. E, não se iluda, nem você estará a salvo.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum
Afonso Benites: Presidentes da Câmara e do STF criticam Bolsonaro por criar “tensão” e “clima de disputa permanente”
Oposição fala em impeachment de presidente e pede para Ministério Público investigá-lo por crime de responsabilidade após mandatário divulgar vídeo de manifestação contra Congresso
Os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli, criticaram a atitude do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que por meio de dois vídeos apócrifos chamou seus apoiadores e participarem de um protesto a favor dele, convocados para 15 de março. Os organizadores da manifestação também defendem o fechamento do Legislativo e da Corte Suprema. Maia e Toffoli pediram paz e harmonia. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), não se manifestou até a conclusão dessa reportagem.
Disse Maia em uma publicação em sua conta no Twitter: “Criar tensão institucional não ajuda o país a evoluir. Somos nós, autoridades, que temos de dar o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional. O Brasil precisa de paz e responsabilidade para progredir”. Enquanto que o magistrado se manifestou por meio da seguinte nota: “Sociedades livres e desenvolvidas nunca prescindiram de instituições sólidas para manter a sua integridade. Não existe democracia sem um Parlamento atuante, um Judiciário independente e um Executivo já legitimado pelo voto. O Brasil não pode conviver com um clima de disputa permanente. É preciso paz para construir o futuro. A convivência harmônica entre todos é o que constrói uma grande nação”.
Na noite de terça-feira, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma reportagem na qual mostrava o envio dos vídeos de Bolsonaro a um grupo de amigos pelo WhatsApp. O protesto do próximo dia 15 foi convocado por bolsonaristas depois que o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o general Augusto Heleno, foi flagrado chamando os parlamentares de chantagistas. Na semana passada, sem saber que estava sendo filmado em um evento públco pelo perfil oficial da Presidência, Heleno disse: “Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente o tempo todo. Foda-se”.
O pano de fundo desse debate é sobre o controle de 30 bilhões de reais do Orçamento da União. O valor representa menos de 1% de todo orçamento federal. A legislação aprovada no Congresso prevê que os parlamentares possam definir de maneira impositiva onde aplicar esses recursos. O presidente vetou esse trecho da lei e o veto presidencial deve ser votado no próximo dia 3. É sobre esse assunto que Heleno se queixou.
Nesta quarta-feira, o presidente não falou com jornalistas, como costuma fazer quase diariamente. Em seu Twitter, Bolsonaro minimizou o episódio e afirmou que há uma tentativa de tumultuar o país. “Tenho 35Mi de seguidores em minhas mídias sociais, c/ notícias não divulgadas por parte da imprensa tradicional. No Whatsapp, algumas dezenas de amigos onde trocamos mensagens de cunho pessoal. Qualquer ilação fora desse contexto são tentativas rasteiras de tumultuar a República”.
Desde a fala de Heleno, diversas convocações para protestar em apoio a Bolsonaro começaram a surgir. Em uma delas, está escrito em uma montagem: os generais aguardam as ordens do povo. Fora Maia e Alcolumbre. É acompanhada de imagens de quatro generais da reserva: o vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB), o ministro Augusto Heleno, o deputado federal General Peternelli (PSL-SP) e o ex-ministro Sérgio Etchegoyen. Heleno, Peternelli e Mourão disseram que seus nomes têm sido usados indevidamente. Etchegoyen se calou sobre as imagens. O vice ainda defendeu Bolsonaro: “Não autorizei o uso de minha imagem por ninguém, mas protestos fazem parte da democracia que não precisa de pescadores de águas turvas para defendê-la. O presidente Jair Bolsonaro não atacou as instituições, que estão funcionando normalmente.”
Não autorizei o uso de minha imagem por ninguém, mas protestos fazem parte da democracia que não precisa de pescadores de águas turvas para defendê-la. O presidente @JairBolsonaro não atacou as instituições, que estão funcionando normalmente.
Oposição quer impeachment
Nesse cenário, a oposição tem se unido para pedir o impeachment do presidente. Internamente o assunto tem sido debatido no PT. O PSOL, por sua vez, fez uma representação junto ao Ministério Público Federal, alegando que o presidente cometeu crime de responsabilidade. A bancada do PSOL diz que as mensagens de Bolsonaro são de “cunho autoritário e antidemocráticas”. Alegam que elas infringem o artigo 85 da Constituição pois atentariam contra o livre exercício do Poder Legislativo, o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais e contra a probidade da administração.
O líder da oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ), pediu uma união de forças contra o presidente: “Temos que parar Bolsonaro! Basta! As forças democráticas deste país têm que se unir agora. Já! É inadiável uma reunião de forças contra esse poder autoritário”.
No Senado, até parlamentares que se consideram governistas, como o líder do PSL Major Olímpio, reclamaram da atitude do presidente e de algum de seus aliados. “Protestar a favor do presidente, tudo bem. Agora, integrantes do Governo Bolsonaro estimularem manifestações agressivas ou induzirem eventual fechamento do Congresso é um atentado contra a democracia. Temos de serenar os ânimos”.
Um outro apoiador do presidente, o deputado Coronel Tadeu (PSL-SP) afirmou que a imprensa se baseia em fake News para dizer que o mandatário estaria pedindo apoio à manifestação e disse não encontrar indícios para uma eventual destituição dele. “Esse vídeo não é uma convocação. Não existe nada de errado, nada de anormal para que um processo de impeachment seja aberto”.
O PSDB, que não se considera governista, mas tem filiados ocupando cargos no primeiro e segundo escalões da Esplanada dos Ministérios, pediu debate entre os poderes e demonstrou-se preocupado com aprovação das reformas administrativa e tributária. “O momento é de diálogo entre os Poderes e não de ações que tumultuam o ambiente político”, afirmou o líder da legenda na Câmara, Carlos Sampaio.
