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El País: 'Hoje, dane-se o Estado mínimo, é preciso gastar e errar pelo lado do excesso', diz Monica De Bolle

Para a economista da Universidade Johns Hopkins, ministro Paulo Guedes está preso a dogmas ideológicos e mantém letargia para tomar decisões que afetam quem já está passando fome

Heloísa Mendonça, do El País

“E, para os defensores da calma e da serenidade, saibam: o momento é de urgência”, escreve a economista brasileira Monica de Bolle, em mais um tuíte para cobrar decisões rápidas de autoridades diante do quadro excepcional pelo qual passa o Brasil e o mundo. Pesquisadora do Instituto Peterson de Economia Internacional e professora da Universidade Johns Hopkins, em Washington, de Bolle tem sido incansável em defender que é preciso abandonar o teto de gastos para frear a escalada da pandemia de coronavírus e seus impactos econômicos. “Hoje, dane-se o Estado mínimo, você precisa gastar e é preciso errar pelo lado do excesso”, afirma a economista, que sempre pregou austeridade responsável.

Bolle critica a condução do ministro de Economia, o liberal Paulo Guedes, para enfrentar a crise e avalia que ao invés de tentar acalmar o mercado financeiro, o chefe da pasta deveria estar solucionando o problemas dos milhões de brasileiros que já não têm como se sustentar. Em entrevista ao EL PAÍS, a economista avalia que a posição negacionista de Jair Bolsonaro, que tenta minimizar a pandemia e quer afrouxar as regras de quarentena, pode escalar para uma situação “de absoluta instabilidade social e institucional”.

“Se você não aplicar o isolamento social e deixar a epidemia correr solta, como já vimos aqui em Nova York, o sistema de saúde entra em colapso e a economia junto. Não há como evitar o colapso econômico, ele vem na mesma forma, na verdade vem pior”.

Leia os principais trechos da entrevista:

Pergunta. O Senado aprovou, na noite desta segunda-feira, o projeto que prevê um auxílio emergencial de 600 reais para amparar os trabalhadores que perderam renda com a crise da pandemia de coronavírus. Agora a lei vai para sanção presidencial. A ajuda é suficiente?

Resposta. O texto aprovado foi tal qual o encaminhado pela Câmara, o que é bom, porque permite que o pagamento possa ser feito de imediato. Tenho algumas críticas, acredito que o projeto poderia ter sido aprimorado antes, mas isso é menos importante, porque o principal é que saia o pagamento. No entanto, acredito que seja necessário um projeto de lei complementar a esse, ajustando a cobertura do benefício para contemplar mais pessoas e não apenas os trabalhadores informais. No Brasil, há uma quantidade grande de trabalhadores formais cuja a situação é muito precária.

P. E a duração de três meses do benefício? É suficiente?

R. São três meses prorrogáveis, mas essa crise não terá acabado em 90 dias. Precisamos estender esse prazo para que as pessoas tenham a segurança mínima de que essa renda com a qual elas vão poder contar terá um prazo mais longo. Isso é muito importante para dar um chão às pessoas. Vários projetos que foram apresentados pela oposição queriam um prazo maior, mas o Governo resistiu e preferiu ficar só nos três meses. Jair Bolsonaro resiste em reconhecer que a crise vai ser mais longa do que três meses, porque isso vai de encontro com a narrativa a que ele se agarrou de que isso é uma crise de curto prazo, que vai acabar logo. Mas todo mundo já sabe que ela será mais longa, então é uma postura anacrônica. Ainda tem uma grande articulação de um PL complementar para ajustar esses dois parâmetros, mas é preferível aprovar dessa forma para não atrasar o processo de começar a pagar as pessoas. Mas isso depende do Governo Federal que tem que implementar a lei e desenhar a logística para isso. Já deveria ter feito isso na semana passada. Mais uma vez, o Governo está super atrasado. Alguns projetos de lei sobre medidas de proteção das empresas estão sendo formulados também. Outra vez, o Congresso vai propor um texto, que provavelmente será lei. Mas a implementação sempre é do Executivo. O Congresso vai até onde pode, mas precisa da perna do Governo para funcionar, se essa perna ficar inerte, como tocar para frente o que precisa?

P. Nos último dias, o Governo anunciou um pacote de medidas econômicas para amenizar os efeitos da crise, mas a maioria delas ainda estão no papel. O que é mais urgente?

R. É um caminhão de coisas que estão faltando, porque o Governo não fez quase nada, está em uma inércia absoluta. O Banco Central tomou ações importantes nas últimas semanas, todas elas na direção correta, de dar liquidez para o mercado, indiretamente para as empresas, que precisam também. O BC tem feito, no entanto, o esforço que pode, já que o protagonista precisa ser o Ministério da Economia. E o esforço maior que precisa ser feito é muito grande. Requer o repasse dos recursos ao Sistema Único de Saúde (SUS), a implantação da renda mínima, as linhas de crédito que você pode dar para as empresas para garantir empregos. Não se pode apenas atuar na frente das pessoas vulneráveis, mas também na manutenção dos empregos formais. E só se consegue isso dando sustentação para as empresas. É necessário desenhar qual a forma que você vai fazer isso, e a maneira a ser feita para uma empresa de médio porte é completamente diferente para um microempresário, ainda mais para as microempresas que estão muito endividadas e não vão conseguir linha de crédito dos bancos públicos. Para esses microempresários, é necessária uma ação parecida com a renda mínima. O Tesouro dá dinheiro diretamente para essas empresas com uma contrapartida de manutenção de emprego, dá para monitorar. Além disso, o microempresário muitas vezes é uma pessoa só, não é questão de manutenção de emprego é de sobrevivência dessas pessoas.

P. Fica claro que o Governo precisará adotar uma política de gastos fortes, mas tem uma equipe liderada por Paulo Guedes, um liberal que, desde o dia um, prometeu cortes e menos Estado na economia. Como avalia a condução do ministro diante da crise do coronavírus?

R. O Paulo Guedes está completamente despreparado neste momento para enfrentar essa crise. A letargia e a inércia já demonstram isso. A incapacidade de largar os dogmas ideológicos que ele tem, como o Estado mínimo, o Estado que não pode gastar, é completamente inapropriada para esse momento. Hoje, dane-se o Estado mínimo, você precisa gastar. É preciso é errar pelo lado do excesso não para o lado da cautela numa crise desse tipo.

P. Neste fim de semana, em uma live com representantes da corretora XP, Guedes afirmou que “é conversa fiada” os rumores de que ele sairia do cargo. A videoconferência foi vista como um movimento para acalmar o mercado financeiro.

R. Isso é mais um despreparo, essa preocupação de passar recado para o mercado. Ninguém tem que passar recado para o mercado, precisa trabalhar para as pessoas, são as pessoas que estão morrendo de fome e que já não têm condições de se sustentar que importam. É incrível essa surdez e essa cegueira. O mercado tem o auxílio do BC, não é hora do ministro da Economia ficar falando com o mercado, fazendo live para o mercado. O que que é isso? Ele deveria estar pensando em como implementar a renda mínima, como fará a distribuição dos 600 reais para as pessoas elegíveis a receber. Como ele vai fazer para lidar com as diferentes áreas de atuação e planos de ação para as empresas e os planos de manutenção de empregos. Quanto realmente ele vai destinar para o SUS. A calamidade está decretada. A lei de responsabilidade já dá a flexibilidade necessária. Ele já tem tudo que precisa para agir, ele não precisa de mais nada, precisa de agir, mas perde tempo com o mercado fazendo conferência, numa situação de absoluta emergência onde as ações são necessárias para ontem.

P. Uma das primeiras medidas anunciadas pelo ministério da Economia, que precisou recuar, mirou o lado das empresas — que poderiam suspender os contratos de trabalho —, mas não contemplou, em um primeiro momento, como o empregado iria sobreviver. Como resolver a questão dos empregados e empregadores?

R. É uma falta de entendimento total. Se você não estiver dando apoio para os trabalhadores de todos os tipos, informais, formais, autônomos, se não der sustentação para as pessoas, você também não está dando sustentação para as empresas. Tem que ser uma ação coordenada para as pessoas e empresas, para que você não tenha um desemprego em massa no país, porque isso também vai quebrar as empresas. Não vai ter gente para consumir. É uma absoluta falta de compreensão da gravidade do momento e da urgência das medidas, de sentar e trabalhar. Se não tem capacidade de fazer isso, pede ajuda. Há muitas pessoas dando ideias e tentando formular propostas que possam ser levadas para frente. Por que o ministro precisa ser tão turrão a ponto de não escutar?

P. A postura do presidente Jair Bolsonaro de minimizar a pandemia de coronavírus pode de fato afetar as decisões do ministério da Saúde e outras autoridades do país? Induzir a própria população a tomar um caminho contrário ao determinado pela OMS?

R. Em tese sim, mas na prática eu estou achando que não. Mesmo Santa Catarina que tem um governador [Comandante Moisés (PSL)] mais alinhado com Bolsonaro, que já estava cedendo às pressões do comércio e de alguns empresários local para abandonar as medidas de quarentena, voltou atrás. A manifestação da epidemia, que nas próximas duas semanas vai ser absurdamente dramática no país, vai impedir que as pessoas sigam essa linha. A população de modo geral está muito assustada com o que está acontecendo. A postura de Bolsonaro vai afetar em alguma medida, mas não de forma generalizada. Não acredito que governadores e prefeitos voltem atrás. Bolsonaro induz, no entanto, algumas pessoas, principalmente as mais vulneráveis — que vivem de pequenos comércios, biroscas, ou que são ambulantes — a se sentirem mais autorizadas a irem para rua. Essas pessoas sabem o risco que estão correndo, mas nessa situação a pessoa escolhe entre ficar em casa e não ter o que comer ou sair para conseguir dinheiro. Mas é terrível, porque coloca a vida da pessoa em risco com uma desinformação tremenda. É criminoso. É algo completamente criminoso, é de uma indigência absoluta. É surreal.

P. Ao combater as regras de quarentena, Bolsonaro se isola até mesmo de aliados políticos que têm grande peso em suas decisões, como o presidente Donald Trump, que chegou a adotar essa linha negacionista da doença, mas já voltou atrás…

R. A reviravolta do Trump é impressionante. Ele começou falando no início que era apenas uma gripe, um resfriado, nessa linha do Bolsonaro, que as pessoas morrem todo ano de gripe. Estava completamente embarcado nesse discurso. As pessoas ao redor dele conseguiram, no entanto, mudar seu alinhamento para algo mais pé no chão. Mesmo assim, ele titubeou quando afirmou que as pessoas poderiam sair do isolamento até o dia 12 de abril, mas neste domingo anunciou que a quarentena vai até o dia 30 de abril. O que mais mexe com Trump é a eleição. Ele percebeu, ao contrário do nosso presidente tupiniquim, que está entre a cruz e espada. Se ele deixar a epidemia correr solta, as mortes vão cair no colo dele. E se ele adotar as medidas de quarentena necessárias, a economia vai sofrer um baque, mas o Governo está fazendo as medidas para amenizar, estão passando os pacotes, o Fed [ Banco Central dos EUA] está atuante. O cálculo político de Trump é que ao dar voz aos médicos e infectologistas, apesar da economia parada e do desemprego, sua aprovação está crescendo. Seria um risco muito maior para a sobrevivência política dele manter essa linha de reabrir o comércio. Bolsonaro não tem uma eleição imediata em vista, no entanto, ele deveria fazer algum cálculo político, porque é óbvio que ele será culpado pelas mortes e pela sobrecarga no sistema de saúde. Os cientistas estão muito na linha de frente nos EUA, enquanto no Brasil, Bolsonaro desmente todas as pessoas que estão falando da gravidade da doença.

P. Bolsonaro tem criado ruído inclusive com o próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

R. Exatamente. Cria uma fissura entre ele e o Mandetta, tira dele a capacidade do que ele precisa fazer, o ministro fica desautorizado e é a pior sinalização, pior maneira de enfrentar a crise.

P. Quais medidas outros países estão implementando que deveriam ser exportadas aqui no Brasil para amenizar os efeitos da pandemia?

