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El País: Cientistas brasileiros vivem pesadelo em meio à politização da cloroquina

Infectologista que coordenou ensaio clínico em Manaus com o medicamento relata as ameaças. Nas redes de saúde, remédio, que teve ensaio clínico suspenso pela OMS, é cada vez mais pedido

O cientista brasileiro Marcus Lacerda e sua equipe vivenciaram um pesadelo particular na tempestade da pandemia de coronavírus. Da noite para o dia, a politização da cloroquina, um fármaco, os atingiu como um meteorito. Esse infectologista, que coordena um experiente grupo de pesquisas dedicado à malária, tuberculose e HIV, nunca imaginou estar envolvido em algo assim. Ainda mais trabalhando em um local tão distante dos centros de poder, como Manaus, a capital do Amazonas. Uma cidade em plena selva tropical em que quase todos chegam de avião ou barco.

O gatilho para os ataques —incluindo ameaças de morte— foi um ensaio clínico com 81 pacientes hospitalizados por Covid-19 e tratados com cloroquina. O medicamento clássico para o tratamento da malária se tornou famoso em meio mundo com a pandemia, graças à direita populista, que o transformou em uma de suas bandeiras. “O linchamento começou assim que os resultados foram publicados”, explica Lacerda por telefone, de Manaus.

O estudo de Manaus foi realizado com a mesma cautela de sempre, embora fossem tempos de emergência. Teve todas as bênçãos das autoridades –incluindo o comitê de ética do Brasil. O consórcio de pesquisadores liderado por Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical, pretendia analisar a letalidade e toxicidade de diferentes doses de cloroquina em pacientes com Covid. Assim se descobre como combater novas doenças. Nosso estudo levanta bandeiras vermelhas suficientes para que se pare de usar altas doses de cloroquina porque os efeitos tóxicos superam os benefícios", escreveu Lacerda em seu artigo no Journal of American Medical Association (Jama).

O ensaio foi suspenso antes do previsto porque 11 dos pacientes morreram. Esses graves riscos, publicados na Jama em abril, não impediram Donald Trump de anunciar há uma semana que toma hidroxicloroquina para prevenção, e seu colega Jair Bolsonaro de divulgar um protocolo sobre seu uso por médicos que assim optarem. Na sexta-feira passada, The Lancet publicou o maior estudo sobre os dois fármacos, que demonstra eles aumentam o risco de morte em pacientes com Covid. E nesta segunda, a OMS declarou a suspensão de ensaios clínicos com esses medicamentos.

“A primeira frustração foi saber que a cloroquina não funcionava; a segunda, descobrir que as pessoas interpretavam o julgamento como um ataque a Bolsonaro”, diz o infectologista. As conclusões da equipe de Manaus foram valiosas para milhares de médicos que tratam pacientes com coronavírus. Mas para a internacional nacional-populista aquilo era um boicote.

“Comecei a receber ameaças de morte, me diziam que eu ia perder meus filhos, que iria acabar como Marielle Franco (a vereadora assassinada em 2018 no Rio de Janeiro)", lembra Lacerda, em Manaus, que registra um dos surtos mais graves no Brasil. Muitas ameaças eram anônimas, mas um tuíte do deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, os colocou como alvo de milhões de internautas. “Um estudo clínico realizado em Manaus para desqualificar a cloroquina causou 11 MORTES após os pacientes receberem doses bem acima do padrão”, tuitou o filho de Bolsonaro, ressaltando o dado com letras maísculas. Lacerda teve que ser escoltado.

Embora nos Estados Unidos e na Europa o remédio somente seja usado em pacientes em estado grave e de modo compassivo, a febre da cloroquina chegou ao ponto, no Brasil, de plano de saúde privado distribuir 30.000 kits com o medicamento a seus clientes em Fortaleza, relata Marina Rossi.

Diante desse panorama, muitos cientistas se sentem impotentes. Um tuíte aniquila facilmente diante da opinião pública as conclusões de um ensaio clínico publicado nas revistas de maior prestígio. "As sociedades científicas saíram em nossa defesa, mas as pessoas comuns acreditam nesse tuíte", explica o infectologista brasileiro.

Os defensores da cloroquina triunfam nas redes sociais brasileiras com a cumplicidade do presidente, que criou um clima de hostilidade diante do desprezo aberto da ciência quando suas conclusões contradizem seus desejos ou discurso. Vítimas de ataques furiosos, os cientistas do ensaio brasileiro foram levados à Justiça. E o trabalho que realizaram agora é investigado por promotores em Bento Gonçalves, cidade do Rio Grande do Sul, a quase 4.500 quilômetros de Manaus.

Pedidos de familiares

Diante da propaganda do Governo brasileiro, nos hospitais as famílias dos pacientes pedem cloroquina cada vez com mais frequência, diz Carlos, médico de 31 anos que atende pacientes de covid-19 em unidades de terapia intensiva, tanto na rede pública como na privada do Ceará. O médico, que pediu para ter sua identidade preservada, viu a cloroquina entrar no vocabulário de pacientes de todas as classes sociais e há um mês começou a pedir às famílias de seus pacientes públicos e privados que assinassem um consentimento. Uma precaução dos centros de saúde para evitar problemas legais e que faz parte do protocolo do Ministério da Saúde para a utilização do remédio.

Médico há seis anos anos, Carlos diz que desde o início da pandemia prescreve cloroquina a pacientes sem problemas cardíacos. Não se sente pressionado, como ouviu de colegas que trabalham em clínicas ambulatoriais. Diz que não é contra o uso do medicamento no estágio inicial da doença e, em casos leves, em linha com o que foi aprovado nesta semana pelo Governo Bolsonaro, mas enfatiza que fazer isso com segurança exigiria que os pacientes fossem diagnosticados por meio de uma análise e testá-los para ver se têm arritmia cardíaca. O teste de covid-19 não é realizado no Brasil em pacientes em estado leve e o segundo teste não é fácil de conseguir na rede pública. “Por isso, é complicado porque no nível do Brasil, que tem uma grande desigualdade social e dificuldades para acesso a medicamentos e exames, é muito difícil”, diz ele. O médico, entretanto, afirma que quando propõe o termo de consentimento à família do paciente, "99% assinam assim mesmo. As pessoas decidem mais pela fé do que pela ciência”.


El País: Tensão entre STF e Planalto escala e Defesa decide endossar advertência à Corte

Chefe das Forças Armadas fala mais uma vez sobre política interna, inusual em democracias estáveis. Reunião deve provocar enxurrada de inquéritos contra presidente e ministros

Afonso Benites e Flávia Marreiro, do El País

O Judiciário se prepara para receber nos próximos dias uma enxurrada de representações contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e ao menos quatro de seus ministros. A razão são potenciais crimes cometidos na reunião ministerial do dia 22 de abril. As imagens do encontro foram divulgadas nesta sexta-feira, por ordem do decano do Supremo Tribunal Federal, o ministro Celso de Mello, como um dos procedimentos do inquérito 4831, que apura se o presidente cometeu cinco delitos ao tentar interferir politicamente na Polícia Federal.

A nova ofensiva legal contra o Governo Bolsonaro esperada para os próximos dias deve aumentar a tensão entre o Planalto e o Supremo num momento em que até o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, decidiu publicamente apoiar declarações do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno de advertência à Corte. Na sexta, Heleno advertira das consequências “imprevisíveis” para a “estabilidade nacional” caso o Supremo decidisse requisitar o celular do presidente no curso da investigação —há um pedido em análise na Procuradoria-Geral da República. O ministro Celso de Mello teve de esclarecer que apenas encaminhou o requerimento apresentado por partidos políticos, e que não decidiu nada sobre o tema. Primeiro, Azevedo disse à CNN que endossava a mensagem de Heleno porque o celular do presidente é “um assunto de segurança institucional” Depois, em nota, Azevedo se disse "preocupado em relação a harmonia e independência entre os poderes, princípio fundamental da Constituição Federal (Art 2°), que deve ser uma via de mão dupla”.

É a terceira vez que Azevedo se manifesta sobre a crise política em menos de dois meses. Quando Bolsonaro participou de atos pró-intervenção militar há algumas semanas, o ministro lançou nota frisando o compromisso da caserna com a ordem constitucional. Desta vez, ficou explícito o tom duro do recado à Corte e a ideia de que toma para si o papel de avaliador da harmonia entre poderes. A frequente voz do ministro da Defesa, um general da reserva, na política interna —algo no mínimo inusual em democracias estáveis—, é mais um sintoma da crise institucional em curso e do dúbio papel que as Forças Armadas decidiram assumir no atual Governo, o de maior participação militar desde o fim da ditadura. Bolsonaro, sempre que pode, tenta transmitir a imagem de união simbiótica entre Planalto e militares. Neste sábado, questionado sobre a ameaça do ministro do GSI, que ele próprio autorizou na sexta, disse que ele, Heleno e Azevedo fazem parte do “mesmo time".

Heleno, aliás, é um dos ministros que deve ser alvo de um inquérito do Ministério Público justamente por causa da nota de sexta. Várias lideranças políticas criticaram o ministro, acusando-o de infringir a lei da segurança nacional e ameaçar dar um golpe ao emitira mensagem à imprensa pouco antes da publicação do vídeo da reunião ministerial. A oposição promete tentar convocá-lo a se explicar no Congresso.

Novas mensagens entre Moro e Bolsonaro

Em meio à tensão, segue vindo à tona detalhes da investigação principal —a que apura se Bolsonaro interferiu ou não na PF. Nesse sábado, o jornal O Estado de S. Paulo revelou que, no mesmo dia do agora famoso encontro ministerial, o presidente Bolsonaro informou seu ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, que naquela semana demitiria o então diretor-geral da PF, Maurício Valeixo. A informação consta da investigação e demonstra que partiu de Bolsonaro a decisão de interferir na PF demitindo o homem de confiança do ex-juiz da operação Lava Jato. “Moro, Valeixo sai esta semana”, disse o presidente, às 6h26 do dia 22 de abril. “Está decidido”, afirmou ele em outra mensagem, enviada na sequência, encerrando a conversa. “Você pode dizer apenas a forma. A pedido ou ex oficio (sic)”. Moro, conforme a reportagem, respondeu 11 minutos mais tarde: “Presidente, sobre esse assunto precisamos conversar pessoalmente. Estou ah disposição para tanto (sic)”. As mensagens solapam ainda mais a versão de Bolsonaro de que Valeixo pedira demissão e dá mais fôlego à tese de morto.

Os problemas do presidente não param aí. Dois procuradores da República e um policial federal ouvidos pela reportagem relataram que, por causa das declarações na reunião e após ela, o presidente ainda pode ser investigado também por falar da existência de um sistema paralelo de informações de segurança que o abasteceria com dados de inteligência. Um dos procuradores afirmou que é preciso saber se esse sistema particular realmente existe, qual é a sua estrutura e como ele é financiado, se com recursos públicos ou privados. Ou se tudo não passa de bravata. Não há nada no ordenamento jurídico que permita o presidente a ter um aparelho privado de arapongas.

No encontro ministerial, Bolsonaro reclamou que a PF e a Agência Brasileira de Informações (ABIN), os sistemas oficiais que devem fornecer à presidência desses dados, falhavam em repassá-los. Mas que o seu, particular, funcionava. “O meu [sistema] particular funciona. Os ofi... que tem oficialmente, desinforma. E voltando ao ... ao tema: prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações que eu tenho (sic)”, disse Bolsonaro no encontro.

A existência de tal sistema já havia sido revelada pelo ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência e ex-presidente do PSL, Gustavo Bebianno, morto no começo do ano, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, e pela deputada federal e ex-líder do Governo Bolsonaro no Congresso, Joice Hasselmann, na Comissão Parlamentar de Inquérito das Fake News.

Ainda na sexta-feira, o presidente admitiu em duas ocasiões que havia pessoas fora das agências oficiais que o abasteciam de dados. Em entrevista à Jovem Pan disse que são amigos que o ajudam. Citou jornalista, policiais e militares que trabalham em diversas cidades do país. Ao tratar desse sistema paralelo de informações na entrevista à rádio disse: “É um colega de vocês da imprensa que com certeza eu tenho, é um sargento no Batalhão de Operações Especiais no Rio, um capitão do Exército em Nioaque (MS), é um capitão da Polícia Civil em Manaus, é um amigo que eu fiz em um determinado local”.

Mais tarde, na chegada ao Palácio da Alvorada, foi além e afirmou que policiais civis e militares do Rio de Janeiro o informaram sobre investigações que estariam sendo feitas contra seus familiares. “Estou o tempo todo vivendo sob tensão, possibilidade de busca e apreensão sobre filho meu onde provas seriam plantadas. Levantei isso [porque] graças a Deus eu tenho amigos policiais civis e policiais militares no Rio de Janeiro que [me disseram que] estava sendo armado pra cima de mim”, disse. O senador Flávio Bolsonaro, primogênito do presidente, é investigado pelo Ministério Público do Rio de um suposto esquema de apropriação dos salários de assessores, a rachadinha.