Do Ministério Público Federal, nenhuma manifestação oficial. Quem falou, também pelo seu Twitter pessoal, foi o secretário de Direitos Humanos da Procuradoria Geral da República, Ailton Benedito, um influencer da direita bolsonarista. “As instituições do Estado, especialmente os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, não se reduzem às pessoas que eventualmente ocupam cargos nas suas estruturas. Críticas a agentes públicos, por seus atos, devem ser compreendidas como exercício da democracia”.
Não é a primeira vez que Bolsonaro dá apoio a manifestações que miram a artilharia para os outros poderes. Em maio do ano passado, o chamado “bolsonarismo puro” saiu às ruas pela primeira vez sem o apoio das forças forjadas na campanha do impeachment, as mesmas que estiveram ao seu lado na campanha presidencial. Na época, as manifestações foram grandes o suficiente para mostrar o poder de mobilização do presidente, mas não tão grandes como em 2015 e 2016, a ponto de amedrontar Brasília. Agora, o clã presidencial endossa mais um movimento e será testado novamente.
El País: 'Num mundo de incertezas, quem oferece esclarecimento enganoso é recompensado na política', diz Daniel Innerarity
Filósofo basco Daniel Innerarity esboça em seu novo livro um plano de choque para transformar a democracia e garantir sua sobrevivência. Ele defende um ‘reset’ radical da política
Por Miquel Alberola, do El País
O filósofo (Bilbao, 60 anos) é um dos grandes pensadores do mundo de acordo com a revista Le Nouvel Observateur. Sua solvência no âmbito do pensamento é provada em uma dezena de ensaios como La sociedad invisible (A Sociedade Invisível), Los tiempos de la indignación (Os Tempos da Indignação), Un mundo de todos y de nadie (Um Mundo de todos e de Ninguém) e La democracia del conocimiento (A Democracia do Conhecimento). Agora, o professor de Filosofia Política e Social da Universidade do País Basco acaba de publicar Una teoría de la democracia compleja. Gobernar en el siglo XXI (Uma Teoria da Democracia Complexa. Governar no Século XXI, ainda inédito no Brasil), cuja primeira edição se esgotou em dois dias na Espanha, em que esboça a necessidade de transformar o sistema para sua sobrevivência.
Pergunta. Seu livro apresenta um plano de choque à democracia. Propõe uma democracia mais sustentada na biologia do que na física.
Resposta. O paradigma das instituições modernas da democracia é a relação entre forças físicas tal como foram definidas por Newton e Laplace. Jefferson, por exemplo, gostava muito de física. Quando se analisa uma ideia tão fundamental ao sistema político como o checks and balances, pesos e contrapesos, é um universo de inércias e gravidade. A pergunta que abre o livro é se a reflexão política fez a passagem que as ciências da natureza realizaram, que desde então passaram por Einstein, Heisenberg, os avanços da neurociência, a teoria da emergência, das causalidades não lineares... Minha resposta é não. Ainda estamos pensando na política em um universo newtoniano.
P. No que a democracia ficou defasada?
R. Em quase tudo. Com exceção do núcleo de valores, de princípios normativos para os quais nunca encontraremos um substituto útil: a ideia de autogoverno, de igualdade, de representação, de deliberação, de justiça... Essas ideias não sofrerão grandes evoluções, a não ser que precisem se concretizar em contextos diferentes. Mas o restante das ideias... Nosso conceito de soberanias, territorialidade, autarquia, de poder, sofreram uma transformação que contrasta muito com a evolução feita pelos que se dedicam a pensar nessas coisas e os que exercem a política prática.
P. A questão, portanto, não são ajustes, e sim redefinir o sistema.
R. Projetamos um sistema para sociedades que cumpriam condições como simplicidade, autarquia, abrangência e instrumentos tecnológicos de pouquíssima sofisticação. E em 300 anos teremos um mundo interdependente, espaços abertos, soberanias compartilhadas em muitas regiões do mundo (ou pelo menos relações poliárquicas), uma sociedade muito mais plural, mais granular, mais diversificada... Já não funciona que os que estavam no Governo supostamente concentravam o maior nível de conhecimento frente a uma massa que sabia pouco. Hoje os Executivos precisam governar com subsistemas muito inteligentes. Isso significa um reset radical da política. Não estamos diante da típica reforma administrativa, sequer constitucional.
P. Essa redefinição é urgente?
R. Devemos realizar já certas revisões de nossos conceitos e o quanto antes, melhor. Para muitas coisas já chegamos tarde. Por exemplo a crise climática. Para a robotização, em parte, também. Mas esse é um processo que também tem um longo percurso. Deveríamos conseguir que as instituições políticas de vários formatos incorporem em seu estilo de governo dimensões cognitivas e reflexivas. Estamos passando de uma época em que as instituições estavam acostumadas a dar ordens a um mundo em que se deve dedicar o maior tempo possível a aprender.
P. Como fazer essa passagem ao “governo dos sistemas inteligentes” sem danificar seus princípios?
R. É o grande desafio. A direita costuma ter uma linguagem de adaptação: é preciso se adaptar às mudanças sem se preocupar muito pelos critérios de legitimidade que podemos estar carregando em certas adaptações. Em certa parte da esquerda, o que temos é um discurso de impugnação, da desordem do mundo, das injustiças e uma atitude receosa em relação às tecnologias e à globalização. Entre essas duas concepções equivocadas da vontade política (adaptação e repúdio) se abre todo um campo que deveria ser presidido por como conseguir realizar (não adaptar) os ideais irrenunciáveis da democracia em contextos e situações que vão mudando com o passar do tempo.