R. Acho que há um consenso de alguns pilares. É preciso dinheiro para o SUS a quantidade que for, pelo menos uns 50 bilhões de reais. Verbas para as micro e pequenas empresas no esquema de renda mínima, onde você tem como contrapartida não demitir funcionários. Eu calculei 30 bilhões de reais. Renda mínima para os 77 milhões do cadastro único com o esforço de recadastramento para alcançar umas 100 milhões de pessoas, já que sabemos que atualmente temos cerca de 50% a 60% da população em situação de vulnerabilidade. Quarto pilar, a proposta do Armínio Fraga [economista e ex-presidente do Banco Central] para empresas de maior porte que poderiam receber recursos de bancos públicos, onde o crédito está atrelado à manutenção do emprego. E um plano de reconversão industrial, que poderia ser viabilizado via BNDES, que consiste em um crédito para fazer a produção de equipamentos hospitalares. Converter suas plantas de produção em fábricas para equipamentos de saúde, toda parte de proteção, máscara e vestimentas. É isso que vejo os países fazendo de acordo com as necessidades específicas de cada país.

P. Alguns deputados e entidades começam a falar na contribuição dos mais ricos para ajudar amenizar essa crise, sugerindo a volta do debate de um aumento de impostos para grandes fortunas e patrimônios. Paulo Guedes já afirmou que descarta um plano de tributos nesse momento. Qual a sua opinião?

R. Acho que a discussão sobre o tema é válida, mas não neste momento. O mais importante é tomar as medidas de emergência, emitindo dívida e acabou. Mais para frente, como essas medidas vão ser mais permanentes que temporárias, você começa a ver como vamos fazer para financiar a médio prazo isso tudo. Aí sim tem que entrar a discussão sobre imposto sobre grandes fortunas, sobre patrimônio, um imposto progressivo de renda. Mas não é a reforma tributária que estava sendo discutida de unificar e simplificar imposto. Não. É uma reforma para inverter a pirâmide tributária no Brasil. Para que as pessoas de maior renda e patrimônio arquem com o custo de ter que fazer essa redistribuição para ajudar os mais vulneráveis. Mas não é a discussão a ser feita na hora da emergência. Este momento é de emitir dívida.


El País: Brasil entra em corrida contra o relógio para obter material médico contra coronavírus

Mandetta admite problemas de estoque e aponta que o isolamento social é a única solução para proteger a população antes do pico de casos, em duas semanas

Enquanto o Brasil ainda tenta ampliar a capacidade de testagem para o coronavírus e fazer um desenho mais atual e real sobre a disseminação da doença ―com suas 240 mortes e 6.836 pessoas infectadas―, o país enfrenta o risco da falta de insumos que vão desde os equipamentos de proteção individuais para os profissionais de saúde até os respiradores, fundamentais para garantir a sobrevivência dos casos mais graves da Covid-19. “Nós estamos muito preocupados com a regularização de estoques”, afirmou o ministro Luiz Henrique Mandetta nesta segunda-feira (1), ao expor as dificuldades que o país enfrenta para adquirir esses materiais devido à alta demanda e à disputa no mercado internacional. Sem detalhar a capacidade estocada no Brasil, o ministro garantiu que no momento os Estados ainda estão abastecidos, mas disse que a situação pode se complicar em breve. "Agora é lutar com as armas que a gente tem”, afirmou o ministro, que ainda apontou o isolamento social como a única medida para frear o contágio e evitar o colapso do sistema de saúde. Neste momento, o país corre contra o relógio para conseguir expandir o Sistema Único de Saúde (SUS) antes de entrar no pico da doença. “Movimentar nesta fase é o que podemos fazer de pior”, acrescenta Mandetta.

O ministro informou nesta quarta-feira que o Brasil registrará um grande aumento de casos de Covid-19 até o final da semana que vem. De acordo com o ministro, se as medidas de isolamento social forem mantidas, as chances são de que 96% da população brasileira saia “bem” dessa crise sanitária. Ele ressaltou que o Brasil não fez lockdown, ou seja, o Governo não decretou quarentena total oficialmente, mas alertou de que o país “precisa redobrar o esforço”. "Se nós sairmos, se nos aglomerarmos, se nós fizermos movimentos bruscos e relaxarmos, podemos ficar com uma série de problemas em relação aos equipamentos de proteção individual, porque nós não estamos conseguindo adquirir de forma regular o nosso estoque”, afirmou, explicando que, no momento, todas as secretarias de saúde estaduais estão abastecidas.

“O nosso problema é que esse vírus foi extremamente duro. Derrubou, machucou e parou a produção dos EPIs (equipamento de proteção individual), que os hospitais utilizam no mundo todo”, lamentou Mandetta, referindo-se, principalmente, à China, maior produtora desses insumos. O ministro disse que compras de luvas, gorros, máscaras e outros materiais feitos pelo Brasil ao país asiático “caíram” quando a demanda mundial ficou hiperaquecida e depois que os Estados Unidos compraram um grande volume desses itens fundamentais no enfrentamento da crise de coronavírus.

“Hoje, os Estados Unidos mandaram 23 aviões cargueiros dos maiores para a China, para levar o material que eles adquiriram. As nossas compras, que tínhamos expectativa de concretizar para poder fazer o abastecimento, muitas caíram”, informou Mandetta. Segundo ele, fornecedores de respiradores, importantes para pacientes graves, já haviam sido contratados, mas avisaram que ficaram sem estoque.

O ministro também disse que o Governo Federal avançou na “possível compra” de 8.000 respiradores mecânicos, mas que já uma certeza em relação à entrega dos aparelhos. “Está havendo uma quebra entre o que você assina e o que recebe. Eu só acredito quando estiver dentro do país, na minha mão”, afirmou. “Quando acabar dessa epidemia, eu espero que nunca mais o mundo cometa o desatino de fazer 95% da produção de insumos que decidem a vida das pessoas em um único país”, acrescentou o ministro, referindo-se mais uma vez à China. Com o discurso, Mandetta ecoa outros Governos, como o da França, que também diz que buscará mais autonomia na produção de insumos médicos.

A corrida para a testagem

O Brasil também corre contra o tempo para ampliar a sua capacidade de testagem ―um dos principais gargalos do país no enfrentamento da epidemia. É um dispositivo fundamental tanto para que o Governo tenha uma dimensão mais real da disseminação do vírus quanto para que os profissionais de saúde possam determinar a quarentena a familiares de infectados. O ministro Luiz Henrique Mandetta explica que, nos próximos dias, haverá uma explosão de casos por conta da demanda reprimida que aguarda há dias o resultado da testagem. O ministro reconhece que há uma fila grande de espera, mas não mensura o tamanho dela. Diz apenas que o Brasil começou a automatizar o processamento dos testes PCR para dar agilidade a esse processo e começa a utilizar os testes rápidos, sem detalhar a capacidade total de testagem do país com as novas medidas.

Os chamados testes PCR são feitos em laboratório e têm uma complexidade e uma precisão maior na identificação. O profissional de saúde coleta material das vias respiratórias do paciente e o encaminha ao laboratório, que analisa se existe a carga genética (ou RNA) do novo coronavírus neste material. “Tem uma sensibilidade muito alta, de quase 100%”, explica Mandetta. Esse teste, porém, tem um custo mais alto e exige tanto capacidade de profissionais quanto de maquinário específico.

Atualmente, o teste PRC está sendo racionado e, portanto, é aplicado apenas nos casos suspeitos mais graves, de pessoas internadas com sintomas compatíveis com a Covid-19. Mandetta diz que o Brasil já começou a ampliar sua capacidade de testagem, mas não cita dados específicos sobre quantos testes diários o país consegue processar atualmente. Na semana passada, o país processava 6.700 testes diários. E os próprios técnicos do Ministério da Saúde projetam que o país precisaria atingir um total de 30.000 a 50.000 testes diários para desenhar com mais precisão a curva epidemiológica do coronavírus no Brasil. No momento, o retrato dos casos confirmados do Brasil é sempre um recorte do passado, por causa da demora para o resultado dos testes.

É nesse contexto que o Governo optou por trabalhar também com os testes rápidos e sorológicos. Embora numa velocidade bem inferior ao que prometeu há duas semanas (quando anunciou 5 milhões de novos testes para o fim de março), o Ministério da Saúde iniciou a distribuição de um primeiro lote de 500.000 unidades desse tipo pelo país. Esses testes especificamente identificam a presença de anticorpos produzidos pelo corpo humano ao entrarem em contato com o coronavírus e, por isso, só devem ser aplicados após o sexto dia dos sintomas da Covid-19. Antes disso, o teste ―que demora menos de meia hora para dar o resultado― não seria eficaz.

O teste sorológico que começou a ser distribuído nesta sexta-feira tem uma precisão muito inferior ao PCR para um resultado fiel do coronavírus. “Eles devem ser úteis, mas precisam ser avaliados e validados no Brasil”, explica a infectologista Carol Lazari, médica-chefe do setor de biologia molecular do Hospital das Clínicas. Ela alertava sobre a necessidade de observar no Brasil quanto esses testes conseguem detectar a doença e o quanto não dá falso positivo (no vocabulário médico, a sensibilidade e a especificidade dos testes, respectivamente). O ideal era que os testes tivessem 80% de sensibilidade. Mandetta diz que o Ministério espera que a sensibilidade dos testes que começam a ser distribuídos seja de 40%. Mesmo assim, destaca que esses materiais serão utilizados corretamente e poderão auxiliar o Governo a ter uma noção maior da disseminação do vírus no Brasil.

“A nossa estratégia é dupla”, ponderou o ministro, ao explicar que os casos graves continuarão a ser testados por PCR. Os testes rápidos ―ao todo, 5 milhões, doados pela mineradora Vale― serão utilizados apenas como instrumento de triagem, aplicados em profissionais de saúde e agentes de segurança com sintomas de síndrome gripal. "Ele serve apenas para marcar se a pessoa tem ou não o anticorpo que combate o vírus. Vai mostrar se você já teve no passado, e nesse caso está imune, ou se tem o vírus no período latente da doença”, afirma Mandetta.

Outros tipos de teste estão sendo negociados pelo ministério, que diz esperar chegar a 22,9 milhões deles, mas ainda trabalha na negociação direta com fornecedores e no diálogo com a iniciativa privada, que tem anunciado doações. O Governo diz que prepara a implantação de unidades volantes, um tipo de drive thru, como os realizados na Coreia do Sul e Estados Unidos, onde as pessoas poderão fazer o teste e receber o resultado no dia seguinte por meio de um aplicativo de celular. A ideia é utilizar a ferramenta em cidades com mais de 500.000 habitantes para conter surtos, isolando mais rapidamente os pacientes infectados.


El País: Covid-19 e o desmatamento amazônico

Desmatadores ilegais não estão em isolamento como recomendam os governos, e tendem a aproveitar o eclipse institucional provocado pela pandemia para agir

Esta preocupação espera-se que seja também a do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, à frente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, que em meio à pandemia manteve na semana passada uma reunião com seus integrantes do Governo ―ainda que longe dos olhos da sociedade, incluindo da imprensa.

Sob a ameaça virótica, aqueles agentes públicos que prestam um inestimado serviço de manter, lá na ponta, o cumprimento das leis ambientais estarão ausentes ou com suas ações de fiscalização e controle limitadas. Certamente, o isolamento é a principal arma que temos contra o vírus neste momento e protegê-los é fundamental.

Os desmatadores ilegais, contudo, não estão em isolamento como recomendam os governos, e tendem a aproveitar o eclipse institucional provocado pela Covid-19 para agir. Nos próximos meses, ainda sob o turbilhão imposto pela pandemia e com a chegada da seca em grande parte da região amazônica, podemos presenciar um forte aumento do desmatamento.

Os primeiros sinais que vêm do campo são preocupantes. As taxas de desmatamento no início de 2020, antes de surgir o alarme em torno da Covid-19, já indicavam uma atividade expressiva das motosserras. Segundo o DETER, sistema de alerta de desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em janeiro deste ano houve um aumento de 52% na área sob alertas de desmatamento em relação ao mesmo mês do ano anterior; em fevereiro, foi 25% superior ao mesmo mês de 2019. A crise dos incêndios de 2019, com repercussão mundial, estava ligada ao aumento do desmatamento e ainda está clara na memória.