Na semana passada, seu suplente no Senado, o empresário e dirigente do PSDB Paulo Marinho, declarou que um delegado da PF vazou informações ao senador sobre apurações que envolveriam assessores da família Bolsonaro.

Três da “ala ideológica”

Outros ministros que devem ser alvos do Ministério Público Federal são Abraham Weintraub (Educação), Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Damares Alves (Direitos Humanos), tidos como da ala “ideológica”, os mais ativos defensores de teses ultradireitistas. Já há representações contra eles elaboradas por parlamentares de partidos da oposição como REDE, PDT e PSB.

Os procuradores entendem que Weintraub, que na reunião disse que os ministros do Supremo deveriam ser presos, dificilmente escapará de ser responsabilizado pelo menos pelo crime de injúria por ter chamado ministros do STF de vagabundos e ter defendido suas prisões. O ministro também criticou os povos indígenas e cigano. Entre os investigadores há quem defenda que ele responda por outros delitos, como incitação da ordem política ou social, fazer propaganda de discriminação racial e de processos violentos para a alteração da ordem pública ou social, assim como a tentativa de impedir o livre exercício dos Poderes da União.

Já sobre Ricardo Salles, os supostos delitos se baseiam em suas declarações de que o Governo deveria se aproveitar do momento em que a imprensa estava dedicada a fazer a cobertura da pandemia de covid-19 para passar diversas medidas infralegais de regulamentação ambiental, várias delas consideradas como um desmonte da pasta gerenciada por Salles. “Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo”, afirmou o ministro no encontro do dia 22 de abril.

Sobre Damares Alves, as investigações seriam sobre ela ter dito que pediria a prisão de governadores e prefeitos que impuseram regras rígidas de isolamento social em seus Estados e municípios. No entendimento dos investigadores, a ministra poderia estar afrontando uma decisão do Supremo de que são os chefes dos poderes Executivo locais quem devem decidir quais medidas devem ser adotadas durante a pandemia, e não o Governo federal.

Em quatro representações que já chegaram ao Supremo e deverão ser encaminhadas à Procuradoria-Geral da República os parlamentares da oposição afirmaram que o encontro de Bolsonaro e seus ministros “apresenta um conjunto de ofensas e ameaças —expressas ou veladas—, em expressões indecorosas, grosseiras e constrangedoras, contra diferentes pessoas, povos e instituições”. Entre os congressistas que assinaram essas representações estão os senadores Randolfe Rodrigues e Fabiano Contarato (ambos da REDE) e os deputados André Figueiredo (PDT), Alessandro Molon (PSB) e Joênia Wapichana (REDE).


El País: Reunião expõe ao menos dois crimes de Bolsonaro, apontam juristas

Vídeo e entrevista desmontam versão de presidente sobre PF e elevam pressão sobre Aras por denúncia. A uma radio, mandatário diz ter sido avisado de operações policiais contra a família

Carla Jimenéz, Afonso Benites e Felipe Betim, do El País

A íntegra da reunião do conselho de ministros de Jair Bolsonaro revelada nesta sexta-feira por ordem do decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Melloexpôs como nunca o modus operandi do Governo ultradireitista e desmontou a versão do presidente de que ele jamais havia cobrado mudanças na estrutura de segurança, Polícia Federal incluída, para proteger seus familiares. Nas imagens, Bolsonaro aparece não apenas ameaçando trocar “ministro” caso não fosse atendido na missão de preservar seus parentes de “sacanagens” —ele mira na direção do então ministro da Justiça, Sergio Moro no exato momento—, como fala também da necessidade de proteger “amigos”. O Planalto vinha repetindo que o presidente, na reunião, se referia à segurança pessoal de seus familiares, que cabe ao GSI (Gabinete Segurança Institucional), e não a policiais federais. A menção aos amigos, porém, complica ainda mais a linha de defesa de Bolsonaro no inquérito que apura se ele tentou interferir na PF, uma vez que o GSI não teria como se envolver na proteção de quem não seja da sua família.

De acordo com juristas ouvidos pelo EL PAÍS, o vídeo corrobora a tese de Moro de que houve intenção de intervir na corporação policial, e aponta para ao menos dois crimes: advocacia administrativa e prevaricação. O primeiro é um crime previsto no Código Penal, que é patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública. Já a prevaricação diz respeito a ações ou omissões de funcionário público para atender objetivo de terceiros.

“O vídeo traz uma fala bastante clara do presidente dizendo que não mediria esforços para interferir em estrutura governamental —no caso, a Polícia Federal— para proteger familiares e amigos. Isso corrobora a versão do ex-ministro Sérgio Moro”, diz Eloísa Machado, professora de direito constitucional na FGV Direito de São Paulo. “Não podemos esquecer que, de fato, o presidente promoveu mudança na Polícia Federal, indicando pessoa muito próxima da família e que depoimentos do inquérito confirmam também essa versão”, explica Machado. “O vídeo derruba a justificativa do Bolsonaro de que ele se referia à segurança do GSI, e não à PF. Ele fala expressamente em ‘foder amigos meus’, e amigo de presidente não tem segurança do GSI. Só pode ser a PF”, concorda Rafael Mafei, da USP.

Um jurista próximo à Procuradoria Geral da República, avalia que o vídeo é muito ruim do ponto de vista jurídico para o presidente Bolsonaro. “Ele demonstra muita preocupação. Ele quer o tempo todo puxar esse assunto. Ele avisa aos ministros o tempo todo que precisa deles. Aquela reunião foi para o Moro”, acredita. Ele destaca que o presidente falou que contava com “inteligência particular”, e que a PF não informava nada. “Não tinha nada a ver com segurança, ele criticou a PF. Mesmo não sendo assunto, ele falava, e mudava o assunto”, explica ele.

pressão sobre Moro ficou destacada em vários momentos da reunião. Em um deles, Bolsonaro disse que o ministro deveria se manifestar sobre a prisão de pessoas que furavam a quarentena para conter os contágios do novo coronavírus. “Tem que falar, pô! Vai ficar quieto até quando? Ou eu tenho que continuar me expondo? Tem que falar, botar pra fora, esculachar!”. Em outra ocasião, voltou ao tema da “interferência” e avisou seus ministros de que iria interferir em suas pastas se fosse preciso. Reclamou que a Polícia Federal não passava informações ao Planalto. “Eu tenho o poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção”. E prosseguiu: “Eu não posso ser surpreendido com notícias. Eu tenho a PF que não me dá informações. Eu tenho as... as inteligências das Forças Armadas que não tenho informações. ABIN tem os seus problemas, tenho algumas informações”.

Depois, em entrevista à Jovem Pan após a divulgação do vídeo, o presidente voltou a reforçar a ideia de que exigia de Moro espécie de proteção via PF. “O tempo todo vivendo sob tensão, possibilidade de busca e apreensão na casa de filho meu, onde provas seriam plantadas. Levantei isso, graças a Deus tenho amigos policiais civis e policiais militares do Rio de Janeiro, que isso tava sendo armado pra cima de mim”, disse Bolsonaro. “Moro, eu não quero que me blinde, mas você tem a missão de não deixar eu ser chantageado”, lembrou.

Efeito político e próximos passos

O conteúdo do vídeo agora será analisado pela Procuradoria Geral da República —que também terá e mãos uma série de depoimentos e as novas acusações feitas pelo ex-aliado de Bolsonaro Paulo Marinho. “Certamente esse vídeo ajuda a compor o acervo probatório indiciário de crimes”, diz Eloísa Machado. A pressão agora recai sobre Augusto Aras, uma vez que ele pode acusar formalmente o presidente de crime. “Com certeza há substância para abrir um pedido de afastamento. Se vai abrir ou não é outra coisa. Mas isto é muito mais que o Fiat Elba que afastou o presidente [Fernando] Collor e muito mais que a pedalada fiscal da presidenta Dilma [Rousseff]”, diz o jurista próximo à PGR. Machado, da FGV, concorda com o embasamento para destituição.. “São crimes comuns, que também geram afastamento e perda do cargo, caso aconteça a condenação”, conclui.

Para o advogado Marco Aurélio de Carvalho, o procurador-geral Augusto Aras, tem a obrigação de apontar o crime de prevaricação do presidente diante do conteúdo do vídeo, ou ele mesmo pode ser acusado de prevaricação. “Essa tentativa de interferência se enquadra plenamente no artigo 85 da Constituição Federal e é suficiente para dar ensejo, entre outras, a pedido de cassação do presidente”, diz o advogado Cristiano Vilela, da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo.

A grande pergunta é como Aras, indicado por Bolsonaro em setembro de 2019 como alguém “alinhado” ao Planalto, reagirá. Se decidir pela denúncia contra Bolsonaro, ela ainda precisará dos votos dois terços dos deputados para virar uma ação penal e, assim, afastar o presidente do Planalto. Para tentar prever o quanto de pressão o procurador-geral e o Congresso terão na matéria, uma variável é quanto de desgaste as imagens, cheias de palavrõs e vulgaridades, trarão para o apoio popular de Bolsonaro, já afetado pela crise do coronavírus. Rafael Mafei, da USP, é cético: “O vídeo alimenta a base de Bolsonaro”.

Em sua defesa, o presidente disse que considerou a divulgação do vídeo como positiva. “Até que foi boa. Cada um pense, interprete da maneira que quiser esse vídeo, mas é a maneira que eu tenho de ser. E vou continuar sendo assim porque antes da eleição eu era assim. Como militar eu era assim”, afirmou em entrevista à rádio Jovem Pan. Ainda tratou as revelações de Moro como falsas. “É mais um tiro n’água, mais uma farsa como tantas outras que eu acompanho em minha vida”.

O escritor autoexilado nos Estados Unidos e ideólogo do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, concordou com a ideia de as imagens mostram um presidente “autêntico”: “Ouvi dizer que o Moro e o Celso de Mello estavam escondendo um vídeo do Bolsonaro, para depois exibir e dizer: ‘Ah, vamos mostrar ao povo quem é o Bolsonaro’. Pois mostraram, Bolsonaro é o presidente que todos os brasileiros quiseram e querem. É o presidente que não suporta ver uma elite armada oprimindo um povo desarmado.”

Processo contra Weintraub e impeachment

Ao citar “povo desarmado”, Carvalho se referia ao trecho da reunião em que Bolsonaro falou abertamente que pretende armar a população. Um dos intuitos declarados foi o de intimidar prefeitos que decretaram quarentena durante a pandemia de coronavírus. "O que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui!”.

As imagens ainda revelaram o plano do ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) de se aproveitar da crise sanitária para alterar uma série de regras de proteção ambiental, mostram Damares Alves (Direitos Humanos) ameaçando governadores de prisão e escancaram a conduta do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que ameaçou autoridades e ministros do Supremo Tribunal Federal. “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”, disse Weintraub. O ministro da Educação é o que está mais próximo de se complicar por causa do vídeo. Na decisão que liberou a íntegra das imagens, Celso de Mello apontou “indício de crimes contra a honra” do Supremo.

No meio político, a reação foi imediata. A oposição, que não tem maioria no Congresso e ainda não convenceu o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a por em andamento um processo de impeachment, não poupou indignação: “Repleto de crimes, ameaças à democracia, quebras de decoro e de falta de ética para gerir uma nação. São inaptos, mas também são abjetos. Bolsonaro não pode continuar a frente da presidência da República! Tem que cair pelo bem do país”, escreveu o senador Randolfe Rodrigues (REDE).

A antiga líder do Governo no Congresso, a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), disse que o Ministério Público não pode mais segurar qualquer denúncia contra Bolsonaro. “As provas são cabais e podem embasar tanto um processo de impeachment quanto de interdição. Bolsonaro conseguiu dar munição aos dois. É um mito!”, ironizou.


El País: Brasil supera a Espanha e já é o quarto país em infectados no mundo

Já são mais de 15.000 mortos, 816 nas últimas 24 horas. País se aproxima do Reino Unido em número de infectados, com 233.142 neste sábado. País digere a queda do segundo ministro da Saúde

O Brasil chega a este sábado com uma cifra triste de 15.633 mortes confirmadas por coronavírus. Foram 816 mortes confirmadas somente nas últimas 24 horas, segundo o Ministério da Saúde. O Brasil já superou a Espanha e a Itália em número de pessoas infectadas, com 233.142 casos confirmados. O país fica atrás agora de Estados Unidos, Reino Unido (241.461), um país de quase 70 milhões de pessoas, contra os 210 milhões no Brasil, em seguida Rússia (272.043) e Estados Unidos com quase um milhão e meio de infectados.

Quase 90.000 se recuperam do vírus, mas as contaminações continuam a escalas cada vez maiores. O epicentro da pandemia no país, São Paulo, soma 61.183 infectados e 4.688 mortes, seguido por Ceará e Rio de Janeiro. Essa realidade se depara com a insistência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em se concentrar na agenda econômica, enquanto perde seu segundo ministro da Saúde em plena pandemia. Nelson Teich pediu demissão por não aceitar a pressão de recomendar a cloroquina no combate à covid-19 — assim como seu antecessor, Luiz Henrique Mandetta (DEM-GO), um mês antes.

