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Oliver Stuenkel: Um demagogo mais competente que Trump asfixiaria a democracia nos EUA mais facilmente

O sistema democrático norte-americano sobreviveu, em grande parte, graças à falta de disciplina de Trump. Um populista com ambições autoritárias, que aprendesse com os erros do magnata, representaria muito mais riscos no futuro

Joe Biden venceu as eleições presidenciais americanas de 2020 porque soube transformar o pleito em um referendo sobre Donald Trump. Mesmo a poucas semanas das eleições, o candidato democrata era econômico em suas aparições públicas, dando a seu adversário a maior visibilidade possível. “Trump deve receber corda suficiente para se enforcar. Quanto mais ele fala, melhor para mim”, Biden apostou. Deu certo: acima de tudo devido a sua gestão desastrosa da pandemia, que ceifou a vida de um quarto de milhão de norte-americanos, Trump tornou-se o primeiro presidente dos EUA, desde 1992, a não se reeleger.

O clima festivo nas grandes cidades americanas depois da declaração do resultado final, na semana passada, foi diferente daquele de 2008, quando o jovem senador Barack Obama acabara de se tornar o primeiro presidente-eleito negro da história dos EUA. Doze anos mais tarde, não se celebrava a vitória de Joe Biden, mas o fim da presidência de Donald Trump e a ameaça autoritária que ela representava. “Parece que acabamos de completar um exorcismo”, o cientista político Francis Fukuyama resumiu.

Não há dúvida de que a derrota de Trump pode ser interpretada como prova de resiliência da democracia americana. Numerosas iniciativas do Republicano, ao longo dos últimos quatro anos, foram bloqueadas pela justiça, ele não conseguiu calar jornais ou intimidar acadêmicos e, em uma mensagem pouco sutil na semana passada, o general Mark Milley, oficial militar de mais elevada patente das Forças Armadas dos EUA, alertou: “Não fazemos juramento (...) a um ditador. Fazemos juramento à Constituição. Cada soldado (...) vai defender esse documento, independentemente do preço que tenhamos que pagar.” Vista dessa perspectiva, a principal diferença entre os Estados Unidos e países cuja democracia colapsou ao longo das últimas décadas ―como Venezuela, Nicarágua, Hungria, Turquia, Rússia, Zimbabwe, Egito e Filipinas― seria a qualidade de suas instituições.

Porém, enquanto as instituições certamente tiveram papel relevante para explicar o fracasso do projeto autoritário do presidente Trump, há uma outra razão, possivelmente ainda mais importante: a democracia norte-americana sobreviveu, acima de tudo, graças à incompetência e à falta de disciplina do presidente, que muitas vezes atuou visando a pequenas vitórias táticas, em vez de planejar o longo processo de desmonte das estruturas democráticas, como fizeram outras lideranças autoritárias ao redor do mundo.

A pandemia talvez seja o melhor exemplo. Em vez de aproveitar-se da crise sanitária para concentrar mais poder na presidência ―como fez o líder húngaro Viktor Orbán―, Trump optou pelo negacionismo meia-boca, permitindo a permanência de cientistas sérios no seu próprio governo. Em vez de aprovar um grande pacote de estímulo e aumentar gastos públicos para a população mais pobre, o que provavelmente teria aumentado sua taxa de aprovação, Trump não tomou a dianteira no debate.

Diferentemente de muitos líderes autoritários que conseguiram se consolidar no poder, o presidente norte-americano nunca tentou engajar aqueles fora da sua base eleitoral. Suas tentativas de atrair o voto feminino pouco antes do pleito ―dizendo, durante um comício, “Mulheres suburbanas, vocês por favor podem gostar de mim?”― nunca foram sérias. Da mesma forma, apesar da boa vontade inicial no mercado financeiro, Trump jamais tentou controlar seus impulsos nas redes sociais, mesmo ciente de que a incerteza gera frustração em Wall Street.

O presidente poderia ter provocado tensões internacionais alguns meses antes do pleito, tática clássica para impulsionar o sentimento nacionalista e aumentar a aprovação popular. Diferentemente da grande maioria dos líderes autoritários, que entendem que a destruição de um sistema democrático requer foco, dedicação e paciência, Trump aproveitou-se da presidência, até o fim, para lidar com suas ansiedades pessoais. Como a professora Ayse Zarakol observa, “[Trump] não teve o foco de Putin, a coragem de Erdogan ou a crueldade de Rodrigo Duterte.”

A verdade alarmante é que uma versão igualmente autoritária, porém mais disciplinada, mais afável e empática, mais paciente e mais competente de Donald Trump, provavelmente teria sido reeleita com tranquilidade, e há muitos indícios de que o Republicano teria tido mais espaço para implementar medidas antidemocráticas no seu segundo mandato ―como, aliás, costuma acontecer na maioria das vezes quando a democracia morre lentamente.

Não restam dúvidas de que muitos americanos votaram em Biden no último 3 de novembro para defender a democracia. Muito sugere, porém, que a vitória do democrata não se deve tanto à rejeição às tendências autoritárias, mas ao repúdio pela incompetência do presidente Republicano. Como os resultados no Senado mostram, onde aliados de Trump conseguiram defender a maioria republicana e no Congresso, onde a maioria democrata diminuiu, o trumpismo nos EUA veio para ficar. A próxima ameaça autoritária que os EUA poderão enfrentar ―possivelmente já em 2024― dificilmente seria tão amadora quanto a de um tosco apresentador de TV, que pouco se interessa pelo ato de governar. Na hora de enfrentar um caudilho mais competente, o bloco democrático não poderá se limitar a jogar parado e torcer para que o candidato com ambições antidemocráticas se enforque sozinho. Esse risco é um luxo que os democratas não poderão mais ter.

Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Afonso Benites: Bolsonaro insiste na antidiplomacia com os EUA e Brasil pode virar ‘criminoso do clima’

Presidente ignora gestos de aproximação feitos pelo vice, Hamilton Mourão. Clima belicoso poderá levar o país a ser incluído em grupo de vilões ambientais, em estudo pelo Governo Biden

Quase uma semana após os Estados Unidos decidirem quem será o seu presidente a partir de janeiro de 2021, o mandatário brasileiro Jair Bolsonaro segue sem cumprimentar o vencedor Joe Biden. O que era uma diplomacia do silêncio a favor do derrotado Donald Trump tornou-se uma espécie de antidiplomacia com a maior potência mundial, em que Bolsonaro ameaça usar armas contra a maior potência militar mundial para, em seu entendimento, proteger a Amazônia. A declaração feita nesta semana – “quando acaba a saliva, tem que ter pólvora” – espantou diplomatas que trabalham em Brasília. Para quatro deles ouvidos pela reportagem, a fala demonstra que o presidente está ignorando os gestos de aproximação feito por seu vice, o general Hamilton Mourão, que tenta garantir uma relação mais cordial e plural com diversos países.

Mourão comandou uma comitiva de embaixadores europeus em viagem à Amazônia, na qual ele tentou demonstrar que o governo estaria agindo no enfrentamento ao desmatamento e aos incêndios florestais ilegais. Quando retornou a Brasília, disse a jornalistas que o presidente se pronunciaria quando os votos dos americanos fossem todos contados. Foi desautorizado por Bolsonaro, que disse não estar tratando sobre nenhum assunto com o vice.

A primeira reação aos discursos oficiais pode vir já do governo Biden, que pretende criar uma lista de países “criminosos do clima”, na qual um dos primeiros alvos poderia ser o Brasil. O objetivo é forçar os governos a se empenharem a cumprir a meta do acordo de Paris de impedir um aumento da temperatura global acima de 2ºC. As informações foram reveladas pelo site Vox. Biden pretende renovar os compromissos dos Estados Unidos com acordo climático de Paris, do qual Trump o retirou. Neste contexto, o Brasil tem sido visto como uma espécie de vilão ambiental, que pouco age para impedir desmatamentos ou incêndios na Amazônia e no Pantanal. Ao contrário, enfraquece os mecanismos de fiscalização e de punição aos responsáveis pelos crimes.

Dois dos diplomatas que acompanharam o grupo na viagem à Amazônia relataram ao EL PAÍS que parece haver dois governos distintos: o dos discursos radicais de Bolsonaro e de seu chanceler Ernesto Araújo e o de Mourão, que busca constante aproximação. “O diálogo [com Mourão] flui bem, mas na prática não vemos nada muito efetivo ocorrendo”, disse um deles à reportagem.

E, mesmo sendo desautorizado pelo presidente, o vice segue o defendendo. Nesta quinta-feira, disse a jornalistas que Bolsonaro usou uma “figura de retórica” ao usar o termo pólvora. O próprio Bolsonaro relatou a interlocutores em conversas reservadas, que “exagerou”, mas não se desculpou ou se explicou publicamente.

Desconforto

Para o cientista político da consultoria Dharma, Creomar de Souza, há uma espécie de desconforto simbólico para Bolsonaro, que não consegue sustentar a política externa conservadora. “As declarações do presidente têm mais impacto para público interno do que sobre a política externa como um todo”, disse. Mas até entre seus apoiadores, Bolsonaro sofreu críticas. Em três grupos do WhatsApp que são monitorados pela reportagem houve quem reclamasse da fala do presidente sobre usar a pólvora para enfrentar os EUA. Após apresentar um meme em que, meia hora depois de iniciar um confronto bélico, o Brasil já era rebatizado de “South Hawaii”, membros do grupo disseram que o presidente deveria estar “surtando” para confrontar os americanos ou que ele deveria “ficar calado para não dar munição à esquerda”, que lhe faz oposição.

Nesse contexto, para evitar embates, o presidente já foi aconselhado a trocar seus ministros de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A ideia era fazer uma sinalização positiva aos Estados Unidos, o segundo maior parceiro comercial do Brasil. Até o momento, contudo, o presidente tem sustentado ambos e respaldado os atos de Araújo.

Na sua conta, o mandatário tenta creditar atos que não foram necessariamente seus, mas de burocratas que negociam há anos alguns tratados como o acordo Mercosul União Europeia ou o Acordo de Comércio e Cooperação Econômica (ATEC, na sigla em inglês). Entre outras medidas, esse compromisso prevê a facilitação do comércio e o combate à corrupção. Ainda assim, seu andamento depende da boa vontade do presidente eleito nos EUA. “Como ele não é um acordo tarifário, você deixa vários setores da economia brasileira vulneráveis às políticas públicas que o novo Governo venha a decidir e que o próprio Trump utilizou, como quando ele sobretaxou o aço que comprava do Brasil”, disse Souza.

Bloqueio a Huawei

Ainda na seara econômica, outro ponto que está em jogo é a interferência dos EUA no leilão do 5G. Nesta semana, o Governo brasileiro endossou a iniciativa americana sobre o 5G e sinalizou que pode banir a empresa chinesa Huawei do leilão da banda larga de última geração que ocorrerá em 2021. O gesto ocorreu em na reunião entre o chanceler Araújo e o secretário para Crescimento Econômico, Energia e Meio Ambiente do Departamento de Estado dos EUA, Keith Krach. Na ocasião, o chanceler concordou em apoiar os princípios da Clean Network, que é uma iniciativa para frear as empresas chinesas do setor de telecomunicações, como a Huawei. O Brasil foi o primeiro país da América Latina a demonstrar que aceitará esse veto.

Em conversas com investidores brasileiros, Krach relatou que, independentemente de quem governar os EUA, essa pressão sobre o 5G permanecerá. Segundo ele relatou, esse é um tema bipartidário em uma briga geopolítica entre as duas maiores potências mundiais.

Para o presidente da Federação dos Interestadual dos Trabalhadores e Pesquisadores em Serviços de Telecomunicações, João de Moura Neto, falta visão estratégica ao Brasil ao se aliar automaticamente nessa pauta aos Estados Unidos. “É ignorar que a maior parte dos equipamentos de comunicações no Brasil hoje já é da Huawei. O que farão com eles?”, questionou. Na visão de Neto, há o risco de haver uma demissão em massa de trabalhadores e aumentar os preços dos equipamentos em até cinco vezes, como ocorreu em alguns Estados americanos que viram reduzir a quantidade de fornecedores.

O leilão, contudo, deverá ocorrer apenas no segundo semestre do ano que vem. Até lá, Bolsonaro irá tatear o território para saber se segue esse alinhamento com os americanos ou se radicaliza de vez a estratégia, dando espaço para se tornar, de fato, um pária internacional.


El País: Richard Nixon: “Se houver uma forma de desbancar Allende, é melhor fazer isso”

Cinquenta anos depois da chegada do socialista à presidência do Chile, o Arquivo de Segurança Nacional dos EUA divulga documentos inéditos que revelam as estratégias de Washington para desestabilizá-lo

Introdução de um dos documentos do Conselho de Segurança Nacional dos EUA agora desclassificados, que traça um perfil do ex-presidente chileno Salvador Allende.
Introdução de um dos documentos do Conselho de Segurança Nacional dos EUA agora desclassificados, que traça um perfil do ex-presidente chileno Salvador Allende.NSA ARCHIVE

Rócio Montes, do EL País

Cinquenta anos depois da chegada de Salvador Allende ao poder no Chile, em 3 de novembro de 1970, o Arquivo de Segurança dos EUA divulgou documentos que derrubam a versão oficial sobre o papel desempenhado pela Administração de Richard Nixon (1969-1974) contra o Governo do socialista chileno. Durante décadas, os Estados Unidos afirmaram que intervieram no país sul-americano não com a intenção de desestabilizar a Unidade Popular de Allende, e sim de apoiar os partidos de oposição como vistas a uma eleição que seria realizada em 1976. Em suma, para “preservar” a democracia e suas instituições. O próprio Henry Kissinger, então assessor de Segurança Nacional dos EUA, declarou que seu país não sabia do golpe de Estado de 1973 ―que acabou com os mil dias da via chilena para o socialismo e levou o presidente à morte― e não tinha relação com aqueles que o impulsionaram na frente interna. Os documentos liberados agora pelo organismo, porém, evidenciam uma estratégia agressiva de hostilidade e pressão.

“Esses documentos registram o objetivo deliberado das autoridades americanas de minar a capacidade de Allende para governar e de derrubá-lo para que não pudesse estabelecer um modelo bem-sucedido e atraente de mudança estrutural que outros países poderiam seguir”, explica Peter Kornbluh, analista sênior encarregado do Chile no Arquivo de Segurança Nacional, uma ONG com sede em Washington que analisa os documentos desclassificados pelos Estados Unidos depois da detenção de Augusto Pinochet em Londres em 1998. “É uma história de um país pioneiro ―um poderoso império― que queria controlar os países, suas instituições e as vidas de seus cidadãos, mas não em nome da democracia, e sim de uma ditadura militar e sua repressão. No nosso mundo atual, em plena crise, devemos estar atentos a essa história trágica”, diz.

Kornbluh se refere a um dos principais temores do Governo de Nixon e, principalmente, de Kissinger: que o caminho do socialismo à chilena ―alcançado pela via democrática― expandisse sua influência não só na América Latina, mas também em outras regiões do planeta. “Acredito firmemente que esta linha é importante no que diz respeito a seu efeito nas pessoas do mundo”, disse Nixon a Kissinger em uma conversa telefônica em novembro de 1970, segundo os papéis divulgados pela primeira vez pelo Arquivo de Segurança Nacional. “Se [Allende] puder demonstrar que pode estabelecer uma política marxista antiamericana, outros farão o mesmo”, afirmou o presidente americano. Kissinger concordou: “Terá efeito inclusive na Europa. Não só na América Latina”.

