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El País: Na luta contra o coronavírus, Bolsonaro se perde em guerra política e resiste a pacto nacional com governadores
Presidente mantém disputa com governadores João Doria e Wilson Witzel, enquanto continua a fazer declarações descoladas do sentimento popular. Panelaço se repete por quinto dia
O Brasil acordou para a gravidade da pandemia do coronavírus que já havia deixado um rastro trágico de mortes na Ásia quando o primeiro infectado brasileiro foi identificado em 26 de fevereiro, em São Paulo. Menos de um mês depois, a Covid-19 já infectou 1.546 brasileiros, e matou 25. Se os cálculos de especialistas estiverem corretos, há mais de 23.000 infectados no Brasil, levando em conta que para cada infectado confirmado há 15 assintomáticos ou sofrem da doença com sintomas leves, confundindo com outra natureza de gripe. Mesmo com esse quadro, até o momento o país de 209 milhões de pessoas ainda não declarou quarentena nacional, como outras nações fizeram, embora o Governo e praticamente todos os Estados insistam na recomendação de que a população circule menos. A diferença entre uma recomendação e a decretação da quarentena pode parecer mínima, porém, revela a postura hesitante do presidente Jair Bolsonaro diante da doença que se alastra por todos os Estados do país.
Ao contrário de outros chefes de Estado que foram à TV fazer apelos dramáticos, Bolsonaro investe em aparições frágeis em seu papel de líder, chegando a rebater diretrizes mundiais, ao se colocar contra, por exemplo, a proibição de cultos em igrejas, foco de aglomeração de pessoas e um terreno fértil para proliferação do vírus. Nos últimos dias, chamou a Covid-19 de “gripezinha”, a preocupação com a epidemia de “histeria”, e disse que o objetivo de quem alarma a população é paralisar a economia para acabar com o Governo dele. “Se a economia afundar, afunda o Brasil. Qual o interesse? Se afundar, acaba o meu governo. É uma luta de poder”, afirmou em entrevista na segunda (16).
As falas do presidente sempre foram corrosivas, mas agora causam muito mais impacto em meio a tempos de calamidade pública. Bolsonaro tem exposto inabilidade com a situação inédita que os brasileiros vivem de se verem obrigados a ficar em confinamento, temendo serem abatidos pelo coronavírus ou que a morte chegue a pessoas próximas. Em entrevista ao programa do Ratinho, na TV, na sexta à noite, Bolsonaro preferiu entoar o pragmatismo ao analisar o momento. “Vai morrer alguns de vírus? Sim, vão morrer. Alguns porque já tinham alguma deficiência [doença pré-existente], outros porque serão pegos no contrapé. Lamento. Minha mãe de 92 anos, se pegar algo, acho que nos deixa. Mas não podemos criar esse clima todo que está aí, prejudica a economia”, afirmou.
Bolsonaro virou notícia mundial ao cumprimentar um aglomerado de apoiadores na porta do Palácio do Planalto em plena epidemia no dia 15. Desde então, ficou claro que sua postura errática é um elemento extra para o Brasil na luta contra o coronavírus, quando o país já tem clara a sua sentença, segundo o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Em breve haverá um pico da doença e se o país não tomar as medidas radicais para evitar o trânsito de pessoas, a rede de saúde, pública e privada, entra em colapso em abril. Alguns Estados, como o Rio de Janeiro, no entanto, já falam em um sistema colapsado dentro de duas semanas. Mandetta tem comandado a situação, em aparições diárias mais serenas para explicar o quadro do Brasil, o que o fez ganhar relevância entre os brasileiros. Neste sábado, a equipe do Ministério da Saúde prometeu multiplicar os testes para detectar o coronavírus nos hospitais, uma medida recomendada pelos países que controlaram a epidemia.
Irritados com a postura do presidente, os brasileiros começaram uma sequência de panelaços diários desde a última terça-feira, 17, em vários pontos do país. Uma pesquisa recente da consultoria Atlas Político mostrou que 65% dos entrevistados estão insatisfeitos com a gestão de Bolsonaro sobre a crise do Covid-19. Três pedidos de impeachment já foram apresentados no Congresso contra Bolsonaro, e há um quarto a caminho.
Bolsonaro, por sua vez, tem colocado energia na disputa política com eventuais adversários políticos que cobram uma postura mais arrojada do Governo do que em dar ênfase à gravidade que o Covid-19 significa ao país. Em vez de convocar um pacto nacional convidando todos os governadores para trabalharem juntos as soluções para a epidemia, repete publicamente queixas sobre governadores, especialmente os de São Paulo e do Rio de Janeiro, João Doria (PSDB) e Wilson Witzel (PSC). Os dois Estados acumulam mais óbitos e casos de infectados. Ambos cobram medidas drásticas para evitar a circulação do vírus, ao contrário de Bolsonaro. Neste sábado, o governador João Doria, que já conta 15 mortes e quase 400 infectados, decretou a quarentena em São Paulo, o que Bolsonaro considerou um gesto calculado. “Ele está se aproveitando desse momento para se promover”, afirmou ele à CNN.
Doria tem feito queixas reiteradas sobre o presidente neste momento por tratar a epidemia que toma o país com mais cuidado. “Gostaria de ter um presidente que liderasse o país em uma crise como essa, e não minimizasse uma questão tão grave”, afirmou ele, em uma das coletivas diárias das quais participa. Bolsonaro devolveu a alfinetada do governador tucano: “Os que me criticam dizem que não tenho liderança. Digo a eles: a eleição de 2022 ainda está muito longe”.
“É inaceitável a falta de dialogo e bom senso. Nunca imaginei viver isso na democracia”, reclama o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. No Rio, já há 119 casos confirmados, e três mortes. Um dos infectados foi descoberto na comunidade da Cidade de Deus, um alerta preocupante para a população das favelas, onde a infraestrutura é precária, num ambiente favorável à proliferação da doença. Ao menos os governadores do Norte e Nordeste conseguiram arrancar do presidente o compromisso de uma videoconferência nesta segunda.
Como se não bastasse o clima belicoso nacional, o filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro, gerou um incidente diplomático com a China no dia 18 com uma série de tuítes em que busca demonizar a China por causa da doença, emulando a tática do presidente americano Donald Trump. “Mais uma vez, uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução”, escreveu o deputado, que gerou uma resposta inédita do embaixador da China no Brasil, Yang Wanming. Ele cobrou um pedido de desculpas ao seu povo e disse ao deputado que ele “precisa assumir todas as consequências”. O assunto continua pendente. O jornal Valor noticiou que o presidente Bolsonaro tentou falar com Xi Jinping, sem sucesso. O resumo da ópera foi dado pelo governador Flavio Dino, do Maranhão: “Não é hora de brigar com a China nem é hora de brigar com os governadores. É hora de brigar contra o vírus, a pandemia”.
El País: “Bolsonaro acredita no ‘líder acima de tudo’, inclusive da saúde da população em tempos de pandemia”, diz Finchelstein
Federico Finchelstein, historiador argentino, diz que mentiras do presidente aplicam método fascista: “O que diz acaba se tornando um artigo de fé e não algo que tenha a ver com a realidade”
O historiador argentino Federico Finchelstein é um dos principais especialistas em fascismo e populismo, autor de livros como Do Fascismo ao Populismo na História e As Origens Ideológicas da Guerra Suja ―sobre a ditadura militar argentina, sem versão em português―, além de obras sobre o holocausto e a Alemanha nazista. Para 2020 prepara Uma Breve História das Mentiras Fascistas, no qual dedica uma parte ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro, visto por Finchelstein como uma das lideranças populistas mais próximas ao fascismo. Ele chegou a escrever na revista Foreign Policy durante as eleições de 2018 que o bolsonarismo se inspirou no manual nazista de propaganda lançado por Joseph Goebbels, ministro de Adolf Hitler entre 1933 e 1945.
Em entrevista ao EL PAÍS por telefone, o professor da New School for Social Research afirma que “existe um claro golpismo” nas manifestações a favor do Governo do domingo passado (15), por causa das mensagens contra os demais poderes. Também afirma que as mentiras ditas por Bolsonaro e outros líderes ultranacionalistas e da extrema direita, como Donald Trump (Estados Unidos) ou Matteo Salvini (Itália), os aproximam mais do fascismo do que do populismo. “Esses líderes acreditam em suas próprias mentiras, em suas próprias fantasias, até que a realidade se impõe sobre elas”, explica.
Pergunta. No domingo passado, manifestantes gritavam palavras de ordem a favor do Governo Bolsonaro e contra o Congresso e o STF. Muitos inclusive pediam uma intervenção militar e um novo AI-5. O presidente chegou a romper sua recomendação de isolamento por causa do coronavírus para cumprimentar manifestantes. Como enxerga tudo isso?
Resposta. Existe um claro golpismo apoiado por um líder post fascista e que gostaria de ser um ditador fascista. Por um lado, os bolsonaristas têm o direito de se organizar e de participar de todas as reuniões que queiram. Mas uma manifestação contra o Congresso e a independência dos poderes está mais próxima dos atos fascistas ou das manifestações pró-Pinochet que de uma manifestação democrática. Está nas mãos da cidadania, da oposição, da imprensa e dos poderes independentes defender a democracia brasileira.
P. Há provas de que os atos foram impulsionados pelo próprio Governo Bolsonaro, inclusive através de canais oficiais. Com a pandemia do coronavírus, o presidente chegou a fazer pronunciamento em cadeia nacional desencorajando o que chamou de manifestações “espontâneas”. Em outros países governados pela extrema direita já aconteceu algo parecido?
R. Acontece o mesmo tipo de situação em diferentes governos, que se apoiam em diferentes atos massivos. Donald Trump costuma fazer atos não nas ruas, mas em estádios. A pergunta é: por que essa mentira de que são espontâneas, de que não são organizadas? Ou inclusive por que fazem durante a crise do coronavírus? Me parece um exemplo claro da demagogia Bolsonaro, de suas ideias políticas com raízes fascistas acima de tudo. É, principalmente, o líder acima de tudo, inclusive da saúde e do bem-estar da população em tempos de pandemia.
P. Como avalia o Governo Bolsonaro até aqui?
R. Do ponto de vista democracia a avaliação não poderia ser mais negativa. Bolsonaro, dentro do que é a história do populismo, é um dos populistas mais extremistas que existe. E o mais próximo ao fascismo. É uma pessoa que vem degradando a democracia de várias formas, demonizando a oposição, a imprensa... Mas a questão vai além de adjetivos. Existe uma ideologia por trás de sua vulgaridade que, em um ponto, vai se distanciando do populismo e se aproximando do fascismo.
P. Qual é a diferença entre os dois conceitos?
R. O populismo é uma forma autoritária de democracia e o fascismo praticamente destrói a democracia por dentro para criar uma ditadura. Não podemos dizer que, neste momento, existe um governo fascista no Brasil porque, sobretudo graças à sociedade civil e à imprensa, Bolsonaro não conseguiu destruir a democracia como ele gostaria e como já expressou em distintos momentos. Mas a história de Bolsonaro é a história de um governante que tenta destruir essa sociedade civil e democrática. Depende dos brasileiros que não consiga.