P. Sabemos como?
R. Não seria honesto apresentar meu livro como uma solução a todas essas questões. Meu livro pretende ser uma caixa de ferramentas para começar com essa tarefa. Não sei como construir o mecanismo, mas proporciono alguns instrumentos que podem ajudar muita gente, porque precisamos fazer isso entre todos: governantes que abandonem esse foco obsessivo no curto prazo e na escaramuça imediata, mas também a população, os veículos de comunicação...
P. O senhor considera que a principal ameaça da democracia é a simplicidade. Não é um contrassenso?
R. Simplicidade, no sentido da simplificação. Em uma versão dupla. Em primeiro lugar, há várias disfuncionalidades na política porque há um contraste entre os conceitos que recebemos e as realidades com as quais estamos lidando. Essa simplificação, conceitos políticos que levam em consideração a riqueza da sociedade e dos novos entornos, é a primeira. Mas há outro tipo de simplificação, mais de ordem prática, que tem a ver justamente com esse mundo da complexidade, cheio de incertezas em que estamos navegando como podemos, em que, pelo menos a curto prazo, os simplificadores têm todas as chances de ganhar. Quem oferece um consolo passageiro, um esclarecimento enganoso do panorama é recompensado em termos políticos.
P. Como Donald Trump e Boris Johnson?
R. Por exemplo. Quem fala de construir um muro para delimitar um espaço, todo mundo entende isso. Quem fala de recuperar um controle que havíamos perdido, mais da metade dos eleitores britânicos entende isso.
P. A democracia se torna complexa e a política se simplifica.
R. Ou, pelo menos, a política não tem o nível de complexidade adequado à sociedade que deve gerir. É o famoso princípio de Ashby de que não podemos desenvolver um sistema inteligente se não desenvolvermos um nível semelhante de complexidade. E se ele não existe, o que se deve fazer é transacionar e estabelecer uma relação mais horizontal. Quando o regulador é mais inteligente do que o regulado, a relação pode ser vertical e funciona bem; quando estão igualados, na verdade desequilibrados no sentido contrário, o que se deve fazer é obter informação, acertar com o regulado um certo tipo de troca entre informação e legitimidade.
P. O senhor fala de proteger a democracia de si mesma, ou seja, da imaturidade, fraqueza, incerteza e impaciência da população.
R. A soberania popular, para que não aja irreflexivamente, seja mais deliberativa e produza melhores resultados, precisa estar bem-organizada. O soberano tem a última palavra, mas também sabemos que se equivoca muitas vezes. Pensamos que a democracia é soberania popular e nos damos conta de que a autolimitação da soberania popular faz parte da soberania popular. De fato, todos nós o fazemos. Estamos colocando limitações no plano pessoal e coletivo para justamente ter uma maior liberdade.
P. A democracia é até um instrumento útil para os que pretendem atacá-la.
R. Não podemos proteger a democracia ao extremo de não correr alguns riscos. É um sistema aberto, em que há liberdade de expressão, em que qualquer um pode entrar (o direito de sufrágio passivo está aberto a todo mundo),... E mais, quando se horizontalizou muito e existem cada vez menos guardiões da porta: os jornais já não têm a verticalidade que tinham, os partidos não são organizações férreas, os próprios agentes políticos estão submetidos ao monitoramento de todos os pontos de vista... A democracia, por sua própria definição, será sempre um sistema de governo frágil e vulnerável. E precisamos aprender a gerir essa vulnerabilidade.
P. A perda de confiança nas instituições e intermediadores é uma causa ou um efeito do que acontece à democracia?
R. Todas as instituições que estabeleciam uma intermediação entre o público e o interesse geral foram desafiadas pela sedução do imediatismo. Já existem muitas utopias que colocam que o melhor esquema de agregação das microvontades é criar um dispositivo que sem nenhuma deliberação reunisse nossos desejos. Diante disso, defendo que uma política de mediações bem configurada pode ser mais igualitária do que a pura espontaneidade da agregação de vontades individuais através de telas de computador. A justificativa da mediação política é corrigir os vieses que estão na sociedade e nos sistemas informatizados: a defesa dos interesses que não podem se fazer valer em uma sociedade entendida como o choque e o combate espontâneo das forças em jogo, onde costumam ganhar, que casualidade, os que têm outro tipo de poder.
P. O senhor afirma que a categorização esquerda-direita também responde a uma simplificação da complexidade ideológica.
R. O que não significa que não possamos continuar utilizando-a e que não entendamos todos perfeitamente o que queremos dizer quando nos referimos à esquerda e à direita. Primeiro, precisamos pensá-la com um pouco menos de profundidade. Segundo, não se pode entender como a clássica contraposição Estado-mercado, da qual viemos. E terceiro, terá que conviver com outros eixos de confronto porque não são os únicos que funcionam na sociedade.
P. Dizer que a direita e a esquerda já não existem costuma ser um argumento de direita?
R. Uma pessoa que o diz costuma refutar a politização das coisas. E a despolitização das coisas costuma beneficiar os que já têm poder.
P. O independentismo é uma solução simples em meio a esse mare-magnum de complexidade?
R. É uma opção pessoal cuja plausibilidade aumenta na medida em que o sistema político é incapaz de canalizar com uma lógica democrática, deliberativa, de negociação, reivindicações fortes de identidade plurinacional.
P. A questão da Catalunha é um problema complexo abordado com muita simplicidade?
R. Sem dúvida. Falei com muitos líderes políticos sobre a Catalunha imaginando qual seria uma solução razoável praticável para o conflito catalão. Do ponto de vista teórico não há grandes dificuldades. Bastaria pensar de que modo a democracia se realiza em um sistema político composto, como o que temos. Pensar que a unidade de que se fala na Constituição é compatível com uma redistribuição diferente do poder. Idealizar mecanismos de reciprocidade, em virtude dos quais a cessão de uma parte seja compensada com a cessão de outra, e gerar um marco de confiança para uma negociação. O grande problema é quem o faz: quem tem liderança suficiente nos dois mundos, em um momento em que, além disso, os tea partys são numerosos, para explicar aos próprios que existem coisas melhores do que uma vitória. Por exemplo, um grande acordo.