Eis um embate para o próximo nome que assumir a pasta. Até o momento não há estudos que comprovem a eficácia do medicamento no tratamento da covid-19. Duas grandes pesquisas feitas recentemente nos Estados Unidos com milhares de pacientes, e publicadas em respeitadas revistas científicas internacionais —o que significa que foram revisadas por outros cientistas—, mostraram que o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina não diminuiu a mortalidade por covid-19.

Enquanto isso, o Exército aumentou em 80 vezes a produção de cloroquina., conforme contou o EL PAÍS. O Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx) produziu 1,2 milhão de comprimidos do final de fevereiro até meados de abril. Até o começo da pandemia, a média era de 250.000 comprimidos a cada dois anos, segundo a assessoria de imprensa do Exército. O fármaco atende a quem sofre de lúpus, malária e, agora, segundo o Governo, pacientes com covid-19, apesar das negativas médicas. "A capacidade de produção pode ser de até 1 milhão de comprimidos por semana”, diz a instituição, que produz a droga sob encomenda do Ministério da Saúde.

O ex-ministro Mandetta chegou a dizer em entrevista ao Correio Braziliense que Bolsonaro quer “empurrar” a cloroquina para o tratamento de covid-19 para que as pessoas se sintam confiantes e reativem a economia. “Ele quer um medicamento para que as pessoas sintam confiança, para retomar a economia. A pessoa fica na sua tranquilidade achando que o medicamento resolve o problema. Como é barato e o Brasil produz, por ser medicamento da malária… Só que malária costuma dar em mais jovens”, afirmou.

O próximo à frente da pasta viverá essas pressões, assim como as cobranças pelo fim do isolamento social, outra bandeira de Bolsonaro durante a pandemia. Acertar um plano com o Brasil todo, que case cuidado com a saúde e com a economia é contar com o aceite geral da sociedade de soluções alternativas ao consenso mundial do controle da covid-19. A Organização Mundial da Saúde e a comunidade médica e científica advertem que é o único caminho para frear o ritmo de contágio neste momento agudo. Não se sabe o que acontecerá com o país conduzido com Bolsonaro. É um momento difícil no Brasil .


Eliane Brum: O nojo

É isso que diremos aos nossos filhos, que vamos esperar passivamente Bolsonaro nos matar a todos?

A menina tem pouco mais de dois anos. Está trancada em casa com os pais há dois meses devido à pandemia de covid-19. Sente falta dos amigos da creche, sente falta da sorveteria, sente falta da rua. Mas este não é o problema da menina. Nem é o problema de seus pais. O problema é que a menina tem medo. E não do vírus. Mas daquele que ela chama de “o homem mau”. Tem dificuldade de dormir, quer ficar agarrada à mãe, acorda assustada à noite. A menina tem pesadelos com “o homem mau”. E, quando desperta, “o homem mau” continua lá.

O “homem mau” é Jair Bolsonaro. De todo o medo daqueles que estão ao seu redor, a menina entendeu que o vírus vai ficar do lado de fora, se permanecerem em casa. Mas o homem mau não tem limites. Ele abusa. Invade. Viola. Mata. Os pais criaram uma história, a de que as árvores cresceram e cobriram o prédio, e assim o homem mau não enxerga a casa deles e, como não enxerga, não pode lhes fazer mal. Ela olha com seus olhos imensos, quer acreditar, mas já compreendeu que nem mesmo as árvores podem protegê-la, até porque descobriu que o homem mau também derruba a floresta. Há um novo vilão, e ele não vem dos contos de fadas ou dos filmes da Pixar.

Como ser uma criança e lidar com um vilão que é real, se nem os adultos parecem saber como se defender dele, se nesse conto da realidade ninguém parece saber como parar o vilão real? Se essa história parece não ter outro final que não seja a morte? A menina ainda não tem recursos para nomear o horror de estar num mundo a mercê de um vilão, e também o horror de perceber que nem seus pais, que nessa idade são quase todo o seu universo, podem protegê-la dele. Então, só balbucia: “o homem mau”, “o homem mau”, “o homem mau”. E não dorme.

Eu escuto muito. É minha profissão escutar muito e escutar pessoas de todas as cores, origens e classes sociais. A criança expõe, com os poucos recursos de que dispõe aos dois anos, um pânico que vai muito além dela e se espalha por todas as faixas etárias. Se o mundo vive um momento especialíssimo, o de uma pandemia global que está matando uma parte da espécie humana, nós, no Brasil, estamos sendo violentados dia após dia pela perversão do homem no poder em meio à expansão exponencial de um vírus que pode nos matar e já começou a matar pessoas que amamos. Tenho escutado gente muito diferente entre si afirmando que passou a ter reações físicas diante da imagem de Bolsonaro. Ou da voz. Ou mesmo se outra pessoa pronuncia o nome do presidente do Brasil.

Também acontece comigo. Comecei a sentir náusea diante de qualquer alusão a Bolsonaro. Não o enjoo de quando como um alimento que me faz mal. Mas o enjoo do asco. Sou possuída pelo nojo. Há mulheres que têm essa reação diante do estuprador, quando por alguma razão são obrigadas a vê-lo novamente. Outras pessoas manifestam reação semelhante no convívio com o sequestrador. Outras na presença do torturador. Bolsonaro é tudo isso. Ele tem nos violentado, sequestrado nossa sanidade, nos ameaçado com sua irresponsabilidade deliberada e também nos torturado todos os dias, usando para isso a máquina do Estado.

Somos um país de reféns, e o sequestrador está matando. Ele mata quando boicota as ações de combate à covid-19. Ele mata quando dissemina mentiras sobre remédios sem comprovação científica de eficácia. Ele mata quando contradiz a ciência. Ele mata quando diz que a covid-19 é um “resfriadinho”. Ele mata quando afirma que “o vírus não é tudo isso”. Ele mata quando forja a falsa oposição entre se proteger da doença e “salvar” a economia. E ele pode estar matando literalmente quando vai às ruas estimular outras pessoas a ir para as ruas, quando espirra e aperta mãos com seus dedos lambuzados de ranho, quando manipula celulares alheios, quando faz selfies com seus seguidores, quando pega crianças no colo. Ele mata e tenta dar um golpe quando faz tudo isso em manifestações golpistas contra a democracia, contra o Congresso e contra o Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro mata quando, diante de milhares de brasileiros mortos por covid-19, ele zomba, tripudia e debocha: “E daí?”. Como diz Emicida, “eleja um assassino e espere um genocídio”.

Está acontecendo agora. Neste momento. É grande a possibilidade de que, no futuro, Bolsonaro seja julgado pelo Tribunal Penal Internacional e seja condenado por crimes contra a humanidade, como aconteceu com outros perversos antes dele. Pelo menos duas denúncias já alcançaram a corte. Mas, quando isso acontecer, será muito tarde. Poderemos estar todos mortos.

O que vamos fazer agora, já? Ou vamos deixar “o homem mau” nos matar a todos? O que, afinal, vamos dizer às crianças que esperam ser protegidas por nós?

Tenho nojo de Bolsonaro. Cada palavra que contorce sua face ao sair da boca é uma palavra violenta. O homem cospe cadáveres. Seus três filhos mais velhos são suas cópias, numeradas, como ele mesmo diz (zeroum, zerodois, zerotrês...), comprovadamente estúpidos como o pai e também perversos, pelo menos um deles claramente rondando a psicopatia. Precisei escrever um livro para compreender como foi possível eleger o pior humano para a presidência do Brasil. E não paro de seguir tentando compreender. Mas, para além de compreender, é preciso impedir. Nossa emergência é barrar Bolsonaro, porque a cada segundo a pilha de cadáveres aumenta. Não são números “os inumeráveis”, são pessoas que alguém amou.

Temos informação, pesquisa e capacidade de interpretação dos fatos para concluir que Bolsonaro não é uma anomalia, no sentido de que só existe ele. Se fosse assim, seria bem mais fácil. Bolsonaro representa uma parcela dos brasileiros. Não teria sido eleito não fosse esse núcleo que se identifica com ele e o reconhece como espelho. Segundo as pesquisas, Bolsonaro é a expressão de quase um terço dos brasileiros, que o apoiam mesmo em sua política de morte —ou provavelmente o apoiam exatamente pela sua política de morte. Teremos que nos debruçar por muito tempo e com muito afinco para compreender como nos tornamos um país capaz de produzir um tipo de humano tão desprezível e tão violento. Já temos bastante material de pesquisa para começar.

Sabemos também que não é apenas o Brasil. O mundo já produzia pessoas capazes de urrar de prazer diante de execuções de outros seres humanos ou diante de pessoas sendo devoradas por animais na arena antes de o Brasil existir. A história é pródiga em mostrar a massa gritando e pedindo mais sangue, mais dor, mais violência. Os horrores do século 20, como o nazismo, tão em evidência no momento, estão bem próximos de nós. Mas era possível desejar que talvez pudéssemos ter chegado ao século 21 com mais capacidade de lidar com nossa humana monstruosidade, mais aptos a nos proteger de personagens como Bolsonaro.

Por uma série de razões, já presentes no fato de termos sido o último país das Américas a abolir a escravidão negra, a sociedade brasileira tem suas deformações particulares para lidar. Como, por exemplo, a que nos faz um dos países campeões em linchamentos. Uma parcela dos brasileiros gosta de derramar o sangue dos outros, goza com a dor dos outros, traveste seu horror pessoal em moralidade. Amarra uma bandeira do Brasil no pescoço e vai defecar pela boca em praça pública, ameaçando todo o já desorganizado e insuficiente combate ao coronavírus e, portanto, condenando os mais desprotegidos à morte. É o pessoal capaz de buzinar na frente de hospitais, onde pessoas agonizam, e trancar ambulâncias no trânsito. Nós os conhecemos, seguidamente eles fazem parte da família.

Nenhum deles, porém, tinha chegado à presidência. Sempre parava no Congresso. E, então, esse limite foi rompido. O limite em que um Bolsonaro deixa de ser o pária do Congresso, o bufão que garantia sua reeleição como deputado mas não tinha nenhuma influência real, para se converter no presidente do Brasil. E mais: no “mito”. Ele assume o poder e, como anunciou que faria, converte o Governo numa máquina de produção de morte.

Sabemos que Bolsonaro não conquistou essa façanha sozinho. Que ele foi apoiado por parte das elites nacionais, em todas as áreas. Muitos já compreenderam o que fizeram e o abandonaram por medo de contaminar sua biografia com o sangue produzido em quantidades cada vez maiores por Bolsonaro. Hoje quase só restaram os piratas do empresariado, os generais com nostalgia de ditadura, os predadores do agronegócio e os evangélicos de mercado. Não é pouco o que ainda restou. Mas é menos do que já foi. Quem ainda tem o que perder, como Sergio Moro —herói decaído, mas não tanto que não tenha esperança de juntar os cacos—, está debandando. Do sangue, afinal, ninguém escapa. E há cada vez mais sangue nesse governo.

Já escrevi bastante sobre isso, antes e depois da eleição. Os artigos estão disponíveis para quem quiser lê-los. Agora, porém, preciso repetir que Bolsonaro está nos matando. É imperativo agir no modo emergência. Lutar contra Bolsonaro já não é apenas lutar por bandeiras essenciais como justiça social, igualdade de raça e de gênero, equidade na distribuição da renda, taxação das grandes fortunas, preservação da Amazônia e de seus povos. Passamos a um estágio muito mais agudo. Lutamos hoje para nos manter vivos, porque Bolsonaro boicota as ações contra o coronavírus. Bolsonaro não é coveiro, categoria corajosa e digna de brasileiros. Bolsonaro é assassino.

Não podemos lidar com um perverso como se o que ele faz fosse do jogo democrático. Nossa pergunta é clara: como vamos impedir Bolsonaro de usar a máquina do Estado para continuar a matar?

Nossos vizinhos temem por suas fronteiras. O Paraguai já constatou que a maioria de seus casos estão vindo do Brasil. No mundo inteiro o Brasil está se tornando um pária dominado por um pária. Brasileiros já são olhados com desconfiança. Governados por um maníaco, vivemos uma explosão no crescimento da contaminação por covid-19 e ninguém quer o vírus voltando a entrar pela sua porta depois de tanto esforço para tentar controlá-lo. O planeta já começa a enxergar uma tarja de risco biológico na nossa testa. É isso, sim, que pode prejudicar a economia por muito mais tempo.

Prestem atenção em quem está morrendo mais. São os negros, são os pobres. São os presos trancados em viveiros de vírus, numa violação de direitos inacreditável até para os padrões medievais do Brasil. Quem está morrendo mais são aqueles que desde a campanha Bolsonaro trata como matáveis —ou como coisas. O vírus mata cada vez mais nas aldeias indígenas e vai se espalhando pela floresta amazônica. Quando os invasores europeus chegaram, os vírus e as bactérias que trouxeram com eles exterminaram 95% da população indígena entre os séculos 16 e 17. Há chance de que o novo coronavírus produza um genocídio dessa dimensão caso não exista um movimento global para impedi-lo.