P. Mas quais são os parâmetros para dizer que Bolsonaro (e também líderes como Donald Trump e Matteo Salvini) estão mais próximos do fascismo que do populismo?
R. O fascismo tem três elementos. O primeiro, e principal, é a xenofobia e o racismo direcionados a distintas minorias. Não necessariamente é um elemento central da maior parte dos populistas. Pensemos nos casos do Brasil, que viu um populismo de viés corporativo de Getúlio Vargas o de viés neoliberal como o de Fernando Collor de Mello. A xenofobia não era elemento central desses governos.
O segundo elemento é a violência política, central para o fascismo. E neste caso existe uma dúvida: lembremos que pessoas próximas de Mussolini assassinaram alguns líderes da oposição; no Brasil, temos visto certa proximidade da família Bolsonaro com milicianos [que controlam territórios no Rio de Janeiro e influenciam na política local] e os supostos assassinos da vereadora Marielle Franco.
E, finalmente, o terceiro elemento principal é a ditadura. E o mero fato de que estejamos conversando mostra que este elemento ainda não chegou no Brasil, já que não existe liberdade de imprensa na ditadura. Nesse sentido, o que temos por ora é uma proximidade bastante preocupante do populismo de Bolsonaro ao fascismo. Ele fala como um fascista, mas governa como um fascista? Acredito que a resposta tem a ver não apenas com o que ele quer fazer, mas sim com os limites que os brasileiros colocam.
P. Mas os populistas não abraçam alguns desses elementos?
R. Entre os populistas não existe o uso da violência política nem a discriminação, a xenofobia e o racismo. E, diferentemente do fascismo, os populistas de esquerda e de direita tem uma concepção de povo muito diferente. Para o fascismo, o povo está baseado em qualidades étnicas e religiosas. Para o populismo, o povo são aqueles que votam no líder. É uma ideia autoritária, uns são o povo e outros são os antipovo. Mas, ainda que seja autoritária, é uma definição baseada nas ideias, e não necessariamente em conceitos étnicos e religiosos. E isso vai de Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón a Collor de Mello, Berlusconi ou Chávez. O que vemos em líderes como Trump, Bolsonaro, Modi [primeiro-ministro da Índia] ou Salvini é que o povo passa a ser entendido de outra forma. Se Bolsonaro define os brasileiros como cristãos, o que acontece com aqueles que não acreditam em Deus?
P. Você chegou a escrever durante a campanha que de 2018 que Bolsonaro estava mais próximo de Goebbels que do ex-presidente italiano Silvio Berlusconi.
R. Existe um quarto elemento do fascismo que é a mentira. E acredito que Bolsonaro, Trump ou Salvini mentem como fascistas, e não como populistas. Historicamente, os populistas não se atrevem a deixar de lado as evidências mais óbvias. Nesses casos, a mentira é mais demagógica, cínica. É propaganda, eles não acreditam em suas mentiras.
Mas quando digo que mentem como fascistas, é porque esses líderes acreditam em suas próprias mentiras —até que a realidade se impõe sobre elas. Pensemos nessa convocação de protestos no contexto do coronavírus. Trump vinha negando a importância do tema, enquanto que Bolsonaro chegou a dizer que era uma fantasia. Chega ao ponto de que o círculo se completa, por assim dizer, quando um de seus próprios secretários [Fabio Wajngarten, titular da Secretaria de Comunicação] dá positivo no texto.
P. Os ataques à imprensa se explicam por causa dessas mentiras que acreditam?
R. Sim, porque a imprensa independente o que faz é apresentar dados empíricos para contrastar as versões oficiais de propaganda. Por isso ela é um eixo central da democracia e também por isso ela um problema para esse tipo de líder e suas mentiras.
P. No momento em que o dólar disparava, as Bolsas registravam enormes perdas e a crise do coronavírus se agravava, Bolsonaro disse, sem apresentar provas, que as eleições presidenciais foram fraudadas e que ele ganhou no primeiro turno. Trata-se apenas de uma cortina de fumaça para desviar o foco da imprensa, como se costuma dizer, ou existo algo além disso?
R. No sentido mais concreto e no sentido mais histórico trata-se de uma estratégia típica do fascismo para substituir a realidade com propaganda, isto é, com as mentiras mais evidentes. Isso tem a ver com a política da fé, então o que diz Bolsonaro acaba se tornando um artigo de fé e não tanto algo que tenha a ver com a realidade. Outra questão sobre Bolsonaro é que ele tende a se basear muito no que Trump faz. Ele diz coisas que Trump já disse em algum momento, como a referência sobre as supostas fraudes em sua própria vitória. Trump dizia que ganhou no voto popular, o que não aconteceu. E vemos a mesma estratégia com o coronavírus. Parece haver um delay: Trump dizia que era uma fantasia, e Bolsonaro segue repetindo isso —enquanto Trump parece se afastar um pouco dessa ideia. A mesma coisa acontece com a imprensa, tratada por Trump como inimiga do povo. O problema é que a imprensa independente precisa reportar com evidência, e esse mero ato implica um desafio a essas políticas de propaganda de governos extremistas. O mero ato de perguntar ou de pedir evidências significa um desafio a essas tendências autoritárias. Quando diz que uma pandemia é uma fantasia, não existe algo intermediário. Para os jornalistas não pode haver duas versões da realidade. Não existe dois lados, existe um personagem mentindo baseado na fantasia e no mito, e por outro lado está a realidade. E por isso a imprensa é tratada como inimiga... Num regime fascista não existe imprensa independente, apenas fantasia e propaganda.
P. Quais são as outras características do manual de propaganda de Goebbels que o bolsonarismo copia?
R. A principal é que mente e acredita em suas mentiras e fantasias, mas outro tema central tem a ver com a projeção. No geral, o que ele costuma dizer é a realidade de seu próprio ser, do próprio Bolsonaro. Todos sabemos que o coronavírus não é uma fantasia. E todos sabemos que, ao contrário do que disse Trump, o coronavírus não é um problema estrangeiro. É um problema também dos Estados Unidos, e tanto é assim que um Secretário da Comunicação foi contagiado dentro do país. Mas a culpa sempre é dos outros, mesmo quando tem a ver com suas próprias responsabilidades. São eles que mentem, não planejam e não pensam na saúde da população.
P. E as pessoas, incluindo seus próprios eleitores, pagam um preço, não? A fila do Bolsa Família aumenta, as pessoas não conseguem suas aposentadorias... Essas mentiras são viáveis a longo prazo?
R. Eventualmente a realidade se impõe e inclusive os seguidores mais fanáticos em algum ponto deixam de acreditar neles. Mas, quando isso acontece, já terá havido muito sofrimento e muitas vítimas, no sentido literal do termo. As políticas de ajuste, de repressão e de discriminação têm suas consequências.
P. Essas mentiras também servem para manter a base eleitoral mobilizada enquanto são feitas reformas ultraliberais impopulares?
R. Não sei se estou de acordo. São fanáticos porque acreditam nisso. Os nazistas não fizeram um uso cínico da propaganda, eles acreditavam nessa propaganda. Na cabeça deles não existe distinção entre repressão, discriminação e ajuste neoliberal. A ideologia não tem um lugar secundário, mas sim central. Acreditam em suas próprias mentiras e representam um perigo para a democracia.
P. Há quem diga que o candidato democrata Bernie Sanders é o Bolsonaro da esquerda norte-americana, ou que o PT e o ex-presidente Lula representem o extremo oposto. Está correto?
R. Não estou de acordo. E o que seria o extremo oposto ao fascismo? O antifascismo [risos]? O populista é aquele que atribui a si mesmo a voz do povo e personifica o povo. É o líder que se vê como um enviado de Deus para falar em nome do povo e decidir em nome do povo. Foi o caso de Hugo Chávez e de Cristina Kirchner, mas isso é menos claro no caso de Lula e, definitivamente, não me parece que seja o caso de Sanders. Lideranças fortes são típicas da história da democracia, mas não necessariamente tem a ver com populismo. Também não se pode igualar políticas populares com populismo. E, mais uma vez, com Sanders e Lula não existe o uso da violência política nem a discriminação, a xenofobia e o racismo, e isso não é menos importante.
Mariana Llanos e Marisa Von Bülow: Brasil - Os limites e perigos de um presidente polarizador
Com mais confronto e radicalização, desta vez o presidente pode ficar sozinho
As imagens triunfantes do presidente Bolsonaro apertando as mãos de seus seguidores em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília, durante as manifestações de rua do dia 15, em meio ao clima de alarme global pelo coronavírus e em aberto desafio às recomendações médicas, foram divulgadas pelo próprio presidente através de seus canais nas mídias sociais. No entanto, sua atitude não teve o efeito que ele esperava. O feitiço virou contra o feiticeiro. Queria parecer forte e popular, mas em vez disso contribuiu para abrir uma profunda crise em seu já conturbado governo.
Naquela ocasião, o coronavírus já tinha afetado vários membros da equipe presidencial, e o próprio presidente também teve de passar pelo exame, que acabou dando resultado negativo. Mas sua situação pessoal não o impediu de insistir em que não se deveria “exagerar” nem “entrar numa neurose”. Tampouco deixou de justificar seu papel nas manifestações, afirmando que “de qualquer forma, muitas pessoas vão se contagiar”. Enquanto os líderes políticos de todo o mundo enfrentavam duras críticas sobre as respostas dadas à pandemia do coronavírus e tentavam recuperar o precioso tempo perdido, Bolsonaro se destacou por uma atitude negacionista da crise, compartilhada por poucos, como Andrés Manuel López Obrador no México, ironicamente oposto a ele no espectro ideológico.
As polêmicas declarações de Bolsonaro suscitaram críticas não só dos habituais opositores, mas também de um público mais amplo de observadores, tanto em nível nacional como internacional. Assim, as manifestações do dia 15 tiveram algumas consequências inesperadas para o presidente. Seus apoiadores começaram a mostrar fissuras que não exibiam desde que ele assumiu a Presidência, em janeiro de 2019. Tornaram-se visíveis tanto nas ruas e nas mídias sociais como na relação com o Congresso, âmbitos que no passado foram cruciais como gestores de mudança política no Brasil.
Os motivos que levaram às manifestações de 15 de março não estiveram relacionados originalmente com a crise do coronavírus. Realizadas em mais de 200 cidades do país, tiveram o propósito de apoiar o presidente em um contexto de conflito de poderes entre este e o Congresso sobre o controle de uma parte do orçamento executivo. O objetivo do protesto já tinha sido seriamente questionado por seu aspecto autoritário. Acusando o Congresso de obstruir sua agenda de Governo, o presidente avalizou o ataque frontal e explícito aos outros Poderes do Estado, o Legislativo e o Judiciário, provocando a reação crítica de representantes de todo o arco político. A partir do dia 15, somou-se ao seu discurso anti-institucional sua atitude de negação da gravidade da crise da pandemia. Essa atitude foi demais para o cidadão que enfrenta, com medo e incerteza, a pandemia do coronavírus.