P. As tensões territoriais estão na Catalunha, mas também em León e em Teruel. O Estado-nação está desmoronando?
R. No livro o que apresento é que temos que conceber os espaços políticos de uma maneira mais poliárquica. No conflito catalão há uma pressão porque não existe nenhuma assimetria em relação a outras comunidades autônomas, algo tremendamente disfuncional, porque não haverá uma solução na Catalunha se não existir uma especificidade reconhecida constitucionalmente. Depois vêm os casos como Teruel Existe e a Espanha Esvaziada. E Madri, como grande centro de sucção de recursos e com certas formas de competitividade de outros centros alternativos, como Barcelona, Valência, Sevilha e Bilbao. Estamos realmente diante de uma definição do espaço no qual queremos viver e isso, em si mesmo, não me parece um problema. Vê-lo com uma certa displicência, como se fosse uma espécie de retorno do tribalismo e de rebelião das províncias, me parece que reflete uma maneira muito elitista e muito madrilenha de ver as coisas. Isso dito por uma pessoa que gosta muito e sente-se muito bem em Madri.
P. Há uma disputa entre a cidade-Estado e a nação-Estado?
R. Sem dúvida. Madri é um exemplo de um centro em uma sociedade que já não pode se organizar a partir de um centro. A única maneira de se reorganizar a partir de um centro é fazê-lo de maneira tremendamente disfuncional e tremendamente desigual.
El País: Ala radicalizada da PM no Ceará ecoa bolsonarismo e cria bomba-relógio difícil de desarmar
Motim expõe disputas internas na corporação e não tem liderança clara. Eleição municipal e contexto nacional turvam xadrez político. Estado, que terá Exército nas ruas, contabiliza 51 mortos em 48 horas
Está fragmentado e sem lideranças definidas o movimento grevista de policiais militares no Ceará ―cuja escalada de tensão chegou ao ápice na última quarta-feira, quando o senador Cid Gomes foi atingido por dois tiros enquanto tentava entrar, dirigindo uma retroescavadeira, numa área militar ocupada por pessoas encapuzadas na cidade de Sobral. O episódio agravou uma crise que começou a se desenhar no fim do ano passado, com as negociações por reajuste salarial para a categoria. O governador Camilo Santana chegou a incorporar algumas das reivindicações na sua proposta inicial e, embora associações ligadas aos policiais tenham chegado a aceitar um acordo, parte da base o recusou e se rebelou. Batalhões em distintas cidades foram ocupados desde então. E um clima de pânico se abateu sobre o Estado diante da paralisação de parte da PM às vésperas do Carnaval. Quatro policiais foram presos e outros 300 estão sendo investigados por crimes que vão da tomada de viaturas civis ao incêndio de veículos de cidadãos críticos ao movimento. Em meio a uma categoria rachada e uma crise explorada à exaustão por políticos locais e nacionais, um novo protagonista tem se fortalecido: uma ala mais radical da corporação, formada principalmente por jovens soldados e empoderada por um discurso autoritário que vem ganhando força nas polícias na esteira do bolsonarismo.
“Foi a primeira vez na vida que vimos um quartel ocupado dessa forma. Todos encapuzados. Não dá pra saber quantos são policiais nem se eles são mesmo policiais”, relatou o senador pelo Estado de São Paulo, Major Olímpio, que visitou um dos batalhões ocupados, em Fortaleza. O político integra a comitiva de senadores que foi até o Ceará para buscar uma saída à crise. O receio deles é de que a grave crise local provoque um efeito dominó violento no restante do país, em um contexto no qual pelo menos seis estados já receberam demandas desses trabalhadores, que têm porte de armas de fogo e são proibidos por lei de fazer greve. Os holofotes sobre o Ceará, porém, também expõem um xadrez de políticos locais e nacionais que têm ajudado a converter a crise em uma bomba-relógio difícil de ser desarmada. Segundo levantamento do site G1, foram ao menos 51 mortes nas últimas 48 horas no Estado, contra uma média de 6 assassinatos por dia em 2020 até então. Entre as vítimas, há desde uma mãe que foi morta diante dos filhos durante um assalto a um adolescente morto por homens em motocicletas.
O presidente Jair Bolsonaro, principal autoridade do país e eleito com apoio de categorias policiais, ainda não condenou os motins em unidades militares cearenses. Em uma live no Facebook na noite da última quinta-feira, anunciou ter autorizado o envio das Forças Armadas ao Estado e voltou a defender o excludente de ilicitude para militares que atuarão na crise. “Se estamos em guerra urbana, temos que mandar gente para lá para resolver esse problema", afirmou. Horas antes, o ex-ministro Ciro Gomes (PDT) havia acusado Bolsonaro de empoderar os manifestantes mais radicalizados com seu discurso, que inclui perdão a agentes de segurança pública que tenham cometido crimes culposos. “Você acha que um garoto de 20 e poucos anos teria coragem de atirar em uma pessoa assim se não achasse que estava a serviço do poder maior no Brasil?”, perguntou o pedetista a jornalistas. Ciro também citou como parte desse empoderamento a presença de uma deputada federal do Rio de Janeiro ligada à família Bolsonaro no Estado. Major Fabiana chegou ao Ceará na quarta-feira acompanhada de lideranças locais que fizeram carreira política a partir de uma greve anterior, em 2012, quando Cid era governador. “Pela primeira vez a gente tem um presidente que sabe o que é ser policial militar”, discursou a grevistas num quartel ocupado, interrompida por gritos de “mito! mito!”.