Como prevenção mínima, é preciso que o poder público mantenha os meios de monitoramento remoto na região, apoiando o trabalho de agências como o INPE, o ICMBio, o IBAMA e a Polícia Federal, tomando todos os cuidados necessários para assegurar a segurança de seus funcionários. Recursos do congelado Fundo Amazônia devem ser urgentemente destravados pelo Governo para o combate ao desmatamento. Toda atenção deve ser dada aos povos indígenas da região, guardiões da floresta, que estão desprotegidos. Em Brasília, o Congresso Nacional não deve colocar em votação temas que exigem um amplo debate com a sociedade e que estimulariam o desmatamento no país em meio a esta catástrofe, como a Medida Provisória 910, que literalmente legaliza a grilagem, e o projeto de lei que altera o processo de licenciamento ambiental.

O fim do desmatamento amazônico é crucial para que não tenhamos de enfrentar outras crises no futuro próximo, em especial em um momento de economia fragilizada pelos efeitos prolongados da pandemia. A Amazônia, entre diversas riquezas biológicas, é fundamental para a produção de chuva que irriga o agronegócio, que por sua vez é responsável por parte considerável do PIB brasileiro. As duras lições que estamos tirando da Covid-19 nos mostram que ações integradas de prevenção funcionam. No caso da Amazônia, lavar as mãos para a ação de grileiros neste momento é contabilizar novos prejuízos socioambientais e econômicos num futuro próximo.

André Guimarães, agrônomo, é diretor-executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Claudia Azevedo-Ramos, bióloga, é professora titular do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará. Paulo Moutinho, biólogo, é cientista sênior do IPAM.


Afonso Benites: Bolsonaro calibra tom, mas segue sem defender isolamento social

Mandatário se viu isolado politicamente e afastado até do aliado Trump na luta contra doença. Presidente distorceu fala de diretor-geral da OMS. Panelaços soaram em várias cidades brasileiras

Uma semana depois de fazer um pronunciamento na TV negando a gravidade do novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro voltou às telas brasileiras nesta terça-feira com um tom algo mais moderado sobre a pandemia. Saíram as menções à “gripezinha”, como ele havia se referido à doença, os ataques à imprensa e as ironias a prefeitos e governadores que haviam determinado medidas de isolamento social para conter a velocidade de contágios. O que apareceu desta vez foi um presidente que tentou se por à frente do combate da doença, citando especialmente que empregará as Força Armadas na tarefa, que chamou de “desafio da geração”. Ele também mencionou as perdas de vidas que serão ocasionadas pela Covid-19. Como costuma fazer, no entanto, seguiu acenando à sua base radical: não mencionou nem uma vez a importância de reduzir a circulação social para conter o avanço da doença, como martelam as autoridades do Ministério da Saúde e da OMS (Organização Mundial da Saúde): “Temos uma missão, salvar vidas, sem deixar para trás, os empregos”, equiparou. Como se tornou praxe há duas semanas, o pronunciamento foi acompanhando por panelaços em várias cidades brasileiras.

Nos últimos dias, Bolsonaro tem registrado seguidas perdas de apoio político, inclusive internamente no Governo. Ao contrário de vários líderes mundiais, ele segue insistindo que só deveriam ficar isolados os idosos e as pessoas que apresentem alguma doença grave. Até mesmo o americano Donald Trump, em quem ele se inspira, mudou de ideia e tem defendido ações drásticas de isolamento até o final de abril. Uma das estratégias da cúpula bolsonarista e do próprio presidente tem sido estimular circulação de notícias falsas e desinformação a respeito do novo coronavírus. Nesta terça-feira pela manhã, Bolsonaro decidiu selecionar um trecho de uma declaração do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, para dar a entender que o executivo da organização defende o fim do isolamento social em nome da proteção de emprego e renda. O próprio Adhanom veio a público para responder ao brasileiro, reafirmando a defesa das medidas restritivas ao lado do desenho de políticas para proteger os mais vulneráveis. No entanto, mesmo assim, Bolsonaro usou apenas o trecho que lhe interessava na TV.

Numa fala que também foi dirigida à população mais pobre, o presidente citou a sua preocupação com os empregos de diversas categorias, “como vendedores ambulantes, camelôs, vendedores de churrasquinho, diarista, ajudante de pedreiro, caminhoneiro e outros autônomos”. Bolsonaro, no entanto, ainda não sancionou um projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional que destina até 1.200 reais por família que ficar desassistida em decorrência da pandemia da Covid-19. Por ser dia 31 de março, dia do golpe militar, havia a expectativa de que o presidente falasse sobre a tomada de poder pelos militares em 1964, mas ele não o fez. Decidiu fazer uma sinalização aos militares e elogiar as ações das Forças Armadas no combate ao coronavírus. Politicamente, ele tem se sustentado cada vez mais em seu núcleo militar, ainda que haja fissuras fora do grupo que ele acolheu no Planalto. Uma eventual saída dele da presidência, ainda sem prazo definido, tem sido discutida internamente pela cúpula militar, que já informou ao vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) que o apoiaria, em caso de assunção à chefia do Executivo.

Maior salto em um único dia
Enquanto analistas discutem quanto a conduta errática do presidente atrapalha o país no combate à Covid-19, os números da pandemia escalam. O pronunciamento do presidente foi ao ar horas depois de uma entrevista coletiva dada pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, na qual ele anunciou o maior aumento diário no número absoluto de casos confirmados de coronavírus no país em um dia. Foram 1.138 novas infecções confirmadas nesta terça-feira, 20% do total acumulado desde o dia 25 de fevereiro, quando foi identificado o primeiro caso da doença no país.

Com base nos dados mais recentes do Ministério da Saúde, o Brasil soma agora 5.717 confirmados e 201 mortes pela Covid-19. O aumento representativo desta terça-feira pode estar relacionado à fila para processamento de testes nos laboratórios. Há relatos de demora de até 10 dias para a obtenção dos resultados, o que impacta as estatísticas. Mandetta também voltou a defender o isolamento social como importante ferramenta para frear a disseminação do vírus, outro ponto de divergência entre ele e Bolsonaro, que alardeia o isolamento vertical -que carece de estudos atestando sua eficácia. “No momento vamos fazer o máximo de isolamento social e incentivo ao homeworking possível”, afirmou. Ele não descarta, no entanto, mudanças nesta política, “quando chegar o momento de falar ‘estamos mais preparados’, vamos liberando e controlando pela epidemiologia. Vai ser um trabalho de muita precisão”.

Em São Paulo, epicentro da doença no país, a situação também preocupa. O Estado registrou de segunda para terça-feira 23 novas mortes, quase uma por hora, totalizando 136 óbitos relacionados ao Covid-19, de acordo com a Secretaria de Saúde. Trata-se do maior aumento em números absolutos já registrado. Para Mandetta, a situação de São Paulo tem algumas especificidades: “Mais de 80 dos 136 mortos registrados no Estado ocorreram em um mesmo hospital, que é ligado a um plano de saúde que só atende idosos”.


El País: Bolsonaro lidera negacionismo do coronavírus e incentiva ‘fake news’

Na TV, presidente questiona estatísticas das mortes e segue defendendo fim de ações de isolamento social. Twitter, Facebook e Instagram apagam postagens

Felipe Betim, El País

“O movimento negacionista do coronavírus agora tem um líder”. Foi com essa manchete que a revista norte-americana The Atlantic descreveu os discursos diários que o presidente Jair Bolsonaro promove contra as medidas de distanciamento social decretadas por governadores e prefeitos e recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo próprio Ministério da Saúde para conter a pandemia do coronavírus. No início da crise, o ultradireitista parecia seguir os passos do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que também minimizava os efeitos da Covid-19. Mas até mesmo Trump, vendo que seu país se transformara em epicentro mundial do novo vírus, mudou de atitude: negociou com o Congresso um pacote de dois trilhões de dólares (cerca de 10 trilhões de reais) para resgatar a economia, adotou um tom de conciliação com governadores, estendeu até 30 de abril as restrições à circulação e, no último fim de semana, chegou a dizer que poderia instituir o chamado lockdown nos Estados de Nova York, New Jersey e Connecticut. Em suma, o republicano deixou de lado a retórica de que a atividade econômica não pode e passou a salientar que, neste momento, a saúde dos estadounidenses deve ser a prioridade.

Bolsonaro, por ora, ignora a guinada daquele que lhe serve como modelo político e vem insistindo que as pessoas devem sair às ruas e trabalhar normalmente. “É um nível de irresponsabilidade que nunca vi num líder democraticamente eleito. Bolsonaro faz Trump parecer Churchill”, ironizou Ian Bremmer, presidente da consultoria de risco Eurasia Group, no Twitter. Agindo de maneira errática logo após atender as demandas de governadores, o mandatário brasileiro determinou em pronunciamento em cadeia nacional na passada terça-feira que “algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento do comércio e o confinamento em massa”. Também aproveitou a ocasião para forjar inimigos e se referir ao coronavírus como uma mera “gripezinha”.

Isolado politicamente, Bolsonaro dobrou a aposta na radicalização de sua base e estimulou as carretas de empresários em várias cidades pedindo pela reativação das atividades desde a sexta-feira. Além disso, mais uma vez driblou todas as orientações de médicos e especialistas e passeou no domingo por mercados e centrais de vendedores ambulantes na periferia de Brasília. Durante o chamado “coronatour”, o presidente cumprimentou cidadãos de Taguatinga, Ceilândia e Sobradinho, além de reforçar sua tese de que é importante fortalecer a economia. Alguns analistas acreditam que Bolsonaro não quer ser visto como responsável pela recessão na economia, diante de mortes inevitáveis, segundo sua visão. Por outro lado, se governadores e prefeitos têm sucesso em suas medidas e consigam conter o coronavírus, ele ainda poderia argumentar que estava certo ao dizer que não havia demasiados riscos para a saúde da população.

O presidente e seu entorno mais radical —sobretudo seus filhos— também vêm divulgando e incentivando medidas contra o isolamento ou fazendo ênfase sobre possíveis curas para o coronavírus. No domingo, o Twitter decidiu pela primeira vez barrar conteúdo compartilhado pelo ultradireitista e pagou dois vídeos que havia postado contra o isolamento social. Nesta segunda foi a vez do Facebook e do Instagram decidirem fazer o mesmo por considerar que conteúdo promovia a desinformação. O vídeo mostrava o presidente conversando com um ambulante: “Eles querem trabalhar. é o que eu tenho falado desde o começo”, dizia. “Aquele remédio lá, hidroxicloroquina, está dando certo em tudo o que é lugar”, continuava. Em nota ao portal BBC News Brasil, justificou a remoção dizendo que "viola nossos padrões da comunidade, que não permitem desinformação que possa causar danos reais às pessoas”.

Nesta segunda, em entrevista ao canal de televisão aberto Rede TV, Bolsonaro voltou a questionar os números de mortes provocadas pela Covid-19. “Parece que há interesse por parte de alguns governadores de inflar o número”, disse o presidente, ecoando uma notícia falsa, espalhada em grupos de WhatsApp e nas redes, de que um porteiro ou borracheiro teria tido sua morte erroneamente incluída nas estatísticas de coronavírus (veja aqui os números em tempo real).

O que Bolsonaro faz é utilizar “uma comunicação meticulosamente arquitetada para ironizar e atacar inimigos ideológicos e políticos, da imprensa ao médico Drauzio Varella, passando por governadores e prefeitos adversários", opina o cientista político Vinícius do Valle. “Bolsonaro quer, na verdade, o caos”, conclui Valle.