De fato, as manifestações de domingo passado a seu favor foram seguidas por panelaços críticos ao Governo nas principais cidades de todo o país, acompanhados por projeções em edifícios. As ruas continuaram ocupadas, não com pessoas, mas com som e imagens. Em uma das imagens projetadas em um edifício na cidade de São Paulo, apareceu a frase “nosso problema é a Venezuela” sob a foto de Bolsonaro, uma referência irônica às críticas feitas por Bolsonaro às políticas do presidente Maduro contra a pandemia e à decisão de limitar a passagem pela fronteira com aquele país (mas não com outros países). Em outras, apareceu simplesmente a imagem do presidente e a hashtag “#ForaBolsonaro”. O isolamento social da pandemia não se traduziu em isolamento político, nem em apatia. Essas iniciativas se somaram e reforçaram as manifestações nas redes sociais da Internet, apagando a fronteira entre o ativismo presencial e o virtual.
Nas mídias sociais, arena dominada pelo bolsonarismo desde antes das eleições presidenciais de 2018, o 15 de março prometia ser outro dia de vitória virtual. A hashtag de apoio ao presidente, #BolsonaroDay, chegou a mais de um milhão de menções e foi um dos principais assuntos do dia. No entanto, diferentemente de outros momentos, a reação também foi forte. As hashtags #CoronaDay e #CoronaFest vincularam criticamente as ações do presidente com sua atitude descuidada em relação à pandemia. Nos dias seguintes, os dois grupos − anti e pró-Bolsonaro – subiram o tom. O bolsonarismo apostou na radicalização, convocando uma nova manifestação de rua para 31 de março, e embarcou na estratégia de culpar a China pelo vírus com a hashtag #VirusChines. A oposição, por sua vez, subiu a hashtag #ForaBolsonaros, utilizando o sobrenome no plural, para incluir tanto Jair Bolsonaro como seus três filhos, todos ativos na política (e nas mídias sociais).
Para entender como se chegou a esta situação no Brasil, é fundamental analisar também as relações do presidente com o Congresso Nacional, já que o confronto de poderes foi o detonador das manifestações do dia 15. Esse confronto é uma consequência previsível se o presidente evita o caminho da persuasão e do acordo. Bolsonaro conquistou a presidência como porta-voz de discursos anti-Brasília e antissistema, aos quais acrescentou sua agenda social de ultradireita, que por si só o afasta dos políticos do centro que dominam a arena parlamentar. No contexto de 2018, com a crise das lideranças e dos partidos tradicionais, Jair Bolsonaro se beneficiou eleitoralmente, na campanha para a presidência, ao se apresentar como um outsider da política brasileira (apesar de ter sido deputado durante três décadas). Mas ganhar a presidência não é o mesmo que governar, e o Brasil tem um sistema institucional de separação de poderes, com uma altíssima fragmentação partidária e múltiplos pontos de veto. Seus antecessores na presidência viabilizaram coalizões majoritárias de partidos no Congresso distribuindo cargos ministeriais entre os aliados políticos. Em vez disso, Bolsonaro optou por não construir uma maioria parlamentar e até abandonou seu partido, apesar de contar com uma representação partidária mínima no Congresso. Seu gabinete presidencial, composto por militares, técnicos e políticos de ideologia extrema, também não foi uma solução livre de conflitos.
O confronto do dia 15 contra o Congresso, personalizado nos ataques diretos ao presidente da Câmara dos Deputados, foi alvo de críticas até de antigos seguidores. A deputada Janaina Paschoal, por exemplo, referiu-se à aparição pública de Bolsonaro como “crime contra a saúde pública”, o que se somou ao fato de que a conclamação de manifestações contra as instituições democráticas já tinha sido considerada por muitos como “crime de responsabilidade”, em outras palavras, como causa suficiente para iniciar um processo de destituição do presidente. De fato, nos últimos dias alguns deputados apresentaram pedidos de impeachment contra o presidente, outro sinal de fissuras que se aprofundam. A presidência é uma instituição poderosa no Brasil, mas os casos não tão longínquos de presidentes (Dilma Rousseff e Fernando Collor de Mello) destituídos pelo Congresso recomendam cautela.
A estratégia de polarização e radicalização de Jair Bolsonaro foi, sem dúvida, bem-sucedida no contexto de crise de representação em que foi eleito em 2018. Bolsonaro conseguiu inspirar os milhões de cidadãos que votaram nele, vendo nele a oportunidade de fazer mudanças radicais na política brasileira. Em seu primeiro ano de mandato, manteve um estilo de governo marcado pelo confronto com seus inimigos políticos, sempre com base na comunicação direta com seus seguidores nas mídias sociais. No entanto, diante de uma crise de saúde de natureza global que coloca todos em risco, a abertura e a cooperação aparecem como elementos essenciais de liderança para enfrentá-la.
Com mais confronto e radicalização, desta vez o presidente pode ficar sozinho.
*Marisa Von Bülow é do German Institute of Global and Area Studies (GIGA) e Mariana Llanos é do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília
El País: Coronavírus no Brasil segue a curva de países europeus e São Paulo prevê até 9 milhões de infectados
Biólogo explica que cenário no país pode ser ainda pior que o da Itália, que registra o maior número de óbitos até agora. Governo brasileiro se prepara para realizar testes em massa
O Brasil ultrapassou neste sábado a marca dos 1.000 casos confirmados do novo coronavírus. Ao menos 18 pessoas morreram em decorrência da doença até o momento. Os números compõem uma curva de crescimento da pandemia muito parecida com a de países da Europa, como Itália, França e Espanha, onde milhares de pessoas já morreram. “Estamos um pouco acima da Alemanha, bem abaixo da Itália e bem afastados da Coreia”, afirmou João Gabbardo, secretário-executivo do ministério da Saúde, neste sábado, frisando, a todo momento, que ainda temos poucos casos rastreados e que toda comparação tem que ser feita com cautela.
A Alemanha tem se mostrado uma exceção até o momento, com uma baixa taxa de letalidade diante dos outros países: 68 mortos para 19.000 casos confirmados, com várias hipóteses sendo discutidas para essa boa performance. Os alemães, assim como os sul-coreanos, vêm mostrando ao mundo que uma das chaves para tentar barrar a pandemia é a realização de testes em massa da população. Por isso, o Ministério da Saúde anunciou que, além dos 27.000 testes já enviados aos Estados, se prepara para realizar mais 10 milhões de testes rápidos nas próximas semanas. A expectativa é implementar em alguns lugares o esquema de drive thru, a exemplo da Coreia do Sul, onde as pessoas não precisaram nem sair do carro para serem testadas. Gabbardo disse que só agora a pasta está prevendo o volume de provas que era um desafio conseguir fornecedores que tivessem os prazos e qualidades. Só será testados quem estiver com sintomas.
Mas, por enquanto, os casos brasileiros da doença aumentam em uma crescente preocupante. Somente no Estado de São Paulo, epicentro dessa pandemia, há mais de 400 confirmações e 15 óbitos. Para tentar conter o vírus, as autoridades realizam projeções em busca de tomar medidas antecipadas e planejar recursos. O médico infectologista David Uip, coordenador da equipe que combate a pandemia em São Paulo, até a semana passada afirmava trabalhar com diversos cenários para o Estado, de 1% a 10% da população infectada. Já nesta sexta, ele mesmo admitiu que os cenários podem chegar a até 20% de doentes, o que daria nove milhões de pessoas. Internamente, a reportagem apurou que o Estado trabalha, por precaução, com cenários ainda mais extremos, com até 60% das pessoas infectadas e, dentro deles, uma porcentagem que precisará de internação.
Atila Iamarino, biólogo e doutor em microbiologia, explica que as projeções são feitas em cima de fatores como o comportamento da população diante da doença, quantas pessoas entram em contato umas com as outras e como o vírus se espalha. Baseada no histórico de países como China, Espanha ou Itália, as projeções estão tentando ser desenhadas aqui.
Porém, Iamarino lembra que no Brasil há um fator com o qual o vírus ainda não havia se deparado em outros países. E não é o calor. “China, França, Espanha, Itália, Estados Unidos e Coreia não têm favela”, diz. “Não há como isolar as pessoas que moram em um cômodo com várias outras”. Ele afirma que o isolamento social total, isto é, proibir que as pessoas saiam de casa, é a única medida que pode ser tomada para que o resultado dessa “guerra”, como afirmou o governador João Doria, não seja ainda mais devastador. “Por isso, aqui a situação é muito deferente. Mesmo os modelos que estão sendo estudados de como a doença progride podem ser muito otimistas num cenário como o nosso”, diz. “Na Itália houve somente um foco da doença, que foi a região da Lombardia”, afirma ele. “Hoje tem várias Lombardias dentro da Espanha acontecendo ao mesmo tempo. E, assim como na Espanha, aqui no Brasil não haverá somente um foco da doença”.
Na sexta-feira, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fez uma afirmação que condiz com esse cenário pintado pelo biólogo. “O cenário que estamos vendo, diferente da China, é que no Brasil estamos com todos os Estados com crescimento igual, e isso nos preocupa”. Mandetta também afirmou que até o final do mês que vem, o sistema vai colapsar. “Temos aí 30 dias para que a gente resista razoavelmente bem, com muitos casos, dependendo da dinâmica da sociedade. Mas, claramente, em final de abril nosso sistema entra em colapso”. Mais tarde, em entrevista coletiva, o ministro reforçou que o colapso somente ocorrerá se nada for feito.
O ministro tem motivos para se preocupar. “Se a doença progride a ponto de sair de uma única região, os casos começam a ser empilhados”, explica Iamarino. Nos Estados Unidos, por exemplo, há ao menos três focos da pandemia – Nova York, Washington e a Califórnia. “Cada um desses focos tem potencial de ser uma Wuhan. São três Wuhans empilhadas”, diz, sobre a primeira cidade a registrar a pandemia.
“Cobra silenciosa”
Um dos maiores problemas dessa doença, diz Iamarino, é justamente a sua ausência de sintomas. “Quando a China fez lockdown [proibiu a circulação das pessoas], e passou a ir atrás de testar todo mundo, perceberam que, enquanto eles estavam contabilizando só quem ia para o hospital com sintomas sérios, eles perdiam 86% das infecções que estavam acontecendo”, diz. “Até a pessoa procurar um hospital e receber o diagnóstico, nove dias já tinham se passado”.