Em meio a essa disputa política, o motim que começou com as reivindicações salariais ganhou ainda outra pauta prioritária diante da escalada de tensão dos últimos dias que terminou com um senador baleado: a anistia de policiais amotinados nos batalhões. O governador Camilo Santana ―aliado da família Ferreira Gomes― já sinalizou não estar disposto a discutir a proposta. O Governo não demitiu nenhum grevista até o momento, mas já anunciou que cortará salários de quem não se apresentar ao trabalho. Ainda assim, policiais decidiram manter a paralisação. “Quem pode resolver isso está fazendo uma estratégia equivocada. Eles [policiais] agora precisam lutar para garantir pelo menos a anistia”, diz o vereador de Fortaleza, Sargento Reginauro, que também fez carreira política na esteira das mobilizações policiais dos últimos anos. As tensões que explodem agora não são inéditas. A atual crise no Ceará é marcada por uma série de mudanças alcançadas a partir de outro movimento grevista, há quase uma década, que influenciou tanto decisões nas políticas de segurança do Estado quanto mudou estruturas na corporação. Especificamente no Ceará, as principais forças de oposição tanto no âmbito da Prefeitura de Fortaleza quanto do Governo do Estado é composta por políticos que alçaram carreira a partir de greves policiais.
As origens da crise
Quando policiais militares do Ceará pararam suas atividades em dezembro de 2011, a capital Fortaleza se converteu praticamente em uma cidade fantasma, com comércios fechados e um toque de recolher informal que a população assumiu pelo medo. Um pânico generalizado tomou a quinta capital brasileira por ao menos um dia, que precedeu outros cinco de tensão, mesmo com os reforços da Força Nacional. Homens encapuzados ―supostamente policiais que reivindicavam melhorias salariais ao então governador Cid Gomes― furavam pneus de viaturas e tomavam as chaves de batalhões para impedir que colegas que não aderiram à greve trabalhassem. Cabia às esposas deles o papel de mostrar à sociedade as insatisfações da categoria, uma estratégia para blindar os maridos de represálias administrativas e buscar um apoio popular que acabou vindo em alguma medida.
No meio daquela crise, um nome se instalou no debate público cearense. Capitão Wagner ―um suplente de deputado até então desconhecido fora das corporações policiais― despontou como a principal liderança do movimento. Wagner havia fundado uma associação de agentes de segurança e costumava usar frequentemente as redes sociais (à época Orkut e Facebook) para denunciar a cúpula de segurança no Estado. Aglutinava em torno de si várias forças de uma categoria que conta com pelo menos oito associações representativas no estado do Ceará. A greve lhe impulsionou politicamente. No mesmo ano, foi eleito o vereador mais votado da história de Fortaleza. Depois, conquistou mandatos na Assembleia Legislativa e na Câmara Federal. E ainda ajudou a eleger a diferentes Parlamentos pelo menos outros três policiais de distintas patentes que atuaram naquela greve ao seu lado: Cabo Sabino, Soldado Noélio e Major Reginauro.
Personagem central do aumento da representatividade dos policiais militares no parlamento cearense, Capitão Wagner (PROS) têm usado com frequência as redes sociais nos últimos para denunciar a “falta de diálogo” do Governo com os policiais militares, mas tem modulado o discurso. Ele é um dos principais pré-candidatos à Prefeitura de Fortaleza nas eleições deste ano e demorou a apoiar publicamente o presidente Bolsonaro, que não venceu as últimas eleições na capital cearense. Até o momento, Wagner não têm um oponente claro para a corrida municipal. Embora ainda seja influente na categoria, já não tem a mesma centralidade que tinha na greve de janeiro de 2012 sobre ela.
“Não existe uma representação homogênea [no movimento de policiais militares do Ceará]. Não dá pra tratar como se fosse uma coisa só”, explica o deputado estadual Renato Roseno (PSOL), com forte atuação na área de segurança e direitos humanos. Ele conta que o efetivo da PM no Ceará quase dobrou nos últimos dez anos e que há lideranças muito diferentes entre os 21.000 agentes que integram a corporação hoje. Além disso, são cerca de 10.000 novos agentes que não vivenciaram a greve de 2011. Uma ala mais radicalizada nesse movimento, a maioria de soldados, estaria agindo principalmente na periferia da capital e em cidades do interior. “Há policiais atuando como milícias, aterrorizando a população”, acusa.
A esse contexto, o pesquisador Luiz Fábio Paiva adiciona outro: o histórico processo de intervenção política nas polícias. “Cada nova gestão teve a Polícia Militar como objeto. No Ceará, tivemos políticos testando programas de segurança que interferiam na estruturação das polícias. Isso tem efeitos”, explica Paiva. Quando assumiu o Governo do Ceará, Cid Gomes criou um programa chamado Ronda do Quarteirão, que criava uma polícia de monitoramento com melhores salários, farda desenhada por estilistas e Hilux como veículos oficiais. As diferenças nas condições geraram animosidades dentro da corporação. Quando Camilo Santana assume o poder, institui uma política semelhante, dessa vez dando melhores condições ao Raio (polícia especializada que atua na Ronda de Ações Intensivas e Ostensivas). “Os Governos historicamente tentam criar suas próprias polícias dentro da PM”, analisa o pesquisador.
O histórico conflito entre as bases policiais e os Governos agora ganham maior imprevisibilidade no Ceará. “Temos um Governo Federal que estimula a violência, a agressão contra politicos de oposição, contra jornalistas, contra quem pensa diferente. É preciso ficar atento a como esse discurso repercute nas bases das polícias”, alerta Paiva. Apesar da escalada violenta no Estado nos últimos dias (foram 51 homicídios em 48 horas de greve), o pesquisador pondera para falar de atuação de milícias no Ceará. “É complicado falar que há milícia no modelo que existe no Rio de janeiro. Historicamente, o Ceará tem grupos armados, grupos de extermínio, com a presença de policiais. Neste momento, o que a gente observa é como esses grupos estão se sentindo à vontade para operar. Por mais esdrúxulo que possa parecer, esses grupos encapuzados que estão secando pneus da viatura produzindo esse enfrentamento de fato mostram a fragilidade das instituições no Brasil”, afirma.