O motivo de querer o caos se deve à própria natureza do bolsonarismo, que precisa do conflito para se manter e se expandir, segundo Valle e outros estudiosos, como o historiador argentino Federico Finchelstein. “Eventualmente a realidade se impõe e inclusive os seguidores mais fanáticos em algum ponto deixam de acreditar neles. Mas, quando isso acontece, já terá havido muito sofrimento e muitas vítimas, no sentido literal do termo. As políticas de ajuste, de repressão e de discriminação têm suas consequências”, disse Finchelstein ao EL PAÍS na semana passada. Para Valle, Bolsonaro poderia encontrar na convulsão social a justificativa que precisa para tentar concentrar ainda mais poder em suas mãos, seja a partir de operações de Garantia da Lei e da Ordem ou da decretação de um Estado de Sítio.

Possível demissão de Mandetta

Um dos fatores que podem detonar esse caos à curto prazo é a possível troca de comando no Ministério da Saúde. No sábado, o ministro Luiz Henrique Mandetta e toda a sua equipe colocaram os cargos à disposição de Bolsonaro. Segundo apurou o EL PAÍS, os ministros e generais do Exército Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Walter Braga Netto (Casa Civil) tiveram de intervir e convencer Bolsonaro de que, sem Mandetta, a impressão que passaria para a opinião pública seria de ingovernabilidade em meio à crise ―está previsto que o pico de contágios aconteça em meados de abril.

Uma fonte do Palácio do Planalto relatou que o presidente foi relutante, porque se se sentiu “enquadrado” pelos militares. Mas, num primeiro momento, concordou em manter Mandetta no cargo —algo que foi reforçado nesta segunda-feira por Braga Netto durante a coletiva de imprensa com Mandetta e outros ministros.

Mandetta está decidido a não se demitir. Disse a aliados que só sai do ministério se for exonerado pelo presidente. Ao longo da última semana ele foi orientado a falar menos e deixar que o secretário-executivo da pasta, João Gabbardo dos Reis, e o titular da Vigilância em Saúde, Wanderson Oliveira, apareçam mais. Mas não acatou os conselhos. No sábado, foi protagonista de uma coletiva de imprensa na qual recomendou o isolamento social e contrariou as teses do presidente. Nesta segunda-feira também não deu um passo atrás.

Nos bastidores são ventilados três possíveis nomes para o Ministério da Saúde: o médico e deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), que já foi demitido pelo presidente do Ministério da Cidadania por não apresentar resultados; o contra-almirante da Marinha, Antônio Barra Torres, médico que preside a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e acompanhou Bolsonaro na manifestação do dia 15 de março; e, correndo por fora, o filantropo e gestor do Hospital do Amor (o antigo Hospital do Câncer de Barretos), Henrique Prata. Ele chegou a ser cogitado para assumir a pasta já no primeiro ano da gestão de ultradireita, mas o apoio político de Mandetta e sua capacidade de unir parte da direita entorno de Bolsonaro prevaleceu.


El País: Mandetta prega consenso nacional para lidar com avanço do coronavírus e reforça pedido de isolamento

Ministro da Saúde assume tom conciliador e pede a brasileiros para se prepararem para muitas perdas de vida. “Deixem que nos planejemos para um estresse grande que vem lá na frente”

Foi uma semana de estresse, com o presidente Jair Bolsonaro e governadores se engalfinhando publicamente enquanto o coronavírus se espalha no Brasil. Nesse tiroteio político, o ministro da Saúde, Henrique Mandetta, decidiu assumir um tom de conciliação na coletiva de imprensa deste sábado, quando a pasta anunciou 3.904 casos confirmados de Covid-19 no Brasil e 114 mortes. “O Brasil é uma nave só”, disse Mandetta, falando no “consenso” que está sendo construído com secretários municipais e estaduais, incluindo o desenho adequado do que é quarentena, e como ela iria funcionar. “Ninguém tem esse parâmetro”, explicou ele. “A verdade é que vamos descobrir como vai ser nossa sociedade, nossas fraquezas e fortalezas. A saúde não é uma ilha. A economia é, sim, muito importante na saúde”, disse ele, vislumbrando a intersecção necessária para se chegar a um ponto de equilíbrio no debate do coronavírus.

O país chegou a um pico de tensão nos últimos dias enquanto o presidente pregava quarentena vertical que isolasse os mais velhos e reabrisse escolas, igrejas, lotéricas e comércio em geral. “Não existe quarentena vertical ou horizontal. O que existe é a necessidade de arbitrar em determinados tempos", afirma Mandetta, lembrando que é preciso “coordenar a ação nacional”.

O ministro explicou didaticamente a necessidade de coordenar a logística para a aquisição de equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde que trabalham na linha de frente nos hospitais, e que podem ser contaminados pelo coronavírus, provocando baixas num momento extremamente delicado. São compras disputadas, de empresas nacionais e internacionais, num momento em que o mundo todo vive a pandemia. “Deixem que nos preparemos para um estresse muito grande que vem lá na frente”, disse ele, lembrando que virão “muitas perdas” de vida, e o sistema de saúde precisa estar preparado para atenuar isso. “Vamos trabalhar para poupar vidas, sabendo que haverá dias duros”, afirmou Mandetta.

Economia
Diante da pressão do presidente e de alguns empresários para retomar a atividade econômica, Mandetta colocou a bola no meio do campo. “O presidente está certíssimo ao dizer que a crise econômica vai matar as pessoas. Temos que buscar uma fórmula com o Ministério da Economia”, afirmou Mandetta, em aceno ao presidente Bolsonaro. Mas assumiu a direção desejada pela grande maioria dos governadores, de olhar as duas dimensões da pandemia ao mesmo tempo. “A economia é muito importante para a saúde. O que colocamos em dúvida são os critérios dessas quarentenas [adotadas pelos governos]”, afirma Mandetta. “Vamos colocar alguns critérios, porque são necessários. Não serão os critérios do ministro Mandetta, estamos trabalhando com os secretários para estabelecer um consenso”, explicou. O ministro reforçou que era necessário garantir alimentos para abastecer mercados que atendam às famílias brasileiras. “Geladeira não pode ficar vazia”, explica.

A leitura de especialistas é a de que, num quadro de emergência, é preciso reacomodar uma cadeia produtiva para atender as demandas urgentes. No caso atual, a saúde e a alimentação básica, que norteariam a abertura do isolamento social caso a caso, ou seja, garantindo o livre trânsito para tudo que seja relativo a insumos de saúde e alimentos. A guerra política dos últimos dias, porém, atrasou alguns acordos, o que Mandetta colocou na conta do aprendizado diante da gravidade da pandemia. Seu norte, contudo, ficou claro na entrevista. "Estamos falando de vida. Vamos nos pautar pela ciência. Precisamos de planejamento, calma, frieza”, avisou ele, se descolando de Bolsonaro, que tinha a intenção de fazer uma campanha pela retomada de atividade econômica no país, mas foi impedido pela Justiça.

Os apoiares do presidente incentivaram carreatas em diversos pontos do país com o slogan “O Brasil não pode parar”, seguindo o apelo de Bolsonaro. O ministro minimizou o assunto. “Os mesmos que fazem carreata vão ficar em casa daqui a duas semanas”, disse Mandetta, que prevê a possibilidade de que o país tenha de parar totalmente. “O lockdown, que é a parada absoluta, pode vir a ser necessária em alguma cidade. O que não existe é um lockdown em todo o território nacional e desarticulado”, explica.

Sobre o medicamento cloroquina, que o presidente Bolsonaro vem divulgando como possível cura do coronavírus, Mandetta afirmou que “não é uma panaceia” e que ainda está sendo estudado para casos graves. “Não é hora de sobrecarregar o sistema de saúde. Vamos aguardar”, acrescentou em seguida. O ministro precisou reiterar sua continuidade no cargo, depois de rumores que entregaria sua demissão neste sábado. Guardou parte da entrevista para pedir pediu calma aos brasileiros e que desliguem a televisão às vezes, porque as notícias podem ser “tóxicas”, segundo suas palavras. Ele lembrou que a pandemia vai mudar tudo, e que depois que terminar, o mundo estará diferente. “Vai sair um mundo reflexivo, que vai ter que repensar seus valores”, concluiu.

Imprensa "sórdida”
Em determinado ponto da entrevista, Mandetta também atacou a imprensa e falou que “às vezes, os meios de comunicação são sórdidos". As palavras, que parecem representar uma tentativa de agradar o presidente Bolsonaro, causaram indignação entre alguns jornalistas e resultou em um duro editorial do Jornal Nacional na noite deste sábado. “Desliguem um pouco a televisão. Às vezes ela é tóxica demais", recomendou ele aos brasileiros. "Há quantidade de informações e, às vezes, os meios de comunicação são sórdidos porque ele só vendem se a matéria for ruim. Publicam o óbito, nunca vai ter que as pessoas estão sorrindo na rua. Senão, ninguém compra o jornal”, acrescentou.


Afonso Benites: Reação ao coronavírus faz cúpula militar acender alerta e sinalizar apoio a Mourão

Representantes das Forças Armadas têm realizado encontros em Brasília para discutir cenários de médio e longo prazo sobre afastamento do presidente. Possibilidade de saída imediata é remota

A cúpula das Forças Armadas acendeu um sinal de alerta nos últimos dias diante das reações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) à crise do novo coronavírus. Nesta semana, representantes da Aeronáutica, Exército e Marinha sinalizaram ao até então nem tão bem-quisto vice-presidente, general Hamilton Mourão (PRTB), que poderiam contar com o apoio deles, caso o ocupante do Palácio do Planalto deixasse o cargo por meio de um impeachment ou renúncia.

Apesar de o debate ter se intensificado desde que a crise sanitária se agravou, as chances de que Bolsonaro saia da presidência são remotíssimas. Em mais de uma ocasião ele disse indiretamente que não deixaria o cargo. “Nunca abandonarei o povo brasileiro, para o qual devo lealdade absoluta!”, afirmou em seu Twitter. E o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), responsável por dar o ponta pé inicial a um eventual processo de impeachment, declarou nesta semana que o assunto não está na pauta do Congresso, por ora.

Ainda assim, os militares têm feito seguidas reuniões em Brasília, inclusive com aliados de Bolsonaro e membros civis de seu primeiro escalão. Nesta semana, ao menos dois encontros ocorreram. Neles foram debatidos cenários hipotéticos para o médio e longo prazo.

Dois participantes dessas reuniões relataram ao EL PAÍS que o grupo está preocupado com um possível aumento repentino de registros e mortes provocadas pela doença e que isso seja vinculado ao discurso negacionista feito por Bolsonaro sobre a gravidade da Covid-19. Ressaltaram que, quando o mandatário sugere o fim das quarentenas e dos isolamentos sociais decretados por governadores e prefeitos, pode soar insensível.

Nesse cenário, avaliam que a popularidade do presidente poderia despencar e que fosse colada nele a pecha de um fracassado líder que prefere alavancar a economia do que salvar vidas. “É um discurso de que estamos em guerra. Mas quem está na linha de frente da guerra é um soldado que sabe que pode morrer. Em uma pandemia, não podemos colocar todos na mesma situação que os soldados”, afirmou, em caráter reservado, um dos membros do grupo. Responsável por atrair a maçonaria à campanha de Bolsonaro, o vice-presidente já garantiu o apoio dela caso tenha de assumir o Planalto.

Na terça-feira, o comandante do Exército, o general Edson Leal Pujol, tratou de vacinar as forças de qualquer responsabilidade sobre a crise. Na contramão do defendido pelo presidente, declarou que os militares devem, sim, se preocupar com a Covid-19 e disse que o combate à disseminação da doença “talvez seja a missão mais importante de nossa geração”.

Tem circulado em Brasília também a tese de que o presidente poderia dar uma cartada extrema e decretar um estado de sítio ou de defesa – ambos dependem de aprovação do Congresso Nacional, onde ele não tem maioria – e criam uma série de restrições de liberdade, de comunicação e a suspensão de garantias constitucionais. São atos radicais, mas que podem ser usados politicamente com base no discurso voltado para os seus, de que ele tenta “salvar o Brasil”, mas a velha política não o ajuda.