E a demora em apresentar os sintomas é o que ajuda a tornar o coronavírus tão letal. “79% das transmissões da Covid-19 acontecem antes mesmo de as pessoas terem os sintomas”, diz. Ele compara com a SARS, doença em que 99% dos infectados desenvolvem febre e a transmissão só ocorre depois da febre. “A SARS é muito transmissível, mas dá sinais. É como uma cobra muito venenosa, mas com o chocalho na ponta do rabo. Você ouve ela chegando”, diz. “Já a Covid-19 é como uma cobra silenciosa: você não percebe ela chegando. E quando percebe, pode ser tarde”.
Vladimir Safatle: A única saída é o impeachment
Esse gesto tem força civilizadora. O Brasil não pode ter duas crises a gerenciar, a saber, o coronavírus e Bolsonaro
No dia 18 deste mês, três combativos deputados federais (Fernanda Melchionna, Sâmia Bonfim e David Miranda) protocolaram um pedido de impeachment contra Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Este pedido foi assinado por vários membros da sociedade civil, entre eles por mim. A este grupo, somaram-se mais de 100.000 assinaturas de apoio.
O pedido motivou algumas críticas vindas, inclusive, da própria direção do partido de tais deputados, abrindo um debate importante a respeito das estratégias da oposição neste momento. Por isto, gostaria de aproveitar este espaço a fim de insistir que tais críticas estão profundamente equivocadas e expressam, na verdade, falta de clareza e direção em momento tão dramático de nosso país.
Duas questões se colocam a respeito de tal problema. Primeiro, se devemos ou não devemos lutar pelo impeachment de Jair Bolsonaro. Segundo, caso a primeira resposta seja afirmativa, há de se discutir quando um pedido desta natureza deveria ser feito.
Sobre o primeiro ponto, normalmente os que recusam a tese do impeachment afirmam que de nada adiantaria trocar Bolsonaro por seu vice, o general Mourão. Tal troca, na verdade, equivaleria a entregar de vez o controle do estado ao Exército, com consequências catastróficas. Há ainda aqueles que dizem ser miopia política e irresponsabilidade administrativa lutar pelo impeachment em meio a maior crise sanitária que o mundo conheceu desde há muito. Melhor seria aproveitar o enfraquecimento de Bolsonaro e levar o estado brasileiro a retomar investimentos no SUS, a revogar o teto de gastos, entre outras ações.
Aos que dizem nada adiantar trocar Bolsonaro por seu vice gostaria de dizer que o foco de análise talvez esteja equivocado. A questão coloca pelo impeachment não é “quem assume”. Antes, trata-se de mostrar claramente que o país repudia de forma veemente quem age a todo momento para solapar os espaços mínimos de conflito político e que demonstrou irresponsabilidade e incapacidade absoluta de gerenciar forças para preparar o país para lidar com uma epidemia devastadora. Bolsonaro é um agitador fascista e um chefe de gangue narcísico que zombou do povo brasileiro e de sua vulnerabilidade no momento em que devia ter baixado as armas, convocado um governo de união nacional, sentado com a oposição e convergido forças para colocar a sobrevivência das pessoas à frente das preocupações econômicas imediatas e das preocupações políticas de seu grupo.
Neste sentido, um impeachment neste momento teria um valor civilizatório, pois deixaria claro que a sociedade brasileira não admite ser comandada por alguém que se demonstra tão inepto e com interesses exclusivos de autopreservação. Bolsonaro demonstrou nos últimos dias como é capaz de produzir ações que desmobilizam as tentativas da sociedade em conscientizar todos da situação em que nos encontramos. Suas ações custam vidas. A questão sobre quem ocupará o lugar de Bolsonaro é um cortina de fumaça que demonstra desconfiança na força destituinte da soberania popular. Este mesmo argumento foi usado quando Michel Temer estava nas cordas, na ocasião da greve dos caminhoneiros. Dizia-se que não fazia sentido troca-lo por Maia. Hoje, Maia é endeusado por alguns como o esteio da racionalidade no Estado brasileiro.
Já aos que afirmam que o momento é de lutar para empurrar o Estado a aplicar políticas de proteção social, eu diria que os últimos dias mostraram que isto é algo da ordem do delírio. Pois o Governo aproveita a situação de caos para permitir às empresas cortarem jornada de trabalho e salários pela metade, permitir licenciamentos sem custos, usar os parcos recursos públicos para salvar empresas aéreas monopolistas especializada em espoliar consumidores e pressionar pelas mesmas “reformas” que destruíram a capacidade do Estado de operar em larga escala em situações de risco biopolítico com esta. Ou seja, achar que é possível negociar com quem procura toda oportunidade para preservar seus ganhos, com quem se serve do Estado para espoliar o povo em qualquer situação que seja, demonstra incapacidade de saber contra quem lutamos. Que aprendam de uma vez por todas: neoliberais não choram. Eles fazem conta, mesmo quando as pessoas estão a morrer à sua volta.
Engana-se quem espera que Bolsonaro faça alguma forma de reconhecimento da necessidade de políticas públicas fortes, como fez o presidente francês Emmanuel Macron em momento de desespero. Isto apenas demonstra como há setores da esquerda brasileira que nada aprenderam a respeito de nossos inimigos. A eles, devemos insistir que a única maneira de realmente combater a pandemia é afastando Bolsonaro do poder em um movimento que mostraria, ao resto da classe política, o caminho da guilhotina diante da cólera popular pela inação e irresponsabilidade do governo diante das nossas mortes. Volto a insistir, esse gesto tem força civilizadora. O Brasil não pode ter duas crises a gerenciar, a saber, o coronavírus e Bolsonaro.
Já os que falam que o momento é cedo para um pedido de impeachment, que é necessário compor calmamente com todas as forças, diria que isto nunca ocorrerá. A esquerda brasileira já se demonstrou, mais de uma vez, estar em uma posição de paralisia e esquizofrenia. Ela grita que sofreu um golpe enquanto se prepara rapidamente para a próxima eleição, sem querer ver a contradição entre os dois gestos. Ela luta contra a reforma previdenciária enquanto a aplica em casa. Ela não encontrará unidade para um pedido de impeachment ou só encontrará muito tarde, quando setores da centro-direita e da direita já tiverem monopolizado a pauta do impeachment.
Por outro lado, 45% da população é a favor do impeachment de Bolsonaro (Atlas Político), a população manifesta-se cotidianamente através de panelaços em bairros até então solidamente ancorados no apoio a Bolsonaro, grupos que o apoiavam entrar em rota de colisão com ele. Se este não é um bom momento para a apresentação do pedido, alguém poderia me explicar o que significa exatamente “bom momento”? Quando estivermos todos mortos?
Nestas circunstâncias, melhor respeitar um princípio autonomista de grande sabedoria estratégica. Em um campo comum, baseado na ausência de hierarquia e na confiança entre todos os que partilham os mesmos horizontes de luta, todos têm autonomia de ação e decisão. Ninguém precisa de autorização para fazer uma ação política efetiva. Dentro do campo comum ou seus membros implicam-se nas ações feitas de forma autônoma ou quem não concorda não atrapalha. Fora disto, é a posição subserviente de esperar que o líder (que não existe mais) dê sinal verde ou aponte o caminho para os demais. O que significa uma forma de submissão que nunca poderia fazer parte das estratégias daqueles que lutam por uma emancipação real.
*Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
El País: Esforço de Eduardo Bolsonaro para demonizar China copia Trump e ameaça elo estratégico do Brasil
Acostumada a criar suas próprias crises, a família Bolsonaro decidiu entrar de cabeça em mais uma briga, com todas os elementos de estratégia diversionista. Dessa vez, envolve a China, o maior parceiro econômico do Brasil, que responde por um quarto da balança comercial —neste ano foi de 15,5 bilhões de dólares até fevereiro. O responsável pela mais recente autossabotagem contagiosa foi o terceiro herdeiro de Jair Bolsonaro (sem partido) e presidente da Comissão de Defesa e Relações Exteriores da Câmara, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Na quarta-feira, o parlamentar comprou pelo Twitter uma narrativa comum entre a rede de militantes da ultradireita. Segundo esse discurso, se a China fosse uma democracia, não uma ditadura, a pandemia de coronavírus teria sido barrada.
“Mais uma vez, uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução”. Foi uma crise iniciada por uma breve declaração em 45 palavras, em resposta à outra postagem de um usuário. No dia seguinte, como também é comum no jogo bolsonarista de vai-e-vens, o filho do presidente ensaiou baixar o tom em um textão de 560 palavras, no qual diz que não quis ofender o povo chinês. Ao mesmo tempo, no entanto, repetiu ofensas semelhantes em entrevista ao canal CNN Brasil, ao vivo.
Se tudo faz parte do cardápio típico dos Bolsonaro, que sabem como poucos criar uma controvérsia para desviar um assunto incômodo —como os panelaços contra o pai, por exemplo—, inusual foi a reação da China. Pouco frequentador do Twitter, o embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming, recorreu à rede para se queixar de Eduardo, cobrou que ele pedisse desculpas ao seu povo e falou que protestaria junto ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e ao chanceler Ernesto Araújo. Também na rede, a embaixada da China foi ainda mais dura. Acusou o deputado de, após ter voltado de uma viagem a Miami na semana passada, teria contraído um “vírus mental”, que estaria afetando a amizade entre os dois povos.
“Aconselhamos que não corra para ser o porta-voz dos EUA no Brasil, sob a pena de tropeçar feio”, diz uma das postagens da embaixada. O embaixador ainda compartilhou uma postagem na qual a pessoa chamava a família do presidente de “Bozonaro”. A alfinetada, citando os EUA, não é à toa. Eduardo Bolsonaro tem se comportado como um disciplinado defensor dos interesses da Casa Branca no Brasil, inclusive fazendo campanha contra a participação de uma empresa chinesa no leilão da tecnologia 5G. Além disso, Trump também tem usado a crise do coronavírus para irritar Pequim. Sempre que pode chama a Covid-19 de “vírus chinês”.
Ameaças ao embaixador pelo telefone e ‘bombeiros’
Nesta quinta, a embaixada voltou a responder após a entrevista na CNN: “São absurdas e perconceituosas as suas palavras, além de ser irresponsáveis. Não vale a pena refutá-las”. Fontes da diplomacia disseram que Yang foi ameaçado por telefone, depois que respondeu aos ataques do filho do presidente. A alfinetada chinesa não é por acaso.
Os bombeiros tiveram de agir. Do Palácio do Planalto, o vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que o parlamentar não representava o Governo de seu pai. “O Eduardo Bolsonaro é um deputado. Se o sobrenome dele fosse Eduardo Bananinha, não era problema nenhum. Só por causa do sobrenome. Ele não representa o Governo”, disse à Mourão ao jornal Folha de S. Paulo. Da Câmara, Maia pediu desculpas em nome dos deputados. “A atitude não condiz com a importância da parceria estratégica Brasil-China e com os ritos da diplomacia”, afirmou pelas suas redes. E do Itamaraty, o ministro Araújo chamou a atenção tanto do embaixador Yang quanto do deputado Eduardo. Afirmou que o chinês ofendeu o presidente brasileiro e que sua reação às críticas do deputado eram desproporcionais. E ressaltou que o parlamentar não falava em nome do Executivo.