El País: Conflito escala com disputa política sobre motim de PMs no Ceará e espiral de agressões
“O hoje parece muito pior que ontem” é o ditado do momento em Brasília. Bolsonaro autoriza envio de Forças Armadas ao Estado e volta a defender isenção de culpa para militares que matarem em serviço
Na Brasília de 2020, há um ditado do momento: “o hoje parece muito pior que ontem”. E a semana que se encerra neste sábado de Carnaval faz jus ao bordão. Começou com o presidente aderindo aos ataques machistas contra uma repórter, seguiu com um ministro chamando parlamentares de chantageadores e um ex-presidente depondo sob a suspeita de infringir a lei de segurança nacional. Foi quando um senador da oposição foi baleado enquanto usava um trator para investir contra um quartel com policiais militares amotinados. Tudo culminou em uma espiral de ataques entre os políticos e a decisão de enviar o Exército para debelar o motim policial. Em outros tempos, poderia se imaginar que o país estaria à beira de uma convulsão. Nos dias de hoje, contudo, a tendência é que esses fatos sejam esquecidos durante a farra carnavalesca —ou soterrados por desdobramentos ainda mais absurdos.
O clima de beligerância na política brasileira ficou bem delimitado no arroubo do senador licenciado Cid Gomes (PDT-CE), que é opositor de Bolsonaro e apoiador do governador cearense Camilo Santana (PT), chefe da polícia local. Na quarta, Cid usou uma retroescavadeira para investir contra um quartel onde policiais militares amotinados protestavam em Sobral. O senador levou dois tiros no tórax, disparados por PMs que estavam com os rostos encobertos. O ato foi definido pelo diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o sociólogo Renato Sérgio de Lima, como um “momento de insanidade coletiva”. “É preciso urgente frear a escalada de confrontos e violência”, disse.
A contenção dos ânimos, no entanto, não foi o que se viu na quarta-feira. O jornal O Povo, de Fortaleza, publicou vídeo em que policiais encapuzados cercam uma viatura numa via importante da cidade, num cenário em que a avaliação da adesão à paralisação, às vésperas do feriado, ainda era incerta. Enquanto o governador recebia lideranças parlamentares ligadas aos policiais, Ciro Gomes atacava diretamente o presidente Jair Bolsonaro por insuflar o contingente de PMs e defendia o ato de seu irmão Cid: “Não se enfrenta o fascismo com flores.”
Jair Bolsonaro, por sua vez, usou sua transmissão semanal via Facebook para comentar a decisão de enviar as Forças Armadas ao Ceará, que atuarão respaldadas por um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Bolsoanaro aproveitou para voltar a defender que os militares que cometam homicídio durante as ações do tipo GLO não sejam punidos, por meio da extensão do chamado excludente de ilicitide. “É uma irresponsabilidade. Até 30 anos de cadeia nesse garoto que tem uma namorada, que tem um time de futebol, que tem uma vida social, que é um inocente. E que por estar com um fuzil, é atacado muitas vezes e reage. Vai que morre inocente, porque pode morrer inocente. De quem é a responsabilidade?”, disse, segundo registro da Folha de S. Paulo.
A democracia nunca esteve tão forte?
Nesse cenário, de rompantes de um lado e de outro, cresce o debate a sobre os perigos impostos à democracia. Algo que o Bolsonaro refuta. Na semana em que o presidente se fecha no Palácio do Planalto entre um quarteto de ministros militares, sem prévia experiência na política, ele sentenciou pelo seu Twitter: “A democracia nunca esteve tão forte”. Será?
Na última semana, o chefe do GSI, o general da reserva Augusto Heleno, foi flagrado por uma transmissão oficial na internet proferindo a seguinte frase: “Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente o tempo todo. Foda-se”. Esses “caras”, citados pelo militar, são congressistas que conseguiram se articular para garantir o controle de 30 bilhões de reais do orçamento da União por meio de emendas impositivas. Ou seja, o Governo perderia autonomia sobre essa fatia de suas despesas e seria obrigado a investir onde os deputados e senadores determinassem. As reações a essa fala foram quase instantâneas. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) chamou Heleno de “radical ideológico”. Alcolumbre afirmou “nenhum ataque à democracia será tolerado pelo Parlamento”.
Outro campo de batalha entre bolsonaristas e seus opositores também ocorre nas redes sociais, onde ainda reverberam os impropérios de cunho sexual que o presidente disparou contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo. O presidente aderiu ao discurso falso de Hans River do Rio Nascimento de que a repórter se insinuou sexualmente a ele para obter informações que pudessem comprometer Bolsonaro na campanha eleitoral de 2018. Ela escreveu uma série de reportagens que demonstravam o uso das milícias digitais e a compra de disparos de fake News por meio do WhatsApp e Nascimento foi uma de suas fontes. O resultado: os esquerdistas pediram o seu impeachment, enquanto que os radicais da direita tentam angariar apoio para promover um ato de apoio a ele, no dia 15 de março.