Oficialmente, o presidente nega que decretará estado de sítio ou de defesa sob a justificativa de que causaria uma sensação de pânico no país. “Acho que estaríamos avançando, dando uma sinalização de pânico para a população”, disse em entrevista coletiva na semana passada. Nas entrelinhas, porém, manda recados. Nesta sexta-feira, em entrevista ao jornalista José Luiz Datena, da TV Band, ele foi indagado se pretendia dar um golpe e fechar o país. A resposta: “Quem quer dar o golpe jamais vai falar que quer dar”.

Principalmente por essas sinalizações, os militares se aproximaram do vice-presidente. Entre os fardados, o próprio Mourão está longe de ser uma unanimidade. No meio militar, ele passou as ser visto como um radical quando, em 2015, sugeriu que as Forças Armadas poderiam fazer uma intervenção. Na ocasião, a presidenta Dilma Rousseff (PT) estava em crise e a Lava Jato começava a revelar escândalos de corrupção em série. No campo político, Mourão era a quinta opção de Bolsonaro para compor sua chapa. Foi escolhido de última hora, diante das negativas de outros políticos, dos partidos deles ou por desconfiança do próprio presidente.

Entre a família Bolsonaro, Mourão também não é bem visto. Seu principal inimigo entre o clã é o vereador pelo Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro (PSC). Logo no início da gestão, ele passou a receber embaixadores estrangeiros para mostrar que o Brasil não se fecharia para o mundo. Também foi o principal articulador da aproximação com a China, principal parceira comercial do Brasil. A partir de então, passou a ser visto como uma voz moderada em um governo de ultras. Entre o núcleo ideológico do governo, a aproximação com a China foi interpretado como uma traição ao presidente, que queria se afastar comunistas. Na prática, a ideologia foi colocada de lado e o comércio entre as duas nações foi mantido a pleno vapor.

Mourão foi colocado de lado. Atuou em poucos momentos-chaves, como na crise da Venezuela, quando se discutia se o Brasil apoiaria ou não uma intervenção militar para apoiar Juan Guaidó no embate com o presidente Nicolas Maduro e, mais recentemente, passou a coordenar o Conselho Amazônia, um colegiado recriado após a crise dos incêndios florestais.

Nesta semana, o vice voltou a emergir quando contrariou o seu chefe e disse que ele havia sido mal interpretado ao defender em um pronunciamento à nação que o país deveria priorizar a economia. “Pode ser que ele (Bolsonaro) tenha se expressado de uma forma, digamos assim, que não foi a melhor, mas o que ele buscou colocar é a preocupação que todos nós temos com a segunda onda como se chama nesta questão do coronavírus”.

Bolsonaro reagiu nesta sexta. Na entrevista à Band, disse que Mourão se sentia à vontade para se pronunciar por ser “indemissível”. “Com todo o respeito ao Mourão, ele é muito mais tosco do que eu. Não é porque é gaúcho, não. Alguns falam que eu sou até muito cordial perto do Mourão. Ele é o único que não é demissível no Governo, então pode ficar à vontade”.

Soma-se ainda a esse contexto, a aposta de Bolsonaro em confrontar governadores e se isolar politicamente e a ouvir panelaços contrários ao seu governo há dez dias seguidos nas principais cidades do país. Nesta semana, ele perdeu o apoio de um aliado de primeira hora, o governador goiano Ronaldo Caiado (DEM). Mas o xadrez político está distante de estar definido. Depois da pressão do presidente, três governadores autorizaram a abertura parcial do comércio em seus Estados: Rondônia, Santa Catarina e Mato Grosso. Os dois primeiros Marcos Rocha e Carlos Moisés são filiados ao PSL, antigo partido do presidente e eleitos na onda conservadora das eleições de 2018. Já o mato-grossense Mauro Mendes é emparedado pelo setor agrícola, mola propulsora da economia local. Os próximos movimentos no planalto central ainda dependerão mais da questão sanitária do que dos discursos de um lado ou de outro.


El País: Coronavírus força consenso e Câmara aprova renda emergencial de até 1.200 reais para base da pirâmide

Deputados, inclusive governistas, acatam proposta de ajuda que pode chegar até a 1.200 reais por família de autônomos, MEIs e desempregados

No ressuscitado debate sobre a desigualdade social, sociólogos e economistas ―como o francês Thomas Piketty ou o brasileiro Pedro Ferreira de Souza― costumam afirmar que mudanças de paradigma em sociedades democráticas costumam acontecer após grandes traumas, como guerras e epidemias. É provável que a pandemia de coronavírus represente mais um desses momentos de inflexão, capaz de acelerar discussões e tempos políticos. Previsto para acontecer nos próximos anos ou décadas, o debate sobre uma renda mínima universal ―isto é, garantida pelo Governo com poucos condicionantes ou nenhum— acontecia em alguns nichos econômicos e acabava de passar por um teste na Finlândia. Com a pandemia, acaba de se tornar realidade em países como Estados Unidos e Portugal. No Brasil, a Câmara dos Deputados aprovou nesta quinta-feira, por consenso, e após se debruçar sobre as propostas do Governo Jair Bolsonaro, da oposição e da sociedade civil, uma ajuda de 600 reais por adulto de baixa renda enquanto durar a pandemia. Famílias com dois trabalhadores ou com mães solteiras receberão 1.200 reais.

De acordo com o texto, que segue agora para o Senado, o benefício está direcionado para trabalhadores informais, autônomos, desempregados e MEI (microempreendedor individual). Receberão o auxílio aqueles que tiverem renda mensal per capita de até meio salário mínimo ou renda mensal familiar de até três salários mínimos. A ajuda se estende para aqueles já recebem Bolsa Família, mas ficam de fora aqueles que ganham outros benefícios —como seguro desemprego. Além disso, os valores serão destinados durante pelo menos três meses e poderão ser prorrogados enquanto durar a calamidade pública, decretada por causa da pandemia de coronavírus. De todas as formas, o pouco tempo de duração previsto inicialmente é considerado o ponto mais fraco entre os defensores do projeto, que falavam em pelo menos seis meses ou um ano.

Um detalhe não menos importante: a renda emergencial aprovada na Câmara foi desenhada em cima do projeto envolvendo a concessão do BPC, auxílio de um salário mínimo (1.045 reais) direcionado para os idosos de baixa renda. O Governo havia vetado a decisão do Congresso de conceder o benefício para aqueles com renda familiar de até meio salário mínimo (522,50 reais) já a partir deste ano ―o teto era antes de 1/4 de salário mínimo (261,25 reais). O Congresso derrubou o veto no início deste mês em retaliação a Bolsonaro e o impasse continuou. Nesta quinta-feira, os deputados finalmente decidiram que as mudanças no BPC valerão só a partir de 1º de janeiro de 2021.

Proposta da oposição sai vencedora
O plano apresentado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, previa inicialmente um voucher 200 reais mensais por um período de três meses para 38 milhões de trabalhadores que estão na informalidade. A proposta foi considerada tímida e insuficiente, o que fez o Governo considerar um valor de até 300 reais.

Uma coalizão de partidos de oposição de esquerda colocou uma nova proposta na mesa, com a possibilidade de conceder um salário mínimo de benefício e alcançar 100 milhões de pessoas, metade da população brasileira. A mesma abrangência foi defendida nesta semana pelo economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central durante o segundo Governo de Fernando Henrique Cardoso. O projeto costurado na Câmara, e ao qual o Governo acabou embarcando, finalmente chegou a um valor de 600 reais por adulto, ou 1.200 reais para famílias, incluindo as com mães solteiras.

Uma vez aprovado pelo Senado e sancionado pelo presidente Bolsonaro, o auxílio emergencial chegará aos 100 milhões de brasileiros e brasileiras mais vulneráveis economicamente, entre eles as 77 milhões de pessoas de baixa renda que já estão no Cadastro Único ―sistema do Governo Federal no qual se inscrevem para obter algum auxílio social. As pessoas que já recebem o Bolsa Família terão direito a um complemento e também receberão benefício.

Contudo, ainda é cedo para dizer se, uma vez passada a pandemia, esses programas se tornarão políticas públicas permanentes. Seus defensores esperam que sim. De acordo com eles, seria uma forma de desvincular o sistema de proteção social do Estado com o trabalho formal, ameaçado com o avanço tecnológico e a uberização do mercado de trabalho. E também de desburocratizar máquina pública, que atualmente concede benefícios sociais ―cada vez mais ineficazes― a partir de uma série de condicionantes de renda e emprego. Por fim, representaria uma resposta definitiva à crescente desigualdade social no ocidente. As pessoas teriam direito a um salário apenas por existir.

No pacote de dois trilhões de dólares (mais de 10 trilhões de reais) aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos nesta quarta-feira, está previsto uma ajuda de 1.200 dólares por adulto e de 500 dólares por criança —ou seja, uma família com quatro membros receberia 3.000 dólares mensais—, além da ampliação do seguro desemprego e de um programa para que pequenas empresas paguem os salários dos trabalhadores.

Tatiana Roque@tatiroque

Renda Básica Emergencial acaba de ser aprovada por unanimidade na Câmara dos Deputados. Um fio sobre a proposta com breves avaliações:

- 600 reais por adulto para até para no máximo duas pessoas na família. Mães solo terão direito a 1200 reais (grande conquista da oposição) +

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Propostas defendidas pela sociedade civil
O debate sobre a necessidade de um benefício universal de emergência foi impulsionado ao longo deste mês por organizações da sociedade civil e economistas como Monica de Bolle, Laura Carvalho, Marcelo Medeiros e Armínio Fraga. Cabe lembrar ainda que o Congresso Nacional aprovou e o Governo Lula sancionou, em 2004, a lei que institui a Renda Básica da Cidadania. O projeto é do ex-senador e atual vereador de São Paulo Eduardo Suplicy (PT), mas nunca chegou a ser regulamentado. Com a pandemia do coronavírus, todos os governadores estaduais assinaram uma carta conjunta pedindo que o Governo Federal implementasse a medida para socorrer os trabalhadores autônomos que ficarão sem renda durante o período de quarentena.

Na última semana, uma coalizão de 51 organizações da sociedade civil lançou a proposta de uma Renda Básica Emergencial para amenizar o impacto econômico e social da pandemia do coronavírus. O plano, que está detalhado no site do grupo, previa alcançar 77 milhões brasileiros a partir do Cadastro Único por no mínimo seis meses. Diferentemente do que se aprovou na Câmara, o benefício apresentado pelo grupo era 300 reais para cada membro da família, incluindo os adultos, as crianças e os idosos. Portanto, uma família com cinco membros receberia 1.500 reais mensais.

O ideal, apontam especialistas como Monica de Bolle, é que a renda mínima emergencial seja concedida por até 12 meses ―ou mesmo 18 meses, como defendeu Marcelo Medeiros. Isso porque a recessão é seguida de uma lenta recuperação, especialmente para os mais pobres. No final, a Câmara decidiu aprovar um benefício com um prazo mínimo de três meses, que poderá ser estendido conforme dure a calamidade pública.


Eliane Brum: O vírus somos nós (ou uma parte de nós)

O futuro está em disputa: pode ser Gênesis ou Apocalipse (ou apenas mais da mesma brutalidade)

No princípio era o vírus. Coronavírus. Em menos de dois meses após a primeira morte, registrada na China em 9 de janeiro, ele atravessou o mundo a bordo de nossos corpos que voam em aviões. Tornou-se onipresente no planeta, ainda que tão invisível quanto certos deuses para olhos humanos. Hoje, 1,7 bilhão de pessoas, cerca de um quinto da população global, está em isolamento. Escolas, restaurantes, cinemas e até shoppings cerraram as portas, fronteiras de países e de continentes fecharam, aviões se esvaziaram, presidentes maníacos finalmente foram reconhecidos como presidentes maníacos, neoliberais foram vistos clamando —“cadê o Estado? cadê o Estado?” —, ardorosos defensores dos planos privados de saúde compartilharam campanhas pelo fortalecimento do SUS, terraplanistas exigiram respostas da ciência. Pelas janelas do Facebook, Twitter, Whatsapp e Instagram, pessoas decretam: o mundo nunca mais será o mesmo.

Não será. Mas talvez seguirá sendo bastante do mesmo. Além de nossa sobrevivência, o que disputamos neste momento é em que mundo viveremos e que humanos seremos depois da pandemia. Essas respostas vão depender do modo como vivermos a pandemia. O depois, o pós-guerra global do nosso tempo, vai depender de como escolhemos viver a guerra. Não é verdade que na guerra não há escolhas. A verdade é que, na guerra, as escolhas são muito mais difíceis e as perdas decorrentes dela são muito maiores do que em tempos normais.

Na guerra, temos dois caminhos pessoais que determinam o coletivo: nos tornarmos melhores do que somos ou nos tornarmos piores do que somos. Esta é a guerra permanente que cada um trava hoje atrás da sua porta. Momentos radicais expõem uma nudez radical. Isolados, é também com ela que nos viramos. O que o espelho pode mostrar não é a barriga flácida. Pouco importa, já não há onde nem para quem desfilar barrigas-tanquinho. O duro é encarar um caráter flácido, uma vontade desmusculada, um desejo sem tônus que antes era mascarado pela espiral dos dias. O duro é ser chamado a ser e ter medo de ser. Porque é isso que momentos como este fazem: nos chamam a ser.

Em tempos mais normais, podemos fingir que não escutamos o chamado a ser. Cobrimos essa voz com automatismos, a vida se resume a consumir a vida consumindo o planeta. Consumidores não são, já que consomem o ser. E agora, quando já não se pode consumir, porque logo pode não haver o que consumir nem quem possa produzir o que consumir, como é que se aprende a separar os verbos? Como se faz um consumidor se tornar um ser?

Se usamos a palavra guerra, precisamos olhar cuidadosamente para o inimigo. É o vírus, essa criatura que parece uma bolinha microscópica cheia de pelos, quase fofa? É o vírus, esse organismo que só segue o imperativo de se reproduzir? Penso que não. O vírus não tem consciência, não tem moral, não tem escolha. Vamos precisar derrotá-lo em nossos corpos, neutralizá-lo para reiniciar isso que chamamos de o outro mundo que virá. Tudo indica, porém, que outras pandemias acontecerão, outras mutações. A forma como vivemos neste planeta nos tornou vítimas de pandemias. O inimigo somos nós. Não exatamente nós, mas o capitalismo que nos submete a um modo mortífero de viver. E, se nos submete, é porque, com maior ou menor resistência, o aceitamos. Escapar do vírus da vez poderá não nos salvar do próximo. O modo de viver precisa mudar. Nossa sociedade precisa se tornar outra.

O impasse imposto pela pandemia não é novo. É o mesmo impasse colocado há anos, décadas, pela emergência climática. Os cientistas —e mais recentemente os adolescentes— repetem e gritam que é preciso mudar urgentemente o jeito de viver ou estaremos condenados ao desaparecimento de parte da população. E, quem sobreviver, estará condenado a uma existência muito pior num planeta hostil.

Todos os dados mostram que a Terra, esta que segue redonda, está superaquecendo em níveis incompatíveis com a vida de muitas espécies. Esse superaquecimento mudará radicalmente —para pior— o nosso habitat. Todas as informações científicas apontam que é preciso parar de devorar o planeta, que há que se mudar radicalmente os padrões de consumo, que a ideia de crescimento infinito é uma impossibilidade lógica num mundo finito. É um fato comprovado que os humanos, pela emissão de carbono desde a revolução industrial, cortando árvores, queimando carvão e depois petróleo, se tornaram uma força de destruição capaz de alterar o clima do planeta.

Desde o segundo semestre de 2018 adolescentes do mundo inteiro abandonam as escolas toda sexta-feira para gritar nas ruas que os adultos estão roubando seu futuro. Eles dizem: parem de consumir, fiquem no chão, nosso planeta não aguenta mais tanta emissão de carbono. Dizem ainda, literalmente: “vocês estão cagando no nosso futuro”. Greta Thumberg, a jovem ativista sueca, avisou repetidamente: “nossa casa está em chamas”. Acordem.

Está tudo escrito, falado, repetido, documentado. Ninguém pode dizer que não sabe. Bem, Bolsonaro, o maníaco que nos governa, sempre pode, porque diz e desdiz a cada minuto. Mas, sério, quem ainda aguenta falar nesse demente, que está criminosamente aumentando o risco de morte dos brasileiros, a não ser para gritar “Fora!”? Isolemos esse boçal, deixemos Bolsonaro procurando onde estão suas orelhas, aprendendo a como enfiar a máscara no rosto sem tapar os olhos.

O efeito da pandemia é o efeito concentrado, agudo, do que a crise climática está produzindo de forma muito mais lenta. É como se o vírus desse uma palhinha do que viveremos logo mais. Conforme os níveis de superaquecimento global, chegaremos a um estágio de transformação do clima e, por consequência do planeta, para o qual não há volta, não há vacina, não há antídoto. O planeta será outro.

É por isso que cientistas, intelectuais indígenas e ativistas climáticos têm gritado para uma maioria que se finge de surda, para não ter que sair do seu conforto mudando velhos hábitos, que é preciso alterar os padrões de consumo radicalmente, que é preciso pressionar radicalmente os governantes para políticas públicas imediatas, que é preciso combater radicalmente as grandes corporações que destroem o planeta. Mas, como a crise climática é lenta, sempre foi possível fingir que não estava acontecendo, chegando ao paroxismo de eleger negacionistas como Jair Bolsonaro, Donald Trump e toda a conhecida corja de destruidores do mundo.

O vírus não permite fingimentos. Ele possivelmente saltou de um morcego, espécie cujo habitat também destruímos, para se hospedar no organismo dos humanos. Nada mais fez do que tocar sua vida de vírus. De repente, homens e mulheres do mundo inteiro que fingiam não ter nem corpo nem limites, transbordando na internet, tiveram que se haver com a própria carne e com os próprios contornos. Já não há mais como escapar do corpo. E já não há mais como permanecer refestelado no próprio umbigo.

Toda a ilusão de que o mundo é controlado pelos humanos se desfez em tempo recorde. E a humanidade finalmente descobriu que há um mundo além de si, povoado por outros que podem até mesmo acabar com a nossa espécie. Outros que a gente nem consegue enxergar. No nosso furor de espécie dominante, extinguimos tantas outras e tantos modos de vida, trancamos animais maravilhosos em jaulas, criamos campos de concentração de bois, porcos e galinhas, envenenamos peixes com mercúrio apenas porque gostamos de ouro, promovemos holocaustos diários para nos alimentar, estupramos vacas com aparelhos porque desejamos comer seus tenros bebês em refinadas refeições e desejamos roubar seu leite dia após dia, arrancamos a floresta para fazer campo de soja para alimentar animais escravizados. Podíamos tudo.

E aí vem o vírus, que não está interessado em nos passar nenhuma mensagem, só está mesmo cuidando da própria vida, e mostra: vocês, humanos, não estão sozinhos nesse planeta nem têm o controle que acreditam ter. E então aqueles que debochavam dos cientistas do Clima e da Terra, chamavam a crise climática de “complô marxista”, querem agora saber como a ciência pode salvá-los da bolinha peluda. Até tentaram inventar que o novo coronavírus é uma “gripezinha”, “uma fantasia”, “uma histeria”. Mas o povo brinca com tudo e está pronto a acreditar em qualquer bobagem, até em Terra Plana, desde que lhe garantam seguir no seu modo zumbi. Mas o povo não brinca com saúde. Quando o assunto é saúde, até a Terra Plana dá voltas.

Menciono “humanidade”, “povo”, “população”. Mas não há homogeneidade aí, não existe um genérico chamado “humano”. Assim como não estamos todos no mesmo barco. Nem para o coronavírus nem para a crise climática. Mais uma vez, a comparação entre coronavírus e crise do clima faz todo o sentido. A ONU criou o conceito de “apartheid climático”, um reconhecimento de que as desigualdades de raça, sexo, gênero e classe social são determinantes também para a mudança do clima, que as reproduz e as amplia. Aqueles que serão os mais atingidos pelo superaquecimento global —negros e indígenas, mulheres e pobres —foram os que menos contribuíram para provocar a emergência climática. E aqueles que produziram a crise climática ao consumir o planeta em grandes porções e proporções —os brancos ricos de países ricos, os brancos ricos de países pobres, os homens, que nos últimos milênios centralizaram as decisões, nos trazendo até aqui— são os que serão menos afetados por ela. São esses que já passaram a erguer muros e a fechar as fronteiras muito antes do coronavírus porque temem os refugiados climáticos que criaram e que serão cada vez mais numerosos no futuro bem próximo.

Na pandemia de coronavírus há o mesmo apartheid. É bem explícito qual é a população que tem o direito a não ser contaminada e qual é a população que aparentemente pode ser contaminada. Não é coincidência que a primeira morte por coronavírus no Rio de Janeiro foi uma mulher, empregada doméstica, a quem a “patroa” nem reconheceu o direito à dispensa remunerada do trabalho, para fazer o necessário isolamento, nem achou necessário contar que poderia estar contaminada por coronavírus, cujos sintomas já sentia depois de voltar de um Carnaval na Itália. Essa primeira morte no Rio é o retrato do Brasil e das relações entre raça e classe no país, expostas em toda a sua brutalidade criminosa pela radicalidade de uma pandemia.

O espantoso é que a necessidade de muitos de ter sua casa limpa e a comida pronta pela empregada doméstica, a quem negaram o direito ao isolamento remunerado, é maior até do que o instinto de sobrevivência. Isso nos informa muito sobre uma parcela da sociedade brasileira, esta em que os porteiros continuam abrindo a porta dos edifícios para os moradores não tocarem eles mesmos na maçaneta, quando vão ao jardim arejar ou ao supermercado comprar comida. Ficar sem empregados domésticos parece ser mais trágico do que enfrentar o vírus para uma parcela das classes média e alta brasileiras. Esta última muito acostumada a acreditar-se a salvo do pior, porque em geral está.

O poder de devastação do vírus é determinado pelas escolhas dos governos e da população que elegeu os governantes. Neste momento, os brasileiros estão tendo que se haver com a escolha de sucatear o SUS, com a escolha de reduzir o investimento em programas sociais que pudessem reduzir a desigualdade, com a escolha de não fazer reforma agrária nem redistribuição de renda, com a escolha de não priorizar o saneamento básico e a moradia digna. Com a escolha de fazer teto para gastos públicos também em áreas essenciais como saúde e educação.

Os brasileiros estão sendo obrigados a se haver, principalmente, com a escolha de fazer do “Mercado” um deus-entidade que se autorregula. Se o Mercado foi a explicação de tudo para as medidas mais brutais defendidas por essa praga persistente chamada “economistas neoliberais” ou “ultraliberais”, que se autodeclararam com autoridade e poder para determinar todas as áreas de nossa vida, cadê o Mercado agora? Por que não pedem que o Mercado resolva a pandemia? Ao contrário, os representantes do Mercado estão demitindo e dispensando os empregados e pedindo ajuda emergencial do Governo para não falir.

Mas, não se iludam. Assim que a pandemia passar, o Mercado voltará com todo o seu poder de oráculo para, por meio de suas sacerdotisas, os economistas neoliberais ou ultraliberais, nos ditar tudo o que temos que fazer para sair da recessão. Este ônus, como sempre, será dividido igualmente entre os mais pobres.

O vírus —e não as péssimas escolhas— será o culpado de todas as mazelas. Até o corona, como sabemos, a economia do mundo capitalista e do Brasil de Paulo Guedes estava uma maravilha, parece até que domésticas estavam planejando uma excursão para a Disney quando foram impedidas pelo maldito vírus com nome de ducha. E, claro, o maníaco do Planalto vai dizer que não é nem ele nem seu Posto Ipiranga os incompetentes, mas “a histeria” com a “gripezinha”.

Nada está dado, porém. Não é só o futuro que está em disputa, mas o presente. Isoladas em casa, as pessoas passaram a fazer o que não faziam antes: enxergar umas as outras, reconhecer umas as outras, cuidar umas das outras. Justo agora, quando ficou muito mais difícil, parece ter se tornado mais fácil alcançar o outro. Quem criou esse conceito —“isolamento social”— estava com falha de raciocínio. O que temos que fazer e muitos estão fazendo é “isolamento físico”, como apontou no Twitter o sociólogo Ben Carrington. O que está acontecendo hoje é exatamente o contrário de isolamento social. Fazia muito tempo que as pessoas, no mundo inteiro, não socializavam tanto.

No Brasil, o grande momento de socialização é o panelaço de “Fora Bolsonaro!” nas janelas. Em outros países têm música, até poesia, nas sacadas. Para os brasileiros, mostrar que se encontraram com a realidade do outro é reconhecer a realidade de que botaram um maníaco no Planalto e precisam tirá-lo de lá se quiserem sobreviver. Mas também por aqui há festas de aniversário com bolinho na porta e vizinhos cantando parabéns das janelas, jovens fazendo compras para os velhos do prédio, avós almoçando com as netas pelo FaceTime, famílias e grupos de amigos conversando por aplicativos como há tempo não faziam. É incrível, mas finalmente os humanos descobriram que podem usar o celular para se encontrarem, em vez de se isolarem cada um no seu aparelho em torno de mesas de bares e restaurantes.

Muitas das ações da direita e da extrema direita no Brasil dos últimos anos tiveram como objetivo neutralizar e sepultar uma insurreição das periferias, no sentido mais amplo, que começava a questionar, de forma muito contundente, os privilégios de raça e de classe. Começava a reivindicar sua justa centralidade. Marielle Franco era um exemplo icônico destes Brasis insurgentes que já não aceitavam o lugar subalterno e mortífero ao qual haviam sido condenados. A pandemia mostrou explicitamente que a rebelião continua viva. O Brasil das elites boçais, aliado à nova boçalidade representada pelos mercadores da fé alheia, não conseguiu matar a insurreição. O “Manifesto das Filhas e dos Filhos das Empregadas Domésticas e das Diaristas”, afirmando que não permitiriam que os patrões deixassem suas mães morrer pelo coronavírus, foi talvez o grito mais potente deste momento, impensável apenas alguns anos atrás.

Dezenas de “vaquinhas” estão em curso, grande parte delas organizadas a partir das favelas e das periferias, para garantir alimentação e produtos de limpeza para a parcela da população a quem o direito ao isolamento é sequestrado pela desigualdade brasileira. Em geral, o lema é “Nós por Nós”: séculos de história provaram que só os explorados e os escravos podem salvar a si mesmos.

Alguns organizadores dessas campanhas temem que o tempo dos corações abertos, onde brotam margaridas de solidariedade, pode acabar em algumas semanas, quando a comida escassear e a fome se estabelecer, quando o medo de o dinheiro acabar, para aqueles que ainda têm dinheiro mas não sabem por quanto tempo, empedre veias e artérias, quando o número de casos estiver tão fora do controle que o sistema de saúde implodir. É lá, neste lugar ao qual possivelmente ainda chegaremos, que vamos definir quem de fato somos —ou quem queremos ser. Então saberemos. Não me parece que, desta vez, as pessoas aceitarão morrer como gado. Em especial, as mesmas pessoas de sempre.

A consciência da própria mortalidade costuma ter um efeito muito poderoso sobre as subjetividades. Filósofos têm disputado a interpretação do que será ou pode ser o mundo do pós-coronavírus. O esloveno Slavjoj Zizek acredita no poder subversivo do vírus, que pode ter dado um golpe mortal no capitalismo: “Talvez outro vírus muito mais benéfico também se espalhe e, se tivermos sorte, irá nos infectar: o vírus do pensar em uma sociedade alternativa, uma sociedade para além dos Estados-nação, uma sociedade que se atualiza nas formas de solidariedade e cooperação global”.

sul-coreano Byung-Chul Han, que dá aulas na Universidade de Artes de Berlim, acredita que Zizek está errado. “Após a pandemia, o capitalismo continuará com ainda mais pujança. E os turistas continuarão a pisotear o planeta”, afirma. “A comoção é um momento propício que permite estabelecer um novo sistema de Governo. Também a instauração do neoliberalismo veio precedida frequentemente de crises que causaram comoções. É o que aconteceu na Coreia e na Grécia. Espero que após a comoção causada por esse vírus não chegue à Europa um regime policial digital como o chinês. Se isso ocorrer, como teme Giorgio Agamben, o estado de exceção passaria a ser a situação normal. O vírus, então, teria conseguido o que nem mesmo o terrorismo islâmico conseguiu totalmente”.

Mas também ele se aproxima da ideia de uma outra sociedade possível no pós-guerra pandêmica: “O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. De alguma maneira, cada um se preocupa somente por sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa. Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta”.

Penso que a beleza que ainda resta no mundo é justamente que nada está dado enquanto ainda estivermos vivos. O vírus, que arrancou todos do lugar, independentemente do polo político, está aí para nos lembrar disso. A beleza é que, de repente, um vírus devolveu aos humanos a capacidade de imaginar um futuro onde desejam viver.

Se a pandemia passar e ainda estivermos vivos, será no momento de recompor as humanidades que poderemos criar uma sociedade nova. Uma sociedade capaz de entender que o dogma do crescimento nos trouxe até este momento, uma sociedade preparada para compreender que qualquer futuro depende de parar de esgotar o que chamamos de recursos naturais —e que os indígenas chamam de mãe, pai, irmão.

O futuro está em disputa. No amanhã, demorando ou não a chegar, saberemos se a parte minoritária, mas dominante, da humanidade seguirá sendo o vírus hediondo e suicida, capaz de exterminar a própria espécie ao destruir o planeta-corpo que a hospeda. Ou se barraremos essa força de destruição ao nos inventarmos de outro jeito, como uma sociedade consciente de que divide o mundo com outras sociedades. Saberemos, após tantas especulações, se o que vivemos é Gênesis ou Apocalipse, na interpretação do senso comum. Ou nada tão grandiloquente, mas imensamente decepcionante: a reedição de nossa invencível capacidade de adaptação ao pior, com a imediata adesão aos discursos salvacionistas que já nos escravizaram tantas vezes.

A pandemia de coronavírus revelou que somos capazes de fazer mudanças radicais em tempo recorde. A aproximação social com isolamento físico pode nos ensinar que dependemos uns dos outros. E por isso precisamos nos unir em torno de um comum global que proteja a única casa que todos temos. O vírus, também um habitante deste planeta, nos lembrou de algo que tínhamos esquecido: os outros existem. Às vezes, eles são chamados novo coronavírus. Ou SARS-CoV-2.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).


Juan Arias: Amanhã pode ser tarde demais para deter Bolsonaro

Bolsonaro não só caçoa de uma epidemia que coloca o mundo de joelhos, como tenta se aproveitar dela para minar as instituições democráticas

Nada poderia ser pior do que minimizar o perigo que corre hoje o Brasil nas mãos de um personagem, como o capitão reformado e ultradireitista Jair Bolsonaro, que não só caçoa de uma epidemia que está colocando o mundo de joelhos, como tenta se aproveitar dela para minar as instituições democráticas e sustentar sua ânsia de poder.

Aproveitar este momento de angústia nacional para politizar um drama em que o país está entre a vida e a morte pensando em sua reeleição, é um crime sem perdão.

Com seu estilo sibilino de dizer e se desdizer, de brincar de esconde-esconde, o presidente acaba confundindo e impondo seu estilo de aprendiz de ditador enquanto há quem ainda o veja como inofensivo por considerá-lo um despreparado e incapaz. Pelo contrário, aquele que sonhou em ser general do Exército e acabou como simples capitão é mais perigoso à democracia do que muitos pensam. Vai roendo sem que percebamos nossas liberdades e capacidades de decisão. E espera o momento propício para dar o golpe.

Quem pensava que os militares, começando pelos generais que ele colocou no Governo, seriam garantia contra seus caprichos autoritários hoje se veem isolados e retirados do Governo contra sua vontade se não se colocarem às suas ordens. Todos os seus pecados vão sendo perdoados, até contra o senso comum. Permitem que ele apresente ao exterior uma imagem do país que vai na contramão dos maiores líderes mundiais na luta contra a epidemia do coronavírus porque se pensa que ninguém vai acreditar nele.

O presidente é mais perigoso do que parece porque suas ambições de poder são muito maiores do que imaginam até os que estão ao seu lado. Sua capacidade de totalitarismo e de desejo de colocar aos seus pés as instituições democráticas são insaciáveis e já existem desde jovem, quando sendo simples soldado sonhava em presidir o país utilizando até métodos de terror, como quando no quartel brincava de ser terrorista e subversivo. Também à época o Exército o perdoou porque o considerava inofensivo e ingênuo. Hoje vemos que não era.

Foi considerado como inofensivo também quando já na política, como deputado, fazia troça dos valores democráticos, exaltava as ditaduras e a tortura e humilhava as mulheres e os de outras preferências sexuais. Ele podia tudo porque era considerado inofensivo, do baixo clero. Podia vomitar as maiores barbaridades porque se pensava que era um personagem folclórico, até engraçado, um zé ninguém. Não era. E chegou ao maior cargo do Estado e por voto popular.

Em meio ao drama da epidemia do coronavírus que assusta o mundo e ainda não sabemos quantas vítimas causará, o presidente continua irresponsavelmente em sua teimosia de negar as evidências e ir contra a opinião pública altamente majoritária como revelou a última pesquisa do Datafolha. E se aproveita da tragédia para sonhar até mesmo em impor o estado de sítio e colocar o Exército no comando do país. Exército que, para concretizar seu antigo sonho de poder, agora como Presidente teria aos seus pés.

Enquanto os que realmente importam no país e são responsáveis por seu destino continuarem subestimando os sonhos secretos de onipotência do capitão da reserva, deveriam olhar para trás na história para lembrar que foram personagens que em sua época pareciam inócuos e farsantes que acabaram criando holocaustos e guerras para se vingar dos que os consideravam figuras menores e inofensivas. Será preciso lembrar nomes dos grandes tiranos da História que surgiram da mediocridade da política? Não é difícil lembrar da tragédia do mundo cada vez que para governá-lo forem colocadas em seu comando personagens menores, considerados inofensivos e facilmente domináveis que se tornam insaciáveis em sua loucura pelo poder absoluto.

Se os lúcidos, os normais, os que são capazes de exercer o poder como um serviço à comunidade, acabarem devorados pelas ânsias de poder dos medíocres e falsos loucos capazes de tudo para continuar no pedestal do poder, amanhã pode ser tarde demais.

Não deixemos que o Brasil verdadeiro, hoje amedrontado, o que trabalha e se sacrifica para se apresentar ao mundo como o grande país que é por tradição e história, por sua capacidade de suportar as piores crises, por suas riquezas naturais e espirituais acabe sufocado pela ignorância e a loucura dos que desejam transformá-lo em uma republiqueta periférica no mundo.

Esse amor pelas atitudes violentas e de confronto contra todos, pelos conflitos violentos, pela política do ódio sempre foi o sonho de todos os aprendizes a ditadores que tentaram camuflar seus complexos de inferioridade com o troar dos canhões e o sacrifício de milhões de pessoas perpetrado no altar da loucura política da sede de domínio.

Que o Brasil, assustado com razão por uma epidemia que mata e transforma a todos em prisioneiros de guerra, não espere mais e procure a fórmula constitucional que permita colocar o país nas mãos de alguém normal, sem patologias e delírios de poder capaz de lidar com sensatez nessas horas críticas que podem marcar o futuro de um país que está se revelando solidário e com vontade de vencer essa batalha e continuar com sua vocação de paz e seus desejos de felicidade.

Que o Brasil não precise se arrepender de não ter reagido a tempo deixando que alguém que já deu provas suficientes de que é incapaz de governar um país dessa envergadura e menos ainda em momentos decisivos como esse, continue perigosamente arrastando-o a uma aventura cujo final não é difícil de se imaginar.

E é para hoje. Amanhã será tarde demais.


Afonso Benites: Isolado, Bolsonaro vê Exército, vice Mourão e 27 governadores marcarem distância na crise do coronavírus

Criticado por chamar doença de “gripezinha”, presidente perde aliado Caiado. Presidente do Itaú, maior banco brasileiro, diz: “Sinto falta de um administrador da crise”

Enquanto a população se isola em suas casas para tentar ajudar na contenção do novo coronavírus em boa parte do país, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (sem partido) fica cada vez mais isolado politicamente. Lideranças do Congresso Nacional, o vice-presidente Hamilton Mourão, representantes do Judiciário, governadores, prefeitos, entidades médicas e até parte da cúpula militar marcaram distância da conduta do mandatário na crise. Entre o pronunciamento em rede de rádio e TV na noite de terça-feira, no qual criticou medidas de isolamento social e voltou a chamar a Covid-19 de uma “gripezinha”, e o início da noite de quarta, cresceram as manifestações contrárias ao principal representante da ultradireita na América do Sul. O comportamento de Bolsonaro conseguiu até unificar discursos de seus opositores, que costumam agir de maneira desalinhada.

O presidente também foi emparedado por governadores da região mais rica e populosa do país, o Sudeste. Quase em uníssono, os representantes de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo disseram, em reunião desta quarta, que preferiam seguir as orientações da Organização Mundial da Saúde às considerações sem embasamento do presidente. Foram acompanhados pelos outros 23 governadores brasileiros.

Em uma teleconferência, um antigo aliado de palanque do presidente, o paulista João Doria (PSDB), iniciou uma discussão, dizendo que Bolsonaro precisava ter calma. “Presidente, como brasileiro e governador, peço que você tenha serenidade, calma e equilíbrio. Mais do que nunca, o senhor precisa comandar e liderar o país.” A resposta veio de maneira irritada: “Guarde suas observações para 2022, quando vossa excelência poderá destilar todo o seu ódio e demagogia”. Doria é pré-candidato à sucessão presidencial.

O mandatário também perdeu apoio de um dos poucos governadores que se declarava bolsonarista-raiz no país, o goiano Ronaldo Caiado (DEM). Médico de formação e político há mais de três décadas, Caiado foi um dos primeiros a declarar sustentação à gestão Bolsonaro. Em um duro pronunciamento, ele disse: “Não posso admitir que venha um presidente da República, lavar as mãos, e responsabilizar outras pessoas pela falência da economia e de empregos. Não faz parte da postura de um governante. Estadistas têm de assumir dificuldades do momento que passam”.

O pronunciamento de Bolsonaro na noite de terça-feira frisou dar atenção à economia, mais do que à saúde, justamente em um momento em que a curva de casos começa a ficar ascendente – são 2.433 registros de contaminados e 57 óbitos. “O sustento das famílias deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte, fechamento de comércio e confinamento em massa”.

Entidades municipalistas e representantes da classe médica, chamaram o pronunciamento de equivocado. “Postura irresponsável, alicerçada em convicções sem embasamento científico, que semeiam a discórdia e até mesmo a convulsão social, compromete as relações federativas”, diz trecho de nota da Frente Nacional de Prefeitos. “Se a intenção foi acalmar, a reação da sociedade mostra que ele não alcançou seus objetivos”, afirmou o presidente de Associação Paulista de Medicina, José Luiz Gomes do Amaral.

Assim, Bolsonaro, mais uma vez, cometeu o que em política não costuma dar certo: ter de explicar o que disse em um discurso. “Pode ser que ele tenha se expressado de uma forma que não foi a melhor”, disse o vice-presidente, o general Hamilton Mourão (PRTB). Conforme Mourão, “a posição do nosso Governo, por enquanto é uma só: o isolamento e o distanciamento social”. É a mesma linha que vinha sendo adotada pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Ao longo do dia, chegou a circular em Brasília que o ministro, um médico que já foi secretário de Saúde e deputado federal, poderia pedir demissão ou ser demitido. Seu substituto seria ou um militar que comanda a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Antônio Barra, ou o deputado e ex-ministro da Cidadania, Osmar Tera (MDB-RS). O próprio Mandetta botou panos quentes na situação. “Saio daqui na hora que acharem que eu não devo trabalhar, o presidente achar, porque ele que me chamou, ou se eu estiver doente. Ou num momento que eu achar que esse período todo de turbulência já tenha passado e eu possa não ser mais útil”.

Se não bastassem os recados da classe política, Bolsonaro teve de ouvir também os enviados pela classe econômica. Em entrevista ao jornal O Globo, o presidente do Itaú, o maior banco brasileiro, Candido Bracher, disse que sentia a falta no Executivo federal de um administrador de crises. “Sinto falta de um administrador da crise, de alguém que coordene todos os esforços do Governo e possa administrar o arsenal variado de medidas para combater a crise”.

Dos quartéis, o discurso foi prévio ao pronunciamento de Bolsonaro. Enquanto o presidente minimizava os efeitos sanitários da Covid-19, o comandante do Exército, o general Edson Leal Pujol, tratava o combate à enfermidade como um dos maiores desafios da atual geração. “Uma de nossas responsabilidades com a nação nesse momento de crise é que nossa tropa deve manter a capacidade operacional para enfrentar o desafio e fazer a diferença. Talvez seja a missão mais importante de nossa geração”, disse em um vídeo divulgado no canal do Exército no YouTube poucas horas antes do discurso do presidente.

Maia fecha porta ao impeachment
De volta à esfera política, no Congresso Nacional a percepção é de que ficou clara a tentativa eleitoral de Bolsonaro em suas últimas manifestações. Quatro congressistas que costumam se alinhar às pautas bolsonaristas no Legislativo relataram, de maneira reservada ao EL PAÍS, que o presidente está mais preocupado com sua campanha à reeleição, no longínquo ano de 2022, do que com a saúde da população. “Ele foi eleito com apoio forte do empresariado. O PIB de 2019 subiu 1,1%. Para este ano devemos ter uma recessão. Se não conseguir melhorar a economia, perde sustentação”, afirmou um parlamentar.

Entre esses legisladores, o presidente reagiu de maneira antecipada ao rebote econômico da crise, que deve vir e cuja profundidade vai depende de quão o longo processo de lockdown (fechamento) durar. “Todo mundo sabe que o Brasil não é a Europa. Que nossa economia não aguenta ficar 90 dias parada. Mas ainda estava cedo para fazer um discurso econômico. Ainda estamos há algumas semanas do pico de casos. Era melhor o Bolsonaro esperar um pouco para demonstrar essa preocupação econômica. Falar agora demonstrou insensibilidade”, disse outro congressista.

As movimentações do presidente fazem com que, ainda de maneira tímida, comece a ganhar força em Brasília grupos que defendem o impeachment do presidente. Ao menos sete pedidos foram protocolados na Câmara. Não há, contudo, uma sustentação política capaz de dar andamento a esses pedidos, por enquanto. “Não há motivo de impeachment", cortou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que é quem ter o poder legal de fazer um pedido de destituição no Congresso. “Como o Governo pode falar de isolamento vertical sem ter plano de contingenciamento para idosos de baixa renda?”, seguiu Maia. “Por mais que ache que o presidente esteja cometendo crimes contra a saúde pública, ao agir dessa maneira, temos de cuidar de uma crise de cada vez”, disse o líder de um partido de direita.

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El País: Em cadeia de TV, Bolsonaro minimiza coronavírus para insuflar base radical

Presidente faz se lança contra a ciência e o próprio Ministério da Saúde ao criticar fechamento de escolas e desencorajar quarentena. Presidente do Senado diz que nação espera “seriedade” de seu líder

Felipe Betim, do El País

Jair Bolsonaro apelou à mentira e à tergiversação em um novo pronunciamento, em cadeia obrigatória de rádio e TV, sobre a pandemia do coronavírus. Com um discurso feito sob medida para mobilizar seus seguidores mais radicais, o mandatário voltou a minimizar nesta terça-feira os riscos da doença, que já matou mais de 17.000 pessoas pelo mundo e 46 no Brasil, a se lançar contra a mídia, prefeitos e governadores. E contra as próprias evidências científicas.

“O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós, e brevemente passará”, garantiu o mandatário de extrema direita, contra todas as previsões dos especialistas e do Ministério da Saúde que comanda. Depois, afirmou que “a vida deve continuar”, que “os empregos devem ser mantidos”, assim como os sustentos das famílias. “Devemos, sim, voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento do comércio e o confinamento em massa”, insistiu ele, indo em direção contrária ao que dizem as recomendações da Organização Mundial da Saúde e a todas as medidas de emergência adotadas em outros países. Com a ênfase na economia, Bolsonaro emula seu aliado Donald Trump, que propõe também afrouxar as restrições nos EUA ―e, mesmo assim, só depois da Páscoa.

A primeira reação ao pronunciamento foi do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM)―que foi contagiado pela Covid-19. Em nota, ele afirmou que o país espera uma liderança “séria, responsável e comprometida com a saúde e a vida da população”. Já o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), se limitou a dizer no Twitter que “o pronunciamento do presidente foi equivocado ao atacar a imprensa, os governadores e especialistas em saúde pública”. Também afirmou que “o momento exige que o governo federal reconheça o esforço de todos ―governadores, prefeitos e profissionais de saúde― e adote medidas objetivas de apoio emergencial para conter o vírus e aos empresários e empregados prejudicados pelo isolamento social”.

Alguns governadores também se posicionaram pelo Twitter, como o petista Rui Costa, que comanda o Estado da Bahia: “Não é gripezinha. Vou continuar trabalhando em defesa da vida. Olhar nos olhos das pessoas e dizer: estamos numa guerra. ACORDA. Temos que vencê-la. Chega de discurso vazio e delírios”. No Twitter, as hashtag #ForaBolsonaro e #BolsonaroGenocida apareciam na noite desta terça como os dois assuntos mais comentados da rede social em todo o mundo.

Rodrigo Maia

@RodrigoMaia

Desde o início desta crise venho pedindo sensatez, equilíbrio e união. O pronunciamento do presidente foi equivocado ao atacar a imprensa, os governadores e especialistas em saúde pública.

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Bolsonaro insistiu na estratégia de forjar inimigos e oscilar de maneira errática, confundindo interlocutores. Na mesma semana em que diz ter mantido reuniões produtivas com governadores, aos quais passou a atender parte das demandas por liberação de recursos e suspensão de pagamentos de dívida, ele voltou ao ataque. O presidente voltou a insistir que o vírus ameaça principalmente aqueles com mais de 60 anos e outros problemas de saúde ―apesar de que há casos graves entre os mais jovens e saudáveis, além do poder de contagiar a população rapidamente e colapsar os sistemas de saúde. “Então, por que fechar escolas?", questionou, para em seguida tentar mais uma vez espantar os rumores de que foi infectado.

Ele também aproveitou a ocasião para fazer uma provocação ao médico Drauzio Varella. “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria, ou seria quando muito acometido por uma gripezinha. Ou um resfriadinho, como diz aquele famoso médico.” Perfis no Twitter e no WhatsApp ligados ao bolsonarismo usaram a estratégia de distribuir um vídeo de Varella —de janeiro― para afirmar que o médico desencoraja as precauções.

O Brasil registrou até o momento 2.201 casos e 46 mortes pelo coronavírus, alguns deles com menos de 40 anos. Como só os pacientes com sintomas graves vem passando pelo teste, o próprio Ministério da Saúde afirmou nesta terça que para cada 100 pacientes infectados, apenas 14 são identificados. Além disso, os médicos afirmam que medidas que promovam o distanciamento social é a solução mais eficaz a curto prazo para conter a velocidade de contágio da pandemia para não colapsar os sistemas de saúde. A limitação da circulação de pessoas vem sendo adotada não apenas pela China, mas também pela Itália, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos, Argentina e mais recentemente até na Índia, entre outros países. Bolsonaro, contudo, diz confiar em um possível tratamento com a hidroxicloroquina que cientistas dos Estados Unidos e do hospital Albert Einstein vêm promovendo. Os estudos não são conclusivos, mas a mera possibilidade desatou uma busca desenfreada pelo medicamento —usado no tratamento da artrite, lúpus eritematoso, doenças fotossensíveis e malária. A própria ANVISA desencoraja seu uso para combater o coronavírus. “A automedicação pode representar um grave risco à sua saúde”, alertou a agência do Governo Federal em nota.

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