A repercussão no Parlamento e entre empresários foi quase imediata e dura. Em nota, assinada pelo seu presidente, Alceu Moreira, a Frente Parlamentar da Agropecuária, da qual participam quase 300 dos 584 parlamentares brasileiros, ressaltou que “declarações isoladas não representam o sentimento da nação ou de qualquer setor”. O Instituto Sociocultural Brasil-China (IBRACHINA) repudiou as críticas do congressista e a tratam como um “ataque discriminatório contra a comunidade chinesa”. Em documento assinado pelo presidente do órgão, Thomas Law, a entidade comparou a atitude de Eduardo a de fascistas. “Culpar o povo chinês, que mais sofreu com o coronavírus, é inadmissível. O filósofo alemão Theodor Adorno definiu esse tipo de ataque com clareza em 1947 ao afirmar que ‘culpar a vítima é uma das características mais sinistras do caráter fascista’”.
Nas redes bolsonaristas, entretanto, o discurso do parlamentar foi aplaudido. Em quatro grupos de WhatsApp que a reportagem monitora era comum receber mensagens como: o “vírus é chinês” ou a “China ataca o Brasil”. Neles, os autores das postagens e das imagens diziam que o deputado Eduardo tinha razão. E apresentavam teorias conspiratórias como a de terraplanistas que creem que os chineses criaram o vírus para ganharem mais dinheiro nas bolsas de valores.
Em seu Twitter, o professor de relações internacionais da FGV e colunista do EL PAÍS, Oliver Stuenkel, disse que o ataque de Eduardo à China era calculado. “[Ele] desvia a atenção da resposta incoerente do Governo à pandemia e mobiliza apoiadores contra um inimigo comum. Tentará criar sentimentos anticomunistas e nacionalistas”. Também classificou a reação do embaixador chinês como um erro. “Afinal, é exatamente isso que ele [Eduardo] precisa para começar a briga. Teria sido melhor ignorar o episódio”.
Assessores do presidente Bolsonaro reclamaram das críticas feitas pelo seu herdeiro e lembraram que, além dos negócios entre os dois países, a parceria no combate ao coronavírus pode ser afetada. Desde a semana passada o Brasil negocia a doação de respiradores e equipamentos de proteção individual que os chineses não estão mais usando após a contenção da pandemia no país.
Até esse episódio de autossabotagem, a relação Bolsonaro-Xi Jinping estava normal, mesmo após as palavras inflamadas do brasileiro na campanha eleitoral e tendo as visões ideológicas distintas. Eles se encontraram em reuniões bilaterais em ao menos duas ocasiões no último ano. Uma demonstração do bom relacionamento foi quando a equipe de Xi concordou em ajudar a gestão Bolsonaro a repatriar 34 brasileiros que viviam em Wuhan, o epicentro da pandemia no mês de fevereiro. Agora, no Ministério da Saúde a expectativa é que prevaleçam os argumentos técnicos, não os de palanque eleitoral.
À noite, a embaixada da China emitiu uma nota na qual cobrou maior empenho do Itamaraty para solucionar essa crise. “Esperamos que o Itamaraty possa tomar ciência do grau de gravidade desse episódio e alertar o deputado Eduardo Bolsonaro a tomar mais cautela nos seus comportamentos e palavras, não fazer coisas que não condigam com o seu estatuto, não falar coisas que prejudiquem o relacionamento bilateral e não praticar atividades que danifiquem a nossa cooperação.”
Gil Alessi: Coquetel que pressiona Bolsonaro inclui crise, panelaço e pedido de impeachment “na manga”
Errático, presidente propõe agora se reunir com outros poderes. Mandatário é alvo de protesto nas janelas em várias cidades
O primeiro pedido de impeachment de Jair Bolsonaro foi protocolado nesta terça-feira. De autoria do deputado distrital Leandro Grass (Rede-DF), o documento aponta suposto crime de responsabilidade do presidente ao apoiar e convocar as manifestações contra o Congresso no dia 15 de março em meio a uma pandemia de coronavírus, e ao afirmar que as eleições de 2018 foram foram fraudadas sem, no entanto, apresentar prova alguma, dentre outras acusações. Outro pedido semelhante de afastamento de Bolsonaro iria ser protocolado pelo deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP), mas o parlamentar optou por adiar a entrega em função da crise provocada pela doença. Agora, ao menos em tese, o futuro do presidente está nas mãos de um de seus maiores rivais políticos: cabe ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), decidir sobre dar ou não andamento ao processo de afastamento do chefe do Executivo.
No entanto, a expectativa, por ora, é de que nenhum pedido de impeachment prospere, mas sim que sirva como mais um elemento “na manga” de Maia para pressionar Bolsonaro, num horizonte de uma crise sanitária e econômica sem precedentes recentes. O que mais ameaça o Planalto é o comportamento errático do presidente ante o desafio do coronavírus, variando discursos: ora fala para sua base radicalizada, ora para os agentes tradicionais de poder. Depois de minimizar diversas vezes a doença infecciosa e ficar fora de uma reunião de cúpula em Brasília com os demais poderes na segunda-feira, agora Bolsonaro diz que falará com a imprensa sobre o tema ao lado de ministros, nesta quarta-feira, e que se reunirá com os representantes do Judiciário e do Legislativo. O giro de 180 graus na conduta também envolve pedir ao Congresso a aprovação de um “estado de calamidade pública”, que significa afrouxar os limites de gastos do Governo fora dos parâmetros da Lei de Responsabilidade fiscal, uma iniciativa elogiada por Maia.
Seja como for, o clima em Brasília é de tensão ainda em alta. O pedido de impeachment protocolado pelo deputado tem o simbolismo de ser apresentado em um momento de pico das novas rusgas entre o presidente e os poderes Legislativo e Judiciário. Já há algumas semanas o principal alvo do mandatário tem sido o Congresso e seus líderes: Maia frequentemente está na mira de ataques por parte de Bolsonaro (e de sua milícia virtual). O estranhamento mais recente entre os dois ocorreu no domingo. O presidente rompeu o isolamento recomendado pelo Ministério da Saúde para quem teve contato com pessoas infectadas pelo coronavírus ao participar de um protesto em Brasília no domingo, cumprimentando simpatizantes e posando para fotos. Ao menos 13 pessoas que viajaram com ele para os Estados Unidos testaram positivo para o vírus. Frente à atitude irresponsável do presidente, Maia o acusou de ter praticado “atentado à saúde pública”.
A resposta foi rápida: o mandatário reagiu afirmando que estavam tentando “isolá-lo”. “Maia me chamou de irresponsável e fez um ataque frontal. Nunca tratei ele dessa maneira. É um jogo. Desgastar, desgastar, desgastar. Tem gente que está em campanha até hoje para 2022 dando pancada em mim o tempo todo”, disse. Bolsonaro foi além, e disparou: “Prezado Davi [Alcolumbre, presidente do Senado], prezado Rodrigo, saiam às ruas e vejam como são recebidos”. Por fim, ele questionou a moral de ambos ao criticar sua postura. “A luta é pelo poder (...) Que moral tem esses que falaram contra e estão me criticando em ter comparecido a um evento como esse daí?”.
Primeiro panelaço, mas considerável apoio popular
A expectativa é de que o pedido de impeachment não siga seu curso, mas pressione Bolsonaro. O presidente foi alvo de seu primeiro panelaço mais forte em São Paulo e em várias cidades nesta terça-feira —há outro previsto para esta quarta—, mas ainda mantém uma faixa de 30% de apoio popular. Dilma Rousseff, em comparação, tinha menos de 10% de apoio quando a crise que a derrubou começou a se aprofundar. “Na atual conjuntura me parece que não terá andamento. Mas é bom lembrar que os presidentes da Câmara guardam este tipo de pedido ‘embaixo do colchão’ para usar em momento apropriado. Vide Eduardo Cunha [ex-presidente da Câmara, hoje preso, responsável pela tramitação do impeachment de Dilma Rousseff]. Sem dúvida ter um pedido destes fortalece o Maia”, afirma João Feres, cientista político e coordenador do Observatório do Legislativo Brasileiro. Na atual conjuntura o professor acredita que Maia se arriscaria a uma “derrota fragorosa” caso desse seguimento ao pedido protocolado. Mas “uma vez que haja um clima propício na sociedade e condições políticas, o pedido pode andar”, afirma Feres. Ele destaca que não é difícil tipificar o apoio de Bolsonaro à convocação para o ato contra o Legislativo como crime de responsabilidade, fator necessário para a abertura de um processo de impeachment.
- Coletiva dada há pouco sobre ações do Governo Federal sobre o coronavirus: http://youtu.be/iNXGn72z5-w
Os desencontros com o Legislativo podem não ser o suficiente —ainda— para fazer com que o pedido de impeachment prospere, mas isso não quer dizer que o Congresso não possa sangrar o presidente. “Do ponto de vista político, das reformas que o Governo pretende aprovar, esse tensionamento com Legislativo é um grande problema. A agenda do Paulo Guedes não avança sem o Congresso”, afirma Lucas de Aragão, sócio da consultoria Arko Advice. Ele destaca ainda que, tendo em vista as eleições municipais deste ano, já existe uma tendência para que ritmo dos trabalhos da Câmara e do Senado seja reduzido no segundo semestre. “Acho que o presidente está numa situação onde existem outras variáveis que o desgastam mais do que o pedido de impeachment, como por exemplo a crise do coronavírus e a recuperação econômica”.
Além dos embates frequentes com o Legislativo, a maneira contraditória como Bolsonaro está conduzindo a crise do coronavírus tem sido criticada abertamente por governadores e líderes políticos de quase todo o espectro partidário. O presidente vinha se esforçando para minimizar os riscos da doença, e já falou mais de uma vez que trata-se de uma “histeria”, por vezes “provocada pela mídia”. Nesta terça-feira ele disse até mesmo que pensa em fazer uma “festinha tradicional” para comemorar seu aniversário nos próximos dias, ao passo que o Ministério da Saúde tenta controlar a disseminação da doença com uma abordagem que segue protocolos da Organização Mundial da Saúde, desestimulando grandes aglomerações e contato físico. O desrespeito do presidente com relação ao isolamento proposto para controlar a doença foi a gota d'água para alguns de seus aliados políticos, como a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP). Ela defendeu, na tribuna da Assembleia Legislativa de São Paulo, o afastamento do presidente.
Enquanto Bolsonaro apenas ensaia mudar de conduta e assumir a liderança dos esforços de combate à doença, deputados tentam ter algum protagonismo diante da crise provocada pelo coronavírus. Nesta terça-feira foram apresentados projetos para permitir o uso de verba do FGTS e dos fundos Eleitoral e Partidário para ações de emergência na área de saúde. Maia aproveitou para alfinetar as medidas tomadas por Bolsonaro para contornar a crise: “O Governo já deveria ter fechado as fronteiras, restringido os voos internacionais e a circulação de pessoas, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo”. De momento, Bolsonaro anunciou o fechamento parcial apenas com a Venezuela, no norte, longe de ser o ponto mais movimentado de contato terrestre com o exterior.