Na mesma toada de verdades e meias verdades, a CPI Fake News também serviu de palco para que o antigo patrão de Nascimento na empresa que disparou mensagens pró-Bolsonaro omitisse informações relevantes. O empresário Lindolfo Antônio Alves Neto, da Yacows, escondeu em um documento entregue à CPI das Fake News os nomes de dois dos três presidenciáveis (Bolsonaro e Fernando Haddad) para quem prestou serviço na campanha de 2018. Pressionado, admitiu que prestou o serviço a eles indiretamente, por meio de outras agências de comunicação. Contradizendo-se, acabou confessando que nem tudo o que era disseminado pela sua empresa era previamente analisado, ou seja, não sabia se boatos acabavam sendo disparados pelo seu sistema de envio de mensagens. Para não se incriminar, abriu mão de declarar que tudo o que dizia era verdade. E deu munição, mais uma vez, para os dois lados. Uns dizendo que Bolsonaro fora inocentado. Outros, afirmando que não era possível provar nada com o discurso falacioso de Alves Neto.
Quando o Carnaval passar
Em meio à espiral de conflitos, o Governo ultraconservador espera aproveitar o Carnaval, a festa nacional a qual não demonstra tanta simpatia, para acalmar a situação ao menos no Congresso. A oposição, no entanto, lutará para manter as polêmicas vivas nesses 12 dias de folga parlamentar e, dessa maneira, protelar ainda mais a reforma tributária e administrativa que o Executivo e parte do Legislativo querem aprovar.
Na primeira semana de março, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), ameaça colocar em votação um pedido de convocação do general Augusto Heleno. A solicitação, elaborada pela bancada do PT, é para que o ministro explique seus ataques verbais contra parlamentares. Na Câmara, Maia se deparará com a tentativa de convocação do ministro da Justiça, Sergio Moro. A oposição o acusa de usar a Polícia Federal para usos políticos, já que abriu um inquérito para investigar se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) infringiu a lei da segurança nacional ao chamar o presidente Bolsonaro de miliciano. O inquérito contra o petista acabou arquivado no mesmo dia em que ele prestou depoimento a policiais federais.
El País: General Heleno diz que parlamentares “chantageiam” Governo e abre novo embate com o Congresso
Flagrado em áudio privado, ministro reclama do Parlamento por tentar avançar no controle do orçamento. Maia reage e chama general da reserva de “radical ideológico”
A queda de braço entre o Executivo e o Congresso ganhou músculos nesta quarta-feira em Brasília, quando veio a público uma gravação vazada do ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, em que expunha sua insatisfação com os parlamentares. Heleno se queixava da pressão do Parlamento por derrubar os vetos do presidente Jair Bolsonaro ao orçamento impositivo. Sem os vetos, deputados e senadores teriam mais controle sobre os recursos do orçamento. Sem saber que estava sendo gravado, o general falou em “chantagem” do Legislativo para aumentar o controle sobre o dinheiro do orçamento da União, segundo o jornal O Globo. “Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente o tempo todo. Foda-se”, disse Heleno, na presença do ministro da Economia, Paulo Guedes, e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo. A fala do general foi captada em transmissão ao vivo da presidência da República em cerimônia de hasteamento da bandeira no Palácio do Planalto.
Sua fala caiu como uma bomba nas já tensas relações entre os dois poderes. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, rebateu a fala do general um tom acima do habitual. Maia qualificou o ministro do GSI como “radical ideológico”. “Geralmente na vida, quando a gente vai ficando mais velho vai ganhando equilíbrio, experiência e paciência. O ministro pelo jeito está ficando mais velho e está falando como um jovem”, declarou na manhã desta quarta. “Uma pena que um ministro com tantos títulos tenha se transformado num radical ideológico”.
O imbróglio obrigou Heleno a se explicar no Twitter nesta quarta. “Externei minha visão sobre as insaciáveis reivindicações de alguns parlamentares por fatias do orçamento impositivo, o que reduz, substancialmente, o orçamento do Poder Executivo e de seus respectivos ministérios. Isso, a meu ver, prejudica a atuação do Executivo e contraria os preceitos de um regime presidencialista”, escreveu Heleno, que avaliou o vazamento do áudio como “mais um lamentável episódio de invasão de privacidade, hábito louvado no Brasil”.
Em mais um lamentável episódio de invasão de privacidade, hábito louvado no Brasil, vazou para a imprensa uma conversa que tive com o Dr. Paulo Guedes e o Gen. Ramos.
O Legislativo se articula para ganhar mais poder sobre parte de 80 bilhões de reais do orçamento. Os parlamentares querem ter controle sobre 30 bilhões desse total. O Governo não está de acordo com esse movimento do Congresso. Mas coube a Heleno, ainda que involuntariamente, o papel de porta-voz dessa insatisfação do Planalto. Segundo ele, “as insaciáveis reivindicações” de parlamentares por fatias do chamado orçamento impositivo prejudicam a atuação do Governo, o que transparece, segundo ele, um desejo de implementar o parlamentarismo no Brasil. “Se desejam o parlamentarismo, mudem a constituição. Sendo assim, não falarei mais sobre o assunto”, completou no Twitter.
Troca de farpas e harmonia
Rodrigo Maia aproveitou o episódio para alfinetar o general. Segundo Maia, não houve por parte de Heleno nenhum tipo de ataque ao Parlamento quando o Congresso “estava votando o aumento do salário dele como militar da reserva”. “Quero saber deles se ele acha que o Parlamento foi chantageado por ele ou por alguém para votar o projeto de lei das Forças Armadas”, afirmou Maia. A troca de farpas acontece em um momento em que o Governo Bolsonaro tenta encampar no Congresso uma séria de medidas econômicas, como a reforma administrativa, o pacto federativo e a reforma tributária.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) também se manifestou sobre a fala de Heleno. O senador disse, por meio de nota, que “nenhum ataque à democracia será tolerado pelo Parlamento”.“O momento, mais do que nunca, é de defesa da democracia, independência e harmonia dos poderes para trabalhar pelo país”, completou o presidente do Senado.
Juan Arias: Os partidos políticos ainda servem para manter a democracia?
