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Vladimir Safatle: O Brasil e sua engenharia da indiferença
O principal esforço até agora não consistiu em se mobilizar para evitar as mortes durante a pandemia, mas em banalizá-las
Talvez fosse o caso de começar lembrando que a substância ética de um povo é definida através da maneira com que ele lida com a morte. Este é um tema maior presente entre os gregos, a saber, como uma sociedade se destrói a partir do momento em que ela não dá aos mortos o direito ao luto. Pois o luto mobiliza questões vinculadas à memória, à universalidade, ao reconhecimento, à suspensão do tempo e ao intolerável. Se uma das maiores tragédias que os gregos nos legaram ―Antígona―, é exatamente sobre a defesa incondicional do direito ao luto, mesmo para o “inimigo do Estado”, era porque ela expressava a consciência tácita de que a banalização do apagamento dos corpos sem vida representava o caminho mais seguro para dissolução da própria comunidade. Estes dois pontos estão ligados de forma indissolúvel: o destino dos vivos e o destino dos mortos, o governo dos vivos e o governo dos mortos.
Para uma sociedade como a brasileira, fundada no binômio genocídio/esquecimento, sociedade construída sobre os escombros do genocídio indígena e negro, lembrar da força política do luto é uma operação decisiva. Nós fomos formados a partir da fantasia originária da “tabula rasa”. Aqui, não haveria povos com grandes estruturas estatais, como os maias, astecas e incas. Toda tomada de posse seria processo civilizatório tendo em vista retirar essa terra de seus arcaísmos, o arcaísmo das sociedades sem Estado. Por isto, o genocídio indígena não seria genocídio algum, apenas a marcha violenta, porém necessária, do desenvolvimento histórico. No Brasil, “desenvolvimento” significa uma forma de “desaparecimento”, de apagamento. Uma sociedade que começa desta forma sem nunca conseguir olhar para trás e recuperar aquilo que foi destroçado, só pode terminar como catástrofe.
Pois essa indiferença bruta do esquecimento é um verdadeiro projeto de governo. Governar é gerir circuitos de afetos. Só assim é possível definir o que visível e invisível, sensível e insensível, perceptível e imperceptível. E controlar os regimes de sensibilidade, de visibilidade e percepção é controlar o fundamento daquilo que pode afetar a vida social. É definir a velocidade das urgências, a determinação do tolerável, estabelecer quais conflitos deverão ser reconhecidos e quais não deverão.
Neste sentido, este cozinhar os afetos sociais no fogo brando da indiferença é a base de toda uma engenharia social. E não há fundamento mais forte da produção da indiferença do que a indiferença à morte. Lembremos das condições libidinais para que a tese da banalização do mal pudesse funcionar. Era necessário que os carrascos nazistas fossem capazes de naturalizar a desafecção. Só assim o assassinato em massa poderia se transformar em um problema de logística. Só assim ele poderia se tornar um problema de como os trens chegarão aos fornos, em quanto tempo, com quanto custo, estejam eles transportando pessoas a serem eliminadas ou mercadorias a serem entregues.
Vale a pena lembrar isto porque o verdadeiro projeto político com força transformadora, aquilo que deveria nos unir, é a luta por uma mutação de afetos que passe pela compreensão da desafecção como base de nossa verdadeira miséria. Temos, até o momento, mais de 60.000 pessoas mortas pela pandemia, isto se acreditarmos em números subnotificados. Mas o principal esforço até agora não consistiu em mobilizar os esforços e riquezas do país para evitar as mortes. O principal esforço consistiu em banalizá-las. Afinal, não é verdade que morre todo o ano mais de 60.000 pessoas por violência neste país? Qual a razão então para todo esse alarmismo? Como se os números da violência não fossem por si alarmantes, nos provocando indignação a todo momento. Números estes, diga-se de passagem, que descrevem, principalmente, a violência policial: peça maior da gestão social desse país.
Mas notem como essa desafecção é peça fundamental para o tipo de laboratório que o Brasil se tornou: um laboratório mundial para o neoliberalismo autoritário. Porque esse programa econômico que se impõe a nós, com ou sem pandemia, tem uma economia libidinal que lhe e própria. Para ele funcionar, é necessário que a sociedade exploda toda possibilidade de solidariedade genérica, essa solidariedade, que obriga a realização social de princípios estritos de igualdade e redistribuição. Entre nós, a crítica do Estado corrupto aparece apenas como exigência de dessolidarização final. Não se trata de exigir do Estado que ele se volte à defesa do bem comum, mas que ele desapareça de vez para que qualquer obrigação de solidariedade não tenha mais voz. Se a sociedade implode qualquer forma transversal de solidariedade, então a via estará aberta para o retorno final à acumulação primitiva.
A solidariedade, desde o direito romano, é um tipo de obrigação contraída com vários na qual um pode quitar a dívida de todos. Ela é um sistema de obrigação na qual a ação de um tem o efeito da ação de todos, o que explicita sua natureza radicalmente implicativa. Neste sentido, ela traz a ideia de um corpo social que se organiza sob as bases do mutualismo. Um mutualismo que tem força transformadora porque se trata de compreender como dependo de pessoas que não se parecem comigo, que não tem minha identidade, que não fazem parte de meu lugar.
Por isto, a verdadeira solidariedade nada tem a ver com empatia. Temos uma tendência, muitas vezes, de psicologizar o campo social porque não queremos ver a força real de conceitos eminentemente políticos. Empatia é um tipo de implicação limitada: tenho empatia por você, o que não significa que terei empatia por outro. Há traços seus que provocam minha empatia, enquanto em outro é a repulsa que fala mais alto. Já a solidariedade não pressupõe empatia alguma pois não é um modo de relação entre sujeitos, mas entre o sujeito e o corpo social. Posso não ter empatia alguma por você, o que não implica que serei incapaz de ter solidariedade por ti. Pois a solidariedade é o regime de comprometimento com o corpo social do qual fazemos parte. É a compreensão de que o corpo social defende todos os que dele fazem parte, sem perguntar-se pelos sentimentos particulares de um para com os outros. Sua força transformadora vem exatamente daí, a saber, da sua capacidade de criar mutualidade entre diferenças.
Seria bom lembrarmos disto a fim de se perguntar sobre as razões pelas quais assistimos, nestes últimos meses, a um verdadeiro cortejo macabro de expressões de desprezo pelos mortos, de exercício de desafecção e indiferença. Como disse anteriormente, isto é uma forma de governo que nada tem de gratuito. Foi assim que este país foi criado. Esse é seu eixo central. Por isto, não se trata de recuperar esse país marcado em seu seio pela brutalidade da violência sem voz. Trata-se de terminar com ele, de uma vez por todas. O país no qual podemos habitar ainda não existe. Seria mais fácil se assumíssemos, de uma vez por todas, que precisaremos criá-lo. E o primeiro passo para criá-lo é se recusar a aceitar mais um genocídio.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo
Adriano Massuda: “Nem o pior ministro da Saúde fez o que Exército está fazendo, desmontando a engrenagem do SUS”
Adriano Massuda, ex-secretário de Saúde de Curitiba e professor da FGV, diz que nunca intervieram tanto na estrutura da pasta como agora, com a ocupação de cargos-chave por militares
Por Flávia Marrero, do El País
Adriano Massuda, 41 anos, não economiza termos fortes para descrever os desacertos do Governo Bolsonaro e de parte das gestões estaduais no enfrentamento da maior crise sanitária do século. “Faltou a organização de uma resposta nacional com a dimensão que essa pandemia exige. E não tem desculpa! A gente teve tempo para se preparar”, lamenta o ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde e especialista em gestão em saúde, lembrando que o novo coronavírus surgiu na Ásia e levou quase três meses para chegar até aqui.
“Só não estamos em situação pior justamente porque nós temos o SUS [Sistema Único de Saúde] e porque o Brasil tem uma tradição em programas de saúde pública”, diz o professor da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador-visitante na Escola de Saúde Pública de Harvard. O problema, afirma Massuda, é que justamente essa tradição de saúde pública está sendo ameaçada com a profusão de militares e profissionais sem experiência instalados em cargos-chave na atual configuração do Ministério da Saúde. O pior, segundo o professor, é que mudanças nas engrenagens do sistema que foram construídas ao longo dos últimos 30 anos podem fazer um “estrago” muito além da pandemia.
Pergunta. Como o senhor avaliou essa tentativa do Ministério da Saúde, revertida pelo STF, de mudar a forma de divulgar os números da covid-19?
Resposta. Isso demonstra uma degradação cada vez maior na capacidade do Governo Federal em lidar com uma ameaça tão grave como essa pandemia. Podemos dividir a resposta em três tempos. Primeiro a gestão de Luiz Henrique Mandetta. Apesar das críticas ao atraso na tomada de medidas para preparar o país, houve iniciativas de alerta a população sobre a gravidade da situação. O segundo tempo foi Nelson Teich, o Breve. Aí o ministério praticamente parou, deixando de exercer um papel de coordenação nacional do sistema. E agora o ministério atrapalha a resposta à pandemia. Nessa terceira fase é pior, com ministro interino há mais de um mês, a tentativa de negar informação, como se isso fosse diminuir o problema —uma atitude insana que é muito a cara desse Governo— cria um conflito com Estados e municípios. O Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde] publicou uma carta histórica bastante dura, com o posicionamento dos secretários estaduais de Saúde contra a possível maquiagem dos números, de dizer que os números estão inflados por Estados e municípios. Isso cria um conflito federativo bastante perigoso para governança do sistema de saúde, que antes estava restrito aos governadores e ao presidente.
P. Como senhor vê essa profusão de militares na pasta?
R. O Exército está ocupando cargos técnicos quando o Brasil tem profissionais extremamente competentes na área da saúde coletiva brasileira. Poucos países têm a inteligência que nós temos neste setor. Essa inteligência não está no Exército. Junto com a piora da pandemia, pode haver piora em outros problemas de saúde negligenciados por causa dela. Há inúmeros outros programas de saúde que dependem da coordenação técnica do ministério. Como é que vai ficar a coordenação nacional do câncer? Como é que vai ficar a política nacional do HIV, do sangue e hemoderivados, e as vacinas que dependem da ação do Ministério da Saúde? É algo muito arriscado e a sociedade tem que ficar bastante atenta. O problema não é só a covid-19.PUBLICIDADE
P. Por que o senhor acha essa presença dos militares tão perigosa?
R. O volume de ocupação de cargos técnicos por militares e por indicações políticas sem qualificação necessária na estrutura do Ministério da Saúde tem ocorrido como nunca antes desde que o SUS foi criado. Nem o pior ministro da Saúde fez o que está acontecendo agora. Há áreas técnicas do Ministério da Saúde, fundamentais a manutenção de programas de saúde, que já passaram por diferentes governos, de diferentes bandeiras políticas, e nunca foram modificadas, devido ao saber acumulado. Pode haver um processo de desmonte da engrenagem que fez o sistema de saúde funcionar nos últimos 30 anos que é muito perigoso. O Exército pode estar puxando pro seu colo a responsabilidade de desmontar o sistema de saúde brasileiro. Esse sistema que é essencial para garantir a segurança sanitária do nosso país.