El País: Mandetta prevê 20 semanas “extremamente duras” com coronavírus. Governo quer declarar estado de calamidade
Após confirmação de óbito por doença, Ministério da Saúde traça cenário duro para os próximos meses. Testes são racionados para pacientes graves
Após a confirmação da primeira morte por coronavírus no Brasil, o Ministério da Saúde desenha um cenário duro para os próximos meses nos país. Apesar do comportamento errático de Jair Bolsonaro com respeito à pandemia, o Governo Federal vai pedir ao Congresso o reconhecimento de estado de calamidade pública para poder gastar além do limite da Lei de Responsabilidade Fiscal e atender à situação emergencial. O cenário que se desenha no país é grave. “Vamos passar 60 a 90 dias de muito estresse”, diz o ministro Luiz Henrique Mandetta, em um recado claro ao país nesta terça-feira.
O número de casos suspeitos quadruplicou no Brasil de segunda para terça e há pelo menos 291 casos confirmados pelo Ministério da Saúde. No balanço dos Estados, ainda em processo de notificação, o número de casos já passa de 300. Ao menos 28 pessoas estão hospitalizadas pela Covid-19, e a projeção das autoridades de saúde é de que o número de pacientes que precisam de cuidados intensivos nos hospitais deverá dobrar a cada três dias. A perspectiva é de que apenas em setembro a situação deva começar a voltar ao normal.
A rápida escalada da doença tem esgotado sistemas de saúde sólidos em vários países. No Brasil, o Governo já vinha atuando para reforçar leitos de UTI, equipamentos e profissionais, gargalos crônicos do SUS. Mas agora trabalha para atuar em cenários ainda mais drásticos. Considera, por exemplo, ter de adaptar contêineres e escolas para funcionarem como unidades de saúde, caso o sistema que já atua no limite colapse. Os testes para diagnóstico também já começaram a ser racionados, com prioridade para pacientes em estado grave. O Governo deve continuar medindo a disseminação do vírus pelo país por amostragem.
É este o panorama com o qual trabalha o ministro Mandetta, que tem pedido diretamente o envolvimento da sociedade com ações de prevenção e distanciamento social, uma forma de desacelerar o contágio e dar tempo para que o sistema de saúde se recupere e consiga tratar seus enfermos. Nos Estados, no entanto, a situação ainda varia enormemente: apesar de a maioria das instituições de ensino ter cancelado as aulas no Rio e em São Paulo, as duas maiores metrópoles do país ainda têm comércio funcionando e empresas resistindo a adotar esquemas de home office ou escalonamento de pessoal.
Embora ainda não seja possível traçar padrões muito claros de como o coronavírus se comporta num país do hemisfério sul como o Brasil e haja muitas perguntas em aberto sobre o Covid-19, o Governo prevê um período mais agudo de infecção pelo menos até o mês de julho, com números espirais ascendentes. A partir daí, espera que os casos de contaminação voltem a um patamar mais lento de propagação. “Desde que a gente construa a chamada imunidade em mais de 50% das pessoas”, pondera o ministro. Este período deverá ser marcado por situações inéditas e desgastantes, inclusive com a determinação de medidas para reduzir ainda mais o fluxo de pessoas e, consequentemente, o ritmo da contaminação. Os gestores poderão impor quarentenas e bloqueios, prevendo inclusive coerção policial e punições, algo bem mais forte do que as recomendações que governadores e prefeitos já iniciaram ao suspender aulas, estabelecer novas regras ao transporte público e desencorajar eventos.
“Nós teremos aí em torno de 20 semanas, a partir do surto epidêmico, que serão extremamente duras, para as famílias, para as pessoas. Cuidem dos idosos, é hora de filho e filha cuidar de pai, mãe, avó, tia-avó. É preciso ter muito claro que devemos ligar para perguntar como está, mas não levar sistematicamente muitas crianças, que são assintomáticas”, apela Mandetta. O ministro pediu diretamente a solidariedade da população para se proteger. “Quanto menos idosos tivermos com o coronavírus, menos pressão colocaremos nos leitos de CTI (Centro de Terapia Intensiva)”, explica. As medidas envolvem desde a ação direta do familiar no cuidado com os idosos, que integram o grupo de maior risco, até cuidados especiais dos profissionais de saúde, que devem dar receitas para medicações de uso contínuo válidas por seis meses, evitando assim que o idoso precise visitar o serviço médico.
Paralelamente, o Governo passa a se preocupar com ações mais extremas para garantir o atendimento a pacientes durante o pico que deve chegar em breve. Além da previsão de contratar 5.800 médicos de forma emergencial pelo Mais Médicos e do horário extendido para postos de saúde, o Governo treinará estudantes de medicina que estão no último ano de graduação. A ideia é que eles possam atuar no atendimento de menor complexidade, com a supervisão de profissionais graduados. O Ministério da Saúde destaca que é importante aumentar a força de trabalho jovem na linha de frente, já que eles têm maior capacidade de recuperação caso sejam contaminados. Por isso mesmo, médicos aposentados não estão sendo considerados neste momento para atuar na crise. “Nós iniciaremos a capacitação de médicos de outras especialidades, mais jovens, que se recuperam mais rápido em contato com o vírus”, afirma Mandetta.
Contêineres, escolas e outros edifícios também poderão ser adaptados para funcionar tanto no atendimento primário (aquele dos postos de saúde) quanto em caso de internação de pacientes que não precisam de cuidados intensivos. Assim, hospitais poderão ir adaptando sua estrutura ao máximo de leitos de terapia intensiva (os leitos de UTI), onde precisam ser tratados os pacientes mais graves, quase a totalidade deles com uso de ventiladores mecânicos para ajudá-los a conseguir respirar. Essa demanda pode crescer exponencialmente, já que o paciente com coronavírus permanece em média o dobro de tempo do paciente comum na UTI. “Não há nenhum Estado da federação hoje que não esteja tendo sua capacidade aumentada. Vamos precisar de mais, muito mais”, diz Mandetta.
Os testes para diagnóstico também começam a ser economizados. Eles são priorizados para pacientes hospitalizados, que têm quadro clínico respiratório mais grave. A verificação de circulação do vírus nas cidades continua sendo feita por amostragem, com testes executados de maneira aleatória nas chamadas unidades de sentinela. Na China, infectados não diagnosticados aceleraram a explosão. Para tentar reduzir danos, o Governo anunciou um chamamento público para tecnologias para ampliar a capacidade de fazer testes do novo coronavírus, mas avaliará a contratação de testes com base na qualidade deles. Ou seja, pode demorar.
Agência Fapesp: Cientistas brasileiros estão desenvolvendo vacina contra o coronavírus
Pesquisa financiada pela Fapesp utiliza estratégia diferente da indústria farmacêutica e de outras equipes do exterior. Meta é começar testes em animais já nos próximos meses
Pesquisadores do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) estão desenvolvendo uma vacina contra o coronavírus causador da síndrome respiratória aguda grave, o Sars-CoV-2.
Por meio de uma estratégia diferente da adotada por indústrias farmacêuticas e grupos de pesquisa em diversos países, os cientistas brasileiros esperam acelerar o desenvolvimento e conseguir chegar, nos próximos meses, a uma candidata a vacina contra o novo coronavírus que possa ser testada em animais.
“Acreditamos que a estratégia que estamos empregando para participar desse esforço mundial para desenvolver uma candidata a vacina contra a Covid-19 é muito promissora e poderá induzir uma resposta imunológica melhor do que a de outras propostas que têm surgido, baseadas fundamentalmente em vacinas de mRNA”, disse à Agência Fapesp, Jorge Kalil, diretor do Laboratório de Imunologia do Incor e coordenador do projeto apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Utilizada no desenvolvimento da primeira vacina experimental contra o Sars-CoV-2, anunciada no fim de fevereiro nos Estados Unidos, a plataforma tecnológica de mRNA se baseia na inserção na vacina de moléculas sintéticas de RNA mensageiro (mRNA) ― que contêm as instruções para produção de alguma proteína reconhecível pelo sistema imunológico.
A ideia é que o sistema imunológico reconheça essas proteínas artificiais para posteriormente identificar e combater o coronavírus real. Já a plataforma que será utilizada pelos pesquisadores do Incor é fundamentada no uso de partículas semelhantes a vírus (VLPs, na sigla em inglês de virus like particles).
As VLPs são estruturas multiproteicas que possuem características semelhantes às de um vírus e, por isso, são facilmente reconhecidas pelas células do sistema imune. Porém, não têm material genético do vírus, o que impossibilita a replicação. Por isso, são seguras para o desenvolvimento de vacinas.
“Em geral, as vacinas tradicionais, baseadas em vírus atenuados ou inativados, como a do influenza [causador da gripe], têm demonstrado excelente imunogenicidade, e o conhecimento das características delas serve de parâmetro para o desenvolvimento bem-sucedido de novas plataformas vacinais”, afirmou Gustavo Cabral, pesquisador responsável pelo projeto.
“Mas, neste momento, em que estamos lidando com um vírus pouco conhecido, por questões de segurança é preciso evitar inserir material genético no corpo humano para evitar eventos adversos, como multiplicação viral e possivelmente reversão genética da virulência. Por isso, as formas alternativas para o desenvolvimento da vacina anti-Covid-19 devem priorizar, além da eficiência, a segurança”, ressaltou Cabral.
A fim de permitir que sejam reconhecidas pelo sistema imunológico e gerem uma resposta contra o coronavírus, as VLPs são inoculadas juntamente com antígenos ― substâncias que, ao serem introduzidas no corpo humano fazem com que o sistema imune produza anticorpos.
Dessa forma, é possível unir as características de adjuvante dos VLPs com a especificidade do antígeno. Além disso, as VLPs, por serem componentes biológicos naturais e seguros, são facilmente degradadas. “Com essa estratégia é possível direcionar o sistema imunológico para reconhecer as VLPs conjugadas a antígenos como uma ameaça e desencadear a resposta imune de forma eficaz e segura”, explicou Cabral.
Plataforma de antígenos
Especialista em imunologia, Gustavo Cabral fez nos últimos cinco anos pós-doutorados nas universidades de Oxford, na Inglaterra, e de Berna, na Suíça, onde desenvolveu candidatas a vacinas utilizando VLPs contra doenças, como a causada pelo vírus zika. Por meio de um projeto apoiado pela Fapesp, retornou ao Brasil onde iniciou no laboratório de imunologia do Incor, no começo de fevereiro, um estudo voltado a desenvolver vacinas contra Streptococcus pyogenes ― causador da febre reumática e da cardiopatia reumática crônica ― e chikungunya utilizando VLPs. Com a pandemia do Covid-19, o projeto foi redirecionado para desenvolver uma vacina contra o novo coronavírus.