Bolsonaro já demonstrou que apreciaria se os indígenas desaparecessem ou se tornassem outra coisa. “Humanos como nós”, nas suas palavras. Humanos vendedores e arrendadores de terra, humanos mineradores, humanos plantadores de soja e de cascos de boi, humanos amantes de hidrelétricas, de ferrovias e de rodovias. Humanos que se descolam da natureza e a convertem em mercadoria.

São os povos indígenas que colocam literalmente seus corpos diante da destruição da Amazônia e de outros biomas. Mas parte dos apoiadores de Bolsonaro, que hoje também lideram campanhas de “abertura do comércio” nas cidades amazônicas, tem matado os indígenas (e também camponeses e quilombolas) à bala. O vírus pode completar o extermínio de uma forma muito mais rápida e numa escala muito maior. Basta fazer exatamente o que Bolsonaro está fazendo: nada para protegê-los e tudo para estimular a ruptura das regras sanitárias da Organização Mundial da Saúde; nada para protegê-los e tudo para estimular a invasão de suas terras por garimpeiros e grileiros. O que está em curso é exatamente isso: um genocídio.

E também ecocídio, porque na Amazônia esses entes não andam separados. Como sabemos, os destruidores da floresta não fazem home office. O desmatamento avança aceleradamente, aproveitando a oportunidade da pandemia. Os alertas cresceram 64% em abril, depois de já terem batido recordes no início do ano. Bolsonaro demitiu os chefes de fiscalização do Ibama que estavam tentando impedir o massacre da floresta. Está militarizando tanto a saúde, ao colocar militares em postos importantes do ministério, quanto a proteção do meio ambiente, ao subordinar o Ibama e o ICMBio ao Exército nas ações de fiscalização. Em toda a região, camponeses, ribeirinhos e indígenas denunciam que os caminhões cheios de árvores recém derrubadas não param de atravessar as estradas vindos da floresta. Eles gritam. Mas quem os escuta?

Bolsonaro está transformando (também) a Amazônia num gigantesco cemitério. Ele é tão perverso que usa a pandemia para matar a floresta e tudo o que é vivo. O presidente do Brasil pode se tornar o primeiro vilão da história que, sem poder nuclear, tem grande poder de destruição. Sem floresta amazônica não há como controlar o superaquecimento global. Sem controlar o superaquecimento global o futuro será hostil para a espécie humana. Se a Amazônia chegar ao ponto de não retorno, do qual se aproxima velozmente, seu território poderá se tornar um disseminador de vírus nos próximos anos. Neste momento, por mais que os demais países promovam ações de controle e fechem suas fronteiras, sem conter o novo coronavírus num país com 210 milhões de habitantes será muito difícil controlar a pandemia no planeta.

É disso que se trata. É real. Aqueles que lavam as mãos, como disse o ator Lima Duarte, “o fazem numa bacia de sangue”. Lima Duarte fez essa declaração após o suicídio de seu colega Flávio Migliaccio, que tirou a própria vida dolorosamente decepcionado com o Brasil e com os brasileiros. Eu iria ainda mais adiante que Lima Duarte. Quem segue com Bolsonaro não está apenas lavando as mãos numa bacia de sangue. Está matando junto com ele. Uma das perversidades do perverso é produzir cúmplices. E é isso que Bolsonaro faz. Não é possível testemunhar o que está acontecendo e seguir com o humano monstro sem se tornar o humano monstro. Não haverá sabonete, álcool gel, desinfetante capaz de apagar esse sangue das mãos dos assassinos, estejam eles na Fiesp, no Congresso ou no Theatro Municipal.

O que vamos dizer à criança de dois anos que denuncia a nossa impotência em protegê-la quando ela pede socorro contra “o homem mau”?

Neste momento, seguidores de Bolsonaro se aglomeram em Brasília. Alegam que estão praticando a desobediência civil. Como tudo o que tocam vira mentira, todas as palavras saem estupradas depois de passar por sua boca, o que fazem nada tem a ver com desobediência civil, conceito caro a tantos movimentos que tornaram o mundo mais justo e igualitário. O que exercitam diariamente é a mais vil obediência ao maníaco do Planalto e também aos seus próprios instintos de morte, ao seu gozo por sangue e pela dor dos outros. O que treinam cotidianamente é a obediência ao seu próprio sadismo e desejo de violência que Bolsonaro libertou pelo exemplo e pela impunidade que desfrutou. Tentam encobrir seus piores instintos com a bandeira do Brasil, da qual também se apropriaram como se o país pertencesse apenas a quem mata o Brasil.

Desobediência civil hoje é ficar em casa apesar do maníaco que manda sair. Desobediência civil é cuidar de todos os outros apesar do perverso que diz “e daí?”. Desobediência civil é desobedecer ao projeto de genocida que está no poder. E para isso é necessário usar os instrumentos de nossa cada vez mais ferida democracia para tirá-lo de lá e impedir que continue matando. É isso ou dizer para a criança de dois anos que somos covardes demais para protegê-la e, depois da palavra o gesto, abrir a porta da casa para a morte.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


El País: Brasil perde status de democracia liberal perante o mundo

Instituto V-Dem diz que país é mera democracia eleitoral. Ataque orquestrados a jornalistas, enfermeiros e cientistas são a ponta do iceberg. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade

Nesta semana, o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, apresentou um dado revelador: no mundo, 40% das postagens numa grande plataforma social sobre a covid-19 eram realizadas por robôs. Se o dado em si é surpreendente, a pergunta que precisa ser feita é óbvia: a quem serve tal esforço? Por qual motivo um movimento disfarçado de indivíduos anônimos ― e portanto de massa ― buscaria influenciar a opinião pública sobre uma pandemia que matou nos EUA mais que a Guerra do Vietnã?

E por qual motivo líderes de nações supostamente democráticas se lançam, ao mesmo tempo, em ataques explícitos ou camuflados de “espontâneos” contra a imprensa, um eventual antídoto à proliferação de desinformação? No domingo, em pleno dia internacional da liberdade de expressão, jornalistas foram atacados em Brasília. A opção da presidência foi por minimizar os eventos. Dias depois, foi a vez do próprio presidente Jair Bolsonaro revelar sua índole mais íntima ao mandar um repórter “calar a boca” e ofender a imprensa.

Os jornalistas são apenas parte de uma nova rotina do poder. Nesta terça, Bolsonaro gritou duas vezes com jornalistas mandando um “cala a boca”, algo que só a ditadura viu no Brasil. Mas os relatos se espalham pelo país sobre como enfermeiras e médicos estão sendo alvos de ataques de apoiadores do Governo. Não faltam agressões morais contra professores, artistas, intelectuais ou cientistas, todos eles vistos como potenciais ameaças. Enquanto isso, nas redes sociais, milhares de robôs e apoiadores autênticos de um movimento violento transformam plataformas em trincheiras da mentira.

Nos discursos, quase nunca de improviso, Deus e ódio se misturam nas mesmas frases. Judas é evocado para atacar antigos pilares do movimento. A religião passa a legitimar abusos de direitos humanos. Pede-se orações para que um líder cuja promessa era a de exterminar o contraditório. Todos se apresentam como pessoas de bem. Todos se apresentam como patriotas, únicos autorizados a vestir as cores nacionais.

Nas ruas, nas praças, no mundo virtual ou na violência diária, todos esses personagens têm algo em comum: o desprezo pela democracia. O ruído causado por esse grupo, instigado por seus líderes, certamente é maior que seu número real de apoiadores. Mas ainda assim tal massa é relevante no cenário em que vivemos. Uma massa que mistura classes sociais sob uma única ideologia, com um comportamento fanático capaz criar uma surdez crônica.

Instrumentalizada, ela cumpre justamente um objetivo, online e offline: o de dar pinceladas de legitimidade popular a um movimento claramente autoritário. “Foi uma demonstração espontânea da democracia”, afirmou o presidente, numa referência aos recentes atos. Nada disso é novo. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade.

Hannah Arendt aponta como, anos antes da chegada ao poder de tais forças na Europa, sociedades de classes foram dissolvidas em massas. Já os partidos foram destruídos e substituídos apenas por ideologias. Em Brasília neste fim de semana, as caravanas do autoritarismo eram a distopia de um sonho de uma cidade erguida para ser a capital de um novo século, democrático. Nas sombras dos traços do arquiteto estavam os reflexos de uma parcela da sociedade que jamais viu a democracia com entusiasmo, que sempre desconfiou da ideia do pluralismo, que jamais entendeu a noção do público e que, com seu egoísmo insultante, nutre a convicção de que as instituições são uma fraude.

Ameaçado pelo vírus e por uma recessão brutal, o Governo mobiliza suas tropas cegas pela ignorância para se defender, aprofundar seu desprezo pela verdade e levar um país ao limite de sua coesão nacional. Todos os sinais apontam na mesma direção: a democracia brasileira está ameaçada e seu desmonte ocorre em plena luz do dia. Em cada desafio disparado a um dos poderes, em cada gesto de violência, em cada mentira disseminada e em cada caixão enterrado.

O Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, um dos maiores bancos de dados sobre democracias no mundo, já deixou de classificar o Brasil desde o começo do ano como uma "democracia liberal”. Agora, o país é uma mera democracia eleitoral.

O instituto produz e coleta informações sobre países entre 1789 a 2019 e conclui que, nos últimos dez anos, a deterioração da democracia no Brasil só não foi maior que a realidade verificada na Hungria, Turquia, Polônia e Sérvia. Segundo Staffan Lindberg, um dos autores do informe e diretor do instituto, tal tendência ganhou uma nova dimensão mais recentemente. “O Brasil foi um dos países no mundo que registrou a maior queda nos índices de democracia nos últimos três anos”, alertou.

Na ONU, gabinetes da alta cúpula da entidade são tomados por preocupações em terno do discurso anti-democrático e o encolhimento real do espaço civil. Pela primeira vez em décadas, o país é denunciado nas instâncias internacionais, inclusive por flertar com o risco de genocídio.

Em outras palavras: o direito inalienável de viver numa democracia plena não está garantido. O Centro para o Futuro das Democracias da Universidade de Cambridge foi categórico num recente informe sobre a situação das democracias no mundo: “Para o Brasil, ao que parece, o futuro foi adiado mais uma vez”.

Enquanto essa eterna promessa é uma vez mais torturada, a fronteira entre massa hipnotizada e dos robôs programados para disseminar desinformação parece se desfazer à medida que a crise institucional e de valores se aprofunda. No mundo virtual ou numa praça ensolarada, ambos tem a missão de disseminar um vírus mortal: a pandemia do ódio, capaz de aleijar uma democracia. Como troféu, seu mito governará sobre esqueletos, mordaças e carcaças. Ainda assim, com a fumaça negra desonrando o horizonte do Planalto Central, irá declarar solenemente: “e daí?”.


Sergio Leo: Entre a Casa Branca e a casa arrasada, a diplomacia do tiro no pé

O ministro Ernesto Araújo, que fez analogia entre isolamento social e campos de concentração, planta obstáculos sérios ao trabalho de seus sucessores. Para alguns temas, a ordem de Brasília é consultar o Departamento de Estado americano, e acompanhar Washington

Impassível, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, postou-se ao lado do Presidente da República no pronunciamento que se seguiu à queda do ministro Sérgio Moro, um dos aliados que deram corpo à vitória eleitoral de Jair Bolsonaro. Os desencontros sobre os rumos da economia também ameaçam a imagem ― e a permanência ― de outro avalista eleitoral, Paulo Guedes, da Economia; mas Araújo continua com carta branca para destroçar as tradições diplomáticas brasileiras. E não só isso.

Alguns especialistas chegam a duvidar que o Governo Bolsonaro tenha uma política externa clara. Mas Araújo tem: seu objetivo, manifestado publicamente, é destruir condições que permitiram ao Brasil ter uma diplomacia para chamar de sua, na defesa do interesse nacional. Araújo protagoniza uma suicida diplomacia da “arminha”, de gangue, quase inteiramente voltada a agradar um público interno radicalizado que se deleita em imitar o gesto belicista de Jair Bolsonaro.

Como guia, essa política defende uma aliança acrítica com o líder do mundo cristão ocidental, os Estados Unidos, e, contraditoriamente, com governos nacionalistas radicais pelo mundo. É a política externa do tiro no pé: ela procura minimizar, obstruir ou simplesmente eliminar canais que permitem a um país como o Brasil exercer influência própria sobre a região sul-americana e no mundo.

Além de acordos de livre-comércio, que o ministério da Economia hoje comanda, deixando o Itamaraty em segundo plano, a única concessão à ação multilateral do Brasil já feita por Bolsonaro foi o elogio à atuação das forças armadas brasileiras nas missões de paz na ONU, das quais participaram alguns dos generais de seu Governo.