Será que os partidos tradicionais, em vez de serem meras correias de transmissão das necessidades e desejos das pessoas, se transformaram em donos e senhores dos mesmos?
Em meio à crise da política em nível mundial e especificamente aqui no Brasil, surge uma pergunta difícil, mas necessária: os partidos políticos ainda servem para sustentar a democracia, ou estão virando um estorvo? E, neste caso, como a participação dos cidadãos no governo dos povos poderia mudar e ser mais representativa?
Neste momento, o Chile, por exemplo, está sendo um laboratório mundial que pôs em carne viva, com suas grandes manifestações de protesto contra as injustiças sociais, a fragilidade das instituições políticas e especificamente dos partidos. Conforme noticiou este mesmo jornal, os partidos políticos no Chile estão perdendo milhares de filiados, e hoje só um pequeno percentual da população acredita neles como instrumentos para manter viva a democracia. Será que os partidos tradicionais, em vez de serem meras correias de transmissão das necessidades e desejos das pessoas, se transformaram em donos e senhores dos mesmos?
O crescimento, por exemplo, dos movimentos autoritários e de ultradireita no mundo todo não terá a ver com a crise dos partidos tradicionais, incapazes de representarem os novos problemas que surgiram na sociedade? Terá envelhecido a própria estrutura dos partidos, cada vez mais afastados da realidade das pessoas, sobretudo as mais marginalizadas?
No Brasil, é sintomática a crise que sacudiu, por exemplo, o Partido dos Trabalhadores, que deixou de ser um dos mais modernos e vitais da América Latina, com grande base popular, para se ver envolvido numa crise existencial, porque seus dirigentes se apropriaram do partido e até se corromperam, transformando-se em meras empresas e incapazes de dar lugar a uma geração mais jovem. E não só o PT, mas também muitos outros aos quais de nada serviu mudar de nome na tentativa de renová-los. São disfarces inúteis, que pouco servem para deter o grave câncer que os corrói.
Daí os cientistas políticos se perguntarem hoje em dia se os partidos já não terão concluído sua missão e se não estaríamos necessitados de criar novos organismos de representação dos cidadãos, capazes de responder às mudanças planetárias às quais está fadada a humanidade.
Cabe perguntar se é possível que a vida política e suas novas exigências continuem sendo regidas por velhos partidos, hoje fossilizados e burocratizados. De fato, nada no mundo é para sempre e definitivo, e o Homo sapiens precisa abrir horizontes e procurar respostas e soluções aos problemas novos que se apresentam.
Se a democracia em todo o mundo começa a estar em crise, não é só por estarmos renunciando aos valores de liberdade que tínhamos conquistado. Talvez seja, na verdade, que os velhos conceitos de convivência que nos regiam se tornaram insuficientes por não encarnarem os problemas novos que a sociedade confronta.
Os partidos parecem incapazes de dar resposta aos novos e assustadores problemas da neurociência, da neurotecnologia, da revolução planetária das comunicações e da transformação do trabalho, que estão mudando os antigos paradigmas da existência.
E o que criticamos nos partidos serve também para as outras instituições que foram até aqui os pilares firmes das democracias no mundo, como os Parlamentos, os Governos, os Poderes Judiciários e os sindicatos. Parlamentos que já mal representam a nova sociedade que está surgindo. Parlamentos que foram comprados por partidos que deixaram de ser correias de transmissão dos problemas da sociedade e se tornaram máquinas de fazer votos e grupos privilegiados de poder à margem dos gritos de uma sociedade que exige mais.
Os Parlamentos e os Governos foram por sua vez transformados em fábricas de privilégios pessoais, ferindo os cidadãos que lutam para sobreviver. Junto a eles, um Judiciário burocratizado e gigantesco, com seus processos eternos e seletivos e com o Supremo Tribunal Federal que, de fiador indispensável da Constituição, corre o perigo de se transformar em uma instância a mais de deliberação judicial, onde seus magistrados perdem tempo e dinheiro para decidir, por exemplo, se um cidadão que tinha roubado 28 reais, e inclusive os havia devolvido, devia ser condenado ou absolvido, como acaba de acontecer aqui no Brasil.
São sistemas judiciais que deveriam ser ágeis e em sintonia com a consciência popular e que acabam virando máquinas gigantescas de burocracia, afastadas do sentido comum. Instituições judiciais que no parecer dos cidadãos servem mais para proteger os políticos, os ricos e os poderosos.
E os velhos sindicatos? Que sentido fazem num mundo em que o trabalho está sofrendo uma transformação total, em que o problema já não é mais a defesa dos que trabalham, considerados privilegiados, e sim dos desempregados e sem esperança de conseguir trabalho?
Não, não acredito que estejam hoje em crise no mundo as essências da política criativa, ligada estreitamente à evolução da sociedade e de suas ânsias de bem-estar e felicidade. Uma humanidade nova, como a que está surgindo em todo o planeta, necessitaria de respostas e soluções criativas capazes de sentir o coração destas novas exigências que estão nascendo.
Talvez não seja que a humanidade se cansou de viver em democracia e em liberdade, mas sim que, ao perceber que os velhos partidos e as velhas instituições não são capazes de absorver a nova modernidade, se refugiam, como autodefesa, nos velhos sistemas nazifascistas em que acreditam se sentir protegidos. A liberdade, agora e sempre, infunde mais medo do que a segurança e a conservação.
O problema de fundo é que tudo isso que chamamos de política é visto como o planeta de um grupo de pessoas que se apropriaram do governo do mundo, depois de terem perdido seu sangue genuíno, que, assim como os rios e as florestas, foi envenenado. Envenenado pela cobiça de quem se esqueceu de que a política só faz sentido se estiver a serviço das pessoas, com suas necessidades e sua rica diversidade, e não nas mãos de pessoas e grupos que parecem alienígenas que se esqueceram para que foram eleitos.