O projeto também teve a participação de Edécio Cunha Neto, professor do Incor e pesquisador do Laboratório de Imunologia da instituição, que participou da decisão da abordagem do Covid-19 no projeto de Cabral e do delineamento experimental da vacina. “O objetivo é desenvolver uma plataforma de entrega de antígenos para células do sistema imune de forma extremamente fácil e rápida e que possa servir para desenvolver vacina não só contra a Covid-19, mas também para outras doenças emergentes”, ressaltou Cabral.
Os antígenos do novo coronavírus estão sendo produzidos a partir da identificação de regiões da estrutura do vírus que interagem com as células e permitem a entrada dele, as chamadas proteínas spike. Essas proteínas, que são protuberâncias pontiagudas ao redor do envelope viral, resultam um formato de coroa que conferiu o nome corona a esse grupo de vírus.
Após a identificação dessas proteínas spike, são extraídos fragmentos delas que são conjugadas às VLPs. Por meio de testes com o plasma sanguíneo de pacientes infectados pelo novo coronavírus é possível verificar quais fragmentos induzem uma resposta protetora e, dessa forma, servem como potenciais candidatos a antígenos. “Já estamos sintetizando esses antígenos e vamos testá-los em soro de pacientes infectados”, afirmou Cabral.
Após a realização dos testes em camundongos e comprovada a eficácia da vacina, os pesquisadores pretendem estabelecer colaborações com outras instituições de pesquisa para acelerar o desenvolvimento. “Após comprovarmos que a vacina neutraliza o vírus, vamos procurar associações no Brasil e no exterior para encurtarmos o caminho e desenvolver o mais rápido possível uma candidata a vacina contra a Covid-19”, disse Kalil. O pesquisador é coordenador do Instituto de Investigação em Imunologia, sediado no Incor – um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) apoiados pela Fapesp e pelo CNPq no Estado de São Paulo.
El País: Bolsonaro insiste que crise do coronavírus é “histeria”, e ex-aliados sugerem seu afastamento
El P
O presidente Jair Bolsonaro comprou para si uma crise extra com a sua saída do Palácio do Planalto, no último domingo, para abraçar e tirar selfies com populares em uma manifestação de apoio ao seu Governo. Se ficou bem com aqueles que não se importaram em estender a mão para cumprimentá-lo —apesar de 13 pessoas da comitiva que o acompanhou aos Estados Unidos terem sido contagiadas com o coronavírus— Bolsonaro perdeu o respeito de antigos aliados. Entre elas, a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP), que quase foi sua candidata a vice durante as eleições de 2018.
Nesta segunda, Paschoal propôs que Bolsonaro deixasse o poder para alguém “capaz de conduzir a nação.“ "As autoridades têm de se unir e pedir para ele [Bolsonaro] se afastar. Não temos tempo para um processo de impeachment”, afirmou Paschoal, que fez um discurso na tribuna da Assembleia Legislativa de São Paulo. “Estamos sendo invadidos por um inimigo invisível [o coronavírus]. Precisamos de gente capaz de conduzir a nação. Quero crer que [o vice-presidente Hamilton] Mourão pode fazer isso por nós”, completou.
Se a deputada rejeita a ideia de impeachment, outros desafetos do presidente veem nesse processo o caminho natural para Bolsonaro depois de seu gesto de indiferença com a crise do coronavírus neste domingo. O deputado Alexandre Frota (PSDB-SP), seu ex-aliado, promete entregar nesta terça-feira um pedido de afastamento do presidente ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Bolsonaro, contudo, não acredita que será afastado por acreditar que tem “o povo” ao seu lado e os atos de populares a seu favor neste domingo seriam a prova. O mandatário teima em enxergar que cometeu erros, inclusive ao cumprimentar pessoalmente os seus apoiadores. Em entrevista ao jornalista Luiz Datena, na rádio Bandeirantes, o presidente falou por longos 50 minutos, e admitiu que fará um segundo teste esta semana para o coronavírus. Em momento algum cogitou que pudesse ele mesmo transmitir o vírus para os populares que foram celebrá-lo na porta do Palácio do Planalto. Ao contrário, insinua que se colocou ele mesmo em risco para respeitar o público. “Se eu me contaminei, é responsabilidade minha. Ninguém tem nada com isso”, afirmou Bolsonaro.
Mantendo o tom desafiador, minimizou as críticas que lhe são atribuídas e tratou novamente como “histeria” a preocupação com a expansão do coronavírus. “Você tem um caos muito maior. Se economia afundar, afunda o Brasil. E qual é o interesse? Dessas lideranças políticas [que o criticam]? Se afundar a economia, acaba o meu Governo”, diz ele, que atribui a preocupação com o coronavírus a uma guerra de poder. Perguntado se poderia fechar fronteiras, como o fizeram outros países, entre eles alguns com menos casos do vírus que o Brasil, Bolsonaro disse que o Brasil não tem espaço de lei para fechar.
Questionado sobre a postura do presidente diante da crise, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo Reis, negou-se a comentar. “O Ministério da Saúde não avalia manifestações do presidente. Vou falar sobre qualquer coisa que diga respeito à saúde pública, não vou falar sobre comportamento das pessoas, muito menos do presidente”.
Apesar de classificar de “histeria” a preocupação com o coronavírus, o Governo decidiu criar um gabinete de crise, que avalia em tempo real a evolução da doença —já são 234 casos no país—, e anunciou um pacote de medidas econômicas que pretende injetar 147 milhões de reais na economia. A ideia é atenuar a oscilação nos mercados. A Bovespa acionou o circuit breaker (uma interrupção automática dos negócios após queda vertiginosa das ações) pela quinta vez este mês, fechando com redução de quase 13%. Pela primeira vez no ano, o dólar fechou em 5 reais nesta segunda.
Isolamento
Se o presidente fez pontos com seus apoiadores mais radicais que foram às ruas, entre a cúpula dos poderes a tentativa é de isolá-lo para deixar seus técnicos trabalharem. Um exemplo disso foi uma reunião de emergência que ocorreu na tarde desta segunda-feira no Supremo Tribunal Federal, do qual participaram o presidente e o vice da Corte, Dias Toffoli e Luiz Fux, além dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. O Executivo foi representado pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Alcolumbre e Maia se queixaram de que Bolsonaro tem estimulado o acirramento entre os poderes, o que foi reforçado por sua participação na manifestação de domingo e em uma entrevista dada à CNN Brasil, na qual ele diz que esses dois parlamentares deveriam ir para as ruas para ouvir a população.
Na esfera regional, Bolsonaro também demonstrou que não está interessado em unir forças com outros países sul-americanos. Desde Santiago, no Chile, o presidente Sebástian Piñera coordenou uma reunião do Prosul (Argentina, Brasil, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Guiana e Chile). Com exceção do Brasil, os presidentes dos demais países do grupo participaram da reunião por teleconferência. Bolsonaro determinou que Mandetta e o chanceler Ernesto Araújo o representassem. Nesse encontro, o grupo concordou em coordenar a adoção de medidas para a proteção de fronteiras, facilitar os retornos dos nacionais a seus respectivos países, estabelecer políticas de compras conjuntas de insumos médicos e aumentar a capacidade de diagnósticos dos possíveis infectados.
Na contramão de outros países da América do Sul, o Brasil não deverá fechar suas fronteiras para evitar a disseminação do novo coronavírus. Peru, Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Paraguai impuseram restrições para a entrada de estrangeiros. Segundo o secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo Reis, o país está se preparando para receber estrangeiros que precisem de assistência, como quatro argentinos e dois uruguaios que estão em um cruzeiro atracado em Recife com casos suspeitos de coronavírus. O ministro Luiz Henrique Mandetta declarou ser contrário à medida. “Se for partir para fechar tudo, sai todo mundo correndo”.
El País: Com projeção de 460.000 infectados no Estado de São Paulo, Brasil endurece combate ao coronavírus
RJ e SP, com transmissão comunitária da Covid-19, suspendem aulas e proíbem eventos em massa. Ministério da Saúde projeta que, sem ações de distanciamento social, casos podem dobrar a cada três dias no país
Embora num patamar menos enérgico que outros países, o Governo brasileiro subiu o tom no combate ao coronavírus nesta sexta-feira (13) e passou a recomendar que prefeitos e governadores adotem ações mais duras de distanciamento social para frear a incidência da covid-19. Sem essas ações, projetam as autoridades de saúde, o número de infectados pode dobrar a cada três dias no país ―aumentando rapidamente a incidência de casos que podem evoluir para quadros graves e sobrecarregar o sistema de saúde. Por enquanto, apenas 12 dos 98 casos oficialmente confirmados na esfera federal estão sendo tratados em hospitais e o SUS tem dado conta da demanda. No entanto, São Paulo e Rio de Janeiro já apresentam transmissão comunitária da doença, quando já não é possível identificar a origem da infecção e o contágio ganha velocidade. No Rio, as aulas já começam a ser suspensas na semana que vem. Em São Paulo, onde o Governo do Estado projeta que ao menos 1% da população (ou 460.000 pessoas) possa ser infectada nos próximos meses (mesmo que boa parte deles assintomática), a paralisação será gradual. Em ambos há proibição ou restrição de realização de eventos em massa.
O Governo estima que, a cada três dias, o número de casos de infectados (há 98 casos confirmados oficialmente nesta sexta) pode dobrar sem a adoção dessas medidas, embora reconheça que cada município deve ter uma curva epidemiológica diferenciada de acordo com o início da transmissão local. Por isso, as ações de restrição mais pulverizadas pelas gestões locais. “O Brasil é muito grande e temos diferenças profundas. As medidas não farmacológicas são recomendações. Não estamos mais orientando, estamos recomendando. Ainda não chegamos à fase de determinação”, pondera o secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson de Oliveira.
No âmbito federal, a ação mais enérgica foi proibir cruzeiros turísticos por tempo indeterminado. E estabelecer regras mais claras sobre qual é o momento adequado para que prefeitos e governadores decretem quarentena em locais específicos com o objetivo de retardar o pico de transmissão da doença. A orientação é de que os gestores locais publiquem atos para isolar áreas quando os leitos disponíveis para tratar casos graves da doença atinjam 80% de ocupação. A ideia é ganhar tempo para a recuperação do sistema de saúde num contexto em que pacientes graves demoram mais tempo nas UTIs. Nesta sexta-feira, houve uma mudança no status de enfrentamento da doença. Se antes o Governo apenas orientava esse tipo de ação mais restritiva, passou a recomendá-las e adiantou que a qualquer momento pode passar a determinar medidas obrigatórias, dependendo da evolução da pandemia. Nas duas maiores cidades do país, São Paulo e Rio de Janeiro, essa fase definitivamente já chegou.