Em seu último ato histriônico, um artigo no qual acusou o esforço contra o novo coronavírus de abrir espaço a um suposto “comunavírus”, Araújo, a pretexto de analisar um artigo do filósofo Slavoj Zizek, argumentou que submeter políticas nacionais às orientações da OMS seria “apenas o primeiro passo na construção da solidariedade comunista planetária”. Na visão do chanceler brasileiro, “globalismo é o novo caminho do comunismo”, e a batalha mundial contra a covid-19 seria uma oportunidade “para acelerar o “projeto globalista” contra o qual ele dirige os esforços da diplomacia nacional.

No artigo, que provocou espanto nos meios diplomáticos, Araújo descreve como agiria esse “projeto globalista” incompatível com a política externa do Brasil: “por meio do climatismo ou alarmismo climático, da ideologia de gênero, do racialismo ou reorganização da sociedade pelo princípio de raça [referencia às políticas de ação afirmativa, como cotas para negros], do antinacionalismo, do cientificismo (sic)”.

A falta de cuidado com as palavras, ao arrepio da prática diplomática, levaram até a uma censura pública do Comitê Judeu Americano, que exigiu do chanceler um pedido de desculpas por uma analogia, feita por ele no polêmico artigo, entre medidas de isolamento social e campos de concentração nazistas. Araújo não se desculpou; acusou as críticas de “injustas e equivocadas” e, enjeitando sua própria analogia, culpou Zizek por trazer à baila o tema dos campos de concentração.

Mais que folclórico, o projeto diplomático de Araújo rompe e contraria uma tradição de posicionar o Brasil como protagonista global, qualificado e interessado em reforçar a cooperação e negociação internacional. Ele contraria, por exemplo, manifestações como o comunicado do G-7 em favor de “coordenação global” para o combate à pandemia da covid-19; e, pior, provoca constrangimentos reais na diplomacia internacional.

O Brasil impôs veto, nos órgãos das Nações Unidas a referencias a expressões como “gênero”, nos documentos oficiais, e votou contra referências a promoção de educação sexual. Em uma dessas votações, segundo um membro da delegação brasileira em Genebra, um diplomata brasileiro foi abordado por um colega africano, com a queixa de que a posição do Brasil aumentava suas dificuldades em convencer políticos e membros do governo conservador em seu país da necessidade de apoiar na ONU políticas modernas de proteção às mulheres e à infância em matéria sexual.

Um dos mais ativos fundadores da Organização das Nações Unidas, que lhe dá o privilégio de ser o primeiro a discursar nas assembleias anuais da ONU, o Brasil hoje é alvo de chacota na organização, por manifestações como a do chanceler e acusações levantadas por figuras próximas a Bolsonaro, de que as Nações Unidas são uma peça no complô “globalista” contra o patriotismo e os princípios cristãos. A diplomacia bolsonarista boicota iniciativas da ONU, abertamente, para reforçar suas posições em política interna, desde sua guerra contra uma suposta “ideologia de gênero” até o desdém pelas políticas globais de direitos humanos.

Quando deixar a cadeira que ganhou graças à filiação às ideias paranoicas do ideólogo Olavo de Carvalho e à proximidade com Eduardo, o filho 03 do presidente, Araújo terá plantado obstáculos sérios ao trabalho de seus sucessores; seja ao ajudar a esvaziar instâncias internacionais de política externa como a ONU, a OMS ou o Mercosul, seja ao criar precedentes desmoralizadores para o Itamaraty em temas caros à tradição do país ― como o apego a soluções diplomáticas para conflitos, a oposição a ações unilaterais, o reforço de órgãos multilaterais para decisões que afetam a todos, ou a imagem do Brasil como um mediador confiável, capaz de propostas técnicas de qualidade.

Ele terá sido coadjuvante da política de Donald Trump na paralisação dos mecanismos da Organização Mundial do Comércio que atuam contra barreiras arbitrárias nas alfândegas; terá excluído o Brasil dos esforços conjuntos ― e eventualmente, de benefícios ― no combate à covid-19 patrocinados pela Organização Mundial da Saúde; e colaborado, em papel secundário, para esvaziar a integração dos países do Mercosul e enterrar iniciativas bem sucedidas de cooperação sul-americana em Defesa, comércio e outros aspectos supranacionais que afetam o futuro da região.

Com seus ataques aos acordos ambientais internacionais, terá contribuído, também, para tirar a legitimidade alcançada pelo Brasil nas discussões relevantes sobre o combate ao aquecimento global. E, ainda, para reforçar argumentos dos ecologistas e outros ativistas, na Europa, contra o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, um dos poucos resultados a apresentar da política externa de Jair Bolsonaro ― acordo que diplomatas experientes afirmam estar moribundo, não só pelo crescimento das pressões protecionistas no continente europeu, após a pandemia, como pelos atritos criados por Bolsonaro e Araújo com dois dos principais Governos do bloco, Alemanha e França.

Iniciativas multilaterais, como o projeto de integração de infraestrutura das Américas (IIRSA), impulsionada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento perderam destaque na pauta do Itamaraty “antiglobalista”. A obra mais significativa apoiada pelo Itamaraty, o corredor bioceânico que passará pelo Mato Grosso, está hoje abrigada sob a ProSul, uma iniciativa de articulação governamental entre governos à direita no espectro político, inaugurada pelos presidentes do Chile e da Colômbia e comunicada depois ao Governo brasileiro.

No que diz respeito ao BID, nos últimos meses, esteve mais empenhado em secundar os Estados Unidos na ação para substituir o representante da Venezuela no banco, demitindo o indicado por Nicolás Maduro e nomeando um escolhido pelo autoproclamado presidente Juan Guaidó.

papel subordinado às determinações da diplomacia de Donald Trump, aliás, é uma marca que Araújo conseguiu impor mundialmente aos diplomatas brasileiros. Funcionários graduados do Itamaraty ― falando anonimamente, por temor de represálias ― revelam que, em questões relativas ao Oriente Médio nas quais não se tem uma posição clara do Brasil, a ordem de Brasília é consultar o Departamento de Estado americano, e acompanhar Washington.

Nos Governos que assumiram após o fracasso do regime militar (regime, este, que deixou o país com hiperinflação, crise fiscal, dívida externa impagável, corrupção e ineficiência no setor público e miséria com violências nas grandes cidades), a política externa teve mudanças de foco ou de ênfase, mas não de substância. E a ação diplomática nas instâncias internacionais foi usada para resolver problemas e apontar soluções, muitas vezes buscando protagonismo.

Com José Sarney, o projeto que resultou no Mercosul desarmou desconfianças entre os militares de Brasil e Argentina, e, no governo seguinte, permitiu uma imprevista cooperação em matéria nuclear. Com Collor, a concretização do mercado comum permitiu superar resistências dos setores industriais nos dois países e derrubar barreiras ao comércio que alimentavam ineficiência dos parque produtivos da região.

No Governo Fernando Henrique Cardoso, o ministro da Saúde José Serra obteve vitórias na OMC e na OMS que facilitaram a produção e comercialização de medicamentos genéricos. No Governo Lula, apesar das críticas de opositores e veteranos diplomatas, houve uma dose de pragmatismo que sepultou iniciativas na Venezuela, Bolívia e outros vizinhos para caracterizar o Brasil como uma espécie de potência “subimperialista” beneficiada no comércio e na infraestrutura; e gerou-se até um insuspeito acordo Brasil-Estados Unidos, com George Bush do lado americano, em torno da popularização do etanol combustível ― boicotado pela Venezuela de Hugo Chávez.

Enquanto o Governo FHC argumentava que o Brasil, pela falta de recursos de poder (força militar e econômica, especialmente), deveria escolher iniciativas internacionais de seu interesse, já existentes, para aliar-se a elas, o Governo Lula, em sua “diplomacia ativa e altiva” avaliou que poderia influir na própria agenda global, o que gerou iniciativas criticadas como o esforço por um acordo nuclear com o Irã, mas forte influência nos debates globais e relativo êxito em alguns momentos, como na formação do G-20 da OMC, dedicado a defender interesses dos países emergentes, além do convite para participar de outro G-20, o político, que reúne chefes de Estados ricos e emergentes para discutir saídas conjuntas para temas globais.

Há um consenso, entre os analistas, de que o Governo Bolsonaro, ao hostilizar a China, França e outras potências, atacar os organismos multilaterais e orientar declarações de autoridades para objetivos de mobilização de sua base mais radical, comprometeu um esforço de décadas para dotar o Brasil do chamado poder brando, ou “soft power”, que permite a um país alcançar resultados usando recursos de persuasão e convencimento pelo exemplo.

O criador do conceito de soft powerJoseph Nye Jr., diz que o poder brando “pode parecer menos arriscado que o poder econômico ou o poder militar, mas, em geral, é mais difícil de usar, fácil de perder e difícil de restabelecer”. É fácil imaginar a influência da política “antiglobalista”, subordinada a iniciativas de parceiros ideológicos, especialmente os Estados Unidos de Donald Trump.

É urgente a necessidade de tirar o chanceler paranoico do comando da diplomacia. A pandemia levanta o risco de aumento do protecionismo e de decisões unilaterais por parte das grandes potências, e o crescimento da influência da China, primeiro país a levantar-se após o choque da quarentena, provocará respostas ainda imprevisíveis por parte dos outros grandes atores globais.

Nos próximos anos, teremos um debate em torno das estratégias para lidar com novas ameaças à saúde mundial, com a recuperação da economia e com a reorganização das cadeias globais de comércio e serviços, em meio ao aquecimento global e o aumento da influência da Ásia nos arranjos globais. O Brasil já teve papel importante dessas discussões, e, hoje, é mero espectador. Com a permanência de Ernesto Araújo ou algum equivalente genérico, corre risco pior, o de assistir a tudo como o inconveniente no fundo da sala, cujas manifestações só perturbam quem está levando a sério as negociações para enfrentar problemas que afetam a todos.

Sergio Leo é um jornalista e escritor brasileiro, especialista em relações internacionais


El País: O suicídio de Hitler e os 75 anos do tiro mais importante da Segunda Guerra Mundial

Morte do líder nazista em 30 de abril de 1945, confinado no bunker da Chancelaria de Berlim, significou na prática o fim do III Reich e permitiu encerrar o conflito na Europa

Jacinto Antón, do El País

Ninguém parece ter ouvido, naquele 30 de abril de 1945, pouco antes das 16h, o tiro mais importante da Segunda Guerra Mundial. Mas quando seus capangas abriram precavidamente a porta de seu apartamento para dar uma olhada, Hitler jazia em um sofá, morto com um buraco do tamanho de uma moeda pequena na têmpora direita. Por sua face corria um fio de sangue que tinha formado no tapete um charco das dimensões de um prato. Uma das mãos do líder nazista descansava sobre seu joelho com a palma virada para cima, e a outra pendia inerte. Junto ao pé direito de Hitler havia uma pistola Walther calibre 7,65 mm, a sua, com a qual disparou contra si mesmo, e ao lado do pé esquerdo outra, do mesmo modelo, mas de calibre 6,35 mm, sem usar. Hitler vestia a túnica do seu uniforme, uma camisa branca com gravata preta e calças pretas. No mesmo sofá estava sentada, também morta, envenenada com cianureto, sua esposa desde a véspera, Eva Braun, com as pernas encolhidas e os lábios apertados. O quarto tinha um intenso cheiro de pólvora. A notícia correu rapidamente pelo bunker da Chancelaria, de SS para SS: “Der Chef ist tot”, o Chefe está morto.

Tumba silenciada em Berlim

Excetuando rápidas saídas, Hitler estava encerrado no claustrofóbico recinto subterrâneo desde 15 de janeiro daquele ano, quando deixou seu quartel-general do oeste, o Adlehorst, em Ziegenberg, depois da catastrófica ofensiva nas Ardenas. O líder nazista tinha então apanhado seu trem pessoal para se dirigir a Berlim, de onde, como algum engraçadinho comentou, seria mais prático comandar a guerra, pois em breve seria possível se deslocar de lá tanto para a frente ocidental como para a oriental… de metrô. Hitler chegou de noite à sua capital, com as cortinas abaixadas e se dirigiu discretamente de carro —o ambiente não estava para banhos de massas— à Chancelaria do Reich, em meio a ruas desérticas cheias de ruínas, para se enclausurar definitivamente em seu bunker, uma labiríntica construção de dois andares situada sob o jardim do complexo, a suficiente profundidade e destinada originariamente a servir de refúgio antiaéreo.

O desconfinamento de Hitler três meses depois, pela via do suicídio, que completa 75 anos nesta quinta-feira, significou na prática o fim do seu regime —embora oficialmente o III Reich tenha continuado existindo, com seu designado sucessor, o almirante Doenitz, à frente— e abriu as portas à rendição da Alemanha em 8 de maio e ao fim da guerra na Europa. Nenhuma das duas coisas era possível sem que Hitler saísse de cena. Ele sabia disso fazia bastante tempo, e seu empenho em se aferrar ao poder a todo custo, com a luta já perdida, arrastando toda a Alemanha para uma última orgia de morte e destruição, é a demonstração final de seu caráter megalomaníaco e desumano. Que Hitler foi uma pessoa má não é novidade alguma, mas as alturas de perversidade que o líder nazista alcançou em sua última etapa são impressionantes.