Os documentos mostram que o assessor de Segurança Nacional influiu decisivamente na política que o Governo americano adotou em relação ao Chile, que incluiu uma tentativa frustrada de golpe de Estado para impedir que Allende assumisse a presidência que ele havia conquistado democraticamente. Estava marcada para 5 de novembro de 1970, na Casa Branca, uma reunião formal do Conselho de Segurança Nacional para discutir a política para o Chile. Mas Kissinger manobrou para adiar a reunião por 24 horas e, com isso, conseguir se reunir a sós com o presidente para que este desistisse de tomar decisões brandas em relação ao Governo de Allende, empossado dias antes. “É essencial que você deixe muito clara a sua posição sobre esse assunto”, disse Kissinger a Nixon. O assessor tinha motivos para se preocupar: nem todos os funcionários americanos estavam de acordo com uma estratégia hostil.

O Departamento de Estado temia que houvesse um escândalo internacional se os esforços para derrubar Allende ficassem em evidência e, por isso, defendeu uma política prudente de coexistência. Foi a chamada estratégia modus vivendi: apoiar os partidos da oposição chilena― os de centro e de direita― para ajudá-los nas eleições de 1976. O Escritório de Assuntos Interamericanos, entretanto, alertou que se Washington violasse seu “respeito pelo resultado das eleições democráticas”, reduziria sua credibilidade mundial, “aumentando o nacionalismo” contra os Estados Unidos. “Isso será utilizado pelo Governo de Allende para consolidar sua posição junto ao povo chileno e ganhar influência no resto do hemisfério”, assinalou o escritório em um documento.

Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, dia do golpe de Estado de Pinochet.
Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, dia do golpe de Estado de Pinochet.SERGE PLANTUREUX / GETTY

Chile e o temor de uma “Cuba em 1972”

Kissinger fez gestões de alto nível para conseguir se reunir a sós com Nixon antes do encontro do Conselho de Segurança Nacional. De acordo com um memorando em que um funcionário do Gabinete do presidente justifica o adiamento da reunião, Kissinger advertiu: “O Chile pode acabar sendo o pior fracasso de nossa Administração: ‘nossa Cuba’ em 1972”.

A reunião, registrada em 5 de novembro de 1970, entre Nixon e seu assessor de Segurança Nacional foi realizada no Salão Oval. Durante uma hora, Kissinger apresentou um estudo completo para que a abordagem agressiva de longo prazo em relação ao Governo socialista saísse vitoriosa. “Sua decisão sobre o que fazer a respeito pode ser a decisão mais histórica e difícil sobre relações exteriores que você terá de tomar este ano”, disse Kissinger, dramaticamente, a Nixon. “O que acontecer no Chile durante os próximos 6 a 12 meses terá ramificações que irão muito além das relações entre Estados Unidos e Chile.”

Kissinger se referia à influência mundial da via chilena para o socialismo: “O exemplo de um bem-sucedido Governo marxista eleito no Chile certamente teria um impacto em ―e até mesmo um valor como precedente para― outras partes do mundo, principalmente na Itália. A propagação imitativa de fenômenos similares em outros lugares, por sua vez, afetaria significativamente o equilíbrio mundial e nossa própria posição nele”, analisou.

O assessor procurava, por todos os meios, convencer Nixon a pressionar a burocracia da política externa a adotar uma posição de mudança de regime, em vez de preferir a estratégia modus vivendi, segundo um documento desclassificado pelo Arquivo de Segurança Nacional e publicado pela primeira vez no livro de Kornbluh intitulado The Pinochet File, lançado em 2013, 40 anos depois do golpe de Estado.

“Podemos derrubá-lo”

A reunião do Conselho de Segurança Nacional foi finalmente realizada em 6 de novembro de 1970. Nem todos os participantes sabiam que Nixon tinha ordenado que a CIA impulsionasse secretamente um golpe de Estado preventivo para evitar que Allende assumisse a presidência do Chile, o que não havia dado certo. No encontro, havia um acordo importante: a eleição democrática de Allende e sua agenda socialista para uma mudança substancial ameaçavam os interesses dos Estados Unidos. Mas, como Kissinger temia, não havia consenso sobre o caminho a seguir. O secretário de Estado, William Rogers, manifestou sua oposição à hostilidade e à agressão aberta contra o Governo de Allende: “Podemos derrubá-lo, talvez, sem ser contraproducentes”. O secretário de Defesa, Melvin Laird, sustentou: “Temos de fazer tudo que pudermos para prejudicá-lo e derrubá-lo”.

O diretor da CIA, Richard Helms, apresentou um documento informativo no qual explicou como Allende conquistou a presidência em uma eleição apertada, traçou o provável rumo de suas políticas econômicas e de relações externas e fez uma análise de sua equipe de ministros. O presidente chileno escolheu “um gabinete militante de linha dura” que “reflete a determinação dos socialistas de afirmar sua política mais radical desde o início”, assinalou Helms, que também se dedicou a fazer anotações.

“Se houver uma forma de desbancar Allende, é melhor fazer isso”, indicou Nixon no encontro, segundo o manuscrito de Helms, que faz parte dos documentos desclassificados pelos Estados Unidos e publicados agora pela primeira vez. O presidente havia decidido: seria adotado um programa de agressão hostil, mas de baixo perfil, para desestabilizar a capacidade de Allende de governar. “Nossa principal preocupação no Chile é a possibilidade de que [Allende] possa se consolidar e a imagem projetada ao mundo seja seu sucesso”, disse Nixon ao dar instruções à sua equipe de Segurança Nacional. “Seremos muito frios e muito corretos, mas fazendo coisas que serão uma verdadeira mensagem para Allende e outros.

Em 9 de novembro, Kissinger distribuiu um memorando secreto com a decisão adotada no conselho, intitulado Política para o Chile. “O presidente decidiu que a posição pública dos Estados Unidos será correta, mas fria, para evitar dar ao Governo de Allende uma base sobre a qual reunir apoio nacional e internacional para a consolidação do regime”, resumiu o assessor de Segurança Nacional. “Mas os Estados Unidos procurarão maximizar as pressões sobre o Governo de Allende para evitar sua consolidação e limitar sua capacidade de implementar políticas contrárias aos interesses dos Estados Unidos e do hemisfério”, acrescentou.

O documento desclassificado pelos Estados Unidos detalha os métodos: autoridades americanas colaborariam com outros Governos da região ―principalmente do Brasil e da Argentina― para coordenar esforços contra Allende; seriam bloqueados, silenciosamente, os empréstimos dos bancos multilaterais para o Chile, e cancelados os créditos e empréstimos para exportações dos Estados Unidos para o país sul-americano; empresas americanas seriam recrutadas para abandonar o Chile; e seria manipulado o valor, nos mercados internacionais, do principal produto de exportação do Chile, o cobre, para afetar ainda mais a economia chilena. Além disso, a CIA foi autorizada a preparar planos de ação relacionados à futura implementação dessa estratégia.

Naquela ocasião, Nixon e seu assessor também mantiveram uma conversa telefônica na qual comentaram o discurso de posse de Allende. “Helms [diretor da CIA] tem de chegar a essas pessoas”, disse o presidente. Kissinger respondeu: “Deixamos isso claro”. A transcrição do diálogo foi divulgada pela primeira vez pelo Arquivo de Segurança Nacional.

Os novos documentos publicados lançam por terra as tergiversações que, durante décadas, autoridades dos Estados Unidos tentaram construir para que os EUA se esquivassem de sua responsabilidade pela quebra da democracia do Chile e pelos 17 anos de ditadura militar, que deixaram milhares de vítimas. Em setembro de 1974, o The New York Times revelou as operações encobertas da CIA para derrubar Allende. O Congresso americano abriu uma investigação sobre o assunto, o escândalo internacional resultou nas primeiras audiências públicas sobre as operações da CIA e foi publicado o estudo Covert Action in Chile 1963-1973 (“ação encoberta no Chile 1963-1973”), escrito por uma comissão especial do Senado, presidida pelo senador Frank Church (a comissão Church). Mas o Executivo americano reteve parte da documentação e os senadores que investigaram o caso não tiveram acesso ao registro completo sobre as deliberações e decisões da Casa Branca nos dias anteriores e posteriores à posse de Allende, que o Arquivo de Segurança Nacional revela agora, 50 anos depois dos fatos.

Última página do segundo documento desclassificado do Conselho de Segurança Nacional dos EUA que descreve a relação entre o Governo de Allende e a União Soviética.
Última página do segundo documento desclassificado do Conselho de Segurança Nacional dos EUA que descreve a relação entre o Governo de Allende e a União Soviética.NSA ARCHIVE

As palavras do poder

“Embora soubéssemos bastante sobre as maquinações do Governo de Nixon para impedir ou desestabilizar o Governo de Allende, é extremamente importante contar com estes documentos, incluindo notas manuscritas e transcrições de conversas telefônicas”, opina o historiador chileno-americano Iván Jaksic. “É surpreendente ver como aquilo que antes parecia ser especulação era mais do que verdadeiro. A crueldade da linguagem e as medidas propostas para pressionar o Governo de Allende e mandar sinais inequívocos a outros países são francamente arrepiantes”, acrescenta o ganhador do Prêmio Nacional de História de 2020. “São as palavras do poder e, com estes documentos, não resta dúvida de que por trás de cada palavra existiram medidas concretas que tiveram um impacto direto na agonia que viveu nosso país nesses anos.”

Jaksic conheceu o relatório da comissão Church assim que chegou aos Estados Unidos, em 1976: “Foi realmente devastador”, lembra o autor de livros como La Lucha por la Democracia en Chile (“a luta pela democracia no Chile”). “Mas a história não para por aí, pois nem mesmo essa comissão teve acesso a todos os documentos. As evidências que surgiram desde então e que continuam aparecendo são fundamentais para comunicar como foi urdida uma política em relação ao nosso país e à América Latina”, reflete.

O historiador, que mora em Santiago desde 2006, considera “notável” que se envolva a Europa na política para o Chile: “É evidente que, para o Governo dos EUA, o Chile era importante principalmente como um exemplo que não deveria se espalhar, ou seja, um marxismo que chega ao poder por vias democráticas”.

Segundo Ascanio Cavallo, jornalista e um dos autores de La Historia Oculta del Régimen Militar (“a história oculta do regime militar”), “não há ninguém no Chile que duvide da vontade do Governo de Nixon de que Allende não terminasse seu mandato”. “Mas tanto o próprio Nixon como Kissinger ―que em suas memórias faz uma referência muito breve ao Chile― sempre negaram um papel ativo dos Estados Unidos depois que Allende assumiu a presidência, diferentemente do que indicam estes documentos, que revelam que a Administração americana discutia como conseguir sua derrubada.”


Eliane Brum: Vote em Marielle

Mais viva do que nunca, a vereadora executada há quase mil dias é a principal antagonista de Bolsonaro e de seu projeto de poder

As eleições municipais de 15 de novembro são, para o Brasil, o que a eleição presidencial dos Estados Unidos foi para o mundo. Vão mostrar para onde está indo o país, desde que o governo foi ocupado e pervertido por um mentiroso com intenções genocidas. É claro que 2022 será o momento decisivo, pela possibilidade de tirar não apenas Jair Bolsonaro do centro do poder, mas também tudo o que ele representa. A resistência, porém, se expressa no miúdo dos dias e é exercida no chão das cidades ―em cada comunidade, em cada favela, em cada rio. A política, para muito além dos partidos, é tecida no cotidiano. As eleições do próximo domingo vão mostrar qual é a temperatura do movimento de brasileiros anônimos na soma destas pequenas ações e reações. Vão expor o quanto uma parcela da população é capaz de enfrentar o autoritarismo de Bolsonaro também no campo da política institucional e manter a luta mesmo no luto. Vão apontar, principalmente, o quanto o legado de Marielle Franco vive e resiste e avança.

Bolsonaro e o bolsonarismo, a criatura mais importante e possivelmente mais longeva do que o criador que lhe empresta o nome, são fenômenos complexos. Além de tudo o que representam e revelam do Brasil, são também a resposta violenta de uma parcela assustada da população por um lado, de uma elite com medo de perder seus privilégios de classe e de raça, por outro. Em comum, os eleitores de Bolsonaro parecem temer tudo o que a figura de Marielle Franco representa em seu gesto de ocupar o centro político: a pressão de mulheres, negros e pessoas LGBTQIA+ por participação no poder e pelo reconhecimento de sua centralidade. É também esse embate que se fará presente nas eleições em que a participação de candidatos negros é a maior já registrada: 49,9% negros, superando os 48,1% que se autodeclaram brancos.

A eleição acontecerá num momento de forte simbolismo: a proximidade dos mil dias da execução da vereadora do PSol no Rio de Janeiro sem que o Brasil conheça o mandante ―ou os mandantes― e sua motivação. Enquanto quem ordenou a morte, seus motivos e suas conexões não forem apontados, cada dia a mais sem solução é uma denúncia do momento limite vivido pelo Brasil. E uma acusação do enorme déficit de justiça do país. A cada dia a mais sem solução faz também aumentar a densidade das sombras sobre Bolsonaro e sua família, às voltas com indícios de sua ligação com as milícias acusadas de envolvimento com a morte de Marielle.

O assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes, o motorista que morreu mas não era alvo, não é mais um crime em um país atravessado pela violência. A investigação que se estende além do mais flexível conceito de razoável já expõe a crescente infiltração das milícias no Estado brasileiro. Expõe também o cotidiano de um país em que tanto a democracia quanto o ordenamento jurídico são uma pele cada vez mais fina envolvendo estranhas cada vez mais podres, cujos vermes já não se contentam em se manter no lado de dentro. Quando os criminosos começam a gostar dos holofotes é porque acreditam não mais precisar se esconder. O que aqueles que vivem na Amazônia de grileiros e pistoleiros testemunham há muito tempo, e que também na região da floresta se torna cada vez mais explícito, se alastra por todo o Brasil desde que Bolsonaro assumiu e perverteu o poder.

A execução da vereadora do PSol precisa ser solucionada por todas as razões e também para que a população brasileira possa saber se Bolsonaro e seus filhos têm apenas amigos chefiando as milícias que aterrorizam o Rio de Janeiro, alguns deles matadores profissionais, ou se também têm envolvimento com a morte de Marielle. Até este momento, as provas de intimidade e de relações suspeitas do clã Bolsonaro com milicianos matadores são vastas, mas não apareceu nenhuma prova de envolvimento concreto da família presidencial com o crime. Pelo menos, nenhuma foi divulgada até hoje.

Ao denunciar o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), filho mais velho do presidente, pelo esquema criminoso das “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o Ministério Público mostrou que o filho zeroum teria recebido pelo menos 400.000 reais do ex-PM Adriano da Nóbrega. Acusado de chefiar um grupo de extermínio, Adriano foi morto em fevereiro em controversa operação policial na Bahia. A mãe e a mulher de Adriano eram funcionárias do gabinete de Flávio Bolsonaro quando deputado e só foram desligadas pouco antes de estourarem as primeiras denúncias. Segundo a investigação do MP do Rio, Adriano repassava o dinheiro a Fabrício Queiroz, então braço direito de Flávio e operador do esquema criminoso.

Bolsonaro e sua família deveriam ser os brasileiros mais interessados em solucionar a execução de Marielle Franco. Não são. Até este momento, estão presos apenas os acusados de executar o crime, o policial militar reformado Ronnie Lessa, vizinho de Bolsonaro no condomínio Vivendas da Barra, no Rio de Janeiro, e o ex-PM Élcio Queiroz. Ainda não há notícias dos mandantes.