O Governo de São Paulo, Estado que lidera o número de casos da doença, recomendou que eventos com mais de 500 pessoas sejam cancelados. Também decidiu suspender gradativamente as aulas na rede pública de ensino a partir da próxima segunda-feira. Durante a semana que vem, as aulas ainda ocorrerão, mas faltas não serão contabilizadas. A ideia é que as famílias tenham tempo de se planejar e evitar que crianças fiquem com idosos, público de maior risco de complicações em caso de infecção. Também não haverá férias para os profissionais de saúde, uma forma de manter o sistema de saúde operante com a maior capacidade possível. O Estado mais populoso do país, com 46 milhões de habitantes, usa a experiência epidemiológica de outros países com a Covid-19, além dos números de epidemias respiratórias com outros vírus, para traçar cenários. O mais conservador deles é de que entre 1% e 10% da população será infectada, com 20% deles precisando de assistência médica hospitalar. “Cenários são estimativas. Pode acontecer 1%, 2%, 5%, 10%. Tem um fato novo que nós precisamos aprender: como é que esse vírus vai se comportar em um país tropical no verão. Daqui a pouco, estaremos no outono. Eu não consigo dizer hoje se vai ser 1% ou 10%”, disse David Uip, que coordena o combate da doença no Estado, ao jornal O Estado de S. Paulo.
Já o Rio de Janeiro ―que tem um dos sistemas de saúde mais frágeis, segundo o ministro Luiz Henrique Mandetta― também decidiu suspender aulas tanto da rede pública quanto da rede privada. O prefeito Marcelo Crivella cancelou aulas na rede municipal por uma semana, enquanto o governador Wilson Witzel decidiu antecipar as férias escolares e suspender aulas em escolas estaduais e privadas por 15 dias. Também proibiu eventos em massa e deu uma declaração controversa de que, caso haja grande aglomeração nas praias, a Polícia Militar poderia agir. “Embora as praias sejam área federal, numa situação como essa a Polícia Militar, os bombeiros, a guarda municipal podem agir para evitar aglomerações”, afirmou. Witzel também suspendeu a visitação de presos.
Ações de distanciamento social também foram determinadas pelo Distrito Federal nos últimos dias, embora ainda não tenha casos de transmissão sustentada da doença. Em alguns Estados, Governos começam a limitar atividades em órgãos públicos e evitar viagem de servidores a trabalho. Ceará e Pernambuco decidiram, por exemplo, proibir que cruzeiros turísticos já em curso atraquem em seus territórios depois que o Governo Federal proibiu que novos cruzeiros (sejam nacionais ou internacionais) iniciem atividades no país. “Os cruzeiros turísticos historicamente são ambientes de confinamento. Muitos deles têm turistas internacionais”, afirma Wanderson de Oliveira, citando o caso dramático do Japão. No Brasil, há ao menos dois casos suspeitos de um cruzeiro em Pernambuco, cujos turistas estão isolados.
Há recomendações gerais do Ministério da Saúde sobre as medidas que devem ser implantadas para frear o coronavírus, mas cabe aos Estados e municípios decidirem suas próprias ações, conforme suas especificidades. Para áreas de transmissão sustentada, o Governo Federal recomenda ações que envolvem reduzir o fluxo urbano com horários alternativos para trabalhadores, estimular o home office e monitoramento diário de ocupação de leitos de UTI. Há uma preocupação maior sobre a evolução do coronavírus no país com a chegada do outono na próxima sexta-feira, quando as temperaturas caem em diversas regiões do país e também há um retorno de viroses sazonais que já circulavam anteriormente no Brasil. As mudanças climáticas devem interferir na propagação do vírus, já que favorecem um comportamento de maior aglomeração de pessoas.
El País: Governo evita medidas mais restritivas contra coronavírus e foca na preparação do SUS
Especialistas alertam que país vive a iminência de entrar numa fase mais aguda de contágio. Virologista pede ação imediata enquanto esfera privada adota ações de distanciamento social
Enquanto a esfera privada já se movimenta para suspender eventos e evitar aglomerados de pessoas por conta da expansão do coronavírus no Brasil, o poder público ainda não considera a adoção de medidas de distanciamento social para conter a incidência da covid-19. A avaliação do Governo Federal é de que o país ―com mais de 100 casos confirmados, se considerado o balanço oficial da pasta, mas também a confirmação de hospitais― enfrenta um cenário ainda controlado, embora admita que ações mais enérgicas podem ser adotadas caso haja um aumento exponencial no número de infectados, o que poderia sobrecarregar rapidamente o sistema de saúde. Por ora, o Governo decidiu obrigar que pacientes com a doença (assim como pessoas que tiveram contato prolongado com infectados) fiquem em isolamento domiciliar. E determina que, num cenário onde não se sabe muitos detalhes sobre o comportamento do vírus em clima tropical e diante das características assimétricas das regiões de um país continental como o Brasil, caberá aos próprios Estados e municípios decretarem quarentena, um ato formal para impedir o trânsito de pessoas quando a capacidade de assistência aos pacientes estiver comprometida. Especialistas avaliam que o Brasil está na iminência de entrar na fase de transmissão sustentada da doença, com casos que não têm relação com viagens ao exterior e cuja velocidade de contágio é mais aguda, e defendem que Governo precisa estar preparado para impor medidas mais restritivas antes que o sistema de saúde comece a se esgotar.
Neste momento, o Governo tem focado em reforçar o sistema de saúde para atender os infectados. Reabriu 5.811 vagas desocupadas do Mais Médicos e anunciou que garantirá o horário extendido em 40% das equipes de saúde para reforçar o atendimento nos postos de saúde, onde espera resolver 80% dos casos. Também afirmou que dobrará o número de leitos de retaguarda exclusivos para tratar pacientes graves com coronavírus. Ao todo, serão 2.000 leitos que poderão ser alocados conforme necessidade, quando a capacidade de atendimento já disponível nos Estados se esgotar.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tem defendido que medidas mais restritivas não são necessárias neste momento. O Ministério da Saúde contabiliza 77 casos, mas confirmações de Estados e hospitais mostram que o Brasil já tem mais de 100 casos. O secretário executivo da pasta, João Gabbardo, afirma que ―diferente da Itália, cujo sistema de saúde que é referência internacional colapsou diante de um boom de casos― o Brasil tem tido tempo para planejar os passos, caso haja um descontrole da doença, e que o país ainda não discute impor bloqueios sanitários.
“Não existe nenhuma orientação do Ministério da Saúde nesse sentido. Pode vir a acontecer? Não sei”, afirma. O Brasil publicou uma portaria que obriga infectados e pessoas que tiveram contato prolongado com eles, como quem vive na mesma casa, permaneçam em isolamento por 14 dias. Caso apresentem sintomas da doença após esse prazo, o isolamento pode ser prolongado por mais 14 dias. Apesar de ser obrigatório, Gabbardo diz que a permanência dessas pessoas em casa é um “contrato social, de civilidade”. Caso seja identificado o descumprimento, medidas punitivas podem ser determinadas na esfera judicial. Nesta quinta-feira, o ministro da Justiça Sergio Moro pediu “autorresponsabilidade” da população, mas destacou que isolamento e quarentena podem ser impostos compulsoriamente no Brasil. “No isolamento não vai ter ninguém na casa da pessoa dizendo ‘olha, você não pode sair’. É um contrato social, de civilidade. A quarentena é um ato de restrição. É um guarda que vai monitorar a saída. Quando eu restrinjo o ir e vir das pessoas, tenho uma série de medidas a garantir: água, comida, energia", explicou Gabbardo.
Hora de agir?
A avaliação é que o Brasil ainda não está nessa fase, embora especialistas venham alertando a iminência de o país enfrentar uma fase mais aguda da doença. E a necessidade de respostas rápidas. O virologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, considera que o prognóstico da pandemia é “tenebroso”. Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, ele diz que o coronavírus tem o potencial para matar até 15 milhões de pessoas no mundo (e 257.000 no Brasil) caso não seja contido, segundo um estudo da Universidade Nacional da Austrália. Zanotto avalia que o Brasil tem perdido tempo e vê no distanciamento social o único caminho para evitar a propagação rápida da doença, a exemplo do que outros países vem fazendo.
O momento certo para a implementação de medidas restritivas não é unanimidade entre especialistas ouvidos pelo EL PAÍS, mas há um consenso de que o Governo precisa agir antes que o sistema de saúde comece a colapsar. “Se proibir aglomeração, você freia a transmissão aguda porque diminui o contato entre pessoas, mas também prolonga o tempo em que o microorganismo vai permanecer transmissível”, explica o infectologista Guilherme Henn, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.
Ele diz que reduzir o número de infectados é positivo num primeiro momento, porque a ação ajuda a evitar uma grande quantidade de casos graves da doença ao mesmo tempo, o que contribui para um colapso na capacidade de assistência como o da Itália. No entanto, pondera que medidas como esta devem ser avaliadas com cautela. “Se a gente recomenda medidas mais drásticas quando não são necessárias, não consegue conter o virus e só alimenta pânico e incertezas”, diz. O infectologista também acrescenta que há um efeito colateral de aumentar o tempo de transmissibilidade do vírus, já que a população segue sem contato com ele e não cria defesas naturais. Isso significa que o vírus pode continuar contaminando durante um período maior, ainda que de forma mais lenta. “De qualquer forma, é muito melhor você ter 150 mil casos graves de UTI ao longo de um ano do que em um único mês em termos de saúde pública”, analisa.
Henn afirma que há varios estudos com projeção de contaminação e propagação da doença, mas considera que as estimativas são “grosseiras”, já que se baseiam na experiência internacional e não há muitas respostas sobre o comportamento do coronavírus em clima tropical. O clima ainda é uma aposta para uma disseminação mais lenta da doença no país, mas especialistas e autoridades já começam a se preocupar com um possível agravamento diante da chegada do outono, no final deste mês. “A evolução da epidemia é tão dinâmica que as autoridades precisam estar atentas para agir assim que os casos evoluírem”, afirma o infectologista. Para ele, as características climáticas de cada região também deverão influenciar no enfrentamento sobre o coronavírus. Henn diz que o aumento exponencial em locais específicos nos últimos dias, como aconteceu em São Paulo e no Rio de Janeiro, não são indicativos de o país inteiro precisa adotar medidas que essas regiões venham adotar.
Já o infectologista Juvêncio Furtado avalia que o Governo age certo ao analisar primeiro o tamanho do problema para depois adotar medidas mais restritivas. Ele avalia que o SUS tem condições de responder rapidamente ao tratamento de infectados pela sua ampla capilaridade, com ressalvas ao caso de a propagação atingir uma “proporção absurda”, o que ele diz que não está previsto. “Se houver bom uso, sem alarme e fluxo de pessoas em grande escala nas unidades de emergência, acho que a rede tem essa capacidade”, defende. A orientação é de que pessoas que apresentem sintomas procurem os postos de saúde para orientações. Os hospitais deverão receber apenas casos mais graves da doença. Nesta sexta-feira, o Ministério da Saúde discute ações para fortalecer a rede de média e alta complexidade.