P. Que estruturas estão sendo modificadas?
R. Além da coordenação de programas técnicos, mudanças na estrutura da secretaria executiva do Ministério da Saúde são preocupantes, pois é a área faz o planejamento orçamentário e que coordenada o repasse de recursos para Estados e municípios por meio do Fundo Nacional de Saúde. Não sou o primeiro a alertar isso na imprensa. Isso pode trazer vários problemas futuros para para Estados e municípios. De imediato, ajuda a entender a baixíssima capacidade de execução orçamentária na pandemia, em que menos de um terço do recurso extraordinário aprovado foi executado após três meses do seu início. Os militares tem competência em muitas áreas, mas não tem experiência na gestão do sistema de saúde brasileiro, que é muito complexo. Se eles conhecessem, não fariam as modificações em áreas extremamente sensíveis como estão fazendo.
P. Apesar dos problemas, o SUS é tido, consensualmente, como uma fortaleza de que o Brasil dispõe para lutar contra pandemia. Mas, mesmo no Estado mais rico do país, São Paulo, há hospitais que precisam de doação para funcionar bem. Como vê as condições do SUS para enfrentar o problema?
R. Primeiro, um sistema de saúde não deve depender de doações. Isso revela uma série de fragilidades estruturais do sistema. Por outro lado, só não estamos em situação pior porque nós temos o SUS. O Brasil tem experiência de resposta em epidemias anteriores, que foram razoavelmente bem sucedidas. O país poderia estar utilizando a sua estrutura de vigilância epidemiológica e de atenção primária à saúde, que cobre 75% da população brasileira. A vigilância e atenção primária poderiam jogar um papel muito importante na identificação precoce de casos, monitoramento de grupos de risco e rastreamento de contatos —pessoas que tiveram próximas de infectados. Se a gente tivesse utilizando adequadamente essa estrutura que o Brasil dispõe, talvez não precisaríamos de um isolamento tão radical por tanto tempo.
P. Por que não estamos conseguindo usar o potencial a nosso favor?
R. O sistema tem várias problemas estruturais que se agravaram nos últimos anos, como o subfinanciamento, a fragilidade de governança e má distribuição de recursos. Se conseguimos promover uma boa expansão de atenção primária, não conseguimos fazer uma reforma na atenção hospitalar: 70% das Regiões de Saúde têm o número de leitos de UTI abaixo do que seria recomendado para situação de normalidade. E estamos falando só do número de leitos. Se formos falar de qualidade da atenção hospitalar... Os doentes graves de covid-19 exigem equipes técnicas extremamente qualificadas pra lidar com a complexidade dos casos, e no Brasil há grande carência nesse aspecto. E por que razão isso acontece? O percentual do gasto público em saúde no Brasil é um dos menores do mundo. O maior gasto concentra-se no setor privado: 56% do total que dirige-se a menos de 25% da população. Ou seja, é um gasto que não ajuda a fortalecer o SUS. Nos últimos anos isso piorou, pelas medidas de austeridade fiscal, que agravaram o subfinanciamento. O Brasil perdeu de 20 a 30 bilhões de reais desde que, em 2016, foi aprovado o congelamento de gastos públicos federais. E aí agora, diante situação com a pandemia, não conseguimos utilizar adequadamente o que temos de bom, e por outro temos uma rede hospitalar tão precária que depende de doações.
P. E a questão da governança? Isso vem de antes do Governo Bolsonaro, certo?
R. Temos no sistema de saúde com áreas de excelência no SUS. Você pode cair num hospital público e pode ter um excelente atendimento, num Incor, num Hospital de Clínicas da USP [ambos em São Paulo]. Agora, são ilhas. A realidade é que a grande parte dos hospitais não é assim, e a gente está falando de São Paulo. Se formos para o interior do Brasil ou mesmo outras capitais, o problema na atenção hospitalar é ainda maior. A descentralização da gestão do SUS para os municípios, sem organizar adequadamente regiões de saúde, criou problema de governança do sistema, pois as capacidades gerenciais são muito distintas. Esse problema é agravado por iniciativas de terceirização que aumentaram a precarização, pois atribuíram responsabilidade a gestores sem nenhum compromisso com o SUS. Apesar de haver algumas boas organizações sociais, existem outras em que o interesse não é produzir saúde. Esse problema ficou mais evidente com o caso dos hospitais de campanha do Rio de Janeiro. Tem hospital que é só tenda, não tem equipamento. Às vezes tem equipamento, mas não tem profissional. Ao mesmo tempo tem um número grande de leitos em hospitais públicos que estão fechados: tem estrutura, mas não tem pessoal. E tem leitos privados ociosos: uma alternativa poderia ser o poder público contratar leito privado e pagar adequadamente para isso. Seria mais econômico do que montar hospital de campanha.
P. E como vê a situação nos Estados e municípios?
R. Os problemas na coordenação nacional afetaram a capacidade de resposta de governos estaduais e municipais. Entretanto, apesar dos problemas, o SUS conseguiu abrir mais de 7.000 novos leitos de UTI em grande medida por iniciativa de Estados e municípios. Tem alguns Estados e municípios fazendo um bom trabalho técnico, mas vemos que infelizmente predomina a falta de capacidade de planejamento e gestão. Só para dar um exemplo do problema da governança do sistema de saúde brasileiro, em vários Estados já houve troca de secretários. O Acre já mudou duas vezes [a mudança foi na gestão municipal de Rio Branco, que trocou uma vez de secretário], Amazonas duas vezes, Amapá duas vezes, Rio de Janeiro duas vezes, Distrito Federal uma vez, Minas Gerais uma vez, Paraíba uma vez, Roraima cinco vezes, Santa Catarina uma vez, Sergipe uma vez, Tocantins uma vez. Estamos no terceiro ministro da saúde desde o começo da pandemia. Como governar um sistema de saúde com tanta troca? Isso expõe fragilidades que precisarão ser enfrentadas se quisermos ter melhor capacidade de defesa a desafios como a pandemia da covid-19 nos apresenta.
El País: Wassef, o fiel advogado que virou uma bomba prestes a explodir
Após a prisão do ex-assessor, investigado em suposto esquema de rachadinha, o advogado e dono do esconderijo em Atibaia deu sucessivas entrevistas à imprensa que se contradizem
Felipe Betim, do El País
Frederick Wassef está uma pilha de nervos. Com livre trânsito nos bastidores do poder, ele se comporta ―ou se comportava― como o Sancho Pança de Jair Bolsonaro. Enquanto na frente das câmeras o presidente segue em sua luta quixotesca contra os moinhos de vento ―a “histeria” do coronavírus, os governadores, o PT, o comunismo e toda sorte de delírio―, o advogado agia fora dos holofotes para manter o controle das batalhas reais que acontecem nos tribunais. Até que a polícia bateu na porta de seu imóvel em Atibaia (SP), às seis da manhã da quinta-feira 18 de junho, e encontrou Fabrício Queiroz. O ex-policial movimentou cerca de três milhões de reais entre 2007 e 2018, segundo o Ministério Público do Rio, sob o comando do então deputado Flávio Bolsonaro, recolhendo parte dos salários de outros assessores ―fantasmas― e repassando o dinheiro para o chefe.
Wassef representava formalmente o senador no inquérito até o último domingo. Após umas primeiras declarações no dia da detenção, manteve um breve silêncio. Até que começou a dar sucessivas entrevistas no final de semana para alguns jornalistas. “Todos estão convictos hoje de que o Fred virou o alvo. Se bater no Fred atinge o presidente, eu e o presidente viramos uma pessoa só”, afirmou à CNN, sem explicar por que Queiroz estava na sua casa. Fez ilações, simulou mistério, falou em não antecipar estratégia de defesa. Disse que nunca falou com Queiroz, embora investigadores tenham constatado que ele estava escondido em sua casa há um ano. “Nunca telefonei para Queiroz, nunca troquei mensagem com Queiroz nem com ninguém de sua família. Isso é uma armação para incriminar o presidente”, assegurou ele ao jornal Folha de S. Paulo.Virou piada a pergunta por telefone da repórter Andrea Sadi, da TV Globo, no último sábado: “O Queiroz pulou o muro? Apareceu voando para casa do senhor?”.
Durante suas entrevistas ao vivo, as câmeras revelavam um homem agitado, como uma bomba prestes a explodir, apresentando versões desencontradas e confusas sobre os motivos de ter abrigado o ex-policial. Disse, por exemplo, que não sabia que Queiroz estava em sua casa no dia de sua detenção. “Soube algumas vezes que estava lá. É óbvio que tem risco [em abrigar Queiroz], mas essa é uma questão de natureza de saúde (...). Se eu permito que ali se acomodasse por proximidade ao local, por preservação, para que não ficasse exposto, não quer dizer que eu tenha tido contato ou qualquer irregularidade”, afirmou mais uma vez à CNN no domingo.
Depois de inúmeros rodeios, ainda tentou descolar o presidente do assunto. “Nunca, jamais, o presidente Jair Bolsonaro soube ou teve conhecimento desses atos, desses fatos. Essa é minha inteira responsabilidade. Eu omiti essas informações do presidente da República e do senador Flávio Bolsonaro”. Passou a dizer, então, que abrigou o ex-assessor por razões “humanitárias”, para que ele pudesse realizar um tratamento de saúde na região. E avisou que deixava o cargo de advogado de Flavio, informação depois confirmada pelo próprio senador, filho do presidente, em seu Twitter.
Se aos olhos do país Wassef se tornou mais um personagem surreal de uma surreal novela, o fato é que suas contradições podem acabar respingando no inquérito que tanto atormenta o presidente Jair Bolsonaro. Há evidências e registros de sobra da proximidade do advogado com o presidente. Um dia antes da operação policial que encontrou Queiroz em sua casa, Wassef se encontrava no Palácio do Planalto para a cerimônia de posse do novo ministro da Comunicação. Ele é conhecido por sua atuação discreta, nos bastidores, dos assuntos ligados ao presidente. Entre os mais importantes, era ele quem representava Bolsonaro nas investigações sobre o atentado a faca contra o então candidato às vésperas das eleições de 2018. Nos dias de apuração das urnas, se encontrava ao lado do atual presidente no sofá de sua casa. Fiel ao clã, acabou ganhando apelido de Anjo, que deu nome à operação da última quinta.
De acordo com a decisão do juiz Flávio Itabaiana Nicolau, havia uma ”rotina de ocultação do paradeiro de Queiroz que envolvia restrições em sua movimentação e em suas comunicações”. Ele era monitorado por “uma terceira pessoa” que, por sua vez, se reportava a um superior hierárquico referido como “Anjo” ―ou seja, Wassef. Chamou a atenção dos investigadores o fato de que o ex-policial recebia dinheiro de terceiros para se manter. O EL PAÍS tentou sem sucesso contactar o advogado.
Caso a versão do Ministério Público se confirme, Wassef mentiu em uma entrevista que concedeu em setembro de 2019 para a jornalista Andreia Sadi na Globo News. Ao ser questionado sobre o paradeiro de Queiroz, foi assertivo: “Não existe a frase o sumiço de Fabrício Queiroz. Eu não sei [onde ele se encontra], não sou advogado dele”. Depois, enfatizou que o ex-assessor havia, sim, comparecido ao Ministério Público. “Jamais deixou de comparecer a qualquer intimação ou chamada do poder público no Rio de Janeiro. Ele disse que jamais, que nunca, repassou um único centavo a Flávio Bolsonaro”, explicou.