Hitler não só demonstrou uma absoluta insensibilidade por seu próprio povo, prolongado seus sofrimentos enquanto pôde e tratando de levá-lo à aniquilação absoluta, como também atribuiu a derrota aos próprios alemães e os considerou indignos dele, e de sobreviver. Não haveria de se mostrar mais caridoso, certamente, com suas vítimas: em seu testamento —ditado na noite de 29 de abril a sua secretária, Traudl Junge—, uma autojustificação e uma tentativa de projetar seu ódio além de sua própria vida, não há nenhum vislumbre de arrependimento, reconhecimento de culpa ou compaixão, apenas uma reafirmação de todo o seu programa de violência e aversão, e até um presunçoso alarde de genocídio (no documento há uma clara alusão à Solução Final) que é de uma vilania repugnante. A única coisa boa que se pode dizer de Hitler é que naquele 30 de abril, com seu disparo, liberou o mundo de um ser infame.

No começo de 1945, nem a ofensiva das Ardenas nem os esforços por atirar mais carne à guerra através da Volkssturm —os soldados recrutados entre os muito idosos ou muito jovens para combaterem (morreram inutilmente mais de 175.000 membros dessas unidades)— tinham servido para reverter a situação de derrota em todas as frentes. Em quatro meses do ano anterior as forças armadas alemãs tinham perdido mais de um milhão de homens, a guerra aérea era quase unilateral, os submarinos já não podiam fazer nada… Claramente o fim se aproximava. Mas Hitler continuava confiando irracionalmente em que algo aconteceria. Por outro lado, no fundo estava consciente de que para ele não havia nenhuma saída. Em seu ideário não cabia a rendição, que equivalia a repetir a “punhalada pelas costas” de 1918. Toda sua carreira política tinha sido encaminhada para que não houvesse jamais outra capitulação “covarde”. Além disso, tinha consciência —como todos do seu entorno, inclusive, como se viu, Goering e Himmler— de que sua própria pessoa era o obstáculo para qualquer possível saída negociada da guerra. Tudo o que restava, como salienta Ian Kershaw em sua monumental e canônica biografia (Hitler – Um perfil do poder, Jorge Zahar Editor, 1993), era seu posto na história como um herói alemão derrubado pela fragilidade e a traição. Sabia também que os Aliados não o tratariam com flores caso se rendesse. Esperava-lhe uma forca ou algo pior, que o aterrorizava: que os soviéticos o exibissem, prisioneiro e humilhado, como um monstro de quermesse. Assim, para ele não havia pessoalmente nada em jogo. A aposta pelo tudo ou nada o levava irremediavelmente a um nada.

Teatro macabro

Muito já se escreveu sobre esse teatro macabro que foi a época final de Hitler no bunker, desde The last days of Hitler [“os últimos dias de Hitler”], de Hugh Trevor-Roper, a investigação do autor em 1945 por encomenda dos serviços secretos dos Aliados ocidentais para confirmar que o líder nazista tinha morrido em vez de fugido de submarino para a Argentina ou para uma base secreta na Antártida —a NKVD soviética fez sua própria pesquisa para Stálin, reunida no relatório Hitler – até Berlim 1945, a Queda, de Antony Beevor (Record, 2004). Mas talvez seja um filme, A queda (2004,) com Bruno Ganz, o que mais contribuiu para criar a imagem popular do como aquilo se deu. É preciso observar, como fez Beevor, que o filme, apesar de aparentemente fiel à história, apresenta alguns traços inquietantes, como a identificação que se cria pela lógica narrativa com personagens tão sinistros como a secretária Junge, mostrada com uma inocência irreal, ou com o médico e Obersturmbannführer das SS, Ernst-Günther Schenck, assim como a aura de solenidade que se imprime a algumas cenas que são sopa no mel para os neonazistas. A realidade no bunker, segundo Beevor e outros historiadores, era muito mais sórdida e vulgar, e não esteve isenta de humor negro.

Os cômodos de Hitler no bunker, um verdadeiro submarino de cimento, eram muito pequenos, e sua vida foi se tornando cada vez mais restrita, enquanto, lá embaixo, perdia-se a diferença entre o dia e a noite. Costumava se levantar ao meio-dia e ficava acordado até alta madrugada. Já estava muito deteriorado fisicamente, gasto, envelhecido e com tremores na mão esquerda. Reinava ao seu redor uma atmosfera de irrealidade. A notícia, em 12 de abril, da morte do presidente Roosevelt introduziu brevemente um raio de otimismo. Hitler tinha a remota esperança de que se abrisse um frente anticomunista com a incorporação da Alemanha. Mas em 16 de abril chegou a grande ofensiva soviética, com um milhão de soldados sob o comando de Zukov e Konev, e se afundou toda a frente do rio Oder: Berlim já estava na mira. No dia 20, o último aniversário de Hitler, que completava 56 anos, os tanques do Exército Vermelho já estavam nos subúrbios da cidade. Kershaw conta que a partir de então ligavam do bunker, aleatoriamente, para números da lista telefônica perguntando: “Desculpe, a senhora viu os russos?”. “Passaram por aqui faz meia hora, eram parte de um grupinho de 12 tanques”, lhes respondia a interlocutora do outro lado da linha. Isso se não atendesse alguém cantando Kalinka...

Eva Braun chegou para ficar, e os manda-chuvas nazistas foram cumprimentá-la, suplicando-lhe galantemente que se mantivesse a salvo em seu refúgio alpino, o que ela recusou. Depois foram partindo, a passo rápido. O Führer, após aplicar seu colírio de cocaína, um dos muitos remédios que tomava, subiu as escadas até o parque da Chancelaria do Reich para premiar 20 membros das Juventudes Hitleristas, alguns quase meninos, que tinham se destacado nas lutas na cidade. Acariciou-lhes as faces, deixando no ar uma imagem de pedófilo que é a única coisa que lhe faltava. Depois retornou às entranhas da terra, de onde não voltou a sair com vida. Naquela noite, Junge lhe ouviu dizer que já não acreditava na vitória. Houve uma festa noturna acima, à qual Hitler não compareceu, mas sim Eva Braun, que dançou animadamente —bom, o mais animadamente possível numa festa com um só disco e na companhia de Bormann. O fim da festa foi determinado por um ataque da artilharia soviética. Parece que havia um ambiente de febre erótica e lascívia entre os habitantes do bunker (quando Hitler ia dormir) digno de O porteiro da noite. Champanhe não faltava. E certamente nunca era cedo demais para que começassem as rodadas obrigatórias de vodca, kazachok e papasha.

Hitler parecia se aproximar de um ponto de ruptura e era cada vez mais imprevisível. Fanfarronava de que lutaria enquanto tivesse um só soldado às suas ordens e depois se suicidaria. Explodiu como nunca no dia 22 nessa famosa sessão informativa que aparece em A queda e na qual Ganz dá um espetáculo de interpretação. Foi quando soube que as tropas do SS-Obergruppenfürer Felix Steiner não haviam atacado. Durante meia hora gritou como um possesso. Depois desabou dando tudo por perdido e afirmando que já não tinha mais ordens para dar. O que deixou os militares estupefatos, pois quem iria dá-las senão ele. Hitler foi alternando nas próximas horas a autocompaixão, pessimismo e os pensamentos na posteridade e no lugar que ocuparia na história. Se soubesse se suicidaria da mesma forma, mas tinha ao seu lado Goebbels que tentava convencê-lo de que se as coisas não dessem certo (!) no máximo em cinco anos seria um personagem lendário e o nacional-socialismo alcançaria uma condição mítica. Enquanto isso, passavam pelo bunker as últimas visitas como se aquilo já fosse um velório: Speer, Hanna Reitsch, Von Greim... No recinto, com ambiente de juízo final, todo mundo falava da melhor maneira de se suicidar e trocavam cápsulas com veneno.

No dia 28 chegou a notícia de que Himmler havia feito uma oferta de rendição. É de impressionar sofrer uma traição de alguém como Himmler, e Hitler voltou a se encolerizar. Ficou tão irritado que mandou fuzilar seu próprio futuro concunhado, Fegelein (marido da irmã de Eva Braun, Gretl, que estava grávida), porque era o SS —dos próximos a Himmler— que tinha mais a mão. Na noite do 29 se casou com Eva Braun (sua irmã não foi madrinha) transformando-a na primeira-dama do Reich por algumas horas em um contrato matrimonial que tinha implícita a cláusula do suicídio. A relação de Hitler e sua amante (a quem uma vez presenteou premonitoriamente com um livro sobre as tumbas egípcias) vai além do alcance dessas linhas, mas era complicada. Não se sabe se a consumaram, evidentemente não era o melhor ambiente para uma noite de núpcias, às vésperas de se suicidarem. Hitler aproveitou a ocasião para ditar seu testamento. Finalizava o documento acreditando que de seu autossacrifício o nazismo renasceria e exortava a continuar lutando. Nomeou um governo sucessor com Doenitz no comando (como presidente do Reich e não como Führer) e foi descansar.

Hitler já havia enviado na frente, envenenando-os, seus cachorros, sua alsaciana Blondie que Kershaw afirmou Hitler amar mais do que qualquer ser humano “possivelmente" incluindo Eva Braun), e seus filhotes. Precisava se assegurar de que se suicidaria de maneira efetiva. Mas por fim optou pela pistola, que lhe pareceu mais marcial. Os acontecimentos se precipitavam, o líder nazista precisava se decidir de uma vez antes que os T-34 entrassem pela sala de estar. Planejou para após o almoço do dia 30. Era fundamental fazer seu cadáver desaparecer (Beevor acha, ainda que outros duvidem, que chegou a saber da humilhação do cadáver de seu amigo e aliado Mussolini na Praça Loreto de Milão, pendurado de cabeça para baixo com sua amante Claretta Petacci no 29). Para isso encarregou seu ajudante pessoal Otto Günsche de queimá-lo com Eva Braun, que iria junto, para o que pediu 200 litros de gasolina a seu chofer, Erich Kempka. Hitler fez sua refeição na primeira hora da tarde, como todos os dias, com suas secretárias e seu dietista (?) e depois se despediu de seu círculo íntimo, ato que também foi feito por Eva Braun. Depois os dois se retiraram ao estúdio de Hitler. Magda Goebbels, nazista fanática, que depois mataria seus seis filhos e se suicidaria com seu marido, pediu para ver o Führer e este concordou. Tentou convencê-lo a fugir. Hitler voltou ao escritório. Os íntimos de Hitler esperaram dez minutos na antessala em frente à porta. Então, o SS Linge, criado pessoal de Hitler, a abriu com reverência e acompanhado por Bormann deram uma olhada. Estava tudo acabado.

A morte de Hitler criou um vazio quase palpável no bunker, passando do ambiente de crepúsculo dos deuses ao de sauve qui peut, mais diretamente a fuga dos ratos. Foi como se todo mundo se desse conta da realidade. Era preciso dar um fim aos cadáveres o mais rápido possível, os russos não deveriam encontrar o Führer na poltrona. Envolveram os corpos em mantas —o de Hitler com a cabeça coberta— e os subiram, com muito menos cerimônia do que em A queda, ao jardim da Chancelaria, terminando o desconfinamento. Lá, a três metros da porta, entre um bombardeio soviético que dificultava a proteção, jogaram gasolina e queimaram os cadáveres. Os presentes, atabalhoadamente, ergueram os braços em um derradeiro “Heil Hitler!” enfumaçado. Muito se falou do destino dos restos. Parece que, ao contrário do que no caso dos senhores Goebbels, que tinham menos gasolina, não sobrou quase nada. Os pedaços carbonizados, que desmanchavam ao ser tocados com os pés, foram enterrados, de acordo com o depoimento de algum SS pouco respeitoso a essas alturas, com os de outros cadáveres. Posteriormente os agentes soviéticos encarregados da investigação do paradeiro de Hitler entregaram a Stálin o que puderam encontrar, basicamente a mandíbula do líder nazista, que colocaram em uma caixa de charutos. Mais tarde, ao que parece, foi encontrado um pedaço de osso parietal com um tiro, última evidência do disparo que acabou com uma vida de maldade e, por fim, com uma guerra que provocou 50 milhões de mortos.