A necessidade de fazer perguntas difíceis envolvendo aquele que ocupa o cargo máximo do país é uma evidência do momento perigosíssimo que vive o Brasil. O “novo normal” de que tanto falam ―e que está muito mais para novo anormal― é assimilar como uma possibilidade de normalidade as relações íntimas do presidente com milicianos e matadores. Também neste sentido o dia da eleição provoca expectativa.

A corrosão da democracia brasileira é cada vez mais trágica, mas ainda há um pequeno espaço para a retomada do que foi velozmente destruído. A escolha dos vereadores e prefeitos que vão tocar a política dos municípios, em geral a que mais interessa aos cidadãos no seu cotidiano, vai mostrar se cresce a parcela da população brasileira que tem consciência do abismo que, como cantava Cartola, escava com seus pés. As eleições de 15 de novembro não contêm a possibilidade de redenção, mas podem sinalizar se o avanço das periferias que reivindicam seu legítimo lugar de centro persiste mesmo com todos os ataques e, principalmente, se têm conseguido aumentar sua ressonância junto ao conjunto da população nestes anos de autoritarismo de ódio produzido pelo bolsonarismo.

O primeiro ministério de Michel Temer (MDB) ―inteiramente branco e masculino, patriarcal e heterossexual em todos os seus signos― depois de quatro anos ainda é o melhor retrato de como a manobra das forças de direita refletia um profundo incômodo com o avanço daqueles tratados como subalternos, manobra que em 2018 resultou na eleição de um homem como Jair Bolsonaro. O fato de que Temer foi o vice que traiu Dilma Rousseff (PT), a primeira mulher a se tornar presidente na história do Brasil, ao minar seu poder desde dentro e apoiar seu impeachment, não é um detalhe. Tampouco é um detalhe o fato de que, das duas únicas ministras mulheres de Bolsonaro, uma é declaradamente antifeminista, Damares Alves, e a outra, Tereza Cristina, se dedica a liberar agrotóxicos e “destravar” a agenda do agronegócio que destrói a Amazônia, o Cerrado e outros biomas, envenenando a comida e a terra e condenando as novas gerações.

A execução de Marielle Franco, em 14 de março de 2018 ―negra, bissexual, publicamente casada com outra mulher, nascida e criada nas favelas da Maré, que ocupa o centro ao se tornar vereadora no legislativo do Rio de Janeiro e levar para dentro da política institucional a luta contra a violência policial na favelas, contra a grilagem de terras nas periferias, parte delas controlada pelas milícias, e pelos direitos das pessoas LGBTQIA+― simboliza a radicalidade do gesto de barrar esse movimento à bala porque ele começa a ameaçar interesses e hegemonias. Para além da solução concreta do crime, seu simbolismo é assim e acertadamente interpretado pela parcela progressista da sociedade, que mantém presente e persistente tanto a memória de Marielle quanto a pressão pela solução de seu assassinato.

Marielle Franco é, iconicamente, mais viva do que nunca e a maior antagonista do atual presidente. E por essa razão, a memória de Marielle resiste e produz Marielles. Nesta eleição, em número inédito: em São Paulo, as candidatas negras são quase o dobro da disputa anterior. Segundo levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), há pelo menos 300 quilombolas disputando uma vaga no legislativo em todo o país. Entre eles, a ativista Socorro de Burajuba, líder da luta contra a destruição socioambiental produzida pela mineradora norueguesa Hydro Alunorte, poluidora dos rios da região de Barcarena, na Amazônia paraense. Nunca se discutiu tanto a participação política de negros como hoje, mas mais do que negros, o que se fortalece em 2020 é a potência crescente das mulheres pretas.

Historicamente mais subjugadas entre os subjugados, elas foram mantidas por décadas periféricas também no feminismo dominado por mulheres brancas e nos partidos de esquerda, majoritariamente liderados por homens e por brancos que sempre deram ênfase à luta de classes em seu diagnóstico e em suas propostas, em detrimento do racismo estrutural como recorte central de análise. Como afirma a socióloga negra Vilma Reis, “são as mulheres negras que empurram a esquerda para a esquerda”.

Mesmo dentro do PSol ―o partido com mais ressonância na esquerda, pelo menos para quem, como eu, considera o PT um partido de centro― Marielle também enfrentava a hegemonia da branquitude e um ranço machista cuidadosamente disfarçado. Depois que Marielle se tornou o maior ícone das mulheres negras (e também de uma parcela das brancas), alguns tentam reduzi-la a uma “cria” do deputado federal Marcelo Freixo (PSol). É justo reconhecer a influência do principal nome do PSol do Rio de Janeiro na trajetória política de Marielle Franco, mas Marielle é muito maior do que isso e foi fortemente marcada pelas mulheres negras que também encontrou no seu caminho.

A força crescente representada por ela, esta que o bolsonarismo não conseguiu parar apesar de toda a violência contra os corpos das mulheres, dos negros e dos LGBTQIA+, pode ser decisiva em 2022. É evidente que o Brasil tem enormes diferenças com relação aos Estados Unidos, assim como também é evidente que Jair Bolsonaro é ainda pior do que Donald Trump. Mas as afinidades também existem e são grandes ―e ambos fazem parte do mesmo fenômeno global. Tanto Trump quanto Bolsonaro souberam encarnar o medo de uma parcela significativa de brancos assustados, perdendo poder aquisitivo pelos efeitos da crise global do capitalismo de 2008 e sentindo-se perdidos pela ameaça ao lugar identitário em que ainda se sentiam superiores: o de raça, o de gênero e o de orientação sexual.

Talvez a melhor forma de explicar esse mecanismo, no caso dos brancos pobres e dos brancos de classe média que perderam renda nos últimos anos, seja com a formulação do intelectual afroamericano W.E.B. Du Bois (1868-1963), cujo pensamento só fui conhecer ao assistir a uma entrevista do intelectual afrobrasileiro Silvio Almeida. Du Bois criou o conceito que apresenta a branquitude como um “salário público e psicológico”. Sugiro ler diretamente na fonte, para alcançar a profundidade da proposição, mas, resumindo em uma linha, seria mais ou menos isso: o branco ferrado se consola com o salário psicológico de saber que há um outro, o negro ferrado, que é mais ferrado do que ele. Para manter esse privilégio psicológico, de um ferrado mais ferrado do que ele, o que o faz superior pelo menos a alguém, ele vota até em perversos como Bolsonaro que o ferram muito mais todo dia. No meu ponto de vista, esse salário psicológico ajuda a explicar também a resistência feroz ao protagonismo das mulheres, o único ponto de privilégio de uma parcela dos homens, sejam eles brancos ou pretos.

Como se sabe, Bolsonaro “liberou” esses machos brancos assustados ao expressar publicamente todo o seu racismo, homofobia e misoginia (ódio às mulheres), sem ser responsabilizado pelo sistema judiciário, e enalteceu em seu discurso de posse a “libertação” do politicamente correto. Representou também a angústia de uma classe média que se via perdendo privilégios que considerava direitos ao mesmo tempo em que, pela primeira vez na história, era obrigada a lidar com empregadas domésticas, majoritariamente pretas, que haviam conquistado a (quase) equiparação aos direitos dos demais trabalhadores.

A escandalosamente atrasada conquista de direitos trabalhistas básicos pelas empregadas domésticas, como já escrevi várias vezes, é essencial na análise da última década. No Brasil, a emancipação feminina se deu não por políticas públicas como ensino integral e creche para as crianças, nem tampouco pela divisão real de trabalho dentro de casa. Ao contrário. As mulheres brancas só conquistaram sua emancipação e conseguiram construir carreiras profissionais ao seguirem subjugando mulheres negras, em sua maioria, e também brancas pobres. Essas mulheres deixavam suas próprias casas e filhos para realizar o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos das brancas por salários irrisórios, jornadas extenuantes, condições de trabalho precárias e direitos escassos. A chamada “PEC das Domésticas” (quase) equiparou os direitos das domésticas aos demais trabalhadores, numa conquista histórica, balançando a herança mais persistente da escravidão e ampliando o medo de uma classe média perdendo renda e privilégios.

As mulheres pretas que hoje avançam sobre os espaços formais da política institucional são, muitas delas, filhas dessas mulheres que chefiam suas famílias e seguram o tranco dos dias há décadas. Muitas delas puderam chegar à universidade graças às medidas de ampliação do acesso ao ensino superior para os mais pobres e graças às cotas raciais, política de inclusão atrasada em mais de um século que provocou violenta reação dos brancos durante os governos petistas. Ainda que as candidatas pretas não se elejam, só o fato de disputarem a eleição aponta que, apesar de toda a violência, o bolsonarismo não conseguiu parar essa força. As quatro balas que arrebentaram a cabeça de Marielle Franco arrancaram-na da sua vida, de suas lutas, de seus afetos e de seus amores, mas tornaram-na imortal no cotidiano de milhões de mulheres pretas que encontram nela a inspiração para seguir adiante sem recuar.

Formalmente, o Instituto Marielle Franco criou nesta eleição a Agenda Marielle Franco, uma iniciativa suprapartidária que reuniu 745 candidatos, espalhados por 270 cidades brasileiras, comprometidos a levar adiante o legado da vereadora executada: justiça racial e defesa da vida; gênero e sexualidade; direito à favela; justiça econômica; saúde pública, gratuita e de qualidade; educação pública gratuita e transformadora; cultura, lazer e esporte. O esforço busca garantir significado a essas candidaturas, na medida em que a ampliação da presença negra no poder legislativo é um grande passo, mas só pode assegurar avanço na luta por igualdade racial se os eleitos defenderem projetos comprometidos com essa pauta e forem representativos de suas comunidades e não apenas de si mesmos.

O acordo é também o de honrar as práticas de Marielle: diversificar, não uniformizar; ampliar, não limitar; honrar, não apagar; coletivizar, não individualizar; puxar, não soltar; escancarar, não se encastelar; cuidar, não abandonar. Guilherme Boulos (PSol), candidato a prefeito de São Paulo com chances de alcançar o segundo turno, é um dos candidatos na lista dos comprometidos em honrar e multiplicar o legado de Marielle Franco.

Em 2005, ao executarem com seis tiros a missionária Dorothy Stang, os grileiros da região de Anapu aprenderam uma lição: algumas pessoas vivem mais intensamente depois de mortas. Nos dez anos seguintes, a atenção internacional provocada pelo crime e a presença de instituições que antes não davam as caras por ali atrapalharam muito os negócios dos destruidores da Amazônia. Dorothy Stang também se tornou uma mártir que tem inspirado movimentos de camponeses, em especial os ligados à Pastoral da Terra, da Igreja Católica. O assassinato de Marielle Franco, independentemente da intenção explícita do mandante ou mandantes do crime, produziu uma força de resistência infinitamente maior e mais significativa para o Brasil. Que os avanços se deem pela destruição dos corpos dos mais pobres e daqueles que resistem à opressão é resultado da democracia seletiva e deformada, jamais completada, do Brasil pós-ditadura civil-militar.

Tanto Trump quanto Bolsonaro se elegeram vendendo passados que nunca existiram, passados tão falsos quanto tudo o que sai de suas bocas. Pregam a volta a uma época em que aqueles historicamente tratados como subalternos ―mulheres, negros, indígenas― aceitavam passiva e pacificamente o seu lugar. Como se sabe, esse passado nunca existiu. O que existiu e persiste é o silenciamento dos que se rebelam, seguidamente calados pelo extermínio. Como Trump e Bolsonaro não têm futuro a oferecer, disseminam mentiras e tentam reescrever a história com elas. Não são apenas negacionistas, mas sim mentirosos com método e intenção.

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Inspiradas pelo exemplo da eleição estadunidense, a centro-direita e a direita brasileiras que já não querem mais dividir o palanque com Bolsonaro ―o homem que, como seu próprio chanceler definiu, transformou o Brasil num “pária” internacional― já começaram a fazer suas articulações para 2022. A questão é que, mais importante do que a vitória de Joe Biden, um homem branco do sistema, é como e por que Biden venceu Trump. As mulheres e os negros foram determinantes para tirar o déspota de topete laranja do poder. Como símbolo deste movimento desponta uma ativista negra chamada Stacey Abrams, cuja atuação está diretamente ligada aos 800.000 novos votantes da Geórgia, metade deles afroamericanos entre 30 e 45 anos. Estado sulista de raízes escravocratas, um democrata não vencia na Geórgia desde Bill Clinton. É fundamental não esquecer: Biden venceu também porque tinha ao seu lado Kamala Harris. Primeira mulher a assumir a vice-presidência dos Estados Unidos, ela é negra de ascendência indiana. Biden é mainstream, mas quem venceu Trump não foi o mainstream.

O que é chamado de periferia, tanto em países como Estados Unidos quanto no Brasil, têm sido os centros de criação de pensamento, de cultura e de inovação. Diante de fenômenos de ultradireita como Trump e Bolsonaro, são também produtores de resistência que avançam para o centro da política institucional. No Brasil, movimentos majoritariamente brancos e de classe média publicaram em 2020 manifestos em defesa da democracia nos principais jornais do país. Não citavam o racismo estrutural em seus textos. De imediato, a Coalizão Negra por Direitos, que reúne mais de cem organizações e coletivos, publicou nos mesmos espaços o manifesto Enquanto houver racismo, não haverá democracia. Sinalizava ali que, desta vez, nenhum rearranjo das forças políticas, da direita à esquerda, teria legitimidade se não enfrentasse o racismo estrutural do país. O manifesto antirracista pode ter sido o ato político mais importante dos últimos anos.

O necessário deslocamento do que é centro e do que é periferia é fundamental para determinar o destino do Brasil. Aqueles que são tratados como periféricos, como a floresta e a favela, têm no horizonte uma aliança a tecer, fundamental para a criação de futuros capazes de dar respostas de possibilidade ao momento limite da emergência climática. Neste sentido, nos Estados Unidos, a esquerda do Partido Democrata, onde essas novas forças estão estrategicamente alojadas, está mais à frente ao perceber e sublinhar publicamente que, hoje, enfrentar o racismo é enfrentar a emergência climática. Já não existe a possibilidade de uma luta sem a outra luta.

O apartheid tenebroso que já se anuncia e se aprofunda em ritmo acelerado é o que a própria ONU chama de “apartheid climático”. E, mais uma vez, atinge principalmente as mulheres, os negros e os indígenas. No Brasil, a aliança entre os ativistas das favelas e os ativistas da floresta precisa avançar com mais rapidez, dada a emergência do momento. Os ativistas da floresta são principalmente indígenas, mas também quilombolas e beiradeiros ou ribeirinhos. E são também as mulheres negras das periferias de cidades amazônicas. Em Altamira, epicentro da destruição da floresta, jovens ativistas como Daniela Silva têm levantado a voz para lembrar que as mulheres negras das periferias urbanas também fazem parte da Amazônia.

A luta está só começando. Homens como Trump e Bolsonaro, o brasileiro ainda com chances de se reeleger em 2022, são apenas um capítulo e não necessariamente o mais difícil. Como afirma a estrela da nova esquerda do Partido Democrata, a estadunidense de origem latina Alexandria Ocasio-Cortez, ao comentar a derrota de Trump: “Não estamos mais em queda livre para o inferno. Mas, se vamos nos levantar ou não, é uma questão. Fizemos uma pausa nessa descida precipitada. A questão é se e como iremos nos reconstruir”.