No dia da detenção de Queiroz, na quinta-feira, 18, em sua live semanal no Facebook, o presidente Bolsonaro, que não é investigado no inquérito, opinou que a operação policial havia sido “espetaculosa” e tratou de explicar a presença na casa de seu advogado: “E por que estava naquela região de São Paulo? Porque é perto do hospital onde faz tratamento de câncer. Então, esse é o quadro. Da minha parte, está encerrado aí o caso Queiroz”. Wassef também adotou esse argumento, ao afirmar que Queiroz estava no local por causa da proximidade da Santa Casa de Bragança Paulista, onde o ex-policial faria o tratamento para um câncer de próstata.
De acordo com o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, conhecido por defender várias pessoas do universo político em processos criminais, todas essas declarações desencontradas podem trazer mais “complicações” no âmbito do inquérito. “Há uma pergunta óbvia. Por que Queiroz estava lá [na casa de Atibaia], quem efetivamente o protegeu e quem pagou por aquilo. A partir do momento que ele diz que não conhecia e que agora ele diz que escondeu por razões humanitárias, isso evidentemente pode trazer algumas complicações”, disse ao EL PAÍS.
Suas declarações já começam a causar estragos aos olhos do Planalto. Segundo publicou a jornalista Mônica Bergamo na Folha de S. Paulo, o presidente Bolsonaro já teria afirmado a interlocutores estar irritado com Wassef. Ainda na quinta-feira da operação policial a advogada Karina Kufa divulgou uma nota afirmando que seu escritório de advocacia é o único representante do mandatário. “Wassef não presta serviço advocatício em nenhuma ação que seja parte de Bolsonaro e não faz parte do referido escritório”. De acordo com a coluna de Bela Megale, agora o advogado pressiona o presidente para que Kufa seja demitida. Irritado ou não, Bolsonaro vem se apresentando abatido diante das câmeras e com pouco fôlego para travar suas lutas diárias. No dia que Wassef deixou de representar Flávio, o senador destacou o trabalho e a lealdade do advogado. Não há sinais, por ora, de que será jogado aos leões.
UE prepara lista de países para reabrir fronteiras e Brasil deve ser excluído
EUA e Rússia também não cumpririam os critérios exigidos pelo bloco comunitário
A União Europeia está concluindo uma lista de países considerados suficientemente seguros para que seus cidadãos possam viajar para o bloco comunitário a partir de 1º de julho. Segundo fontes diplomáticas, o documento, que deve ser adotado por consenso, se basearia em três critérios: sanitários, de reciprocidade e vínculos com a UE. Isso deixaria de fora países como Brasil, Estados Unidos e Rússia, que não têm conseguido controlar a pandemia de coronavírus. Entretanto, a confecção da lista está sendo um quebra-cabeça para os 27 países da UE, pela dificuldade em encontrar uma fonte de dados fidedigna para embasar esses relatórios.
A UE fechou sua fronteira externa em 16 de março, com exceção de viagens “estritamente necessárias”, como a repatriação de europeus. À medida que se aproxima o 1º de julho, alguns sócios insistem com mais força na urgência de publicar uma lista antes de começar a abri-la. Há semanas os Governos da UE tentam concluir uma tarefa que várias fontes descrevem como extremamente complexa. Os embaixadores tratarão nesta quarta-feira, em uma reunião, de fixar uma primeira lista de países candidatos a ingressar nessa primeira leva, mas será difícil que isso ocorra. Em todo caso, a intenção é fechá-la antes de 1º de julho, dado o risco de que as capitais nacionais decidam seguir seus próprios critérios.
Um dos pontos mais polêmicos envolve os Estados Unidos, que soma 2,3 milhões de diagnosticados e 120.000 mortos, o que indica que a expansão do vírus está longe de ser controlada. Se forem seguidos critérios epidemiológicos, a UE ainda não deveria abrir suas fronteiras com os EUA. Mesmo assim, a decisão não depende só dos dados sanitários. Os Estados Unidos atualmente não permitem a entrada de viajantes europeus, por isso as capitais podem negar a chegada de cidadãos desse país, por questão de reciprocidade.
Fontes governamentais indicam um terceiro elemento mais subjetivo. Em alguns casos, haverá razões políticas ou de proximidade com o país em questão que induzam a abrir as portas mesmo que não haja reciprocidade. Em nível comunitário, fala-se dos países dos Bálcãs. No caso da Espanha, o foco de interesse é Marrocos, que fechou a sete chaves sua fronteira pouco depois de declarada a pandemia, mas que tem um nível de contágios muito baixo e, portanto, a retomada do fluxo de pessoas vindas desse país acarreta um risco pequeno.
Mas, mesmo sob esse critério, não é fácil tomar uma decisão em favor dos EUA, porque o próprio Donald Trump ignorou a importância da relação transatlântica ao decretar, sem aviso prévio, que se fechassem todas as portas a cidadãos procedentes da UE.
Temporada turística
A pressão para abrir as fronteiras procede sobretudo de países turísticos, em especial a Grécia. Atenas, que elaborou sua própria lista com 30 países que considera seguros, não quer prescindir de grandes mercados, como o russo, e inclusive sugere a possibilidade de abrir suas fronteiras aos cidadãos desses Estados para que as companhias aéreas e operadoras de turismo possam oferecer seus pacotes.
Outros países, por outro lado, estão abrindo suas fronteiras com a máxima precaução. É o caso da Dinamarca, que até o próximo dia 27 só autoriza a entrada de cidadãos da Alemanha, Noruega e Islândia. A Espanha evita dar pistas sobre quais países integrarão a lista europeia, mas assegura que não agirá unilateralmente.
A preparação da lista, entretanto, não é uma tarefa nada simples. Todos os países proporcionam dados sobre o alcance da pandemia. Mas várias fontes diplomáticas duvidam da fiabilidade de muitas dessas estatísticas. “O problema é de confiança”, argumentam fontes comunitárias. A isso se soma que muitos países fazem suas contribuições ao debate com argumentos políticos ou de proximidade, segundo estas fontes.
Os diplomatas, entretanto, esperam chegar a um acordo antes do dia 1º para evitar que o desacordo ponha em risco as garantias sanitárias na fronteira externa da União Europeia. O que, por sua vez, representaria uma ameaça para toda a área Schengen.
Afonso Benites: Após flerte com golpe, Bolsonaro diz que missão de militares é a defesa da democracia
Presidente participou de cerimônia de sepultamento de soldado paraquedista morto em acidente, no Rio. Ele tem evitado ator públicos desde a prisão de aliado Fabrício Queiroz
Em sua primeira aparição pública após a prisão de seu amigo Fabrício Queiroz, o presidente Jair Bolsonaro amenizou o tom crítico de seus discursos e afirmou que a missão das Forças Armadas é defender a democracia. A fala de Bolsonaro ocorreu neste domingo, no Rio de Janeiro, durante a cerimônia de sepultamento do corpo de Pedro Lucas Ferreira Chaves, um soldado paraquedista do Exército morto em treinamento. “A nossa missão, a missão das Forças Armadas, é defender a pátria, é defender a democracia”, disse o presidente. No mesmo evento, o presidente afirmou que ele e os militares estão “a serviço da vontade da população brasileira”.
Nos últimos meses, ele tem radicalizado e flertado com uma espécie de autogolpe com o apoio dos militares para se manter no poder. Já disse, por exemplo, que não aceitaria um “julgamento político” de seu mandato. E sugeriu, em mais de uma ocasião, que, conforme o artigo 142 da Constituição Federal, as Forças poderiam agir como um poder moderador para intervir em outros poderes. Essa tese já foi rejeitada em ao menos duas decisões de ministros do Supremo Tribunal Federal nos últimos dias. O ministro Roberto Barroso, do STF, classificou esse entendimento de “terraplanismo constitucional”.
Ex-paraquedista, Bolsonaro se mostrou emocionado na solenidade que contou com dezenas de pessoas em um período em que o país enfrenta uma pandemia do novo coronavírus, com mais de 50.000 óbitos registrados. O gesto contrasta com a atitude do presidente diante da pandemia no Brasil. Desde o início da crise sanitária jamais fez alguma manifestação direta de condolências aos familiares das vítimas da enfermidade como a deste domingo, direcionada aos parentes do soldado. “Todos nós, ao lado do Chaves, devemos nos preparar para, se um dia a nação assim o pedir, se preciso for, darmos a vida pela nossa pátria e pela nossa liberdade”, disse Bolsonaro.
Em Brasília, o discurso é visto como uma tentativa de pacificação, ainda que temporária, com parte do Congresso e, principalmente, com o Judiciário, de onde tem partido as principais derrotas de Bolsonaro e na qual ele sofreu uma série de ataques nas últimas duas semanas.
Entre as derrotas do presidente está exatamente a prisão do ex-policial militar Queiroz na quinta-feira passada na casa do advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef. Queiroz foi assessor do senador Flávio Bolsonaro, primogênito do presidente. É investigado por comandar um esquema de rachadinha, no qual se apropriava de parte dos salários dos servidores do gabinete de Flávio.
O presidente também se deparou com o avanço de dois inquéritos que resultaram na apreensão de documentos, computadores e celulares de 50 apoiadores seus, testemunhou a quebra de sigilo de 11 parlamentares governistas e de quatro empresários suspeitos de financiarem manifestações antidemocráticas. Atos estes que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo e, em alguns casos, de intervenção militar.
Neste domingo, foi registrado mais um ato em Brasília, um dos poucos em que o presidente não participou. O ato foi esvaziado, assim como em outras cidades, como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Além de evitar participar do ato da manifestação, o presidente também mudou, ainda que provisoriamente, o hábito de se aproximar de seus apoiadores. Faz quatro dias que ele não conversa com os fãs que o aguardam na entrada do Palácio da Alvorada, a residência oficial da Presidência da República.
Nos bastidores, ele fez dois movimentos. Sinalizou aos militares que ainda o apoiam que tomará mais cuidado com o que fala, para não radicalizar os discursos, e pediu para três de seus ministros se encontrarem com o ministro do Supremo, Alexandre de Moraes. Ele é o relator de duas investigações que atingem bolsonaristas.
O encontro entre os ministros ocorreu na sexta, 19, e contou com a participação de André Mendonça (Justiça), Jorge Oliveira (Secretaria-Geral) e José Levi do Amaral (Advocacia-Geral da União). Moraes também é ministro no Tribunal Superior Eleitoral e está nas mãos dele a continuidade do julgamento de dois dos oito processos que pedem a cassação da chapa presidencial eleita em 2018 por disseminação de desinformação, fake news.
Se antes Bolsonaro falava muito para o seu extremista público, com a perda de apoio e os ataques vindos de diversos flancos que podem resultar na perda de mandato, agora, ele ameniza os seus discursos. Só não está claro quanto tempo dura essa trégua.
Jamil Chade: Na ONU, o Brasil trai seus cidadãos para proteger os EUA das cobranças sobre racismo
Reunião do Conselho de Direitos Humanos previa investigação da polícia norte-americana, mas proposta não foi apoiada pelo |tamaraty. Temor de efeito bumerangue é evidente
Num enorme salão da ONU, com capacidade para mais de 2.000 pessoas, uma reunião convocada em caráter de urgência em Genebra começou na última quarta-feira de uma maneira inusitada para os rígidos padrões de encontros diplomáticos: todos os embaixadores foram convidados a se levantar e respeitar um minuto de silêncio em memória do afro-americano George Floyd, morto nos EUA por um policial. Os embaixadores usavam máscaras. Alguns, por conta da pandemia. Outros, por conta da hipocrisia.
Tratava-se do Conselho de Direitos Humanos da ONU, um órgão acostumado a lidar com as piores atrocidades do planeta. Desta vez, ainda que o encontro fosse emergencial, o tema era o racismo, tão antigo quanto não resolvido, graças à impunidade que continua a imperar.
A proposta era clara: dar um sinal de basta às violações contra afro-descendentes e aproveitar do clamor das ruas para, finalmente, lidar com a brutalidade das polícias, principalmente nos EUA. Os autores do projeto, os países africanos, pediam a instauração de uma investigação internacional contra o governo americano. Se fosse aprovado, seria a primeira na história por parte de órgão da ONU contra Washington.
O encontro, portanto, ganhava uma dimensão histórica. Fosse pelo assunto sobre a mesa. Fosse pelo resultado que poderia trazer. Enquanto estátuas desabam em ruas e praças da civilizada Europa, era dentro de um prédio testemunha de manobras diplomáticas e da disputa pelo poder que um capítulo importante da luta pela igualdade poderia ser contado.
Antes de a palavra ser passada aos governos, a sala da ONU foi tomada por um segundo silêncio profundo quando o irmão de George Floyd, Philonise Floyd, fez um apelo para que governos “ajudem a trazer justiça” para afro-americanos.
Batendo no peito, ele insistia em mexer com aqueles representantes de todas as cores, credos e origens. “Meu irmão for torturado até a morte, no meio da rua”, disse. “O policial queria dar uma lição: vidas negras não importam nos EUA. Ninguém foi expulso até que protestos ocorreram. E quando protestos ocorreram, foram recebidos por uma polícia brutal. Foram silenciados e mortos”, afirmou Philonise. O mal-estar era evidente entre os engravatados diplomatas e embaixadoras sofisticadas.
Coube ainda a Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos, colocar a morte do americano num contexto maior. “O ato de brutalidade gratuita (contra Floyd) passou a simbolizar o racismo sistêmico que prejudica milhões de pessoas de ascendência africana ―causando danos perversos, diários, de vida, geracionais e muitas vezes letais”, disse. “Os protestos de hoje são o culminar de muitas gerações de dor, e longas lutas pela igualdade. Muito pouco mudou, ao longo de muitos anos. Devemos aos que partiram antes, assim como aos que virão, aproveitar este momento, finalmente, para exigir uma mudança fundamental”, defendeu a ex-presidente do Chile. Ela, porém, alertou: condenar atos de racismo não é suficiente. “Devemos ir além e fazer mais”, insistiu. “A paciência se esgotou”, disse.
Um a um, governos tomaram a palavra. Entre frases ocas e prestação de contas para seu eleitorado, vários prestavam sua homenagem às vítimas da violência policial, enquanto outros insistiam como afro-descendentes estão fartos de tanta injustiça.
Resistência
Mas nem todos estavam de acordo com o projeto, principalmente os aliados de Donald Trump ou países que, com ex-colônias, sabiam que poderiam ser alvos de questionamentos também de práticas de racismo. Praticamente todo o grupo ocidental tinha um objetivo: forçar os africanos a abandonar a ideia de mencionar textualmente o Governo dos EUA no pedido de investigação. No lugar de um inquérito contra a polícia americana, a proposta era de que a resolução tratasse apenas do racismo em geral no mundo. Coube aos europeus uma das frases mais infelizes do encontro: “Precisamos olhar para nossas próprias almas”.
Ao ampliar o escopo da condenação, a tática era de transformar a resolução num documento vazio. Seria sobre “todos”. E sobre ninguém. Mas logo chegou a vez do Brasil falar. Seria a vez de escutar um país com uma enorme população negra, com uma profunda dívida social e com um histórico de colocar o combate ao racismo como centro de sua ação na agenda internacional de direitos humanos. À medida que o discurso enviado por Brasília ecoava naquela sala, não conseguia deixar de sentir uma profunda tristeza e náusea diante de um Governo que, uma vez mais, estava traindo seus próprios cidadãos.
O comportamento europeu não surpreendia, ainda que fosse lamentável. Mas as palavras do Brasil eram de uma violência profunda ao adotar uma postura de defesa velada do presidente Donald Trump, da polícia e da injustiça. Não houve nenhuma sinalização de solidariedade às vítimas. Nenhuma referência ao motivo do encontro. Apenas clichês sobre como o racismo era algo a ser combatido.
Mas o plano era outro: socorrer o aliado americano e socorrer a si mesmo. “O racismo não é exclusivo a nenhuma região específica”, afirmou a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo. Segundo ela, trata-se de um problema “enraizado em diferentes partes do mundo, afetando uma ampla proporção da humanidade”. “Nenhum país deve ser singularizado nesse aspecto”, disse. Ou seja, não citem os americanos ou qualquer país no texto.
“É nosso dever falar contra o racismo. Espero que possamos fazer de uma forma que nos una e não que nos divida ainda mais, num mundo já polarizado”, defendeu. Fiquei pensando: mas por qual motivo lidar com o racismo nos dividiria? Salvo se a opção for a de ser conivente com o crime.
No Itamaraty, uma ala próxima ao chanceler defendia que o Brasil fosse contrário ao projeto. Pelo menos dois motivos estariam pesando. O primeiro deles se refere à aliança entre Brasília e a Casa Branca. Washington vem pressionando governos a barrar o projeto no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Mas o Governo brasileiro também temia que, se aprovada, a comissão de inquérito também poderia analisar o comportamento da polícia brasileira, alvo de duras críticas internacionais. No Planalto, a ideia de colocar em questão a atuação das forças policiais está fora de questão.
Uma noite de pressão
A reunião que começou na quarta-feira se arrastaria por dias. Durante uma noite de pressões, os autores da proposta foram obrigados a abandonar a ideia de uma comissão de inquérito contra os EUA. A quebra de braço envolvia temas distantes do racismo. A Casa Branca fez questão de chantagear aliados que ousassem votar em apoio dos africanos, inclusive ameaçando cortar recursos para programas de cooperação. A delegação sul-africana não escondia que as ameaças vindas de Washington eram reais.
Na ONU, há um mito: a de que todos os países têm um voto e que eles têm o mesmo mesmo. O que esse mito não conta é como o tal país chega a optar por um voto a favor ou contra uma resolução. Vulneráveis, os mais dependentes de ajuda externa simplesmente sucumbem ao poder dos grandes na hora de um voto determinante.
Por horas, os autores do projeto viveram um impasse. Alguns defendiam a manutenção do texto original, com referências aos EUA. Mas a pressão financeira era insustentável para muitos.
Uma versão intermediária do texto, assim, foi desenhada. Nela, o nome de George Floyd seria mencionado, para salvar a imagem dos governos na votação. Mas a comissão de inquérito seria eliminada. Em seu lugar, apenas um pedido para que a burocracia da ONU elaborasse um “informe” sobre a situação do racismo sistêmico no mundo e a violência policial.
Para a Casa Branca, isso ainda não era suficiente e a pressão continuou, até que o nome do país fosse removido. E assim ocorreu. Quando o texto foi submetido à votação, ele passou a ser ameaçado de se transformar em uma resolução para emoldurar e pregar na parede, sem qualquer impacto real para a vida de milhões de pessoas.
Jamil Dakwar, diretor do Programa de Direitos Humanos da American Civil Liberty Union, não escondia sua indignação. “É absurdo que a resolução final aprovada pelas Nações Unidas não faça menção aos Estados Unidos, onde a polícia mata pessoas, particularmente negros, a taxas alarmantemente mais altas em comparação a outros países desenvolvidos”, afirmou.
“A ONU precisa fazer seu trabalho ―e não ser intimidada― e responsabilizar os Estados Unidos. O país deve enfrentar um escrutínio global independente por sua opressão sobre o povo negro”, disse. John Fisher, da Human Rights Watch, optou pela esperança. “Embora ficando bem aquém do inquérito internacional abrangente exigido por centenas de organizações da sociedade civil, a resolução trará as importantes questões do racismo sistêmico e da violência policial nos Estados Unidos sob escrutínio internacional pela primeira vez, ao mesmo tempo em que abordará o racismo sistêmico e a violência policial em outros lugares”, disse.
Para ele, os esforços dos Estados Unidos para evitar a atenção do Conselho “apenas destacam por que esse exame é necessário, e até onde ainda há que ir para desmantelar as estruturas perniciosas do racismo institucionalizado”.
“Nenhum Estado, por mais poderoso que seja, deve ser isento do escrutínio do Conselho, e a resolução de hoje abre a porta para trazer maior atenção internacional às violações tanto por parte dos EUA quanto de outros Estados poderosos no futuro”, disse.
No Brasil, o tom também foi de esperança por parte dos ativistas, principalmente por conta do papel que a resolução pode ter para garantir que o tema da violência policial seja colocada de uma vez por todas na agenda da ONU. Também foi comemorada a referência explícita ao ressurgimento do neo-fascismo.
Wania Sant'anna, representante da Coalizão Negra de Direitos e vice-presidente do Conselho Curador do IBASE, afirma ter ficado satisfeita por conta dessa perspectiva.
O texto, esvaziado, foi aprovado por consenso. Mas, momentos depois, foi a vez de governos ocidentais tomarem a palavra para alertar que não aceitarão que Bachelet examine o caso de Floyd. A UE, por exemplo, insistiu que não haveria motivo de a ONU mergulhar no assunto se ele já estava sendo tratado nos EUA. O governo da Austrália adotou a mesma postura, indicando que a ONU terá de fazer um exame “amplo”. Ou seja, sem citar países.
Naquela sala, diplomatas se felicitavam por ter chegado a um acordo para salvar a reputação de todos. Os governos africanos diriam que fizeram sua parte. Os Ocidentais usariam o papel para dizer que o combate ao racismo é uma prioridade. Só se esqueceram que o texto corre o risco de nada mudar na vida de milhões de pessoas.
E o apelo do irmão de Floyd por uma comissão de inquérito? Ele pode esperar. Afinal, já esperaram por tantos séculos, golpeados por ataques contra sua dignidade.
O Ocidente e o Governo brasileiro conseguiram aprovar uma resolução para mostrar ao mundo que estavam comprometidos a agir. Mas desidratada o suficiente para não representar uma ameaça imediata.
Contra a força das ruas e as imagens de um assassinato em uma democracia, o Brasil e outros optaram por um apoio velado ao opressor. E, com seu joelho, não apenas deixava Floyd pela segunda vez sem ar. Mas esperam perpetuar o crime contra sua própria população negra, ignorada a cada dia, abandonada em sua suposta alforria e asfixiada pelo discurso diplomático e repleto de brutalidade.
Diante de todo o mundo e com interpretação nas seis línguas oficiais da ONU, Floyd foi uma mais uma vez asfixiado.
Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
El País: Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, é preso em São Paulo
O policial aposentado e amigo da família do presidente Jair Bolsonaro é investigado no suposto esquema de 'rachadinha' na Alerj
O policial aposentado e ex-assessor do senador Flavio Bolsonaro (PSL-RJ), Fabrício Queiroz, foi preso na manhã desta quinta-feira em Atibaia, cidade do interior de São Paulo. Queiroz é investigado no suposto esquema de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Os mandados de busca e apreensão, e a prisão do policial aposentado, foram realizados pela Polícia Civil e pelo Ministério Público de São Paulo após determinação da Justiça do Rio. Também foi autorizada a prisão da esposa de Queiroz, Márcia Oliveira de Aguiar.
O ex-assessor estava em um imóvel de Frederick Wasseff, advogado da família Bolsonaro. De acordo com informações de um caseiro, repassadas à polícia, Queiroz estava no imóvel havia cerca de um ano. Após passar pelo Instituto Médico Legal (IML), ele foi encaminhado para o Departamento de Homícidios e Proteção à Pessoa (DHPP), e de lá será levado para o Rio.
A Polícia Civil também realiza outras buscas e apreensões, inclusive, em um imóvel no bairro Bento Ribeiro, zona norte do Rio, onde vive Alessandra Esteve Marins, ligada ao gabinete de Flavio Bolsonaro. O servidor da Alerj Matheus Azeredo Coutinho, a ex-assessora da legislativa Luiza Paes Souza e o advogado Luis Gustavo Botto Maia também são alvo de medidas.
Flavio Bolsonaro afirmou em rede social que encara com tranquilidade a prisão de Queiroz. “A verdade prevalecerá! Mais uma peça foi movimentada no tabuleiro para atacar Bolsonaro. Em 16 anos como deputado no Rio nunca houve uma vírgula contra mim. Bastou o Presidente Bolsonaro se eleger para mudar tudo! O jogo é bruto!”, escreveu no Twitter.Flavio Bolsonaro✔@FlavioBolsonaro
Encaro com tranquilidade os acontecimentos de hoje. A verdade prevalecerá! Mais uma peça foi movimentada no tabuleiro para atacar Bolsonaro. Em 16 anos como deputado no Rio nunca houve uma vírgula contra mim.Bastou o Presidente Bolsonaro se eleger para mudar tudo! O jogo é bruto!
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Queiroz trabalhou por mais de dez anos —de 2007 a outubro de 2018— no gabinete do senador Flávio Bolsonaro, que foi deputado estadual por quatro mandatos. Chamado de amigo pelo presidente, Queiroz passou a ser conhecido depois que um relatório do Controle de Atividades Financeiras (Coaf), do final de 2018, apontou movimentação de 1,2 milhão de reais, entre repasses recebidos e enviados, em suas contas ao longo de um ano, valor que as autoridades consideraram incompatíveis com sua renda e atividade.
O Coaf também considerou atípico o fato de Queiroz ter recebido depósitos de outros servidores do gabinete, o que indica a prática de rachadinha —quando funcionários públicos são obrigados a transferir parte de seus salários a parlamentares que os contrataram ou a seus aliados. Outra transação que chamou a atenção foi um cheque de 24.000 reais para a hoje primeira-dama, Michelle Bolsonaro. O presidente afirma que o repasse consistiu no pagamento de parte de um empréstimo dele ao PM.PUBLICIDADE
As suspeitas contra Queiroz levaram a Promotoria a abrir investigação contra o próprio Flávio por suspeita de lavagem de dinheiro e peculato (desvio de dinheiro público). Em julho de 2019, o caso foi suspenso provisoriamente pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, que considerou que houve quebra de sigilo no compartilhamento irregular pelo Coaf de informações financeiras do parlamentar com os investigadores. Essa decisão acabou por congelar mais de 900 apurações semelhantes. No final de novembro, no entanto, o plenário da Corte decidiu que esse tipo de procedimento é legal, e a investigação contra o senador foi retomada.
Em abril deste ano, o site The Intercept divulgou documentos e dados sigilosos do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro (MP-RJ) que apontavam que Flávio Bolsonaro financiou com dinheiro público a construção de prédios da milícia no Rio. De acordo com os investigadores, que falaram com The Intercept em condição de anonimato, Flávio estaria recebendo atualmente o lucro do investimento dos prédios por meio de repasses feitos pelo ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega —executado em fevereiro na Bahia— e pelo ex-assessor Fabrício Queiroz.
Segundo a reportagem, Flávio pagava os salários de seus funcionários com a verba do seu gabinete na Alerj, e Queiroz confiscava cerca de 40% dos vencimentos dos servidores e repassava parte do dinheiro ao ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, apontado como chefe do Escritório do Crime, uma milícia especializada em assassinatos por encomenda.
Juan Arias: Primeiro alerta aos militares. Acabarão como o Sansão bíblico?
A ideia de Bolsonaro se rodear do Exército pode ser um bumerangue. Nada poderia ser mais perigoso para o Brasil
O Brasil vive uma situação política peculiar. Um presidente, o ultradireitista capitão reformado Jair Bolsonaro, que se blindou com militares em seu Governo, incluindo vários generais como ministros. A ideia de se rodear do Exército pode ser, porém, um bumerangue contra ele e contra os militares, que podem acabar como na história bíblica de Sansão.
O primeiro alarme acaba de soar. Enquanto Bolsonaro vê sua taxa de apoio popular reduzida a 30% antes dos dois anos de mandato, os militares, que eram junto com a Igreja uma das instituições com maior índice de aprovação na sociedade, começam a descer a ladeira. Segundo a recente pesquisa do Instituto da Democracia, pela primeira vez o mítico apoio popular ao Exército começa a desmoronar, perdendo 7 pontos, enquanto sua permanência no Governo não contribui para a democracia na opinião de 58%.
Começa-se a notar na opinião pública a inquietação de que essa presença maciça dos militares no Governo de Bolsonaro, com suas manias golpistas, possa resultar em um desastre para todos. O apoio à ideia de uma ruptura institucional para permitir um golpe militar em nome do combate à criminalidade passou de 55,3% em 2018 para escassos 25% hoje.
Cabe perguntar aos militares o que os leva a continuar apoiando um Governo que está murchando aos olhos da opinião pública, cada vez mais encurralado internacionalmente. O índice de aprovação a Bolsonaro no Brasil se deteriorou os últimos meses com o desprezo do presidente pela pandemia, a tentativa de ocultar as mortes e sua falta de empatia com as vítimas, que estão prestes a serem as mais numerosas do mundo.
Há quem se pergunte o que esperam os militares para abandonar essa situação de apoio a um Governo contra o qual estão crescendo as manifestações populares, as quais poderiam alcançar a eles mesmos. Como escreveu dias atrás Carla Jiménez, diretora de redação do EL PAÍS Brasil, essa ambiguidade dos militares pode fazê-los serem vistos como “cúmplices” das ações de um presidente que já é tido como um caso psiquiátrico. Será só o acúmulo de salários, como ironizou o genial colunista Elio Gaspari? Ou será o prazer da visibilidade midiática por seus cargos no Governo, que os faz aparecerem, dia sim, dia não, pontificando sobre a política, da qual deveriam ficar de fora?
De qualquer modo, a responsabilidade dos militares perante a sociedade que começa a abandoná-los é grave, já que nada poderia ser mais perigoso para o Brasil, para sua imagem dentro e fora do país, que acabar perdendo sua cota cada vez mais minguada de popularidade.
Seria triste que os militares brasileiros que deram apoio à democracia, o que acabou por redimi-los da noite escura da ditadura, possam perder hoje sua credibilidade por um prato de lentilhas. Tomara não repitam a simbologia da passagem bíblica de Sansão, para citar um exemplo tirado do Livro Sagrado que seu atual chefe, o presidente Bolsonaro, exibe junto à Constituição.
Sansão, segundo aparece no Livro dos Juízes (capítulos 13 a 16) da Bíblia hebraica, foi o último juiz de Israel antes da monarquia. Tinha sido agraciado por Deus com uma força especial. Era capaz de despedaçar um leão com suas mãos. Seus inimigos eram os filisteus. Contra eles Javé tinha dado um poder especial que residia em sua vasta cabeleira de nazareno.Sansão pediu permissão para se apoiar em uma coluna do edifício e com um simples movimento fez desabar o templo, onde morreram ele e os filisteus
Sansão, entretanto, caiu na fraqueza de se entregar às delícias de uma prostituta que lhe arrancou o segredo da sua força. Assim, enquanto dormia em seus braços, fez que lhe cortassem sua cabeleira, e começou seu declínio. Os inimigos lhe arrancaram os olhos, obrigaram-no a labutar num moinho de grãos. Só que ali o seu cabelo cresceu novamente, e ele recuperou a força. Os filisteus não sabiam, e um dia o convidaram a ir ao templo. Estava, diz a Bíblia, abarrotada com 3.000 filisteus que ocupavam até o teto do templo. Sansão pediu permissão para se apoiar em uma coluna do edifício e com um simples movimento fez desabar o templo, onde morreram ele e os filisteus.
As histórias bíblicas têm muitas leituras. A de Sansão já foi tema de todas as artes, da literatura à pintura, e de todas as interpretações religiosas e laicas. E hoje se tornou atual na complexa história de Bolsonaro e dos militares. Não sabemos de onde vem a força que Bolsonaro revelou nas últimas eleições, quando obteve 57 milhões de votos sem nunca ter sido nada antes, nem como deputado em seus 30 obscuros anos de Congresso e menos como militar, já que foi forçado a abandonar sua carreira por causa dos seus instintos terroristas.
Talvez essa força do “mito”, que como Sansão hoje ameaça derrubar as colunas da democracia, tenha sido conferida pelos milagrosos robôs e fake news usados em sua campanha, ou como desforra pela humilhação de ter ficado em simples capitão reformado, para se tornar comandante-chefe de todas as Forças Armadas do país. É algo de que hoje ele se gaba. Não se deram conta os militares de que o acolheram e estão se tornando seus cúmplices no governo?
Cuidado, porque o novo Sansão pode acabar em sua loucura preferindo que todos morram com ele, derrubando as colunas do templo da Constituição. Perderíamos todos: ele, os militares, a sociedade e o mundo, porque o Brasil acabaria reduzido a mais uma república de bananas após ter sido o coração econômico do continente e a inveja do mundo quando o país desfrutava tranquilo de sua reconquistada democracia e era visto como o país do futuro.
Como acaba de afirmar Fernando Gabeira, que conhece como poucos, palmo a palmo, os territórios mais recônditos do Brasil e não pode ser acusado de conivência com o poder, “nem todos sabem como este país é grande, diverso, solidário e magnífico em sua beleza”. E alerta: “Impedir que ele se dissolva é a grande tarefa de construir uma civilização tropical onde só querem pastos, fuzis, carros e eletrodomésticos”.
Cuidado, senhores militares! O Brasil é maior, mais importante e interessante no mapa mundial que as mesquinhas manobras de poder. E vocês são os garantes de defender este grande patrimônio para que não seja jogado na roleta da morte.
El País: 'A popularidade é irrelevante, com o tempo a verdade prevalece', diz Sérgio Moro
Ex-ministro, que teve imagem desgastada pela Vaza Jato e por sair do Governo, encara resistência em manifestos pró-democracia. Para ele, não há risco de ruptura no Brasil
Carla Jimenéz, Naiara Galarrga Cortázar e Afonso Benites, El País
Quando o ex-juiz Sergio Moro (Maringá, 1972) aceitou seguir o ultradireitista Jair Bolsonaro no Governo fez uma aposta arriscada. Entregava o seu capital político como símbolo anticorrupção a um deputado veterano e incendiário, um nostálgico da ditadura. A lua de mel acabou no fim de abril, como um divórcio ruim, não consensual e uma acusação bomba contra o mandatário: ele queria trocar o diretor-geral da Polícia Federal e interferir na corporação por interesses pessoais. O Supremo Tribunal Federal abriu uma investigação contra Bolsonaro e contra o próprio Moro.
Em uma entrevista por videoconferência desde Curitiba, onde está confinado com a família, por conta da pandemia de coronavírus, Moro critica os arroubos autoritários de Bolsonaro mas diz que não vê riscos de uma ruptura democrática. Perguntado se o vídeo podia ser exibido, negou o pedido, embora tenha feito Lives para outros veículos, e para o movimento Vem pra Rua.
Ele, que já teve bonecos infláveis gigantes com seu rosto exibidos em todo o país, diz que não se importa com sua queda de popularidade. Saiu de uma imagem positiva entre 60% dos entrevistados em maio de 2019 para 42% no mês passado, segundo o Atlas Político. A série de reportagens da Vaza Jato, que revelou bastidores da Lava Jato, e sua saída do Governo, contribuíram para essa mudança de percepção. Moro não vê relação entre a sua atuação como juiz da Lava Jato e o Estado de Direito fragilizado atualmente, como apontam seus críticos. “Ao contrário, o combate à corrupção fortalece o Estado de Direito”, defende. Também revela que depois de quase 24 anos como servidor público, sendo 22 na magistratura federal, terá de se reinventar profissionalmente, provavelmente no setor privado. Já começou a assinar uma coluna na revista Crusoé, ferrenha defensora da Lava Jato.
Pergunta. O senhor saiu do governo 16 meses após assumir o ministério com ataques ao presidente. Ele o enganou ou o senhor cometeu um erro de avaliação?
Resposta. Quando entrei no Governo foi uma decisão difícil, largar a magistratura. O que disse publicamente é a pura verdade. As pessoas às vezes tendem a acreditar em conspirações, motivações ocultas. Minha intenção era ir ao Ministério da Justiça para consolidar os avanços [contra a corrupção] dos últimos anos, além de realizar um trabalho de combate ao crime organizado e à criminalidade violenta. Progressivamente, minha percepção foi que essa agenda, principalmente anticorrupção, não estava tendo a prioridade necessária e ao final, por conta dessa interferência na Polícia Federal… Sou um ex-juiz, temos uma formação, para nós, o rule of law, o estado de direito é fundamental. Para mim foi o momento em que entendi que já não fazia mais sentido minha permanência no Governo. Saí não porque queria prejudicar o Governo em meio à pandemia. Entendi que precisava, que tinha o dever de revelar os feitos que envolviam a minha saída, inclusive para proteger a Polícia Federal.
P. Sente-se decepcionado com o presidente com o compromisso dele de lutar contra a corrupção?
R. Eu permaneci fiel aos compromissos que me levaram ao Governo. Se ele permaneceu ou não é uma questão que tem de ser feita a ele.
P. O senhor se arrepende de ter assumido o Ministério da Justiça?
R. Não. Acho que fui fiel aos meus compromissos. Quando entrei a bolsa [de valores] subiu, as pessoas gostaram. Eu recebi muito apoio. Claro que tinham críticas também, mas em geral foi algo muito positivo. Tivemos queda expressiva em 2019 dos principais indicadores criminais, inclusive de assassinatos, que caíram 19%, algo que nesse percentual não tinha esse precedente histórico. Foi implementada uma série de políticas, mas infelizmente não foi possível ir adiante.
P. A questão dos homicídios dolosos depende dos governos estaduais. O enfrentamento é feito por eles diretamente, não pelo governo federal.
R. Ao contrário. O combate ao crime envolve muito a questão do simbolismo. Boa parte dos homicídios no Brasil, nas periferias, estão relacionados ao crime organizado. Não estou dizendo que não tem o mérito dos Estados e mesmo dos municípios. Tenho certeza se tivesse tido um movimento contrário, um incremento do número de assassinatos a responsabilidade iria se recair sobre o governo federal.
P. Na segunda-feira, ativista bolsonarista Sara Winter foi presa por atos antidemocráticos. Há uma escalada nos conflitos contra o Judiciário. Como os avalia?
R. No Brasil e em algumas partes do mundo vemos uma polarização excessiva, que dificulta o bom funcionamento da democracia, o diálogo, e isso gera falta de tolerância e impede que questões de construção de políticas públicas, por exemplo, sejam tratadas de uma maneira racional. Esses radicais, em particular, representam o extremo dessa polarização. Evidentemente há que preservar a liberdade de opinião. Agora essa liberdade de opinião não abrange a prática de crimes incluindo as ameaças explícitas contra instituições ou pessoas. Foi essa a situação que surgiu e infelizmente o Supremo teve de decretar a prisão pelos excessos cometidos.
P. O senhor se viu como alvo desses extremistas?
R. O que eu vi, principalmente depois da minha saída do Governo, são ataques dessa natureza nas redes sociais. Não sei até que ponto espontâneas ou não.
P. O senhor encarnou um desejo pela ética nas relações políticas. Havia quase uma unanimidade, era um apoio pouco visto para alguém da magistratura. Mas o senhor perdeu popul
aridade . Está sendo mal compreendido ou vê que alguns pontos de sua trajetória poderiam ter sido diferentes?
R. Minhas opções foram tomadas sob a perspectiva de fazer a coisa certa. Às vezes, fazer a coisa certa envolve consequências. Nunca foi um objetivo a questão da popularidade. Se houve alguma incompreensão dos motivos de minha saída, principalmente por uma parte dos apoiadores do presidente, eu lamento, mas isso não mudaria nada. A popularidade é irrelevante, não estou em concurso de popularidade. Existe também essa rede de desinformação que muitas vezes prejudica a percepção adequada dos fatos por parte das pessoas. Sinceramente não estou preocupado com essa questão. Com o tempo, a verdade acaba sempre prevalecendo.
P. Existem três manifestos em defesa da democracia. Dois deles colocam barreiras ao seu nome. Como se posiciona diante disso?
R. Parte um pouco da incompreensão do que foi a Lava Jato. Ela foi uma grande operação que revelou casos disseminados de subornos no âmbito do Governo federal durante a gestão dos presidentes eleitos pelo PT. Algumas pessoas têm essa visão de que houve um viés político, mas o fato é que se fizeram investigações e foram condenados agentes políticos da esquerda e da direita. Existe esse rancor que vem de longe. Estamos em um momento difícil com essa pandemia, as dificuldades econômicas, não penso que deveríamos estar discutindo defesa da democracia, embora se compreenda porque esteja se fazendo isso. A democracia se tem como pressuposto, é algo que não precisaríamos estar defendendo em um contexto normal.
P. Mas o senhor reconhece que é necessária essa defesa, não?
R. Sim, absolutamente. Considero necessário, mas é lamentável que tenhamos de estar discutindo isso.
P. Aceitaria estar com o ex-presidente Lula, com o PT, se eles quisessem em uma frente pela democracia?
R. Isso é uma questão desnecessária. Eu tenho definido o governo Bolsonaro como populista com arroubos autoritários. Temos uma democracia e instituições sólidas, não acredito que ela esteja de fato ameaçada, mas esse tipo de arroubo evidentemente é indesejável.
P. O presidente Bolsonaro foi deputado por 28 anos. Em várias ocasiões demonstrou esse flerte com o autoritarismo. Achava que ia ser diferente?
R. A grande maioria não pensava que isso ocorreria. Minha entrada no Governo na época foi vista por muitos que seria um elemento de moderação. Também eu teria esse papel dentro do Governo. Como tenho esse histórico de juiz também me via ali como uma espécie de um garante, em certa medida, de que não haveria esses arroubos autoritários. O mais relevante é que há uma reação forte da sociedade e temos instituições que estão reagindo. Em que pese todos os alarmes, temos um Supremo que está atuando com independência. Temos um Congresso que está funcionando normalmente. A democracia brasileira é consolidada, essas turbulências vão passar.
P. Então, não vê risco de uma ruptura constitucional?
R. Não vejo esse risco, mas isso não justifica os arroubos autoritários. Passaríamos melhor sem eles.
P. No ano passado o jurista espanhol Baltasar Garzón expressou críticas sobre sua atuação na condução do processo do ex-presidente Lula e por ter aceito ir ao Governo Bolsonaro. O que diria a ele?
R. Não quero entrar em um debate com Baltasar Garzón. Acho que existe uma certa incompreensão. No caso do ex-presidente eu o condenei em um processo e a sentença foi confirmada em outras duas instâncias. Logo foi condenado em outro processo. Tem toda uma realidade de uma prática sistemática de suborno no Governo dele. Temos a corrupção envolvendo agentes do Partido dos Trabalhadores, antes revelada no julgamento da ação penal 470 (caso Mensalão). Nunca teve nada a ver questão ideológica ou pessoal. É um álibi que foi tentado se vender no exterior em relação ao ex-presidente que ele seria vítima de uma de perseguição política e aí tenta levar para esse lado pessoal. Simplesmente cumpri meu papel como juiz.
P. The Intercept e outros meios, incluindo o EL PAÍS, cobrimos a Vaza Jato em que apareceram algumas movimentações que podem ser levadas na ação de suspeição que o envolve.
R. Essa é outra ilusão. Nada do que foi decidido nos processos, nas provas, nada é afetado por essas situações específicas. Acho que esse episódio aconteceu no passado, tem os hackers que estão respondendo aos processos. Isso não invalida nada do que foi abordado pela operação Lava Jato.
P. Na Lava Jato o senhor tinha uma comunicação estreita com os procuradores. O senhor acha que cometeu alguma falha ali?
R. Temos um modelo brasileiro em que o juiz que atua mesmo na área de investigação quanto na fase de julgamento. Tem gente que critica isso, mas é o que está previsto na legislação. Numa investigação como a operação Lava Jato, falar com o Ministério Público, com os advogados, com a polícia é algo usual. Sem querer reconhecer a autenticidade daquilo [a Vaza Jato], não existe nada que aponte alguma fraude, alguma coisa imprópria ou indevida. Sinceramente, acho que esse assunto é história antiga.Temos uma democracia e instituições sólidas, não acredito que ela esteja de fato ameaçada, mas esse tipo de arroubo autoritários evidentemente é indesejável
P. Mas a questão é um julgamento do ex-presidente. Há uma corrente na comunidade jurídica que diz que a Lava Jato fragilizou o que o senhor mesmo defende, o Estado de Direito. Essas críticas não lhe...
R. Ao contrário, o combate à corrupção fortalece o Estado de Direito. Tem muita manipulação de discurso. Alguns dizem no Brasil fala que a Lava Jato representou a criminalização da política. Não, o político que comete um crime de corrupção o regular é essa conduta ser punida pelas Cortes de Justiça. Isso não tem nada de criminalização da política.
P. Como ex-juiz, como analisa os indícios, as provas, contra os filhos do presidente? Acredita que há material para levá-los a julgamento?
R. Esse tipo de avaliação entendo que não cabe a mim.
P. O senhor tem mais provas dessa suposta interferência do presidente na PF?
R. Essas questões estão sendo discutidas lá no Supremo.
P. Teme que essa investigação volte contra o senhor, de que se torne o alvo?
R. Não. Eu fiz o que era certo e o que eu disse era absolutamente verdade.
P. O senhor é visto como um nome para a eleição 2022. Onde se encaixa no espectro político?
R. Temos uma pandemia, um problema econômico muito sério com pessoas perdendo o emprego, pessoas sem renda, empresas fechando e acho que é absolutamente inconveniente qualquer debate envolvendo essas questões políticas. Existe uma agenda urgente no país a ser enfrentada e que não permite esse tipo de debate fora de hora. Não tem nenhuma discussão pertinente de esquerda ou direita ou sobre o que vai acontecer em 2022, 2026, 2030 ou eleições futuras. É muito cedo para esse tipo de conversa. Tudo seria especulativo.
P. Quais são os seus planos? Está procurando um trabalho?
R. Como consequência da saída do Governo, tem um período de quarentena jurídica para evitar conflitos de interesses. Nesses seis meses eu preciso me reinventar, provavelmente no âmbito do setor privado. Mas essas questões ainda estão em andamento. Agora, o desejo, de fato, é permanecer contribuindo para o debate público.
P. A ideia é continuar no Brasil?
R. Puxa vida! As coisas ainda estão muito prematuras. Talvez sair. Talvez ficar. Essa pandemia também complica todos os cenários. É uma situação um pouco difícil no momento.
P. Recentemente, o senhor tuitou que o governo Bolsonaro estava criando um ministério da propaganda. Esse é um termo que ficou forte entre nazistas. Crê que a gestão Bolsonaro tenha essa característica?
R. Não. Aí é exagero. Era uma crítica. Houve a transferência da Secretaria da Comunicação e me pareceu que o perfil principal era a área da propaganda. Mas propaganda que, de alguma maneira, todos os governos fazem. Isso não tem nenhum nada a ver com nazismo ou fascismo, necessariamente.
P. O senhor está de acordo com a presença de tantos militares no Governo? Não acha que isso fere um pouco a imagem das Forças Armadas? O tempo todo parece uma gestão de medo. Não vê isso como um elemento que colocou a democracia do Brasil em xeque?
R. A presença de militares no Governo não, necessariamente, é negativa. Eles têm um papel a desempenhar e isso acontece também em outros países sem que se cogite que isso envolva algum risco à democracia. Agora, essas invocações constantes das Forças Armadas e a necessidade de estar reafirmando nossos compromissos democráticos é ruim para o país. Traz instabilidade, afugenta investimento. A minha avaliação é que temos uma democracia consolidada, as instituições estão funcionando, estamos passando por momentos de turbulência.
P. Essa tensão permanente tem aumentado o número de pedidos de impeachment do presidente. O senhor apoiaria um processo de impeachment do Bolsonaro?
R. (Risos, seguidos de negativas com a cabeça). Não me cabe fazer essa avaliação. Veja, eu sou um cidadão comum hoje.
P. Mais ou menos. Uma coisa sou eu, somos nós aqui [entrevistadores] levantarmos uma bandeira. Outra coisa é o senhor. É diferente.
R. Não cabe a mim esse tipo de postura no momento. Essa é uma questão que depende do Congresso, se sim ou se não. O que eu fiz, já me trouxe bastante problemas. Saí do Governo, me expus a uma situação delicada. Perdi, não posso mais voltar para a magistratura.
P. Como o senhor avalia a gestão que Bolsonaro faz da pandemia?
R. Esse foi um dos motivos subjacentes à minha saída do Governo. Não me sentia confortável. Não é a minha área, a saúde, mas causava-me incômodo estar dentro do Governo e o presidente ter essa postura negacionista. Assim como o PT nega a ocorrência dos crimes na Petrobras, o presidente nega a existência de uma pandemia, o que dificulta qualquer política em nível nacional de combate ao vírus. Não se enfrenta a pandemia negando a gravidade dela. Isso faz com que nós tenhamos hoje 43.000 óbitos pelo coronavírus, o que é muito grave. Talvez, parte desses óbitos teria sido evitada com uma política mais racional por parte do Governo federal.Assim como o PT nega a ocorrência dos crimes na Petrobras, o presidente nega a existência de uma pandemia
P. Algo que está claro é que o presidente quer armar a população. O senhor era um desarmamentista no Governo?
R. Parte dos apoiadores do presidente defende uma maior flexibilização sobre o porte de armas. É uma reivindicação, em certa medida legítima, mas ela tem de ter os seus limites. Facilitar a posse de armas em casa, já que era uma promessa eleitoral do presidente, não é nenhum absurdo. Agora, tem sempre que se discutir até que ponto se vai. Em alguns momentos esse limite tem sido ultrapassado. Evidentemente, não é aceitável o discurso de armar a população para se opor às medidas sanitárias. Isso não tem como.
P. O senhor falou com o presidente desde que saiu do Governo?
R. Não.
P. Nem com a deputada bolsonarista Carla Zambelli [afilhada de casamento de Moro]?
R. [Risos constrangidos] Não.
Paulo Esteves e Monica Herz: Com Ernesto Araújo, a pátria amada se rende ao temor servil
O vídeo da reunião ministerial revela que, em seus delírios, o chanceler se vê servindo a mesa em que as grandes potências desenham os contornos da ordem internacional pós-pandemia
O Brasil vê diminuir a sua capacidade de influenciar a política internacional. Pior, perde o respeito da comunidade internacional. É claro que a política doméstica e a infame resposta à covid-19 afastam os demais países. Mas o dano se torna irremediável com o soberanismo, uma orientação para a política externa que paradoxalmente combina soberania e servilismo.
Países médios, como o Brasil, optam por uma estratégia de alinhamento automático com uma grande potência para diminuir custos ou receber incentivos. Com Bolsonaro, o alinhamento aos Estados Unidos não produziu nenhum desses resultados e ainda ameaça a balança comercial brasileira. Por que, então, Bolsonaro abraçou o bordão “America first”? Por duas razões: de um lado, há uma identidade de propósitos e modos de operação entre Bolsonaro e Trump; de outro, o alinhamento sem bônus é o resultado automático da política externa soberanista, como tentaremos demonstrar. Ambos extraem legitimidade da produção de antagonismos. Instigam a fragmentação social e promovem a luta entre esses fragmentos. O inimigo é móvel e mantém sua base de apoio coesa e mobilizada (Venezuela, os marxistas culturais, ou o vírus chinês). Além de operarem de forma semelhante, têm pelo menos um projeto comum: esvaziar a esfera pública e destruir o Estado.
No caso brasileiro, esse projeto se manifesta em vários setores, inclusive na política externa soberanista. Soberanismo não é uma doutrina, mas um punhado de enunciados justapostos. Essa colcha de retalhos combina as palavras liberdade, soberania e democracia, às quais o chanceler atribui significados inesperados que, embora não façam sentido, têm como efeito mobilizar os ressentidos em defesa de um modelo inexistente de família tradicional. Parafraseando o chanceler, a nação é uma “família estendida”. Como soberanas, família e nação devem ser protegidas da interferência externa. Liberdade, no vocabulário do bolsonarismo, significa a ausência de limites para o exercício da vontade do soberano, seja o chefe da família ou o chefe supremo da nação. Em uma palavra, o chefe faz o que quiser com sua família e o presidente com sua nação (e ponto final). Não por acaso, após 18 meses de Governo, a única iniciativa de política externa, para além de desmanches institucionais, foi a cooperação com os governos da Hungria, Polônia e Estados Unidos para a proteção da família.
O problema é que o soberanismo rejeita o sistema internacional baseado em normas que, segundo seus advogados, limitariam a ação soberana. Seguindo os Estados Unidos (que acabam de se retirar da OMS) e Israel, o Brasil abandona o apoio a iniciativas junto às instituições multilaterais. Essas instituições são, contudo, fundamentais para moderar a preponderância das grandes potências e para responder a importantes questões como... pandemias. Além do abandono do quadro normativo há aqui a afirmação de uma concepção darwinista da gramática do poder: relações de poder assimétricas condicionariam o alinhamento automático, nesse caso, com os EUA. O “soberanismo” tem como consequência paradoxal o servilismo. Para garantir que Bolsonaro possa incendiar a pátria amada, Ernesto Araújo curva-se com temor servil à potência. O vídeo da reunião ministerial revela que, em seus delírios, o chanceler se vê servindo a mesa em que as grandes potências desenham os contornos da ordem internacional pós-pandemia.
Dessa forma, abandonamos qualquer proposta de construção de uma política externa autônoma e publicamente informada. Mais grave, a política externa do bolsonarismo é incapaz de articular a inserção internacional do Brasil à resolução dos enormes problemas sociais e econômicos do país. Abandona-se, também, a posição de liderança na América Latina, deixando, como no caso da Argentina, que opções políticas contingentes tenham impacto sobre a confiança construída por décadas.
Diante das transformações impostas pela pandemia, precisamos de uma política externa capaz de influenciar atores, regras e o fluxo de recursos materiais no sistema internacional. Uma política externa que expresse a complexidade de interesses da sociedade brasileira e não apenas os interesses de uma fração de sua elite. Essas tarefas exigem três movimentos: o fim da instrumentalização da política externa para a produção de antagonismos sociais, a revisão da política de alinhamento automático e a construção de alternativas que articulem a política externa aos reais problemas sociais e econômicos do país.
Paulo Esteves e Monica Herz são professores de relações internacionais da PUC-Rio.
El País: O labirinto de Bolsonaro
O mais negacionista dos líderes eleitos democraticamente na pandemia, presidente flerta com o autoritarismo e evoca militares para tentar se blindar de tentativas de destituição
Naiara Galarraga Gortázar, do El País
Seguir a política brasileira é uma mistura entre subir numa montanha russa e ver uma telenovela. Trepidante, o enredo é sempre complexo. Principalmente quando alguém como Jair Messias Bolsonaro, de 65 anos, praticamente monopoliza a cena. Nestes tempos de pandemia, ele conseguiu se destacar no mundo como o mais negacionista entre os líderes eleitos democraticamente e o único que demitiu não um, mas dois ministros de Saúde. Em vez de dedicar seus esforços para gerir a crise do coronavírus, concentra-se em satisfazer seus fãs com selfies e apertos de mão. Resultado: a curva de contágios continua subindo no país mais populoso da América Latina, novo epicentro de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). O Brasil é o segundo país com mais casos e (e isso que pouca gente faz o teste) e o também o segundo com mais mortos ―mais de 42.000 no balanço mais recente, neste sábado.
Bolsonaro politizou a pandemia como poucos mandatários. Deixou isso claro ao proclamar: “Os de direita tomam cloroquina; os de esquerda, tubaína.” A polarização que atinge o Brasil nos últimos anos se estendeu ao coronavírus por obra do presidente ―que, de quebra, ativa sua base eleitoral.O Brasil é o segundo país do mundo em número de casos de Covid-19. A curva de contágios continua subindo
A crise sanitária preocupa, mas também inquietam cada vez mais os flertes de Bolsonaro com o autoritarismo. “É preciso resistir à destruição da ordem democrática, para evitar o que aconteceu na República de Weimar quando Hitler, após eleito pelo voto popular e posteriormente nomeado pelo presidente Paul von Hindenburg como chanceler da Alemanha, não hesitou em romper e em nulificar a progressista, democrática e inovadora Constituição de Weimar, impondo ao país um sistema totalitário de Poder”, escreveu o ministro Celso de Mello a seus colegas do Supremo Tribunal Federal (STF), dias atrás, pelo WhatsApp.
O presidente deixou claro, desde o primeiro contágio, que as recomendações sanitárias lhe pareciam uma idiotice; e os meios de comunicação, histéricos. Embora oscile de tom à medida que se abrem tumbas nos cemitérios, ele não deixou de incentivar atos multitudinários e, mais recentemente, incentivou apoiadores a invadir hospitais para checar se havia mesmo doentes neles. O que tira seu sono não é o vírus, e sim a possibilidade de que este arrase a economia, que parecia começar a se recuperar lentamente. Apesar das críticas dentro e fora do país, ele nunca deixou de defender a reabertura das empresas. Quer se desvincular a todo custo da hecatombe econômica que espreita logo ali. Os milhões de desempregados, um eventual aumento dos crimes e a instabilidade social... Quer assegurar que a culpa pela situação que o país enfrentará na pós-pandemia poderá ser jogada em outros ―os governadores, os prefeitos. E evitar, de qualquer jeito, que um bichinho invisível frustre sua reeleição em 2022.
Bolsonaro ameaça não cumprir ordens que considera “absurdas”. Nesta sexta, fez seu ministro da Defesa acompanhar uma nota em que diz que não apenas ele, mas também as Forças Armadas, não vão cumprir “ordens absurdas” ou vereditos de “julgamentos políticos”. A escalada retórica coincide com as novas frentes se abrem contra dele. A demissão de um símbolo anticorrupção como o ex-juiz Sergio Moro desatou várias reações em cadeia. A investigação que o Supremo abriu para saber se o presidente interferiu na Polícia Federal para proteger seus filhos, o espetáculo de uma reunião ministerial que mais parece um encontro “conspiranoico” e uma avalanche de pedidos de impeachment. Nesta semana, uma nova trama se juntou à coleção de problemas: dois dos oito processos contra a chapa Bolsonaro-Mourão começaram as ser julgados no TSE (Tribunal Supremo Eleitoral). Apesar dos trâmites serem extremamente lentos, as ações, especialmente as que investigam o suposto envolvimento de sua campanha em um esquema massivo de fake news, podem custar o mandaro a ele e ao vice. Bolsonaro está fraco, sim, mas a chave é quanto. “É o seu momento de maior fraqueza com relação ao poder institucional. Mas, se olharmos fora do campo democrático, não saberia dizer se ele está mais fraco ou mais forte”, explica Flávia Bozza Martins, professora de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná. “Sempre tivemos Governos que, com erros e acertos, tinham um pacto com os princípios democráticos.”
O ambiente político está muito tenso. A erosão da democracia avança com os constantes ataques do mandatário à separação de poderes e à imprensa. Bolsonaro legitima o golpismo que cresce em grupos de WhatsApp quando, nos atos públicos, incentiva os seguidores que defendem uma intervenção militar. Os desmentidos dos ministros militares são quase rotina. A cúpula das Forças Armadas parece não estar confortável, mas, ao mesmo tempo, a sua cara mais visível é justamente o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, que se mostrou ao lado de Bolsonaro em manifestações e agora na nota ameaçadora.
Nesse contexto, não surpreende que a rejeição a Bolsonaro bata recordes. Seus críticos, que antes da pandemia eram metade dos entrevistados, agora são dois terços. Os bolsonaristas mais pragmáticos, os que votaram nele para ver o Partido dos Trabalhadores (PT) longe do poder, agora o abandonam por causa de Sergio Moro ou porque veem o líder avançando sem considerar os perigos. Mas esse um terço que ainda o apoia se mantém firme. São os bolsonaristas duros, os que viram a demissão de Moro como uma traição. Os que votaram no capitão reformado para dar um bom “chute no traseiro” do sistema. “São os que se extasiam ao vê-lo na reunião ministerial enquanto fala dezenas de palavrões, os que consideram que esse vídeo mostra o Bolsonaro genuíno.”
É um respaldo sólido. Três vezes maior que o apoio que Dilma Rousseff tinha quando caiu no impeachment de 2016. Embora haja dezenas de pedidos de destituição, neste momento as contas para um julgamento político como aquele são insuficientes. Bem sabe disso a destituída presidenta de esquerda. “Bolsonaro tem os votos garantidos para impedir um impeachment. Esta será uma luta longa”, explicou Dilma recentemente a um grupo de correspondentes por videoconferência. Uma destituição assim demanda o que a jornalista Vera Magalhães chama de “uma alinhamento de astros: vontade do Congresso, apoio popular, uma economia em frangalhos e justificativa de crime de responsabilidade.” Até pouco tempo, as únicas manifestações de rua desde que a pandemia colocou meio país em quarentena eram as de partidários de Bolsonaro, exigindo a flexibilização das medidas de segurança. Mas esse quadro começou a mudar há duas semanas, com atos anti-Bolsonaro de torcidas organizadas que se autodenominam “antifascistas” ao qual se uniram também movimentos antirrascistas e alguns partidos de oposição —neste domingo, os dois lados prometem voltar às ruas. Na economia, todos os indicadores são ruins, mas ainda não estão em queda livre, embora o Banco Mundial preveja para o Brasil uma recessão pior do que a média mundial, com recuo de 8% em 2020. Por fim, resta ver as chances de prosperarem as acusações contra ele no campo legal, já que em todos os caminhos, menos o do TSE, é preciso autorização do Congresso para avançar.
O impeachment é a via política clássica, precisando do endosso inicial do presidente da Câmara dos Deputados, até agora inexistente, para existir. Mas também existe a via penal, no inquérito que corre no Supremo. Embora ainda em fase de investigação, é a frente mais avançada. O procurador-geral, apontado por Bolsonaro em setembro passado, decidirá se há material para denunciá-lo ―mas, em qualquer caso, o pedido precisaria de autorização do Congresso para virar uma ação penal e afastar o presidente. A tentativa de se blindar com apoio parlamentar está em pleno vapor. O presidente, que que governou o primeiro ano com uma maioria parlamentar instável, agora investe em assegurar cargos para garantir os votos do chamado Centrão. Recriou até um ministério exclusivamente para isso.
No horizonte, há outro fator: o general da reserva Hamilton Mourão. O vice-presidente assumirá o poder se Bolsonaro cair —salvo que ambos sejam retirados nas ações que correm no TSE. Ainda que Mourão tenha sido a primeira escolhida do presidente, os seguidores de Bolsonaro consideram que o fato de Mourão proceder das Forças Armadas poderia ser um elemento dissuasivo ante a tentação de destituir o presidente. A cientista política Martins aponta outro fator importante: “Mourão não é um político, o que dificulta sua conversa com o Congresso” para realizar uma eventual destituição. Salvo surpresas, as eleições municipais previstas para o fim do ano, e a renovação do comando do Senado e da Câmara no começo do ano que vem, serão o melhor termômetro para medir as forças de Bolsonaro e seus aliados.
El País: Brasil salta de quinto a segundo país com mais mortos por coronavírus no mundo em duas semanas
Com 41.828 óbitos, país ultrapassa Reino Unido. Pesquisadores veem aceleração da doença com reabertura do comércio. Projeção calcula 60.000 mortos até o fim do mês
Bastaram duas semanas para o Brasil saltar da quinta para a segunda posição no ranking de países com maior número de mortes pela covid-19. Nesta sexta-feira, o país ultrapassou o Reino Unido (que tem 41.481 mortes) ao registrar 41.828 vítimas fatais do novo coronavírus. De acordo com os dados do Ministério da Saúde, o país soma 828.810 infecções —com 909 novos óbitos e 25.982 casos notificados em 24 horas— e ainda investiga 4.033 mortes.
Há um mês, autoridades de saúde e cientistas alertam sobre a tendência de que o Brasil se torne o próximo epicentro global da pandemia, posto atualmente ocupado pelos Estados Unidos, com 2.083.548 de casos confirmados e 116.130 mortes. No ranking de óbitos por milhão de habitantes, o Brasil ocupa a 11ª posição global, com 180 mortes por milhão de pessoas. A Bélgica lidera a contagem, com 831 óbitos por milhão, seguida pela Espanha, com 580 mortes por milhão, de acordo com os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).
No início de maio, quando o Ministério da Saúde sequer registrava 8.000 óbitos pelo novo coronavírus, estudos da Universidade Johns Hopkings e um levantamento do Observatório Covid-19 BR indicavam que o país superaria 1,6 milhão de infecções. Na mesma época, especificamente no dia 8 de maio, a Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto publicou um estudo que apontava que o Brasil já teria dois milhões de casos de covid-19. Considerando essa estimativa, teríamos, hoje, quatro milhões de casos.
Em 20 de maio, o EL PAÍS estimou que apenas um em cada 20 casos é notificado pelo Governo e que o número de infectados no Brasil pode chegar a 3,7 milhões de pessoas. Esse é o número obtido quando se aplica o método de um grupo de matemáticos e epidemiologistas da London School of Hygiene and Tropical para calcular a subnotificação.
Vitor Engrácia Valenti, doutor em Ciências e professor da UNIFESP, que também trabalha com projeções feitas pela Oxford University de Londres, aponta que o Brasil já pode ser o epicentro global da pandemia. “Era esperado que, com uma estimativa de comportamento da doença, o pico de contágios chegasse em dois ou três meses depois do primeiro caso, mas a covid-19 ainda está em avanço no Brasil”, diz o pesquisador.
Valenti aponta que, com o recente relaxamento das medidas protetivas —comércio e outros serviços reabriram esta semana em São Paulo, a principal cidade do país— o Brasil pode registrar mais de duas mil mortes diárias no começo de julho. Já o professor de medicina Domingos Alves, responsável pelo Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, esse registro pode ser ainda maior. “Nós somos o único país no mundo que depois do dia 50 estava acelerando no número de casos e de óbitos. Temos projeções que indicam que podemos chegar a 5.000 óbitos por dia em julho”, afirma.
“Como não podemos prever o comportamento das pessoas, se vão respeitar o isolamento social ou não, é possível que tenhamos 3.000 ou 4.000 mortes por dia no próximo mês”, pondera Valeti. Um estudo do qual ele fez parte demonstra que o isolamento salvou pelo menos 10.000 vidas no país. Para o cientista, o que é certeza é que já não existe a possibilidade de se falar em um “cenário otimista” para o Brasil. “Em nossa projeção realista, o país teria 41 mil óbitos por covid-19 no dia 9 de junho, uma cifra muito próxima da registrada oficialmente na data [38.406], considerando a polêmica sobre a transparência nos números divulgados pelo Ministério. De acordo com a projeção pessimista, podemos chegar a 60 mil mortes até o final deste mês”.