El País: STF confronta Bolsonaro e assume protagonismo na crise política

Congresso espera o avanço de apurações que envolvem o presidente e seu entorno para dar andamento a impeachment ou CPIs. Nos bastidores, cúpulas dos dois poderes avaliam conjuntamente cenários

Afonso Benites, do El País

Supremo Tribunal Federal entrou mais uma vez de cabeça em uma crise política que envolve o Palácio do Planalto. Enquanto, de momento, Rodrigo Maia, presidente da Câmara, não dá sinais de que se moverá para dar andamento aos quase 30 pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro e tampouco ele ou o comando do Senado se mostram dispostos a instaurar comissões parlamentares de inquérito (CPIs) contra o Governo, coube ao Judiciário confrontar mais uma vez o mandatário, que tem participado de atos contra a democracia e desrespeitado orientações de autoridades sanitárias enquanto o país assiste à escalada da pandemia do coronavírus. O ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, decidiu conceder um mandado de segurança impedindo o presidente de nomear o delegado Alexandre Ramagem, amigo dos Bolsonato, como diretor-geral da Polícia Federal. A Advocacia-Geral da União decidiu não recorrer, mas o presidente não está convencido: “É dever dela recorrer”.

Ainda não está claro como Bolsonaro realizará o “sonho”, como ele descreveu, de colocar Ramagem no comando da PF. À espera dos próximos lances no imbróglio, há intensa movimentação nos bastidores entre lideranças do Legislativo e do Judiciário em Brasília. Desde que Bolsonaro participou de uma manifestação a favor de um golpe militar, no dia 19 de abril, ao menos duas reuniões entre ministros do STF e representantes da cúpula do Congresso ocorreram fora das agendas oficiais. Nos encontros, debateram o cenário político e os próximos passos que cada poder poderia dar. A orientação para o momento é de cautela. Deputados e senadores devem esperar para ver o quanto avançam três apurações no Supremo que podem envolver o presidente, seus familiares e deputados que o apoiam para decidir como agir.

Uma das apurações em andamento na Corte é baseada nas acusações do agora ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que acusou o presidente de tentar interferir politicamente na Polícia Federal ao trocar seu diretor-geral. A outra é a que investiga quem são os parlamentares e empresários bolsonaristas que deram suporte aos atos de 19 de abril, considerado um crime contra a lei de segurança nacional. E a última tem como um dos principais alvos o vereador Carlos Bolsonaro, um dos filhos do presidente que é suspeito de liderar uma milícia virtual responsável por espalhar notícias falsas contra as instituições e que acabam beneficiando o presidente.

Esse último inquérito é considerado inconstitucional por dezenas de juristas, porque ele foi aberto pelo próprio STF “de ofício”, ou seja, sem ser instado a fazê-lo, no ano passado. Mas, como um interlocutor do STF e outro do Congresso disseram à reportagem, a conveniência política vai se refletir na sobrevivência do Governo Bolsonaro. “Se for conveniente usar esse inquérito para derrubar o presidente, ele será usado”, afirmou um parlamentar, antes de ressaltar que ainda não há clima pra destituir o chefe do Executivo.

Essas movimentações têm incomodado o mandatário. Nesta quarta-feira ele mandou recados e, pela terceira vez em menos de uma semana, precisou dizer que era ele quem mandava em seu Governo. Quando questionado sobre o anúncio da Advocacia-Geral da União de que não recorreria do veto de Alexandre de Moraes a Ramagem, disse a repórteres: “Quem manda sou eu e eu quero o Ramagem lá”.

Antes, ao dar posse a dois novos ministros, André Mendonça (Justiça), e José Levi Mello do Amaral Júnior (Advocacia-Geral), o presidente ainda disse que a Constituição prevê que os três poderes são independentes e harmônicos. “Não posso admitir que ninguém ouse desrespeitar ou tentar desbordar a nossa Constituição”, afirmou Bolsonaro na cerimônia em que dois ministros do STF estavam presentes, o presidente Antonio Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Elogiou ambos, assim como o presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otavio de Noronha, com quem diz estar “aprendendo muito” sobre o mundo jurídico. Na mesma cerimônia, afirmou mais uma vez que não desistiu de nomear Ramagem para o cargo. “Gostaria de honrá-lo no dia de hoje, dando-lhe posse. Esse sonho meu, e mais dele, brevemente se concretizará”, disse.

STF na linha de frente

Independentemente do desdobramento, há a percepção de que, com o veto a Ramagem, o mal-estar entre Supremo e Planalto mudou de nível. A julgar pelos últimos dias, em Brasília, a avaliação entre parte da classe política é o confronto com o STF voltará a ser o normal daqui para frente. Antevendo a escalada da crise, influenciadores bolsonaristas nas redes sociais têm mais uma vez incentivado a publicação da hashtag “STF Vergonha Nacional” e disseram que as decisões da Corte eram políticas. É um discurso semelhante ao adotado por petistas quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi impedido por Gilmar Mendes de assumir a chefia da Casa Civil na gestão Dilma Rousseff (PT), em 2016, porque o magistrado entendeu que ele estaria usando o cargo para se blindar de investigações policiais das quais era alvo.

O caso de Lula mostra que não é primeira vez que o Supremo entra em cheio em uma crise política —ainda que a ação da Corte para barrar nomeações estejam longe de ser um consenso no meio jurídico. Se o STF barrou o petista e agora Ramagem na direção da PF, Michel Temer (MDB) teve o aval para nomear seu correligionário Wellington Moreira Franco, então investigado pela Operação Lava Jato, para a Secretaria-Geral de Governo em 2017.

Sob Bolsonaro, o Supremo já deu várias mostras de que atuará para conter o que considerar “excessos”. A Corte já impediu o presidente de subordinar a Funai (Fundação Nacional do Índio) ao Ministério da Agricultura, por exemplo. O próprio ministro Alexandre de Moraes também já decidiu que Bolsonaro não pode decidir sobre reabertura de comércios e, antes mesmo do veto desta quarta, já havia blindado os delegados que cuidam do inquérito das fake news no Supremo: o comando interino da PF não pode mudá-los.

Seja como for, o presidente sabe que não precisa, necessariamente, se movimentar tanto para garantir Ramagem na função, porque já o tem na Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e porque o ministro da Justiça, a quem a PF é subordinada, declarou lealdade a ele. Em seu discurso de posse, Mendonça chamou Bolsonaro de “profeta no combate à criminalidade”, disse que pretende, no ministério, ser um “líder servo”.

Os movimentos de Bolsonaro na PF têm incomodado policiais experientes, que cobram mudança no processo de escolha do diretor-geral e entendem que ele poderia ter um mandato para não ficar dependente do interesse político da ocasião. Nos últimos três anos, já foram quatro trocas de dirigentes. “Ramagem é tido como uma pessoa capaz. Ele não é um alienígena na PF, mas a situação em que é feita a troca precisa mudar urgentemente”, disse o presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal, Edvandir Paiva. Na avaliação dele, Bolsonaro precisa parar de buscar confrontos institucionais. “Se o presidente não compreender o papel do estadista e da instituição do Estado, vai haver atrito o tempo inteiro”


Leonardo Padura: O mundo de ontem

Há outras doenças, além da causada pelo vírus, como nacionalismos e fundamentalismos, para as quais não haverá vacina e que despertam temor sobre como as coisas se organizarão

Stefan Zweig foi um romântico europeu que, pouco antes de se suicidar, longe de uma Europa que se desintegrava pela mais desoladora de suas muitas guerras, escreveu um maravilhoso e esmigalhado testamento, intitulado O Mundo de Ontem (1942), no qual falava não de seu próprio devir, “mas do de toda uma geração, a nossa, a única que carregou o peso do destino, como, certamente, nenhuma outra na história”.

A geração do judeu austríaco Zweig é a que nasce na Europa do final do século XIX, vive em sua juventude a Primeira Guerra Mundial e o triunfo da Revolução de Outubro e, em sua maturidade, a perversão utópica executada pelo stalinismo, a ascensão paralela do nacional-socialismo e conflitos fratricidas como a guerra civil espanhola. A fornada europeia que, já em sua velhice, assiste ao início da Segunda Guerra Mundial, com Holocausto incluído.

Stefan Zweig se suicidou em seu exílio brasileiro em 1942 e não soube que cairiam bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.

Muito mais recentemente, o muito reconhecido e lido Noah Yuval Harari (também judeu, aliás, também heterodoxo, claro) nos recorda em suas 21 Lições para o Século 21 que o homem de hoje, nossa afortunada geração, foi, ao longo de toda a história do Homo sapiens, a que menos riscos teve de morrer de fome, de guerra ou de epidemia, os três grandes flagelos que sempre perseguiram a humanidade. E oferece cifras que sustentam sua afirmação.

Harari, entretanto, nem por isso deixa de expressar seus temores sobre as características e qualidades deste tempo presente no qual se perdeu boa parte da fé de que desfrutavam o pensamento e o modelo liberal, incluindo a globalização, enquanto os países se blindam com muralhas de nacionalismo e fundamentalismos religiosos excludentes, quando a humanidade se encontra mais perto de um horripilante descalabro ecológico. E o historiador israelense anota, além disso, as incertezas geradas por um futuro presumivelmente desenhado por inteligências artificiais alimentadas por algoritmos ou criações do estilo.

Acredito, como Harari e como muitos outros, que pertenço à geração que sofreu menos a violência bélica, que nasceu com mais anos de expectativa de vida, teve mais altura para se debruçar sobre o futuro, inclusive para vivê-lo e se congratular com ele. E também de se horrorizar com as variantes possíveis desse futuro que parece cada vez mais próximo.

Minha afortunada geração, junto a seus tremendos feitos científicos, sofreu também profundos traumas

Nas décadas que vão da nossa adolescência à idade adulta, fomos testemunhas presenciais de uma mudança de era histórica: o trânsito arrasador dos tempos dos recursos mecânicos e analógicos para o período do império da digitalização, com todas as múltiplas consequências positivas e negativas que tais processos revulsivos costumam entranhar.

Hoje somos beneficiários de ferramentas de comunicação, conhecimento, de avanços médicos, de mobilidade que meio século atrás pareciam argumentos exclusivos de filmes de ficção científica. As revoluções da tecnologia da informação e da biotecnologia mudaram quase tudo, e é certo que mudarão até mais dentro de alguns anos. Somos melhores por isso? Viveremos melhor no futuro? Fará mais sentido a falta de sentido existencialista da vida? Devo admitir que tenho sérias dúvidas a respeito. E não só porque esteja ficando velho e, talvez, me tornando um lamentável conservador, e o meu recipiente de pessimismo transborde. A conjuntura universal que hoje vivemos, calcada em fantasias como as de H. G. Wells em A Guerra dos Mundos, é uma confirmação dolorosa.

Minha afortunada geração, junto a seus tremendos feitos científicos, sofreu também profundos traumas capazes de alterar muitas de nossas percepções da vida e a forma de encará-la. Quando desfrutávamos da juventude apareceu e nos traumatizou a aparição do HIV/Aids, uma doença então mortal, que afetou de maneira bastante radical o exercício da sexualidade. Uns vinte anos depois, fomos vítimas, e todos, ao mesmo tempo, telespectadores, do ataque de 11 de setembro de 2001 que transformou os cânones da segurança, introduziu o medo do terrorismo na política de Estado e o transformou em um trauma individual que conseguiu degradar o desfrute da viagem, da aventura, do descobrimento (entre outros gozos), para fazer dele uma tarefa cheia de entraves e traumas (você não pode viajar de avião com um potinho de iogurte na sua bagagem de mão). E se achávamos que já tínhamos o bastante, justo quando chegamos aos tempos de maior desencanto político das últimas décadas (ou de desencanto com os políticos e suas atuações que estivemos sofrendo nas últimas décadas), pois nos apareceu o coronavírus, ou covid-19, que nos impede de viajar e nos recomenda não nos aproximarmos de outras pessoas – e nem sonhar em fazer sexo com um desconhecido. Que nos falemos com um metro e meio de distância entre nós, que nos autoconfinemos…

O mundo que parecia se ampliar e se tornar menos alheio (mais globalizado) é hoje um lugar hostil, de onde devemos nos afastar se quisermos chegar a viver os oitenta anos de média que nos deram de presente os avanços médicos, uma melhor alimentação e a superação de grandes guerras. Devemos nos trancar e nos comunicar com cuidado, melhor se for através do Facebook ou do Instagram, sem saber até quando não poderemos assistir a um evento esportivo ou a um show musical, porque devemos tomar cuidado com as grandes aglomerações de pessoas. Fugir dos beijos e abraços.