Apesar do atoleiro vivido pelo Brasil sob o Governo de ódio de Bolsonaro, o país tem, talvez como nenhum outro, um grande trunfo para voltar a criar futuro no presente: a enorme força de vida dos negros e dos indígenas que têm resistido contra todas as formas de morte por quatro séculos, caso dos descendentes dos africanos escravizados, por cinco séculos, caso dos indígenas. Grande parte das forças progressistas do planeta já compreenderam que a batalha pela Amazônia é a grande batalha deste momento ―e não apenas no sentido dos limites geográficos da floresta que regula o clima, mas no sentido de amazonizar o pensamento para a criação de uma sociedade humana capaz de viver sem destruir nem a casa onde vive nem as espécies com quem divide a casa.

A crise climática e a sexta extinção em massa de espécies, ambas comprovadamente provocadas por ação da minoria dominante dos humanos, tornaram este momento o mais desafiador de nossa trajetória no planeta. Trump e Bolsonaro são apenas sintomas. Com todos os limites evidentes de uma eleição numa democracia que nunca chegou para todos, assim como os limites da própria democracia como sistema, o voto deste 15 de novembro é muito mais importante do que parece à primeira vista. Países vizinhos como a Bolívia e o Chile já deram o exemplo e mostraram que é possível enfrentar o autoritarismo da direita e da extrema direita e avançar. O Chile decidiu pela primeira Constituição construída de forma igualitária entre homens e mulheres e, na Bolívia, as mulheres conquistaram 20 das 36 cadeiras do Senado (56%) e 62 das 130 da Câmara Baixa (48%) nas eleições de outubro, com forte presença dos povos originários. O Brasil, que costuma ver a si mesmo como vanguarda política e criativa, já está atrás no mapa da América Latina na luta contra o autoritarismo de direita.

A polarização política tem sido vendida como um problema e uma distorção nos últimos anos. Não é assim que eu vejo. Não é possível e nem desejável superar a polarização num país estruturado sobre o racismo e com uma desigualdade abissal. O problema é a distorção da polarização, situada propositalmente nos polos falsos. O discurso contra a polarização, aliás, será cada vez mais usado pela centro-direita e pela direita que hoje se anunciam como não bolsonarista para se apresentar como uma alternativa de “pacificação do país” em 2022. Michel Temer já usou esse discurso antes e agora ele se insinua nas negociações entre o governador de São Paulo, João Doria Jr (PSDB), o ex-ministro de Bolsonaro Sergio Moro e o apresentador da Globo Luciano Huck para a próxima eleição presidencial. A paz da centro direita e da direita aponta para um rearranjo cosmético, com algumas concessões aqui e ali, de modo que a desigualdade racial e social do Brasil se mantenha inalterada na essência. Prefiro ficar com a frase antológica da atriz e escritora negra Roberta Estrela D’Alva: “se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

A eleição de 15 de novembro não é uma prévia para 2022. É muito mais do que isso. É a recolocação dos polos que foram deslocados. É uma sinalização de que a polarização já não se dá entre Bolsonaro e Lula, mas entre Bolsonaro e Marielle Franco. Esta sempre foi a polarização real dos Brasis, em alguns momentos representada pelo PT do passado, há muitos anos não mais. Quase mil dias depois da sua execução, o grito se fortalece e avança: Marielle, Presente.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


El País: 'Se Trump vence eleições via ação judicial, será nocivo e pode atiçar Bolsonaro', diz Anthony Pereira

Anthony Pereira, do King’s College, vê risco de radicalização da extrema direita no mundo com vitória do republicano, mas celebra oposição da sociedade civil

Felipe Betim, do El País

Anthony Pereira, cientista político e professor da King’s College de Londres, onde coordena o centro de estudos sobre o Brasil, olha com preocupação para o que chama de “nacional-populismo” em ascensão no mundo, especialmente quando mira as eleições dos Estados Unidos. “Donald Trump vem dizendo que, se perde, a eleição terá sido fraudulenta. Não apresenta indícios, mas muitos eleitores estão acreditando. Além do resultado, o próprio procedimento e a confiança nas instituições estão em jogo”, explicou em entrevista ao EL PAÍS por videoconferência, às vésperas de sua participação no evento online Cidadania em Cena, com discussões sobre a democracia, promovido pelo Instituto Votorantim, na terça-feira. “Se Trump ganha via ação judicial, o efeito para democracia mundial é muito nocivo, porque mostra que se pode ganhar dessa forma. Pode atiçar Jair Bolsonaro e movimentos [de extrema direita] na Europa, porque o custo de fazer movimento do tipo fica mais baixo”.

Pereira, que acompanha a realidade brasileira de perto há mais de 30 anos, aponta para algumas características do Governo Bolsonaro que o colocam dentro desse grupo nacional-populista em ascensão. “Esse tipo de populismo define a nação de uma maneira excludente. Em discursos do presidente e de ministros como Ricardo Salles, Ernesto Araújo e, antigamente, Abraham Weintraub, eles pegam uma maioria, seja étnica ou religiosa, e falam em nome da nação por meio desse grupo dominante”, argumenta. Pereira se refere sobretudo às falas em que esses dirigentes se mostram “muito desconfortáveis com a ideia de diversidade, com a ideia de povos indígenas sendo um grupo distintos merecendo reconhecimento e respeito por suas terras e tradições e maneiras de viver”.

O alinhamento, explica, “é com a maioria das pessoas que não estão lutando para preservar o meio ambiente e, ao invés de conciliar interesses distintos a partir de uma visão de desenvolvimento sustentável, apostam em uma visão predatória que desconta os direitos dessa minoria, dizendo que é importante desenvolver a qualquer custo”. Embora haja uma exclusão étnica e religiosa no discurso das atuais autoridades brasileiras e um crescente autoritarismo do Governo, Pereira diz evitar a palavra fascismo. “Nos fascismos italiano e alemão havia uma forte mobilização cívico-militar, com pessoas enfrentando outras na rua e cometendo atos de violência”, argumenta. “Acho que as milícias são uma força protofacista com potencial de se mobilizar dessa forma, mas até agora as vejo mais como grupos interessados em lucrar para si próprios”.

Sobre o discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU, ele acredita que a comunidade internacional passou a enxergar o Brasil com “ceticismo”. Enquanto os dados indicam que as queimadas na Amazônia e no Pantanal estão aumentando, o presidente “não reconhece o problema e nega sua existência”, além apresentar alguns fatos “falsos” em seu discurso.

Entre os temas de pesquisa de Pereira estão as ditaduras militar brasileira, argentina e chilena e o tratamento que a Justiça desses países dava para os dissidentes políticos, criando o que chama de “legalismo autoritário”. Agora, o professor reflete sobre a presença dos militares como integrantes da burocracia no Governo Bolsonaro. Pereira afirma ser difícil enxergar os militares que ocupam ministérios como “figuras totalmente técnicas”, como eles se apresentaram e são vistos por parcela importante da opinião pública. “Eles estão fazendo uma aposta política e sinto que sabem que estão correndo risco, já que a imagem das Forças Armadas está ligada a um Governo que não responde aos anseios da população”, explica. Para o especialista, isso “pode ser positivo porque podem lutar para limitar os danos e buscar sair dessa situação sem a reputação rasgada”.

O brasilianista também opina que até os militares da reserva que estão no Governo “dificilmente pensam como civis”, mesmo que afastados da cadeia de comando da corporação. Assim, enxerga a defesa de interesses do Exército, como a aproximação com os Estados Unidos para troca de informações de inteligência e acesso ao sistema de defesa norte-americano, e dentro da máquina pública. “Podem defender um orçamento maior para eles ou agir de forma a beneficiar os interesses corporativos”.

“São mais de 6.000 militares nas várias camadas da burocracia federal, e alguns ainda estão na ativa, então existe potencial conflito de interesse”, argumenta. Acredita, porém, que a instituição possui correntes políticas diferentes, como em outras instituições. "Nem todos os militares são necessariamente bolsonaristas, isso é algo que temos que reconhecer.” Da mesma forma, acredita que existe dentro das Forças Armadas aqueles com mais afinidade à ideia de conservação da Amazônia e que consideram que “mais desmatamento gera atenção indesejável para a região”.

Para ele, Bolsonaro respondeu aos anseios de uma sociedade que passou a enxergar que todas as instituições estavam corrompidas. “Existe uma tentação de que precisamos provocar uma ruptura para limpar a democracia e começar de novo. Mas não resolve as coisas. Melhor qualidade de democracia significa mais democracia, e não menos”, defende. Ainda assim, diz enxergar uma “mobilização contrária” ao bolsonarismo no seio da sociedade civil, com pessoas “mais zelosas sobre as instituições e com pluralidade”. Ele acredita que as eleições municipais de 2020, e também as de 2022, podem refletir essa diversidade de interesses. “No longo prazo sou otimista. Vejo a disposição de muitas pessoas, de muitos jovens, de defender e participar das instituições democráticas”.


Eliane Brum: Os humanos que o vírus descobriu no Brasil

Só poderá haver luto dos mortos pela covid-19 se houver luta – por investigação, responsabilização e justiça

Tenho peregrinado pelos memoriais e por páginas desconhecidas de redes sociais em busca dos fragmentos da vida dos mortos, em busca dos testemunhos dos enlutados, para que também eu possa acreditar com eles que houve uma morte. E então empresto o meu corpo e escrevo a partir destes fragmentos. Essa crônica que faço a partir do real me ajuda a ficar em pé. É o meu jeito de estar junto num velório que não velou, num enterro que sepultou também os vivos, porque sem despedida, num sepultamento em que os familiares foram compelidos a mentir a causa da morte para não serem estigmatizados pela vizinhança. Sim, porque também isso está acontecendo no Brasil. Morrer de covid-19 tornou-se uma vergonha a ser ocultada, assim como subnotificados são os números oficiais.

Perambulo pela história dos outros para costurar fiapos de vida. Não reportagens ou depoimentos, como costumo fazer, mas pequenas crônicas como estas a seguir.

Era o pijama azul, aquele que tinha a mancha de vinho no peito. Ele sempre derramava coisas na roupa quando comia ou bebia. Queria enterrá-lo com ele, pra que possuísse algo seu que pudesse reconhecer na travessia, para que não fosse para a escuridão sem algo familiar, para que as minhas tentativas sempre fracassadas de tirar a mancha fossem uma lembrança de que tinha sido tão amado. Mas você me foi arrancado, eu não pude acariciar sequer o seu rosto. Eu não perdi apenas a sua vida, eu perdi também a sua morte.

Quando ria, ela tentava esconder um dente amarelado, uma escultura estragada por um dentista barato, que não prestou atenção no seu sorriso. E agora, quando ela é arrancada de mim, é este dente torto, abalroado pela vida, que me falta mais. Como se só ele pudesse me devolver alguma sanidade na insanidade de não poder dizer a você que eu nunca me esforcei para lhe ajudar a pagar o dentista porque não queria perder nem um pedacinho de você, nem mesmo aquele dente que a constrangia, mas que eu amava mais porque era a prova de que você era deste mundo e não escaparia. Sim, eu sempre achei que você era perfeição que eu não merecia, mas queria. E então, sequestraram você de mim. E eu, que contava tudo a você, só a você, não tenho a quem contar que até seu dente ruim me faz falta.

Eles disseram que as crianças tinham muito muito muito menos chance de pegar o vírus. Eu me agarrei a isso. Você, minha filha, tinha bochechas grandes demais, rosadas demais, para caber um vírus. E quando corria, você tinha uma confiança absoluta em seus passos incertos. E quando caía, você apenas ria, anunciando que não temeria as quedas que viriam. Eu, sim. Eu temia todas as suas quedas. E agora que você é só uma foto num porta-retratos, agora que nem me permitiram embalar o seu corpo, agora que você passou naquele pequeno caixão fechado onde eu não poderia reconhecer você, a minha menina, eu queria só ter a chance de ver você cair e ajudá-la a levantar. Preciso te dizer que não acredito. Como vou saber que não era outra naquele caixão? Como vou saber que você não está viva caindo de bunda em outro chão e rindo como se tudo isso fosse apenas mais uma graça do mundo que você apenas começava a descobrir? À noite eu sonho, minha filha, que caminho até o cemitério e a arranco de lá. Abro aquele caixão como se fosse um porta-joias e resgato da escuridão e assim também eu saio do escuro onde estou desde que você passou numa caixa. E nunca mais, nunca, você sairá de novo do meu útero.

Disseram que você poderia morrer, afinal você era velho. Ouvi aquele animal falar coisas assim. Morrer os que têm que morrer. Deixaram você morrer, como deixaram tantos morrer. Não sabiam nada das suas pequenas delicadezas, nem das maldades, às vezes você gostava de ser mau, como quando ria ao me ver andando encurvada. Mas os que assim falavam não sabiam que você também me cobria, passava a noite me cobrindo, porque depois de velha meu sono se tornou errático e agitado, e eu jogava tudo longe como se tivesse raiva do cobertor. E você acordava para que meu pé não gelasse, e às vezes, nunca te contei, eu apenas fingia para ser cuidada por ti. E eu não pude. Não pude cuidar de você. Você teve febre, desapareceu dentro da boca do hospital e de lá foi vomitado num caixão lacrado. Eu não consigo explicar por que tenho medo de seguir o teu caminho, e o presidente do meu país diz que os velhos estão autorizados morrer. Não sei o que se passou comigo, eu queria te contar e talvez você soubesse, mas murchando entre dobras de pele enrugada (você lembra como a minha pele era lisa? Já não há ninguém para lembrar que a minha pele foi lisa), chorando dia após dia umas lágrimas secas que me esfolam os olhos ruins, eu ainda quero viver. E não sei para quê. Você saberia, você sempre sabia dos meus porquês.

Desde que ela desapareceu, porque para mim haverá de ser sempre um sequestro, já que não a vi, não a preparei, não a abracei, não pude dizer nada perto dos ouvidos dela. Desde que ela desapareceu só consigo pensar naquela penugem que ela tinha na nuca. Como se uma parte dela nunca tivesse desistido de ser bebê apesar de já ser uma mulher adulta. Quando ela era dura, no trabalho, eu ria para dentro de mim, porque só eu sabia da penugem que ela escondia. Só eu conhecia aquela verdade mais absoluta que qualquer outra que ela vendia ao mundo. E era isso que fazia com que me sentisse especial. Mesmo que ela fosse dura também comigo mais vezes do que seria necessário, ela me deixou chegar onde ninguém mais tinha alcançado, como um pico do Everest só meu, e me deixou ver. E agora, também a penugem está no silêncio dos mortos que não conseguem descansar porque não foram velados.

Eu cresci lendo histórias sobre a pandemia, em especial na Idade Média. As grandes pestes que devastavam um continente inteiro. Eu tentei convencer os Médicos Sem Fronteiras a me deixar acompanhá-los numa epidemia de ebola em Uganda anos atrás. Eu testemunhei como a doença de Chagas tinha se tornado uma maldição que atravessava ― e matava e marcava ― gerações de camponeses bolivianos porque poucos se interessavam em barrar aquelas mortes e assim aquilo que é evitável vai se tornando imutável. Eu já era repórter quando a Aids matou alguns dos meus ídolos. Ser jornalista é também aceitar que terá sua vida assinalada por mortes de quem nunca conheceu.

Quando a pandemia de covid-19 chegou, ela não me surpreendeu. Quem escreve sobre a destruição da natureza, sobre a emergência climática, sabia que o tempo das pandemias chegaria. Gritamos há anos, e os indígenas, que sabem mais, há décadas. Quando as primeiras notícias chegaram eu estava num navio do Greenpeace, na Antártida, e ouvia as explosões dos icebergs. O que pode ser mais aterrador do que o continente gelado sem gelo? E então os jornalistas chineses que nos substituiriam na próxima etapa não puderam vir. E quando chegamos ao aeroporto, no Chile, havia pessoas de máscaras por todo canto.

Há muito eu tento me preparar para o abismo que a minoria dominante do planeta, as grandes corporações, os bilionários que arrancaram suas fortunas da natureza, os governantes e os executivos que os servem, cavaram para todos nós. Mas eu nunca me preparei para o que está acontecendo no Brasil agora. E é com isso que não consigo lidar. Eu não consigo lidar com a indiferença.

Há dois acontecimentos simultâneos e conectados no Brasil, o que o torna diferente de outros países do mundo nesta pandemia. Um é a covid-19, que aqui atingiu proporções de catástrofe, tornando o Brasil um dos países mais afetados do mundo. O outro é a ação deliberada de Jair Bolsonaro e de pessoas, militares e civis, que ocupam cargos no seu Governo para, por um lado, deixar a covid-19 avançar e matar, por outro ampliar as condições para que ela mate mais.

Já escrevi bastante sobre os atos governamentais, sobre a campanha oficial de desinformação, sobre as declarações públicas de Bolsonaro. Não há como analisar o impacto da covid-19 no Brasil sem relacioná-lo com a ação intencional do Governo Federal de deixar morrer: a população em geral, e por consequência os mais pobres, o que significa os negros (pretos e pardos), que representam tanto a maioria da população quanto a maioria dos mais pobres. E sem relacionar com a ação deliberada de ampliar as condições para que a doença mate mais, caso explícito dos povos indígenas, bem fundamentada nos pedidos de investigação de Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade que já chegaram ao Tribunal Penal Internacional. Nesta semana, o TPI arquivou “temporariamente” as denúncias com relação à pandemia, até que “novos fatos ou evidências” apareçam. Nada foi fechado, mas será preciso descobrir o que mais Bolsonaro precisa fazer — ou quantos mais precisam morrer — para que os juízes da Corte internacional sigam adiante. Com relação aos indígenas e à Amazônia, as denúncias seguem em aberto.

A covid-19 e a suspeita de crimes contra a humanidade praticados por Bolsonaro e por seu Governo estão intimamente relacionadas no Brasil e não há como dissociá-las em qualquer análise sem promover o apagamento de fatos documentados. O que eu não imaginava é que, diante das evidências de um genocídio, a maior parte da sociedade silenciaria. O que eu não imaginava era ouvir: “Você está banalizando a palavra genocídio”. Não seria você que estaria banalizando a morte?, eu respondo. A dos outros, claro. São sempre os outros os que podem ser sacrificados.

Um negro, uma negra, talvez dissesse à branca que eu sou. Como você acha que nos sentimos todos esses anos, enquanto nossos filhos morriam à bala e as pessoas se limitavam a “tocar a vida”? Um indígena, uma indígena talvez lembrasse à branca que eu sou. Como você acha que nos sentimos em todos esses cinco séculos, enquanto sua sociedade ora nos exterminava, ora tentava nos assimilar, ora ambos, até hoje?

Sim. Essas perguntas, que apontam para a normalização do genocídio pela minoria dominante da sociedade, respondem. Efetivamente respondem. Mas, ainda assim. Ainda assim há um limite que foi ultrapassado no Brasil da covid-19. Se a pandemia acabasse hoje, e está longe de acabar, o que temos diante de nós é uma população de mais de 130.000 cadáveres de mulheres e de homens, a maioria deles adultos, mas também crianças e bebês recém-nascidos, uma população maior do que a da maioria das cidades brasileiras feita de corpos mortos. De vidas interrompidas. E cada uma destas vidas interrompidas deixou, segundo as projeções estatísticas, cerca de 1 milhão de enlutados, o equivalente a população inteira de algumas capitais do Brasil e do mundo que perderam pai, mãe, irmão, irmã, tio, tia, filhos, amigos íntimos.

E sabemos ― é inaceitável que alguém possa ainda mentir que não sabe ― que parte destas pessoas poderiam ainda estar vivas se Bolsonaro e seu Governo tivessem: 1) combatido a covid-19 seguindo as normas da Organização Mundial da Saúde; 2) liberado aos estados os recursos existentes no momento necessário, em vez de retê-los para alimentar disputas políticas; 3) mantido no ministério da Saúde um ministro que conhece o assunto e uma equipe gabaritada de sanitaristas e epidemiologias que já estavam lá; 4) agido emergencialmente em vez de negar a gravidade da doença; 5) orientado corretamente a população em campanhas responsáveis e bem fundamentadas; 6) feito todos os esforços para barrar a chegada da pandemia às terras indígenas, em vez de vetar água potável, leitos emergenciais e campanha de informação, entre outros barbarismos; 7) agido como chefe de Estado e dado o melhor exemplo.

O Brasil tem hoje uma nova geografia humana. E ela não é acidental. Temos essa cratera de mais de 130.000 pessoas a menos, como luzes que se apagam num curto espaço de tempo, deixando aqueles que as amavam no escuro de um luto que sequer é reconhecido. Uma cratera que segue se ampliando na velocidade de centenas de mortos por dia. Isso já é algo para além do possível.

Mas há mais. Há muito mais.

Em minha última coluna, eu perguntava: Como poderá barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer? Que naturalizou todas as formas de morte a ponto de tornar a covid-19 mais uma delas? Que normalizou que são os mesmos de sempre os que mais morrem e então tipo tudo bem? Que naturalizou o inominável que nos governa? Era uma pergunta difícil, a pergunta de quem vive num país em que o futuro foi negado à maioria, consumida pela mera reprodução das forças num presente contínuo.

Agora, minha pergunta é mais delicada. O que será dos que restarem quando a pandemia acabar? O que será dos que vivem esse luto que ninguém mais na história dessa humanidade viveu?

Em todos os países do mundo há pessoas lidando, nas mais diversas línguas e culturas, não apenas com a perda de quem amavam, mas com a despedida que não houve, com o cuidado que foi vetado pelo risco de contaminação, lidando com caixões lacrados e túmulos que não escolheram, quando não com a indignidade das valas comuns. Lidando com os abraços que não puderam acontecer. Essa tragédia ― ainda que com a evidência de que houve uma série de abusos e de descuidos evitáveis nos processos e nos sistemas de saúde ― é intrínseca a uma pandemia que só pode ser barrada impedindo a replicação do vírus em outros corpos, só pode ser barrada com isolamento físico (não social) e protegendo-se fisicamente (não socialmente) do outro.

A questão, no caso do Brasil, é que há mais.

Os enlutados enfrentam uma dor extra, que é a da invisibilidade pela negação da gravidade da pandemia. Famílias inteiras se dilaceram enquanto tantos festejam nos bares, buzinam nas ruas, desrespeitam o distanciamento, aglomeram-se. Se aqueles que escolheram ignorar a pandemia soubessem da dor dos que foram atingidos pela morte, será que mudariam, será que cuidariam, será que fariam o gesto?

“É atroz”, diz uma mulher que perdeu o marido, assistir a esse espetáculo das ruas cheias. Faz com que pareça que a morte do meu marido não existiu. Onde está ele então, ele que eu deixei no hospital e nunca mais vi? O que então é real? As ruas cheias onde a pandemia é uma ‘gripezinha’ ou meus filhos e eu, perdidos numa casa onde ele não está? Como as pessoas podem estar nas ruas festejando enquanto uma parte da população está morrendo?".

Liguei para Bruna Tabak, para que ela me ajudasse a compreender o que vivemos. Psicóloga especializada em cuidados paliativos, ela e outras duas profissionais atuam com grupos de familiares na Rede Apoio Covid-19 – acolhimento, escuta e memórias da pandemia, formada inteiramente por voluntários. “A palavra que se repete em muitas falas é arrancada”, conta Bruna. “Os familiares sentem que tiveram aqueles que amam arrancados. Com o arrancamento, é um rombo que se abre.”

Como fechar esse buraco numa sociedade que normalizou tanto a morte quanto a dor de quem perde, fazendo com o mais real de uma vida, que é a morte, seja encoberto por uma aura de irrealidade pela negação compartilhada da crise sanitária mais grave em um século? Bruna teve a generosidade de compartilhar algumas frases surgidas nos grupos de vivência do luto. Outras, encontrei em depoimentos na internet.

“Foi a pior coisa que nos aconteceu. Me senti devastada, sem rumo e sem chão. E como estamos vivendo dias anormais, ainda penso que não foi real.”

“Entreguei meu marido no hospital e recebi de volta três papeizinhos.”

“Eu não deveria ter levado o meu marido ao hospital. Nunca mais o vi.”

No hospital aquele que amamos é colocado fora do alcance, nem uma prisão de segurança máxima seria tão efetiva. A ligação prometida para aquele mesmo dia, com notícias, acontece três dias depois.

“O vírus não passa pelo telefone. Por que não ligaram pra gente?”

E nestes três dias tudo aconteceu, e ele estava sozinho.

Outra queria pelo menos ter a Bíblia de volta, ele era pastor. Aquela Bíblia, não outra, mas sim aquela, que o acompanhou por toda uma vida. Informaram à família que o livro estava contaminado, que fora “descartado”, a palavra terrível. Ele também teria sido “descartado”?

Vocês têm cinco minutos para se despedir. Pelo tablet. A pessoa que era tudo morria. O que você diz em cinco minutos? Como se vive com essa última imagem em um tablet? E o que você diz para a pessoa que te chama de “privilegiado” porque você pôde pelo menos ter uma imagem, enquanto ela atravessa as noites sem certeza do que havia naquele caixão que não pôde abrir? Quem te abraça diante do horror se agora você é também um risco, um possível vetor? Quem dá o contorno do seu corpo que se perdeu?

“Será que ninguém vê que eu sangro, aqui, bem aqui, onde ele me foi arrancado?”

“Como alguém que perdeu um familiar por covid-19 faz para sobreviver.” Ela preenche o espaço de busca do Google com esse pedido de socorro. E espera por uma resposta.

Eu sou um milagre”, ela se espanta. “Como estou sobrevivendo só com metade do coração?”

“Não poder me despedir me causa uma dor que vou carregar para o resto da minha vida.”

No momento do sepultamento, “sem despedida, sem poder olhar ele pela última vez, sem poder tocar as mãos e agradecer por tudo”.

“Na última vez que falei com a minha mãe ela me pediu, pelo celular, que a buscasse, que a tirasse do hospital. Nunca mais a vi, nem pela tela.”

“Não, não me diga para ter pensamento positivo. Não me diga para ser forte. Ser frágil é a prova de que sou humana. Me permita ser humana.”

Receber a notícia daquela maneira, “me matou viva”.

Ela sequer encontrou o caminho de volta para casa, nem sabe para onde levará os filhos, quando é atingida pela cidadã de bem: “Você tem certeza de que seu marido tomou cloroquina? Porque se tivesse tomado ele estaria vivo”.

Bruna Tabak fala de “uma dor que não descansa”. A voz da paliativista, a voz daquela que escuta, dói. Não é verdade que o verbo doer só tem a terceira pessoa. Eu doo, tu dóis, ele/ela dói, nós doemos, vós doeis, eles/elas doem. Gente dói. O que são então todos esses outros que fingem não nos ver?

A tragédia do Brasil é que os mortos são tratados com a mesma indiferença reservada aos vivos. Quem estuda o morrer sabe que a forma como a morte é tratada reflete o valor reservado à vida. O vírus revelou-nos. De uma vez, como um esparadrapo arrancado com apenas um gesto.

Essa é a diferença no Brasil. O luto pela morte dos que amamos é parte inescapável da experiência de viver. Este luto é elaborado de forma singular, própria, por cada pessoa que perde. Mas, no Brasil da covid-19, o direito ao luto é violado por uma dupla perversão. A doença que matou seu pai, sua mãe, seu irmão ou irmã, avô ou avó, filho ou filha tem sua gravidade negada pela autoridade máxima do país. Para piorar, essa autoridade não está sozinha. A aberração de negar a gravidade de uma pandemia é compartilhada por milhões de pessoas, os milhões que lotam os espaços públicos sem necessidade, fazendo com que o real da morte se torne algo irreal. O delírio, quando coletivo, corrompe a realidade.

Torna-se muito mais difícil fazer luto quando esse luto não é reconhecido ― e não é reconhecido em frases de Jair Bolsonaro como “E daí?”, ou “Vamos tocar a vida”, ou “Está morrendo gente? Tá. Lamento. Mas vai morrer muito mais se a economia continuar sendo destroçada” ou “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”. No luto da covid-19, os brasileiros que perderam não tem o reconhecimento da magnitude da sua perda porque a morte pela doença foi normalizada. Sua dor, então, torna-se uma carta que não chega ao seu destino, uma carta que não é aberta pelo outro. É esse buraco que os memoriais tentam preencher, sabendo que podem apenas tecer uma rede em volta dele.

Essa negação da dor que silencia os enlutados e os condena ao ostracismo, mesmo entre seus vizinhos, é da ordem do traumático. Mas o que acontece hoje, no Brasil, é ainda pior do que o pior. Sobram indícios de que as mortes por covid-19 podem estar conectadas aos crimes de genocídio ou de extermínio, como já foi amplamente mencionado neste texto. Esses indícios também são negados por uma significativa parcela da população. E mesmo por alguns estudiosos do tema, que preferem, por razões que a razão não desconhece, afirmar que é “apenas incompetência” de Bolsonaro.

Se há fortes indícios de que a pessoa que você perdeu poderia estar viva não fosse o processo genocida em curso, o que isso faz com o seu luto? Se os responsáveis por investigar as ações do presidente e dos ministros e funcionários de seu Governo não investigam e o Judiciário não julga, o que isso faz com o seu luto? Se o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), não vê nas suspeitas que envolvem o tratamento da covid-19 pelo Governo nenhuma razão para levantar o traseiro da pilha de pedidos de impeachment de Bolsonaro, o que isso faz com o seu luto? Como você faz para que seu cérebro “esqueça” que sua mãe ou seu filho podem ter sido vítimas de um crime contra a humanidade e, caso “apague” essa informação, o que isso fará com a sua sanidade? Sem justiça, o luto está sendo convertido em violência. Só haverá luto para aqueles que perderam os que amavam na pandemia se houver luta por responsabilização.

As instituições já se mostraram incapazes ― ou sem vontade ― de investigar e julgar Bolsonaro mais de uma vez, tanto no plano do Judiciário quanto no do Legislativo. A negação de justiça, que é o que hoje vivemos no Brasil, violenta o luto dos familiares de mortos por covid-19. Sem possibilidade de encontrar justiça no Brasil, organizações da sociedade civil moveram petições no Tribunal Penal Internacional, mas este processo é lento e, como se viu na decisão recente de “arquivamento temporário”, não imune às pressões políticas. A dor, porém, demanda urgência.

Não sei como lidaremos com o fato de testemunhar um genocídio e, com exceção de alguns núcleos de resistência, não realizar como sociedade o esforço mínimo para barrá-lo. Ao deixar de fazê-lo, abandona-se vizinhos, familiares, parentes. Mas abandona-se, individualmente, algo constituinte do que é ser uma pessoa humana. E, coletivamente, quando abdicamos de barrar os horrores que são feitos em nosso nome, abdicamos do coletivo. Já não somos mais nada então, para além de um amontoado de quase 212 milhões de pessoas circunscritas por uma convenção político-geográfica. O Brasil, que já vinha se destroçando, terá de se haver então com algo ainda não nomeável no âmbito do horror. Não se pode passar por cima de algo desse tamanho sem se perder por completo.

Temo, porém, o rearranjo caso não seja feita justiça e não exista reconhecimento dos mortos nem do luto dos que perderam. Será que a sociedade vai imitar os militares da ditadura e falsificar o passado para se absolver dos horrores feitos em seu nome? Será que apagarão a história, deixarão os mortos desaparecerem nas valas comuns, silenciarão as viúvas, esperarão que os órfãos se suicidem? É assim que finalmente se fará o desacerto de contas deste país com sua desmemória?

Bolsonaro, assim como todos os apagamentos que ele representa, terá então vencido, porque conseguiu fazer de cada brasileiro um cúmplice, um igual a ele. E agora a maioria já não poderá falar sem denunciar a si mesma. Onde você estava? O que você fez? A sociedade brasileira vai recusar essas perguntas, cada indivíduo vai recusar essas perguntas. E tratará de destruir quem insistir em seguir perguntando.

Há bem pouco do que se orgulhar na história do Brasil, esse país construído sobre corpos humanos e costurado com o fio interminável da violência. Mas isso, isso que estamos deixando acontecer, isso é terrível demais até para nós.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


El País: Reforma administrativa poupa elite do funcionalismo e pode dar “cheque em branco” a Bolsonaro

Fatiada, proposta prevê que presidente possa extinguir fundações e autarquias sem a autorização prévia do Congresso. Texto restringe carreiras do Estado, mas não define quais são

Afonso Benites, do El País

Para enviar sinais ao mercado financeiro e mostrar ao Congresso Nacional que tem interesse em reduzir os gastos com a máquina pública, o presidente Jair Bolsonaro enviou nesta quinta-feira a sua reforma administrativa. O documento foi entregue pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O deputado disse que pretende acelerar a sua votação para ser aprovada ainda este ano, mesmo que as sessões sejam remotas e as comissões que fazem uma análise prévia dos projetos de lei não estejam em pleno funcionamento. Representantes do servidores, no entanto, apostam que o texto só será votado no ano que vem.

Além das incertezas políticas, o aguardado texto não agradou completamente nem os que defendem há anos das mudanças dentro do funcionalismo público, como o fim da estabilidade para todas as funções. Conforme especialistas ouvidos pela reportagem, da forma como foi elaborada, fatiada e sem detalhamentos de carreiras ou financeiros, o texto traz instabilidade para o funcionalismo, privilegia o alto escalão dos servidores e pode passar um “cheque em branco” para o presidente, pois permite que acabe com órgãos do Executivo sem o aval do Parlamento.

A reforma, uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que precisa passar pela Câmara e também pelo Senado, abrange, em tese, funcionários públicos em todas as esferas, ou seja, atualmente cerca de 11,4 milhões de pessoas, mas não valerá para os atuais ocupantes dos cargos, apenas para os que entrarem nas carreiras. Apesar do discurso liberal e de corte de privilégios, o Governo Bolsonaro preferiu não comprar a briga com o atual quadro.

A proposta não fala nada sobre cumprimento do teto salarial para servidores, uma regra sempre desrespeitada, e também poupou das mudanças os militares e representantes das carreiras do topo do funcionalismo público, como deputados, senadores, juízes, promotores, procuradores e desembargadores. A justificativa dada por técnicos da Economia é que os militares não são considerados servidores públicos e já tiveram suas alterações no regime alterada em recente reforma enviada ao Legislativo. Sobre os demais funcionários, afirmaram que eles são membros dos seus Poderes, e não servidores. Portanto, caberia ao próprio Poder apresentar suas reformas.

O argumento é questionado por opositores. “Essa reforma administrativa aprofunda desigualdades e não reduz os gastos públicos, não toca nos privilégios. Se o Parlamento quer fazer alguma mudança, tem primeiro dar o exemplo”, diz o líder da oposição ao Governo no Senado, Randolfe Rodrigues (REDE-AP).

Na apresentação que detalhou a PEC, os técnicos do Governo informaram que a preocupação do Executivo é financeira, mas não detalharam o tamanho da economia com as alterações legislativas. Afirmaram que isso viria em uma segunda etapa, quando medidas complementares fossem enviadas. Pelo que chegou ao Legislativo, as alterações só valem para novos servidores, não para os atuais.

A proposta estava pronta havia dez meses, mas o presidente estava reticente em enviá-la por entender que entraria em confronto com uma boa parte da população. Ainda assim, não a enviou por completo. O Ministério da Economia disse que outras duas fases devem ser mandadas nos próximos meses, de maneira fatiada, assim que as discussões começarem a avançar no Legislativo.

Outra alteração na PEC é a possibilidade de, por um simples decreto, sem a necessidade de debate com o Congresso, o presidente extinguir ou modificar autarquias e fundações, desde que não gere impacto financeiro. Neste grupo estão órgãos como as agências reguladoras (ANEEL, ANCINE, ANATEL, ANVISA) e institutos como o Ibama e ICMBIO ―responsáveis pela fiscalização ambiental – ou Incra― que trata da reforma agrária.

Para especialistas ouvidos pela reportagem, faltou o Governo estabelecer um diagnóstico sobre o funcionalismo público e intensificar o debate com as carreiras antes de se enviar a sua PEC. “É uma reforma muito abstrata”, ponderou a professora e coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas, Gabriela Lotta. “O Governo não conseguiu dimensionar o impacto orçamentário nem demonstrar em que medida essa proposta vai melhorar o serviço público”, complementou o presidente do Fórum Nacional Permanente das Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), o auditor Rudinei Marques.

Para a professora Lotta, quando os detalhes não são apresentados, passa-se um “cheque em branco para o presidente fazer o que bem entender”. A proposta acaba com o regime jurídico único dos servidores e cria cinco distintos. Também prevê a manutenção da estabilidade apenas para carreiras de Estado, ainda que não defina quais seriam essas carreiras. Na prática, quem não for da carreira de Estado não tem a garantia de emprego. “No Ministério das Relações Exteriores, todos os funcionários são estáveis. Do agente de portaria até o diplomata. Isso não faz sentido”, afirmou o secretário-adjunto de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Gleisson Rubin. Lotta questiona: “Ele não detalha, por exemplo, quais são as carreiras de Estado. Só dizem que elas existem. Mas quem deveria definir quais são essas carreiras é o Congresso, não o Executivo”, afirma Lotta.

O representante da Fonacate, Marques, por sua vez, diz que, se aprovada da maneira que está, a reforma vai ajudar na precarização do trabalho público. “Do jeito que está, os funcionários do Ibama, da Receita Federal, da Polícia Federal, dos órgãos de controle não teriam a estabilidade adequada para exercerem suas funções”, afirmou. E completou: “Teríamos muita interferência e um serviço público aparelhado para atender determinados interesses políticos e pessoais”.

Daniel Ortega, especialista sênior para o setor público do Banco Mundial, diz que a reforma apresentada por Bolsonaro toca em quatro pilares fundamentais para qualquer mudança na área: fiscal, flexibilidade das contratações, gestão das carreiras e a avaliação de desempenhos. “São temas complexos para se debater porque tem muitas partes interessadas”, aponta.

Ortega, contudo, diz que o Governo tem de tomar o cuidado para não transformar os servidores públicos em vilões da máquina pública. “Quando se valoriza o trabalho do servidor público, se tem um impacto diretamente na prestação de serviços que todos os brasileiros recebem. Eles não podem ser vistos só como uma questão fiscal”. No ano passado, o Banco Mundial apresentou um estudo para o Planalto que tinha como objetivo embasar a reforma.

Só no âmbito federal, a folha de servidores representa o segundo maior gasto da União, 337,3 bilhões de reais, ou 22% do orçamento anual. Fica atrás apenas dos gastos com Previdência Social. Ainda assim, a distribuição é muito desigual, com servidores federais ganhando bem mais, na média, que os municipais, por exemplo. Apesar dos discursos de que há uma profusão de servidores, os dados mais recentes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que o Brasil tem 12% de sua força de trabalho no poder público. A média dos 32 países pesquisados por esse organismo internacional é de 21%. No topo, está a Dinamarca, com 35% e, na base, a Colômbia, com 4%. Os dados são de 2015.

O texto agora entra na batalha de lobbies do Congresso. Mesmo com a pressa em se aprovar a PEC, há dois cenários que dificultam a sua rápida tramitação: a pandemia que faz com que as sessões sejam virtuais, o que dificulta a realização de audiências públicas, e as eleições municipais, quando boa parte dos deputados e senadores se ausentam das sessões para se dedicarem a campanhas eleitorais próprias ou de seus aliados. Entre os servidores públicos, a conta é que a proposta deve ser votada só no ano que vem.


Eliane Brum: 7 de Setembro: Morte

Brasil chega ao Dia da Independência com um genocida no poder e negacionistas do genocídio em todas as partes

Se este 7 de Setembro transcorrer como se o Brasil vivesse algum tipo de normalidade, enterremos nossos corações, porque já estarão mortos. Devemos então parar de fingir que estamos vivos e assumir nossa condição de zumbis. Não o dos filmes, que tentaram escapar dessa condição. Mas os que escolhem ser contaminados pela normalidade criminosamente anormal. A covardia é uma forma de existência a qual se escolhe. Este país está cheio de oportunistas, sim. Mas também está cheio de covardes incapazes de defender qualquer território para além da sua família, porque também o sentimento de comunidade foi persistentemente destruído. Em 7 de Setembro de 1822, quando se aliviava de uma diarreia insistente no riacho Ipiranga, em São Paulo, o príncipe português Dom Pedro I teria gritado: Independência ou Morte! Depois de 198 anos, já entendemos que o Brasil sempre escolheu a morte. Mas jamais, em nenhum outro momento de sua história, o país havia alcançado esse nível de perversão sob o título formal de democracia. Negros e indígenas vivem uma longa história de extermínio, mas esta é a primeira vez em que um Governo construiu uma máquina de morte. Temos um genocida no poder, e ele está matando tanto quanto deixando morrer. Tem intenção, tem plano e tem ação sistemática.

Os quatro pedidos de investigação de Jair Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade que já chegaram ao Tribunal Penal Internacional não são um jogo político de retórica. São a denúncia de que o judiciário brasileiro não consegue ou não quer barrar os crimes de Bolsonaro e de outras pessoas com cargos de poder no Governo, sejam generais ou civis. Se conseguisse ou quisesse, como os fatos já mostraram, Bolsonaro nem poderia ter sido candidato. Ele é o resultado, como já escrevi, de uma longa série de impunidades iniciada ainda quando era militar. Foi absolvido no Tribunal Superior Militar, em um julgamento povoado de indícios de fraudes, de planejar um ato terrorista com um motivo corporativo: botar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários. Só se tornou presidente pela vocação característica do sistema judiciário brasileiro: a de punir severamente os pretos e pobres e despachá-los para um sistema carcerário incompatível com qualquer ideia de civilização, mas perdoar ou deixar de julgar os ricos e brancos. Especialmente se estes forem militares e tiverem o privilégio de uma justiça paralela que escolhe inocentes e culpados com base não nos fatos, mas nos interesses corporativos de uma instituição que se considera acima da Constituição.

Bolsonaro é brasileiríssimo. A criatura que está matando os Brasis que considera obstáculos ao seu projeto de poder, assim como as populações que despreza (indígenas e negros), é a versão mais bem acabada – e por isso tão terrivelmente mal acabada – de todas as deformações. As que os governos anteriores não quiseram corrigir, pelas mais variadas razões, as que as diferentes elites estimularam, para manter seus privilégios, as que o povo se acostumou a conviver.

O Brasil chega a este 7 de Setembro com os símbolos nacionais sequestrados pelo bolsonarismo. A bandeira foi sequestrada, o hino foi sequestrado, as cores foram sequestradas. Porque o bolsonarismo não se coloca como uma parte do Brasil, mas como o todo. Os outros Brasis e brasileiros que se opõem a ele são considerados e tratados como não brasileiros, como aqueles que precisam ser expulsos ou eliminados porque não deveriam estar aqui. O seu discurso no telão da Paulista, pouco antes do segundo turno das eleições de 2018, quando a vitória já era certa, é explícito: “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil (...) Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia”. Percebam. Não a lei do Brasil, que é a Constituição, mas “a lei de todos nós”. E esclareceu quem são “nós”: “O Brasil de verdade”.

O bolsonarismo é, em sua gênese e na sua estrutura, incompatível com a democracia. Na minha opinião, também incompatível com a civilização. O fato de Bolsonaro ter sido eleito não altera sua vocação totalitária nem sua lógica de eliminação dos opositores como “falsos brasileiros”. Ao contrário. Ao ser candidato, apesar de todos os crimes que já tinha cometido, a começar pelo de apologia à tortura, Bolsonaro desmoraliza e destrói uma combalida democracia que jamais foi capaz de julgar os crimes da ditadura e por isso jamais foi capaz de se proteger de criminosos como Bolsonaro.

Bolsonaro não apenas leva os generais de volta ao Governo e militariza toda a máquina pública, o que pareceria impossível apenas alguns anos atrás, para um país que viveu uma ditadura militar de 21 anos. Ele também carrega para o Planalto a lógica de guerra dos regimes totalitários. Na ditadura iniciada com o golpe de 1964, os “inimigos da pátria” eram os opositores políticos, especialmente os estudantes que a ela resistiram também com luta armada. No regime criado pelo bolsonarismo, que já não podemos chamar de democracia, os inimigos da Pátria são ampliados para todos aqueles que se opõem democraticamente a ele e a todos aqueles que são obstáculos ao projeto econômico de grupos no poder. Os opositores, como ele disse, devem ser levados à “Ponta da Praia”, referindo-se a um local de tortura e desova de cadáveres na ditadura, no Rio de Janeiro. Já os indígenas, principal obstáculo ao projeto de exploração da Amazônia, são tratados como uma espécie inferior: “cada vez mais humanos iguais a nós”. Aos quilombolas, outro obstáculo, ele se refere com termos usados para animais: “nem para procriadores servem”.

De certo modo, Bolsonaro vai além da ditadura militar na qual se inspira ao tornar “brasileiros de verdade” apenas os fiéis de seu culto político ― e falsos todos os outros. Porque ele não é apenas um “mau militar”, como definiu o ditador e general Ernesto Geisel. Bolsonaro está também aliado aos pastores de mercado e ao ruralismo mais predatório. Bolsonaro emprestou à lógica da guerra dos generais uma versão bíblica do bem contra o mal, explicitada pelos brasileiros de verdade e pelos brasileiros de mentira. Estes devem ser expulsos ou eliminados não apenas como inimigos, mas como infiéis da pátria. Para consolidar sua vitória colocou em campo uma máquina de propaganda, o chamado “gabinete do ódio”, que poderia ser elogiada por Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. O bolsonarismo converteu todos aqueles que se opõem a ele em inimigos da pátria, do mesmo modo que o nazismo fez com os judeus num primeiro momento. Com os indígenas e com os negros, ele já entra numa segunda etapa, ao considerá-los apenas quase humanos como “nós”.

Bolsonaro e o bolsonarismo, que vai muito além dele, faz uma colagem dos totalitarismos do século 20 com a versão bíblica do evangelismo de mercado que se consolidou na política partidária neste século e alcançou o poder central com a eleição de 2018. Se fossem contemporâneos, Adolf dificilmente teria prazer em se sentar à mesa com Jair, porque a vulgaridade do presidente brasileiro o escandalizaria. Hitler queria criar sua própria arte e estética. Bolsonaro, pelo menos por enquanto, só quer destruir qualquer forma de arte. É o supremacista que prega (também) a supremacia da estupidez como a vingança dos ressentidos.

Bolsonaro não precisou criar seus campos de morte. Deixou a covid-19 avançar e agiu para reter recursos públicos destinados ao enfrentamento da doença, para afastar os quadros técnicos com experiência em saúde pública e epidemias, para vetar medidas decisivas de prevenção e para tumultuar o combate ao vírus. Também incentivou a invasão das terras indígenas e das áreas protegidas por grileiros e garimpeiros. Se a pandemia acabasse hoje, este já é um Brasil sem muitas das grandes lideranças que lideraram seus povos na luta pelo direito a viver em suas terras ancestrais e para manter a floresta amazônica e outros biomas em pé. Parte dos opositores de Bolsonaro, na Amazônia que mais uma vez volta a queimar, morreram nos últimos meses. E a pandemia ainda está longe de acabar.

A mais recente liderança indígena morta por covid-19, em 31 de agosto, foi Beptok Xikrin, 78 anos, conhecido como Cacique Onça. Voltou à sua aldeia, no Médio Xingu, em um caixão fechado, enfiado em uma lona, amarrado a uma caminhonete como se coisa fosse, na mais abjeta indignidade. Não basta matar ou deixar morrer, é preciso humilhar, quebrar a espinha dos povos indígenas também pelo insulto e pela desonra.

Mesmo para quem tem baixa expectativa com relação à decência das várias elites brasileiras, é custoso compreender como ainda chamam o que hoje há no Brasil de democracia. O que aí está não é bom nem mesmo para o “mercado”, essa entidade pronunciada com reverência. Que tipo de crença leva alguns setores, mesmo da imprensa, a considerar, depois de um ano e meio de governo, que há alguma composição possível com o bolsonarismo? A ação das elites não foi diferente nos processos totalitários do século 20, mas ainda assim é espantoso.

Muitos dos que votaram em Bolsonaro usaram o discurso anticorrupção como desculpa para votar num homem que se anunciava publicamente como defensor da ditadura e da tortura e que festejava como herói Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel, assassino e o único torturador reconhecido pelo judiciário brasileiro. E agora, quando não há mais desculpa? Quando Bolsonaro se abraça ao Centrão para se proteger de um impeachment? Quando Bolsonaro se abraça a Michel Temer para se aproximar do MDB? Quando o procurador-geral da República, escolhido fora da lista tríplice, se tornou office-boy de Bolsonaro, cobrindo de vergonha a instituição chamada Ministério Público Federal? Quando o herói da Lava Jato foi expelido do Governo? Quando Adriano da Nóbrega, miliciano chefe do grupo de assassinos de aluguel Escritório do Crime, foi morto e enterrado com tudo o que sabia sobre as ligações perigosas da família Bolsonaro? Quando Fabrício Queiroz, depois de meses escondido em uma das casas do advogado de Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, foragida, conseguem uma surpreendente prisão domiciliar? Quando um desembargador, sozinho, é capaz de afastar um governador do Estado inimigo de Bolsonaro e com poder para decidir os cargos de quem vai tocar (ou não) os processos sobre a família presidencial? Quando as denúncias de corrupção batem no peito de Bolsonaro, na forma da pergunta que faz Bolsonaro querer “encher a boca” do repórter “de porrada”? Esta pergunta aqui:

“Presidente Bolsonaro, por que a sua esposa, Michelle, recebeu 89 mil de Fabrício Queiroz?”

Agora, quando há duas enormes perguntas assombrando a família Bolsonaro. Esta e a outra, que se repete há mais de 900 dias sem nenhuma resposta:

“Quem mandou matou Marielle Franco? E por quê?

A pauta anticorrupção como justificativa para votar em um homem com o passado e o presente de Bolsonaro sempre foi fingimento. Desconfio que alguns fingiram tanto que até acreditaram. E assim chegamos ao 7 de Setembro com uma oposição partidária fraca, a esquerda ocupada brigando entre si e a direita buscando se consolidar como uma espécie de poder moderador da extrema direita no poder. Dilma Rousseff (PT) foi arrancada da presidência supostamente por ter praticado “pedaladas fiscais”. A folha corrida de crimes de responsabilidade muito mais graves de Bolsonaro está dando volta no quarteirão. E, mesmo assim, Rodrigo Maia (DEM) acomodou seu traseiro sobre uma pilha de dezenas de pedidos de impeachment, um deles da Coalizão Negra por Direitos, com base no agravamento do genocídio dos negros.

Gostaria de dizer que há momentos em que um povo decide se é um povo ou um amontoado de gente “tocando a vida”, como mandou o déspota eleito que nos carrega para a morte. Gostaria de dizer, mas não digo. Porque não acredito que temos um povo, no sentido de uma massa de pessoas com a mesma nacionalidade que luta por valores comuns. Talvez não tenhamos um povo. Mas temos povos. Nas periferias e favelas urbanas deste país há gente se organizando e lutando e criando possibilidades de viver apesar de todas as formas de morte. Se ainda existe a Amazônia é porque camponeses e povos da floresta lutam, mesmo sendo abatidos a tiros ― e agora também pela covid-19. Nas cidades, os movimentos de sem-teto se organizam pelo direito da ocupação da cidade para a vida e não para a especulação imobiliária. No campo, os agricultores familiares insistem em alimentar o país sem agrotóxicos enquanto Bolsonaro libera mais de um veneno por dia. Há homens e mulheres barrando a destruição da natureza com seus corpos em cada dobra do país. Há rebeliões por todos os Brasis, avançando nas fissuras, pelas bordas.

Não são os mais frágeis que se mantêm em pé. São os fortes. Há 500 anos há um Brasil tentando matar todos os indígenas ― pela assimilação, pela contaminação ou por bala. E, ainda assim, a população indígena cresceu nas últimas décadas. Desde a abolição formal da escravidão, os negros foram deixados para morrer, e ainda assim os negros se tornaram a maioria ― 56% ― da população brasileira. Viver ― contra todas as formas de extermínio ― tem sido o ato mais radical de resistência das populações invisibilizadas, oprimidas e tratadas como subalternas.

Neste momento, as gerações que hoje vivem enfrentam seu maior desafio. Bolsonaro converteu o Estado numa máquina de morte. Tão perversa que viu na covid-19 uma maneira de eliminar aqueles que barravam com seus corpos seu projeto de poder. Suas ações deliberadas são encobertas com aparições midiáticas, discursos golpistas, o jogo de cena da cloroquina e a falácia da defesa da economia. O bolsonarismo controla quase que totalmente o noticiário enquanto o genocídio é a política persistente que avança na camada atrás dos holofotes dos factoides, sem encontrar oposição capaz de pará-la.

Hoje, Bolsonaro alcançou mais do que o seu sonho. Ele queria que a ditadura militar, que formou os generais que o apoiam, “tivesse matado pelo menos mais uns 30 mil”. Sua negligência intencional na resposta à covid-19, sua campanha oficial de desinformação, seu exemplo pessoal de irresponsabilidade são a principal causa da ampla disseminação da doença no Brasil. Também neste momento, a Amazônia queima mais uma vez e se aproxima velozmente do ponto de não retorno. O Parlamento Europeu já estuda considerar a destruição da maior floresta tropical do mundo, praticada deliberada e sistematicamente por Bolsonaro, um crime contra a humanidade.

Neste 7 de Setembro, chegamos ao ponto no Brasil em que afirmar que o presidente é “apenas” incompetente significa ajudá-lo a se safar de ser responsabilizado por crimes contra a humanidade. Incompetência é terrível e traz graves consequências, mas não é crime. Os fatos mostram que Bolsonaro foi deliberadamente incompetente, intencionalmente negligente, sistematicamente irresponsável. Bolsonaro e seu Governo planejaram e agiram, como mostra o Diário Oficial da União, suas manifestações nas redes e os vídeos com suas declarações públicas.

A data mais simbólica do Brasil não pode passar como se fosse normal ter um genocida no poder. Se deixarmos o genocídio se normalizar, não haverá vida neste país nem mesmo para aqueles que, por sua posição na cadeia alimentar da desigualdade brasileira, acreditam sempre estar a salvo. Neste 7 de Setembro, há movimentos de resistência dos Brasis insurgentes se levantando contra a máquina de morte do bolsonarismo. Há gente com coragem de nomear o que está acontecendo no Brasil. Não sei se seremos muitos ou poucos. Provavelmente poucos, mas, como os mortos da covid-19, inumeráveis. Há momentos em que tudo o que podemos fazer é lutar, mesmo sabendo que vamos perder porque a maioria vai estar tocando a vida ― e seguirá tocando a vida enquanto considerar que é só a vida do outro que está em risco. Talvez a pergunta mais importante deste 7 de Setembro seja: como pode barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer?

Resistindo. Declarando sua independência, porque morte já há demais. No momento, quase 125 mil corpos. Rebelando-se. Não porque agora seja possível ganhar. Mas para não ser obrigado a baixar os olhos quando as crianças perguntarem no futuro próximo de que lado você estava e o que você fez para impedir Bolsonaro de seguir matando.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


El País: PIB tem queda histórica de 9,7% no segundo trimestre e pandemia arrasta o Brasil para recessão

Indústria e Serviços foram os setores mais afetados pela crise. Queda do consumo das famílias bate recorde, com recuo de 12,5%, segundo dados do IBGE divulgados nesta terça. Já a Agropecuária apresentou variação positiva de 0,4%

Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil registrou um tombo histórico de 9,7% no segundo trimestre, na comparação com os 3 primeiros meses do ano, segundo dados divulgados nesta terça-feira pelo IBGE. Em relação a igual período de 2019, o PIB caiu 11,4%. Ambas as taxas foram as quedas mais intensas da série, iniciada em 1996. O resultado inédito mostra o forte impacto da pandemia do coronavírus na atividade econômica e os efeitos das medidas de isolamento social. Com a retração, a economia brasileira entra em recessão técnica, caracterizada por dois trimestres consecutivos de encolhimento do PIB.

Entre os segmentos, a maior queda foi na Indústria (-12,3%), puxada pelo forte recuo na produção de produtos duráveis ou semiduráveis, como automóveis e vestuário. O setor de não-duráveis, como alimentos e itens de higiene, no entanto, contribui para amenizar o resultado negativo.

Com o fechamento de vários estabelecimentos no país, principalmente durante abril e maio, como lojas, shoppings, bares e restaurantes, o setor de serviços, responsável por cerca de 70% do valor do PIB brasileiro, retraiu 9,7% no trimestre. Já o setor da Agropecuária apresentou variação positiva de 0,4%.

Pelo lado da demanda, a maior queda foi no consumo das famílias (-12,5%). O auxílio emergencial ajudou a atenuar o resultado negativo, mas não foi suficiente para impedir o recuo pela demanda por bens e, principalmente, por serviços, setor que que foi o principal motor do crescimento após a última recessão. “O consumo das famílias não caiu mais porque tivemos programas de apoio financeiro do Governo. Isso injetou liquidez na economia. Também houve um crescimento do crédito voltado às pessoas físicas, que compensou um pouco os efeitos negativos”, disse a coordenadora de Contas Nacionais do IBGE, Rebeca Palis.

O histórico tombo de 11,4% economia brasileira sobre igual período do ano passado, comparado ao dos países da região que já divulgaram o PIB do segundo trimestre, como Chile (-13,7%), Peru (-30%) e México (-19%), e até com países europeus, foi menos ruim. “Há algumas diferenças no Brasil. Primeiro, o programa de transferência de renda para as pessoas mais vulneráveis, o auxílio emergencial, foi acima da média da região. Isso é consumo na veia, a renda das pessoas mais pobres aumentou, impedindo uma recessão mais profunda”, explica Silva Matos, economista e pesquisadora sênior da área de Economia Aplicada do FGV/Ibre. Ela aponta que também influenciou no resultado, entre outros fatores, a forma em que o Brasil enfrentou a pandemia. “Nós não fizemos um lockdown, nem qualquer isolamento tão severo, como em países europeus ou até mesmo da região, o que permitiu o funcionamento de mais atividades”.

Matos ressalta que o PIB divulgado nesta terça-feira revela um retrovisor da média dos últimos três meses do primeiro semestre, porém desde abril, considerado o fundo do poço, a atividade aponta para uma recuperação. “Foi muito negativo em abril, menos ruim em maio e junho um pouquinho menos pior”. Segundo estimativas do Ibre, o cenário de retomada deve se manter nos próximos meses, mas em ritmo mais gradual, em função da cautela dos consumidores, em um contexto de mercado de trabalho muito fragilizado.

O momento atual, no entanto, é ainda de elevadas incertezas, não apenas pela resposta dos diferentes segmentos econômicos à crise como pela própria evolução dos casos do coronavírus. Atualmente o Brasil ainda possui níveis elevados no número de contágios e mortes pela covid-19 ― somando mais de 121.000 vítimas da doença ―, e a pressão por mais gastos se intensifica em um espaço fiscal muito limitado.

De acordo com Matos, no terceiro trimestre, o país já deve apresentar um resultado positivo na economia, no entanto, ainda há dúvidas quanto ao comportamento da atividade no último trimestre e no próximo ano com a diminuição e fim gradual dos estímulos. “A grande pergunta é se o emprego irá voltar. Hoje ainda não temos a radiografia real da queda do desemprego, já que muitas pessoas ainda não estão procurando emprego por conta da transferência do Governo”, diz. Quase 9 milhões de postos de trabalho foram perdidos no Brasil no segundo trimestre. “A redução do auxílio nos próximos meses vai revelar como fica a economia, a capacidade de manutenção de consumo, de geração de emprego. O que parece hoje é uma dependência muito excessiva. E ano que vem não há espaço no orçamento para esses estímulos”. A economista estima que o país retornará ao nível de atividade do quarto trimestre de 2019, isto é, pré-pandemia, apenas no segundo semestre de 2022.

Nesta semana, o mercado financeiro reduziu a estimativa para o recuo do PIB para este ano, revisando a estimativa de uma queda de 5,46% para 5,28%.Essa foi a nona semana seguida de melhora do indicador. Para 2021, a aposta do mercado é de um avanço de 3,50% da economia, segundo o boletim Focus, que reune as previsões dos analistas das 100 principais instituições financeiras.


Juan Arias: O Brasil afunda tragicamente aos olhos do mundo como um novo Titanic político

País começa a ser um clássico no mundo de como morrem as democracias e de como suas instituições vão se deteriorando numa cadeia infernal

O que está acontecendo com o Brasil, que aparece aos olhos do mundo não como uma potência mundial, mas como um novo Titanic que cada dia vai rachando politicamente, com efeitos econômicos perversos que estão afogando os mais fracos?

A nova podridão que aparece no Rio de Janeiro, com novos e graves escândalos de corrupção política —que já envolvem quatro governadores consecutivos— e as ferozes intrigas de poder que vão surgindo, está colocando de joelhos um dos Estados mais importantes do país. Sua capital sempre foi uma vitrine mundial de beleza e um objeto de desejo do turismo global.

E tudo parece cada dia mais grave porque, das entranhas dos casos de corrupção, surge desta vez o roubo de dinheiro destinado à luta contra a epidemia. Mais do que uma onda de corrupção política e empresarial, tudo parece indicar que estamos diante de uma luta feroz com vistas às eleições presidenciais de 2022 e a uma possível reeleição de Bolsonaro.

Enquanto o chefe de Estado ameaça “dar porrada” na cara dos jornalistas que o interrogam sobre os supostos escândalos de sua família, em todo o país há uma luta entre os diferentes poderes, que agem cada dia mais pelas costas da sociedade em guerras internas.

Sempre foi dito que o Brasil, o quinto maior país do mundo, coração econômico da América Latina, estava destinado a exercer um papel importante entre as demais potências mundiais. Lá de fora olhavam com surpresa e admiração o desenvolvimento econômico e cultural do país, que foi ganhando a simpatia mundial.

Hoje o céu do astro brasileiro começa a escurecer. Parece mais um país abandonado à própria sorte, já que a corrupção e a pequenez de seus dirigentes evidenciam o câncer que o devora por dentro do poder, paralisando o ímpeto que começava a ter dentro e fora de suas fronteiras.

Em meio a essa guerra entre os poderes e às ameaças de golpes de Estado enquanto todas as instituições se deterioram, os graves e atávicos problemas que este país nunca soube resolver — como a violência, o racismo e a escandalosa distribuição de renda—, a cada sete horas uma mulher é assassinada. A maioria dessas mulheres são negras ou pardas.

O Brasil começa a ser um clássico no mundo de como morrem as democracias e de como suas instituições vão se deteriorando numa cadeia infernal.

E agora que o mundo inteiro está em emergência por causa da pandemia, e quando existe mais necessidade de que os poderes dos Estados sejam fortes e capazes de fazer frente à emergência, o Brasil vai afundando cada dia com a descoberta de novas tramas de poder e lutas internas.

Daí a urgência para que as forças da sociedade e da oposição —a um Governo cada vez mais atropelado pelas inoperâncias de seus governantes e suas mesquinhas ambições— sejam capazes de salvar um país cuja colaboração no xadrez mundial se torna cada dia mais importante dentro e fora do continente.

O Brasil não é outro país bananeiro da América do Sul. Tem vocação de influência na política global, cada vez mais envolvida no retrocesso dos valores de liberdade e defesa dos direitos humanos, no qual a pandemia está abrindo novas lacunas de exclusão.

O país precisa com urgência de uma Justiça menos politizada e de uma política menos judicializada, num cenário onde cada uma das instituições do Estado possa manter sua independência e agir para o bem de toda a comunidade. O que vemos hoje é um país cada vez mais sujeito a uma política com “p” minúsculo voltada a manter e ampliar seus privilégios, dando as costas a uma sociedade cada dia mais perplexa e desiludida.

Se um dia o mundo olhou até com inveja para o desenvolvimento econômico e social do Brasil, hoje o país corre o risco de se ver cada vez mais distante dos centros onde se forja o poder mundial. Uma mesa da qual o país se afasta devido à quebra de seus melhores valores, enquanto se desvanecem para os mais pobres as esperanças que os resgatavam de seu inferno de escravidões passadas.

Que os políticos e juízes, em vez de pensar em eleições e reeleições num puro jogo de poder, e em vez de trabalhar para conseguir mais privilégios que escandalizam as pessoas comuns, que têm que se sacrificar para poder comer, sejam capazes de uma renovação, algo que se torna mais urgente e vital cada dia que passa e a cada novo escândalo que surge de suas próprias entranhas.

O Brasil verdadeiro, o de suas tantas riquezas materiais e espirituais acumuladas através dos séculos, necessita hoje com urgência de novos líderes e estadistas que possam fazer renascer sua verdadeira identidade dos escombros de tanta indignidade institucional.


El País: Nove milhões de brasileiros deixaram de comer por falta de dinheiro durante a pandemia

Levantamento feito pelo Ibope e Unicef aponta que, além da mesa vazia, lares com crianças e adolescentes sofreram com alimentação de pior qualidade, que contribui para obesidade

pandemia do novo coronavírus afetou a qualidade e a quantidade de comida que as crianças e adolescentes brasileiros estão consumindo. Além disso, em diversos outros aspectos, os lares onde eles vivem foram mais afetados pela crise econômica e social que se instalou após a chegada do vírus no Brasil. É o que concluiu pesquisa do Ibope e Unicef realizada com adultos que vivem com adolescentes e crianças entre 4 e 17 anos. De acordo com o levantamento, 21% dos entrevistados afirmaram que vivenciaram momentos em que os alimentos acabaram e não havia dinheiro para comprar mais. Entre os que vivem com crianças e adolescentes em casa, esse percentual foi de 27%. Sem ter a quem recorrer, como programas de distribuição de alimentos, 6% disseram que a única saída foi deixar de comer, o que representa cerca de nove milhões de brasileiros deixando de realizar alguma refeição por falta de dinheiro. Nos lares com crianças e adolescentes, esse percentual sobe para 8%.

O estudo ainda mostra que a comida, quando tem, é de pior qualidade em muitos casos. Quase metade (49%) dos brasileiros sofreu alguma mudança nos hábitos alimentares neste período de quarentena. Entre as famílias que vivem com crianças ou adolescentes o impacto foi ainda maior: 58%. Isso inclui o aumento do consumo de alimentos industrializados, refrigerantes e fast food, o que contribuiu para a evolução de uma outra epidemia, explica Cristina Albuquerque, chefe de saúde do Unicef Brasil. “A covid-19 pode trazer um agravamento da epidemia da obesidade entre crianças, adolescentes e nas famílias”, afirmou.

A mesa vazia é reflexo direto da crise econômica que abalou principalmente as famílias mais pobres durante a pandemia. Mais da metade dos entrevistados (55%) disse que o rendimento caiu desde o início da pandemia. Em muitos casos, a redução se deu por causa das demissões, já que 64% afirmaram que estavam trabalhando antes da chegada do coronavírus ao Brasil, mas, no momento da pesquisa, realizada em julho, este percentual havia caído para 50%. Já os lares com crianças e adolescentes foram especialmente afetados também neste campo: nessas casas, 63% afirmaram que o rendimento caiu. Em 25% desses lares, a renda diminui pela metade. Já nas casas sem crianças, a mesma redução foi observada por 14%.

Maioria seguiu estudando

O levantamento mediu também o impacto da pandemia na educação e revelou um dado um tanto surpreendente: 91% afirmaram que as crianças e adolescentes continuaram realizando as atividades escolares durante a pandemia. O percentual chamou a atenção das autoridades do Unicef que apresentaram os dados para a imprensa na manhã desta terça-feira. Mas, por outro lado, foi frisado que é preciso questionar a qualidade desse vínculo escolar que foi mantido remotamente nos últimos meses. “A grande questão é entender a qualidade com que essa frequência de atividades tem sido realizada”, afirmou Ítalo Dutra, chefe de educação do Unicef Brasil.

Deste grupo que seguiu realizando as atividades escolares mesmo de casa, a pesquisa registrou disparidade entre a rede pública e a particular. Enquanto 94% dos alunos da escola privada seguiu realizando as atividades, na rede pública foram 89%. A Internet foi o meio utilizado por 97% dos estudantes da rede particular para seguir estudando, e para 81% da rede pública.

As aulas e atividades remotas, no entanto, não demandaram dedicação somente dos estudantes. A maioria (73%) afirmou que eles tiveram ajuda de alguém em casa para realizar as atividades. E 63% receberam tarefas cinco dias por semana para serem cumpridas.

A pesquisa foi realizada entre os dias 3 e 18 de julho, com entrevistas por telefone feitas com 1.516 pessoas acima de 18 anos de todas as regiões do país.


El País: A miragem de Dilma, ou por que faltam brasileiras em cargos eleitos

Partidos burlam a cota de 30% para mulheres, que são cerca de 15% no Congresso Nacional, Assembleias Legislativas, prefeituras e Câmaras Municipais

Naiara Galarraga Gortázar, do El País

Senado brasileiro aproveitou um recesso natalino para fazer uma pequena reforma de transcendência histórica. Quando as obras acabaram, o plenário teve finalmente um banheiro feminino. Foi há poucos anos, em 2016. Até então, as 12 senadoras daquela legislatura eram obrigadas, como todas as suas antecessoras, a utilizar o banheiro do restaurante ao lado. Depois de anos de reivindicações, as representantes da soberania popular conseguiram que o banheiro masculino fosse dividido em dois. A longa luta para conseguir esse banheiro em Brasília − com edifícios projetados pelo genial Oscar Niemeyer como símbolo de modernidade − reflete melhor a presença de mulheres eleitas nas instituições brasileiras do que o fato de o Brasil ter tido uma presidenta. Como é possível que um país com cotas de 30% para mulheres há 25 anos tenha apenas 15% de congressistas?

Sim, Dilma Rousseff fez história. A primeira brasileira na chefia de Estado. Mas aquela conquista não foi reflexo de uma presença feminina significativa nos escalões inferiores do poder. Na verdade, ela chegou lá graças ao voto popular e a Luiz Inácio Lula da Silva, que a colocou na linha de largada. Sua presidência também não se traduziu em um aumento significativo de mulheres em política.

Agora, com um presidente que foi condenado por dizer a uma deputada que era tão feia que não merecia ser estuprada, as condições são mais adversas. Não é que os ministérios de Dilma Rousseff fossem paritários, mas Jair Bolsonaro tem apenas duas ministras. Ou seja, cinco vezes menos que os ministros militares. Além disso, o presidente considera que a igualdade de gênero é uma perigosa ideologia comunista.

Mas, sob essa fachada, existe um problema estrutural. Dilma foi, em grande parte, uma miragem, porque o Brasil continua nas últimas posições do mundo em deputadas, senadoras, governadoras, prefeitas e vereadoras. Algumas iniciativas da sociedade civil estão formando candidatas para as eleições municipais de novembro.

Porque a realidade em 2020 é que as mulheres são cerca de 15% em todos esses cargos eleitos nas urnas, uma proporção semelhante à do Bahrein e a anos-luz da Suécia, mas também da Bolívia (53% de deputadas) e do México (48%).

“É uma situação vergonhosa que coloca ao Brasil entre os piores países do mundo no que diz respeito à participação política das mulheres e à defesa de seus direitos”, assinala por telefone Áurea Carolina de Freitas Silva, 36 anos, deputada federal do PSOL desde o ano passado e pré-candidata à prefeitura de Belo Horizonte. “Ter cotas não é suficiente”, acrescenta essa mulher negra que é uma autêntica raridade em um Congresso que pouco tem a ver com a diversidade que caracteriza o Brasil. Os homens brancos são a esmagadora maioria.

Elas ganham presença e poder político a passo de tartaruga, apesar de existirem há 25 anos cotas legais para incentivar sua entrada na política. E, embora 15% de deputadas seja uma proporção pequena em comparação com o resto do mundo, a verdade é que é um recorde: nunca houve tantas na Câmara dos Deputados. Onde está a armadilha?

A explicação breve é que a resistência dos partidos − de todos, embora um pouco mais dos direitistas do que dos esquerdistas − tem sido feroz nestes anos. Os homens brancos que dominam as siglas não querem renunciar ao seu poder. “Os partidos aproveitam cada brecha que encontram para driblar as cotas”, ressalta Hannah Maruci Aflalo, uma pesquisadora da Universidade de São Paulo especializada na representação política feminina. “Inicialmente, usaram o argumento semântico, depois criaram as candidaturas fraudulentas...”, diz a professora, cuja explicação detalhada pode ser resumida assim: os partidos, com suas arraigadas estruturas machistas, começaram argumentando que as normas só os obrigavam a reservar 30% das candidaturas para mulheres, não que elas ficassem efetivamente com essas candidaturas. Diziam que procuravam aspirantes, mas não as encontravam. Quando as regras foram reformadas para obrigá-los a ter um terço de candidatas, proliferaram as candidaturas fraudulentas. Colocavam qualquer nome feminino e pouco importava se recebiam algum voto, cumpriam a letra da lei. Um terço das candidaturas femininas à Câmara dos Deputados nas últimas eleições foram falsas, segundo um estudo. Além disso, quase todos os partidos tiveram alguma candidata que não recebeu um único voto. Candidatas que votaram em outra pessoa.

Em uma guinada perversa, os partidos recebiam dinheiro do contribuinte para apoiar as mulheres, mas elas continuavam sem ganhar poder. Assim se chegou, explica Maruci Aflalo, à reforma de 2018, pela qual 30% dos fundos públicos eleitorais vão para as campanhas das candidatas. Para a especialista é uma mudança positiva, porque agora se trata de financiamento. “Os partidos não vão querer jogar dinheiro no lixo”, diz. Mais uma vez, alguns partidos interpretaram essa reforma à sua maneira para reduzir ao máximo as mudanças. Em vez de feminilizar suas listas de candidatos, investiram em apenas uma, e de repente se multiplicaram as candidatas a vice nas últimas eleições: vice-presidenta, vice-governadora...

As brasileiras conquistaram o direito ao voto em 1932, e Dilma Rousseff governou de 2011 a 2016, mas hoje, entre os 27 governadores, há apenas uma mulher − do Partido dos Trabalhadores, de Lula e Dilma. Mas isso não é o pior. Na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, não há mulheres. Nenhuma. Os 24 deputados estaduais são homens.

A deputada Áurea Carolina em um ato parlamentar no ano passado. (Pablo Valadares / Câmara dos Deputados)
A deputada Áurea Carolina em um ato parlamentar no ano passado. (Pablo Valadares / Câmara dos Deputados) /

A política brasileira é tão masculina que é raro o domingo em que a seleção de frases da semana feita pelo jornal mais lido do país inclua alguma dita por uma mulher. Uma ausência que contrasta com a presença marcante de mulheres analistas na imprensa e na televisão, ou no comando de investigações policiais.

Uma deputada bolsonarista acaba de apresentar um projeto de lei para acabar com a cota de 30% por ser, segundo ela, uma “carga ideológica”. Existe outro projeto de lei que pede, por outro lado, que metade das cadeiras seja reservada para mulheres, incluindo 27% para negras. Porque embora as negras sejam 27% da população, são insignificantes 2% das deputadas.

“Tivemos de construir trajetórias excepcionais para estar aqui”, diz a deputada Áurea Carolina, referindo-se a si mesma e a colegas de partido como a assassinada Marielle Franco, vereadora do Rio, e a também deputada Talíria Petrone. Mulheres negras (e feministas) que antes de chegar à primeira linha da política construíram sólidas trajetórias em movimentos sociais ou no mundo acadêmico. No ano e meio em que está no Congresso, teve que aturar atitudes e comentários discriminatórios. Mas não quer se concentrar nisso. Prefere destacar seu trabalho para que as necessidades, reivindicações e desejos das mulheres e dos negros, é claro, mas também dos brasileiros LGBT, com deficiência ou indígenas sejam ouvidos nos espaços de poder.

Essa deputada esquerdista conta que às vezes, mesmo em um Brasil tão polarizado, há momentos de sororidade, de cumplicidade entre as deputadas, apesar do muito que as divide. “São momentos pontuais. Lembro do dia em que uma deputada do PSDB presidia a sessão plenária e um deputado fez um comentário machista. Todas nos solidarizamos com a agredida”, assinala.

Se chegar é difícil, manter-se firme no cargo também é. O fato de Bolsonaro ser conhecido por seus comentários machistas não o impediu de vencer entre o eleitorado feminino. E embora o Ministério Público o investigue por misoginia, sua popularidade bate recordes. Isso dá uma medida do ambiente. Mensagens pornográficas, campanhas difamatórias sexistas, piadas machististas, ameaças e as críticas à aparência são constantes para as políticas brasileiras. Muitos defensores da ex-presidenta veem elementos misóginos na campanha que levou à sua destituição. Além de “puta”, ela ouviu muitas vezes “Dilma, vai pra casa”, “Dilma, vai lavar roupa”. O grito de guerra agora é “fora Bolsonaro”. Ninguém o manda ir para casa ou lavar roupa.