O mundo que parecia se ampliar e se tornar menos alheio é hoje um lugar hostil, de qual devemos nos afastar

A justificadíssima histeria gerada por este novo vírus tem e terá proporções e consequências realmente apocalípticas, independentemente de sua justificação real, avalizada pelas cifras de contagiados e mortos. O fato é que as economias cambaleiam, as sociedades se fecham, a maravilhosa ciência da era digital patina e não avança. A mesma ciência que decodificou e sintetizou o genoma humano, mas ainda não conseguiu um antídoto contra o câncer, a epidemia mais incontrolável destes tempos, que cada dia mata tantas pessoas como o coronavírus…

Até onde chegaremos nesta corrida de dor e medo? Ninguém sabe. É o fim dos tempos, da sociedade? Não, não é o fim dos tempos nem da sociedade, mas pode ser o fim de uma maneira de viver no tempo e em sociedade. Pressinto que, mesmo com uma (relativamente) rápida solução da crise sanitária que hoje vivemos e tanto nos aterroriza, nosso mundo não voltará a ser o mesmo, e não para melhor. E não sou dos que acreditam que o mundo de ontem tenha sido o mais feliz e que devemos recuperá-lo, como pede Trump quando clama por devolver à América a grandeza perdida. A grandeza dos tempos de uma feroz discriminação racial legalizada (proibida a entrada de cães, judeus e negros), por exemplo? Ou uma grandeza como a que sonha um Putin, que se reelegerá presidente ad infinitum: a recuperação do orgulho russo graças ao qual os cidadãos talvez pudessem escolher entre czarismo e stalinismo, se é que algo podem escolher.

O mundo de ontem, o ontem de nossa privilegiada geração, não era melhor, embora cada vez mais nos pareça assim. “Acontece que estávamos melhor quando acreditávamos que estávamos pior”, disse-me alguém. Porque, até com as amostras de solidariedade e de altruísmo que aplaudimos, o mundo de hoje está doente, não só de coronavírus, mas sim de outros males para os quais não haverá vacinas (nacionalismos, fundamentalismos) e me faz temer por como se organizará o mundo de amanhã, talvez quando os poderes políticos nos digam que outra vez podemos nos beijar e nos abraçar, nos falar e nos tocar… e já tenhamos medo de fazê-lo ou, inclusive, não saibamos mais como fazê-lo.

*Leonardo Padura é escritor.


El País: Bolsonaro indica Mendonça para a Justiça e Ramagem para a PF

Governo faz troca após barulhenta saída de Sergio Moro que acusou o presidente de pressionar por “colher relatórios de inteligência”. Novo comandante da Polícia Federal é próximo da família Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro confirmou no Diário Oficial desta terça André de Almeida Mendonça, da Advocacia Geral da União, para o lugar do agora ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro. Depois do terremoto político que significou na última sexta-feira a saída de Moro, após a troca do comando da Polícia Federal, Mendonça assume a pasta sob o manto de desconfiança que significou a demissão de seu antecessor. Ele assume já com um nome definido para a direção-geral do órgão de investigação: Alexandre Ramagem, atual diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), entra no lugar de Maurício Valeixo, que foi exonerado por Bolsonaro à revelia de Moro. A queda de Valeixo foi a gota d'água para Moro, que disparou acusações graves contra Bolsonaro em seu discurso de saída. “O presidente me disse mais de uma vez que ele queria ter uma pessoa do contato pessoal dele [na Polícia Federal], que ele pudesse ligar, colher relatórios de inteligência. Realmente não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação. As investigações têm que ser preservadas”, afirmou Moro.

Logo após a acusação, em um pronunciamento à imprensa ainda na sexta-feira, Bolsonaro reconheceu e legitimou o direito de querer ter alguém com quem possa ter contato direto na Polícia Federal, a exemplo do que já faz com outros órgãos de inteligência do Governo. “Quero um delegado com quem eu possa interagir. Por que não?”, questionou, ressaltando que tinha este tipo de relação com a Abin, que era, até agora, dirigida por Ramagem.

É depois dessas revelações públicas de alta voltagem que Mendonça e Ramagem assumem suas novas posições no Governo, agravadas ainda pela divulgação de notícias que mostram investigações comprometedoras que envolvem seus filhos, Carlos e Flavio Bolsonaro. Carlos, vereador no Rio, é apontado como um dos cérebros de um esquema criminoso de notícias falsas que beneficia a narrativa do seu pai. A investigação é da Polícia Federal dentro do inquérito conduzido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Já Flavio, senador, é apontado pelo Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro como nome chave num esquema de financiamento de imóveis da milícia no Rio, a partir de dinheiro obtido de rachadinhas, o confisco de salários de seus funcionários de gabinete dos tempos em que foi deputado estadual. Nas redes sociais, Ramagem foi acusado de ser próximo da família Bolsonaro e uma foto em que ele aparece ao lado de Carlos viralizou. No domingo, questionado nas redes sociais sobre a imagem que circulava e a aproximação de seu filho com Ramagem, Bolsonaro soltou um “E daí?” nas redes sociais. Na segunda-feira, voltou a dizer à imprensa que não via problemas na aproximação.

As trocas ocorrem no momento em que o Supremo Tribunal Federal autorizou um pedido de investigação feito pelo procurador-geral, Augusto Aras, sobre as acusações de Moro a Bolsonaro por suposta tentativa de interferência política na Polícia Federal e por falsificar a assinatura de seu então ministro da Justiça, na exoneração de Valeixo feita do Diário Oficial —Moro afirmou que não sabia da confirmação da demissão e que, apesar de seu nome aparecer no documento, não o assinou.

Mendonça, o novo ministro da Justiça, foi convidado para assumir o cargo na segunda-feira. Ele é pastor da Igreja Presbiteriana Esperança de Brasília e pode ser a escolha do presidente para ocupar no final deste ano uma vaga no STF —Bolsonaro já havia dito que queria alguém “terrivelmente evangélico” para este lugar. O nome dele não era o mais cotado para o ministério inicialmente. No final de semana, o secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira, chegou a ser anunciado para o cargo pela imprensa. Apesar de não ter existido uma confirmação oficial, seu nome era o que circulava nos bastidores. Oliveira tem ligação estreita com Bolsonaro e sua família. Advogado e major da reserva da Polícia Militar, ele chegou a chefiar o gabinete do deputado Eduardo Bolsonaro em seu primeiro mandato como deputado. Apesar de a relação de Mendonça com a família não ser tão próxima, ele é visto como um homem fiel ao presidente.

Ramagem, por sua vez, foi chefe de segurança do então candidato a presidente durante a campanha eleitoral e goza da confiança dos filhos. É delegado da Polícia Federal, e atuou na coordenação da segurança de eventos em 2014 e 2016, para a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil, respectivamente. Ambos ficam sob a pressão de atuar a favor das instituições ou do personalismo do presidente, que se vê cada dia mais acossado por críticas diante da administração bélica que promove no campo político em meio a uma pandemia que já matou, oficialmente, mais de 4.543 brasileiros, fora o que a subnotificação não consegue constatar.

Sem rumo claro no campo da Saúde com outra substituição ruidosa, de Henrique Mandetta por Nelson Teich —que ainda não disse a que veio—, e sinais controversos na economia, Bolsonaro agora entrega a Justiça e a Polícia Federal a nomes que podem reforçar seu autoritarismo em mais um retrocesso perigoso para o Brasil, na visão de especialistas. “A Polícia Federal vai voltar a ser o que foi antes da Constituição, quando era uma polícia política de perseguição a adversários a mando do presidente e de proteção dos amigos”, afirmou Pedro Abramovay, diretor para a América Latina da Open Society Foundations, ao repórter Felipe Betim.


El País: A pandemia e a luta indígena em um planeta que tem febre

A história dos povos indígenas mostra que a pandemia mata, a fome mata e a ausência do Estado mata. Matam em velocidades diferentes

No território Xakriabá, na região norte de Minas Gerais, os estudos começam com os mais jovens ouvindo os anciãos e lideranças do povo. Com eles, nunca se aprende que em 1500 o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral. O achamento do país foi uma conquista que ainda perdura.

O antropólogo Darcy Ribeiro, no livro O povo brasileiro, observou que a chegada da branquitude desencadeou, “desde a primeira hora, uma guerra biológica implacável. De um lado, povos peneirados, nos séculos e milênios, por pestes a que sobreviveram e para as quais desenvolveram resistência. Do outro lado, povos indefesos, que começavam a morrer aos magotes. Assim é que a civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia de pestes mortais.”

Essa história perpassa o presente. Em 04 de abril de 2020, patrulhas e guinchos da Polícia Militar adentraram a terra indígena Xacriabá para verificar a documentação de motos e carros de membros daquele povo. Estavam em seu território, em quarentena, como milhões de brasileiros que, procurando resguardar-se da pandemia, ficaram em suas casas. Cenas de violência simbólica.

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro dizia que a pandemia que assusta o mundo é uma “gripezinha”, mais sábia (e antenada com as recomendações da Organização Mundial da Saúde) foi a decisão do povo Xacriabá, que desde o dia 19 de março, como medida de proteção, havia fechado seu território, onde o isolamento social é para cuidar da morada coletiva (para não adoecer a morada interior).

Nesse contexto pandêmico, o mês de abril, que tradicionalmente é marcado pelas rememorações da história indígena no país, pela realização do acampamento Terra Livre e por marchas públicas, evoca de maneira forte o momento inicial da conquista e as constantes violações a direitos dos povos originários. Este ano, os povos indígenas decidiram ficar em suas moradas. A sua história mostra que a pandemia mata, a fome mata, as armas de fogo e a violência matam, a injustiça mata, a colonização mata, o racismo mata, o veneno mata, a mineração mata, a ausência do Estado mata. Matam em velocidades diferentes.

A Constituição de 1988 reconhece a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos índios e seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Quando a Constituição se refere ao patrimônio cultural, ela fala de identidade, de ação, da memória de diferentes grupos que formam a sociedade brasileira. Ela protege formas de expressão, modos de criar, fazer e viver. As manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional também encontram proteção em um Estado que, portanto, é pluriétnico e multicultural. Mas nem todos compreendem toda essa diversidade e riqueza, como se elas caminhassem inelutavelmente para se tornarem homogêneas, ou seja, como se a tradicionalidade tivesse de se modernizar.

Para o presidente da República, por exemplo, “o índio mudou, tá evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós...” A fala, que não esconde o preconceito, expõe um projeto governamental assimilacionista. Uma das facetas da aculturação imaginada é o que se pode chamar de “agriculturação”, a imposição de um modo de pensar a ocupação dos territórios indígenas, que violenta a identidade dos povos originários e tenta fazer nova catequese, a de uma visão de mundo e de modos de produção vindos de fora.

Para o projeto de agriculturação, os povos indígenas têm muita terra, mesmo que estejamos atrasados (há mais de 26 anos) em concluir a demarcação das terras indígenas, que a Constituição estabeleceu deveria ser concluída no prazo de cinco anos a partir de 1988. A fala de Jair Bolsonaro, de que, se eleito, não haveria “um centímetro a mais para demarcação” de terras indígenas, é expressão desse projeto.

A desterritorialização é uma das marcas da ditadura implantada no país em 1964, que via os indígenas como um obstáculo ao modelo de desenvolvimento proposto pelos militares. A Comissão Nacional da Verdade estima que pelo menos 8.350 indígenas tenham sido mortos no período de suas investigações. A não implementação de reparação e de medidas de não repetição, como as que foram recomendadas pela comissão, mantém pulsante o agir de violência da história brasileira. Segundo dados preliminares divulgados pela Comissão Pastoral da Terra, sete lideranças indígenas foram mortas em conflitos no campo no ano passado, maior número da década.

A “agriculturação” se manifesta em várias frentes, como no projeto de lei nº 191, apresentado este ano à Câmara dos Deputados, para, a pretexto de regulamentar a Constituição, permitir a mineração em terras indígenas, propondo um modelo etnocêntrico apartado da cosmovisão indígena.

Felizmente, as marchas e contramarchas da história deixam também avanços, como o fortalecimento do movimento indígena. São travas em períodos de retrocessos. É o caso também da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, promulgada no país em 2004, que estabelece a obrigação de que os povos indígenas sejam consultados previamente sobre proposições legislativas que os afetem diretamente, como o acima mencionado projeto de lei nº 191/2020.

A esse panorama de tensões, violações e ameaças a direitos se soma agora o enorme desafio trazido pelo novo coronavírus. A chegada da pandemia encontra um Poder Executivo federal em constante conflito com os demais Poderes, incapaz de com eles se relacionar em harmonia, como propugnado na Constituição. A nota positiva é que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional vêm estabelecendo limitações importantes à atuação do Governo federal. O sistema federativo, de sua parte, está fortalecido e permite que governadores e prefeitos ocupem o aparente vazio de poder que decorre, na verdade, da particular visão de mundo presidencial.

A pandemia que hoje todos vivemos cria um mundo que ainda não se mostrou, cujas bases estão em reconstrução. A sociedade busca urgentemente a cura e precisa não apenas do princípio ativo do remédio a ser encontrado, mas também de ativar nossos princípios de humanidade.

Como tem dito a primeira autora deste artigo, a humanidade tem fome de “ressentimentalizar” a coletividade e a solidariedade, de respeitar o luto e as cicatrizes do planeta (um planeta que há um bom tempo está com febre), de curar a casa interior, para não perder a esperança. É ela que move o reencantamento pela vida.

Célia Xakriabá é cientista Social, mestra em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília e doutoranda em Antropologia pela UFMG. Edmundo Antonio Dias Netto Junior é procurador da República em Belo Horizonte, é representante do Ministério Público Federal no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades.