el país
Eliane Brum: Como pode uma empresa controlar a vida e a morte?
Com cinco anos de operação, a hidrelétrica de Belo Monte tornou-se um laboratório de como o capitalismo produz colapso ecológico na Amazônia
Imagine. E mantenha o fôlego.
Imagine que sua vida não é controlada por você, mas pelas grandes corporações. A serviço delas estão grande parte dos Governos e grande parte dos parlamentares. Pelo seu poder financeiro, essas corporações fazem pressão para aprovar leis favoráveis a seus interesses, financiam campanhas políticas, publicitárias e de marketing, financiam cientistas em universidades prestigiadas e financiam também outra indústria que entra em suas telas 24 horas por sete dias da semana, a de entretenimento. Você é estimulado a comer produtos ultraprocessados (bolachas de pacote, congelados, refrigerantes...), que, apesar de serem chamados de alimentos, são na verdade produtores de epidemias de obesidade em várias partes do globo, provocando doenças relacionadas que vão demandar os produtos de outra indústria, a farmacêutica. Agrotóxicos produzidos por corporações transnacionais são liberados pelas agências de Governos e contaminam os rios, que contaminam os peixes e também o lençol freático e assim a água que você bebe. Esses agrotóxicos envenenam ainda a comida que você bota na mesa para os seus filhos e estão relacionados a várias doenças de trabalhadores e também a suicídios.
A soja que substituiu as florestas e as savanas serve para alimentar os animais que, depois de uma vida escravizada, serão enfileirados em pedaços despersonalizados nas prateleiras dos supermercados. Parte desses bois foram colocados sobre as ruínas da floresta apenas para garantir a posse da terra que era pública, o que faz com que a carne no seu prato seja o final de um processo que começou com a destruição da natureza. Esses bois são também uma das principais causas do superaquecimento global pelo metano que emitem ao arrotar. Em alguns países, como o Brasil, a população bovina é maior do que a humana, o que torna sua digestão uma catástrofe global. A roupa que você veste tem, na ponta visível, uma vitrine iluminada de loja, ou um site supereficiente que entrega produtos na sua porta.
Na outra ponta da cadeia, com frequência, tem trabalho escravo e também infantil em algum país pobre no outro lado do mundo, em fábricas ou porões insalubres, que às vezes explodem ou queimam, ou então na parte pobre e insalubre de um país rico. Essa ampla circulação de mercadorias e de pessoas (e agora também de vírus) demanda uma enorme quantidade de combustíveis fósseis (derivados de petróleo, carvão mineral e gás natural), principal causa do colapso climático. Quase tudo que rodeia você veio de alguma cadeia de mineração, que destrói o meio ambiente em grande escala e também contamina os rios, os peixes, diferentes espécies de animais e também humanos com mercúrio e outras substâncias tóxicas. Mais recentemente, as corporações estão fazendo mineração também no fundo dos oceanos, onde ainda há menor regulamentação ou nenhuma. Se nada for feito, os lindos documentários do fundo do mar que você assiste em canais de “natureza” serão em breve memorial de um passado que já não existe no presente.
Dizem que você é livre, porque é consumidor e seus filhos já nascem como consumidores e clientes. Tem, portanto, a fantástica escolha de consumir a marca e o produto que quiser com o dinheiro, invariavelmente menos do que você precisa, que ganhou vendendo o seu corpo e o seu tempo, que é tudo o que você tem. Caso você considere essa condição desumana e se revolte, se junte com outros para denunciar a violência dessas cadeias e desse sistema, as corporações têm o poder financeiro de pagar os melhores advogados e até mesmo pesquisas com cientistas de instituições respeitáveis, capazes de romper todas as amarras éticas para afirmar as conclusões que as corporações precisam para seguir comendo o planeta. Com a Internet, as corporações passaram também a financiar centrais de ódio, onde geram robôs e conteúdos falsos para acabar com a sua reputação —ou a da organização não governamental ou do movimento do qual você participa— com ataques e mentiras nas redes sociais. Toda voz dissidente deve ser combatida e, se possível, destruída. Destruir uma reputação é um tipo de assassinato.
Por trás de toda essa engrenagem que determina, regula e controla vidas há pessoas feitas da mesma matéria que você. Vale a pena lembrar que o planeta inteiro tem 2.153 bilionários, um número de pessoas que cabe num teatro grande. Juntas, elas têm mais riqueza do que 60% da população mundial. Na América Latina e Caribe, esses bilionários somam 73 pessoas. Um estudo da Oxfam mostrou que, entre março e junho de 2020, nos meses iniciais de pandemia, esses 73 aumentaram sua fortuna em 48,2 bilhões de dólares, o equivalente a um terço do total de recursos previstos em pacotes de estímulos econômicos adotados por todos os países da região. No Brasil, há 42 bilionários. Entre março e julho deste ano, período de intensa crise humanitária causada pela pandemia, eles aumentaram suas fortunas em 34 bilhões de dólares. Quando, com organização e luta, a sociedade da qual você faz parte ou o grupo que o representa conquista algum direito, uma entidade que chamam “mercado”, mas que você nunca viu, afirma que “vai quebrar a economia”. O mercado são essas pessoas e os executivos que trabalham para elas nas mais variadas áreas, destacando-se nesse amplo espectro os economistas. Quando os jornais dizem que o “mercado está nervoso”, é essa “meia dúzia”, comparada à população mundial, que sentiu uma comichão de estresse.
Parece um pesadelo? Essa distopia é a vida hoje no sistema capitalista neoliberal. Nesse sistema, o mercado é a base da organização da sociedade, com desregulamentação da economia, privatização das empresas estatais e enxugamento dos gastos sociais. Faz parte também uma ampla circulação de mercadorias, fluxo de capitais e de informações num mundo cada vez mais globalizado, fazendo com que se torne muito difícil, quando não impossível, fiscalizar e controlar as grandes corporações transnacionais. A sensação que você partilha com os bilhões que habitam esse planeta e não fazem parte dessa minoria dominante é a de que não controla a sua vida. Não é uma sensação.
O capitalismo neoliberal é o ápice do processo pelo qual a espécie humana provocou o colapso climático que hoje ameaça nosso futuro no planeta e provocou também a sexta extinção em massa de espécies, em curso nesse momento. Essa distopia é nossa vida atual e sua última realização foi nos trazer ao tempo das pandemias, que já matou quase 180.000 pessoas no Brasil e mais de 1,5 milhão no planeta.
O que isso tem a ver com Belo Monte, a usina hidrelétrica construída no Médio Xingu, uma das mais ricas e biodiversas regiões da Amazônia?
Tudo.
Um laboratório de catástrofe
A região atingida por Belo Monte é um microcosmo onde o modo de existência capitalista neoliberal foi imposto a outros modos de existência, como o dos povos indígenas e ribeirinhos, num curto espaço de tempo. Em apenas uma década, esse modo de operação provocou destruição em cadeia. Os piores efeitos estão só começando. Nesse momento, o grande embate é pela água, um embate que ecoa uma das maiores guerras do planeta, hoje e muito mais no futuro próximo, o que torna a observação dos acontecimentos do Xingu ainda mais importante.
A empresa concessionária de Belo Monte, a Norte Energia SA, controla a água do rio para a geração de energia e, portanto, controla a quantidade de água que alcança a região povoada por populações da floresta, mais especificamente indígenas e ribeirinhos. A região cuja água está sob controle da Norte Energia é povoada também por milhares de diferentes espécies de animais e vegetais, algumas delas endêmicas, o que significa que em todo o planeta só existem naquele lugar. No leilão da usina, em 2010, a Norte Energia era composta por pequenas empreiteiras. Hoje é composta em quase 50% pelo Grupo Eletrobras, 20% por fundos de pensão (Petros e Funcef) e o restante dividido em participações menores.
Quando a Norte Energia controla a água, a empresa transfigura um pequeno grande mundo na floresta amazônica, hoje cada vez mais perto do ponto de não retorno. O que é o ponto de não retorno? É o momento em que a floresta deixa de ser floresta, e assim deixa de fazer o seu papel essencial de floresta, que é o de regular o clima, para se tornar uma savana. Obviamente é um acontecimento progressivo, que hoje está em ritmo acelerado devido ao enfraquecimento dos órgãos de proteção, ao aumento do desmatamento e dos incêndios no Governo Bolsonaro. Sem a maior floresta tropical do mundo, vale lembrar, se torna muito difícil controlar o superaquecimento global.
Dentro desse pequeno grande mundo atingido por Belo Monte, há um microuniverso que é ainda mais brutalmente atingido, conhecido como Volta Grande do Xingu. Com extensão de 130 quilômetros de uma beleza acachapante, a Volta Grande é morada de dois povos indígenas, os Yudjá e os Arara, e de vários grupos ribeirinhos, considerados população tradicional da floresta, além de camponeses agroecológicos e pescadores. Também é fortemente atingido o rio Bacajá, afluente do Xingu, do qual depende a vida do povo Xikrin. Em uma década, o universo dessas milhares de pessoas entrou em colapso provocado por Belo Monte.
Há sempre títulos complicados e em geral falsos nesses empreendimentos predatórios. Faz parte da estratégia converter a população atingida, grande parte dela formalmente analfabeta da escrita, também em analfabeta dos ouvidos. Chamaram de “Hidrograma de Consenso” a administração da quantidade de água liberada pela usina para a Volta Grande do Xingu. A inclusão da palavra “consenso” é um mistério, já que jamais houve consenso algum. Portanto, mais do que um mistério, é um truque de marketing para confundir o entendimento e dificultar o enfrentamento. A luta pela água, que para os povos do Xingu é uma luta pela vida, sempre foi produzida no conflito, já que suas vozes foram ilegalmente ignoradas desde a decisão de implantar a usina.
Fatos, pesquisas científicas e experiência cotidiana mostram que a administração da água para a operação de Belo Monte está provocando a destruição da Volta Grande do Xingu e, portanto, a destruição da vida dos humanos e não humanos que vivem lá. André Oliveira Sawakuchi, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo, afirma que o efeito do controle da água pela Norte Energia equivale a antecipar o colapso climático na Volta Grande do Xingu. “Possivelmente, o desmatamento no Alto Xingu e as barragens de Belo Monte têm um efeito muito mais severo (e em curso) na vazão da Volta Grande que a crise climática global”, afirma o geólogo, que estuda o Xingu e Belo Monte há anos. “Alguns estudos projetam redução de 30% na vazão do Xingu devido à emergência climática. Porém, o desvio de água para alimentar o reservatório intermediário já reduz a vazão em 35-40%, nos meses de setembro e outubro, no período da seca, e em 60-85% em março e abril, no período da cheia. Isso significa que a crise climática já chegou para a Volta Grande —e de forma mais severa.”
O Ministério Público Federal, que já moveu 24 ações pelas violações cometidas na implantação de Belo Monte, chama os acontecimentos ocorridos na Volta Grande de “ecocídio”. O conceito contempla o extermínio de um ecossistema ou bioma com todas as espécies que o constituem e busca a responsabilização dos agentes de destruição —pessoas, empresas, corporações, Governos. Os cientistas mais renomados do país, que pesquisam a região há décadas, já somaram suas vozes aos povos da floresta, ao afirmar que a administração da água proposta pela empresa está causando e irá causar um desastre ecológico que poderá levar espécies endêmicas à extinção e colapsar por completo a vida de indígenas e de ribeirinhos. Em maio deste ano, até mesmo o sistema financeiro internacional começou a se mover: o fundo soberano da Noruega, que administra mais de 1 trilhão de dólares, excluiu de sua carteira de investimentos a Eletrobras, por decisão de seu conselho de ética. A empresa, principal acionista da Norte Energia SA, foi deletada por “inaceitável risco de que contribua para sérias ou sistemáticas violações de direitos humanos”, devido à usina hidrelétrica de Belo Monte.
O roubo da água
No final de novembro, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) conseguiu obter uma decisão favorável na Justiça federal, que obriga a Norte Energia a manter um hidrograma “provisório”, até que os estudos possam ser concluídos, para garantir a sobrevivência da Volta Grande. Isso significa que a empresa precisa liberar mais água para o ecossistema do que ela demanda no maliciosamente chamado Hidrograma de Consenso. A decisão foi tomada pelo juiz federal Roberto Carlos de Oliveira com base no “princípio da precaução, da prevenção e da inversão do ônus da prova”, “impondo ao empreendedor o dever de provar que a sua atividade questionada não causa ou não está causando danos ao meio ambiente”.
Quando a usina recebeu a licença de operação, em 24 de novembro de 2015, apesar de todas as denúncias de violações e todo o passivo ecológico, a Volta Grande já tinha começado a se transfigurar. No ano seguinte, os Yudjá, povo indígena que considera ter canoas em vez de pés, porque são parte do rio, chamaram o ano de 2016 de “o ano do fim do mundo” (leia aqui). Em 2020, porém, a seca foi ainda maior. Por consequência, a situação da Volta Grande ficou ainda pior. Em toda a região atingida por Belo Monte, houve uma morte massiva de peixes. Ribeirinhos avisaram pelo WhatsApp que o Xingu estava se transformando num cemitério. “Os filhos do Xingu já não reconhecem mais o vai e vem da água”, disse Raimunda Gomes da Silva, liderança ribeirinha que teve sua casa e sua ilha incendiadas pela Norte Energia.
De 9 a 12 de novembro, o núcleo de “Guardiões”, formado por indígenas dos povos Xipaya, Kuruaya e Yudjá, ribeirinhos, pescadores e agricultores familiares, interditou a Transamazônica no quilômetro 27 para denunciar que os peixes não conseguiam fazer a piracema. Ou seja, a reprodução tinha sido interrompida. “Estamos unidos para defender as águas do Xingu e as nossas vidas. Belo Monte quer nos matar aos poucos, assim como faz com os peixes do Xingu, mas nós lutaremos”, escreveram em uma carta manuscrita. “Estamos aqui para mostrar a situação que temos vivido desde a chegada de Belo Monte e o roubo da água do Xingu. Faz cinco anos que estamos sofrendo os impactos da barragem [...] A nossa vida não pode ser ignorada. Nossas vidas importam!”, afirmaram em documento às autoridades.
Costuma-se mencionar peixes com a linguagem da mercadoria. Em gramas, quilos e toneladas. Nesse caso, Belo Monte matou toneladas de peixes. Mas peixes não são mercadorias, peixes são criaturas vivas, diversas e fascinantes. Em maio de 2019, o britânico The Guardian, um dos jornais mais ativos na cobertura do colapso climático, anunciou a atualização de seu manual de redação e defendeu em editorial a mudança da linguagem, para que a imprensa seja capaz de conferir exatidão à cobertura ao se referir a esse momento limite vivido pela humanidade. Não mais “mudança climática”, mas “crise, colapso ou emergência” climática/o. Não mais “aquecimento global”, mas “superaquecimento global” (global heating, difícil de traduzir para o português). Não mais toneladas, estoques e outros termos relativos a mercadorias para seres vivos —e sim populações e outros termos adequados àqueles que vivem. Foi um marco, infelizmente ainda não seguido pela totalidade dos grandes jornais do mundo.
Quando milhões de peixes são assassinados ou impedidos de se reproduzir, toda uma cadeia de acontecimentos entra em colapso. As cidades romperam sua conexão com a natureza, fazendo com que as pessoas que nelas vivem se esqueçam de que são também natureza, mas na floresta, mesmo uma floresta duramente afetada e atacada, como a amazônica, é possível constatar que nenhum acontecimento, por menor que seja, é isolado. Tudo se conecta e se afeta mutuamente. São relações sociais, são também relações de vida. A morte dos peixes é uma tragédia para os peixes, mas é também uma tragédia para todos os humanos e não humanos que lá vivem. E se é uma tragédia para todos eles, será uma tragédia que vai ecoando em cadeia pelo planeta.
“Eu estava indo colher uma castanha pra fazer um peixe no leite de castanha e ouvi um barulhinho de folha. Quando fui investigar, era um carrapato andando”, contou Juma Xipaia, uma das principais lideranças de seu povo, em uma entrevista pública que fiz com ela para o Wow Festival Mulheres do Mundo. “Levei um susto imenso. Se eu pude ouvir um carrapatinho andando no meio da floresta amazônica é porque está muito, mas muito seco.” Estudante de medicina da Universidade Federal do Pará, Juma tinha se recolhido à aldeia para se proteger da covid-19. “Na minha opinião, o animal que mais está em risco de extinção é o próprio humano, por não entender que cada ser, por menor que seja, tem sua importância”, diz a indígena. “Os humanos vão comendo o mundo como se fossem uma grande traça.”
As cenas de indígenas e ribeirinhos tentando salvar peixes é de uma tragicidade imensa. E a partir dela se desencadearam vários pequenos acontecimentos. Bel Yudjá, liderança da aldeia de Mïratu, na Volta Grande do Xingu, conta que seu povo testemunhou a chegada de uma horda de urubus. Já não é aconselhável deixar roupas nos varais, porque são arrancadas por esses animais fascinantes. Urubus também começaram a aparecer nas pias onde lavam a louça. Os urubus migraram para se alimentar dos peixes mortos. Só esse pequeno, muito pequeno acontecimento, muda o lugar para onde os urubus migraram e muda também o lugar que deixaram.
A natureza é muito mais delicada e complexa do que qualquer invenção humana. “Espero que a Justiça e o Ibama consigam garantir uma quantidade de água que nos permita viver na Volta Grande”, diz Bel Yudjá. “Já estamos nos transformando num cemitério de peixes, acredito que seremos um cemitério de árvores mortas. Estamos aqui, lutando, e esperamos que as pessoas se somem a nós nessa luta para que a Volta Grande possa continuar viva e a nossa vida deixe de estar ameaçada.”
A pergunta mais inconveniente
Desde que a água virou “insumo”, um objeto sujeito à administração para obedecer à necessidade de lucros de uma empresa e não às necessidades da vida de um pedaço da floresta tropical mais importante do mundo, a grande pergunta no Médio Xingu, é: como uma empresa é capaz de controlar a água de um rio e de um ecossistema inteiro e, portanto, a vida de humanos e não humanos? Como uma empresa pode ser dona da água?
Essa é uma pergunta que só pode ser formulada por quem ainda é capaz de se espantar com a forma como o capitalismo converte tudo em mercadoria. Quem vive nas cidades já tem dificuldades de se espantar e fazer perguntas como essa porque o sistema que destrói a natureza se tornou “natural”. Essa é uma inversão só possível pela mística do capitalismo, na qual o “selvagem”, o não sujeitado ao sistema, é apresentado como anomalia. Essa mistificação encobre a anomalia real, que é o sistema que nos últimos séculos destruiu o próprio planeta, nos trazendo ao momento atual, no qual a própria espécie se encontra ameaçada.
A proliferação de negacionistas é a resposta de um sistema que já não consegue encobrir com os métodos tradicionais os sinais evidentes, que qualquer um já pode sentir em seu cotidiano, de que a vida humana no planeta está em risco. É o caso de Donald Trump, nos Estados Unidos, ocupando o cargo de maior poder da principal potência mundial, e de Jair Bolsonaro no Brasil, ao ocupar a presidência de um país estratégico para o controle do superaquecimento global, por ter 60% da floresta amazônica em seu território. Não basta usar os métodos tradicionais quando a realidade se impõe de forma tão contundente. É preciso provocar o caos instalando mentirosos no topo da cadeia.
Ainda assim, como a maioria vive em grandes cidades, as engrenagens são mais difíceis de enxergar porque já foram assimiladas, a maioria já nasceu dentro do sistema que a tritura e que lhe é apresentado como normalidade. Para os indígenas e ribeirinhos afetados por Belo Monte, não. Eles se abismam com aqueles que o pensador Yanomami Davi Kopenawa chama de “povo da mercadoria” ou “comedores de floresta”.
“Quanto vale a vida?”, perguntou Graça Yudjá, matriarca da aldeia Mïratu, a representantes da Norte Energia. “Essa é uma pergunta de levante da vida contra sua transformação em rendimento de energia elétrica”, diz a antropóloga Thais Mantovanelli em seu capítulo no livro Insurgências, ecologias dissidentes e antropologia modal (Imprensa Universitária). “A questão dos impactos da hidrelétrica tornou-se uma guerra para os povos afetados. Uma guerra de corpos índios, ribeirinhos, cromáticos, contra o monocromatismo dos uniformes azul-claros do corpo técnico burocrático de Belo Monte, que impõe o fim do fluxo das águas e o fim da circulação da vida.”
A implantação de Belo Monte e os impactos em cadeia gerados pela usina produziram, em uma década, uma catástrofe ecológica. E por isso Graça Yudjá se assombra. Catástrofes ecológicas só acontecem quando a vida é usurpada ao ganhar preço. É óbvio que o fato de o preço sempre ser baixo alarga o abismo, mas o crime fundador é a monetarização da vida para que seu valor possa ser comparado àquele gerado pelos lucros —e invariavelmente perder.
Na catástrofe ecológica produzida pelas forças que geraram Belo Monte, todos os elementos estão presentes. Um leilão suspeito de fraudes, seguido pela formação de um consórcio-construtor composto pelas maiores empreiteiras do país, que mais tarde seriam objeto de denúncias da Operação Lava Jato; a imposição sobre os povos originários e tradicionais, violando a legislação brasileira e também internacional; a repressão e criminalização dos protestos contra a usina promovidas por participantes de movimentos sociais, indígenas e ribeirinhos, usando a Força Nacional contra o povo; o uso do instrumento jurídico autoritário da Suspensão de Segurança para impedir que as obras fossem paralisadas e assegurar que a usina se tornasse fato consumado antes que as ações fossem julgadas; a utilização da Abin para espionar movimentos sociais em pelo menos um caso comprovado; analfabetos assinando papéis que não eram capazes de ler em que perdiam todos os direitos ou aceitavam indenizações irrisórias para deixar suas casas, terras e ilhas; o comportamento omisso (ou favorável à empresa) de órgãos federais e autoridades públicas que deveriam proteger o meio ambiente e os povos originários, mas não o fizeram ou o fizeram debilmente; a contratação de empresas de assessoria de imprensa que atuavam na desqualificação de jornalistas que denunciavam as violações de direitos na construção da usina, ao mesmo tempo em que faziam lobby junto à direção de jornais para enaltecer a “grande obra de engenharia”; mais recentemente, a contratação de advogados especializados em direito ambiental para processar jornalistas que denunciam os abusos da Norte Energia. Todo o funcionamento do sistema, que no caso de Belo Monte foi operado por um conluio entre Governo federal e empresas privadas, pode ser visto, identificado e analisado no caso Belo Monte.
Belo Monte é ao mesmo tempo paradigma, ao mesmo tempo laboratório. Apresentada como a maior hidrelétrica 100% brasileira, já que Itaipu é binacional, custou pelo menos o dobro do anunciado e hoje está orçada em torno de 40 bilhões de reais, grande parte desse montante financiado pelo setor público, no caso o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Divulgada como a quarta maior do mundo pela sua capacidade instalada de 11.000 megawatts, a verdade é que esse valor é apenas potencial. Como o rio Xingu vive metade do ano na seca, a real produção de energia, que no jargão técnico se chama “energia firme”, é, na média, menos da metade disso.
Essa é uma das principais razões pelas quais cientistas e técnicos apontavam —e apontam— a inviabilidade da hidrelétrica. Desde antes do início da construção, especialistas no setor elétrico já comprovavam que Belo Monte era inviável também para a produção de energia, devido à característica sazonal (estação de chuvas e estação de seca) do Xingu. Em dezembro de 2019, o repórter André Borges, do jornal O Estado de S. Paulo, denunciou que a Norte Energia havia solicitado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorização para construir usinas térmicas para compensar os meses de seca do Xingu. Além de caras, as térmicas são altamente poluentes. Semanas antes, o EL PAÍS e o The Guardian revelaram que, em carta à diretora-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Dias Ferreira, o diretor-presidente da Norte Energia, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirmava que precisava alterar a vazão do reservatório intermediário da hidrelétrica de Belo Monte devido à seca severa do Xingu, para evitar danos estruturais na barragem principal.
Consenso em vez de polarização
Belo Monte mostra também como a ideologia para a Amazônia construída pela ditadura civil-militar (1964-1985) é persistente, ao manter-se viva e ativa na visão de desenvolvimento tanto da centro-esquerda como da extrema direita. Nesse olhar tipicamente de século 20, mas que no espectro partidário brasileiro ainda orienta os programas da maioria dos partidos, a floresta amazônica é tratada como objeto de exploração e seus povos são invisibilizados. Apesar de toda a polarização do país nos últimos anos, Belo Monte revelou-se o único consenso: a primeira turbina foi inaugurada por Dilma Rousseff (PT) e a última por Jair Bolsonaro (sem partido).
Durante a construção da usina, povos indígenas da região atingida, mesmo de recente contato, foram durante mais de um ano abastecidos com produtos industrializados, parte deles ultraprocessados. Para quem testemunhou o processo, foi como observar um experimento de laboratório em que povos originários foram usados como cobaias. O nome da pesquisa poderia ter sido: “como indígenas de recente contato da floresta amazônica se comportam ao ter sua alimentação repentinamente substituída por produtos industrializados”. O resultado foram doenças como obesidade, hipertensão e diabetes. O próprio Ministério da Saúde comprovou um aumento de 127% na desnutrição infantil entre 2010 e 2012 nas aldeias da região.
Desde o início da segunda década, o fluxo de indígenas na cidade de Altamira se intensificou, roças deixaram de ser feitas porque a comida chegava em latinhas e embalagens, o modo de vida foi profundamente alterado, a ponto de o Ministério Público Federal denunciar a Norte Energia SA por etnocídio indígena. Essa violenta transfiguração do território e da vida no território fez com que a covid-19 encontrasse as aldeias da região muito mais dependentes da cidade e dos produtos da cidade, o que expôs ainda mais a população originária aos riscos da pandemia. Belo Monte é também paradigma na produção de pobres, ao converter população tradicional da floresta em miseráveis nas periferias urbanas.
A corrupção do território também foi decisiva para converter Altamira na cidade mais violenta da Amazônia e uma das mais violentas do Brasil, com as periferias tomadas por facções criminosas. Em 29 de julho de 2019, essa violência foi decisiva para a irrupção do segundo maior massacre carcerário da história de país, ocorrido no presídio de Altamira, com 62 mortos no total. Nas periferias da cidade, há hoje uma geração de crianças sendo criadas pelas avós porque os pais foram assassinados nos últimos anos. Desde o início de 2020, Altamira testemunha uma série de suicídios de adolescentes, a maioria deles enforcados, fenômeno relacionado pelos especialistas à repentina e violenta transformação do território e do modo de vida da população produzidos por Belo Monte.
Um laboratório de resistência
O que os indígenas e ribeirinhos chamam de “roubo da água” é o mais recente capítulo. Certamente não será o último. Mas talvez seja o mais decisivo. Se não for impedido, como já foi amplamente denunciado por indígenas, ribeirinhos, cientistas, defensores públicos e procuradores da República, pode resultar no extermínio da Volta Grande do Xingu. Jansen Zuanon, pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e um dos mais respeitados especialistas em peixes do país, explica que essa transfiguração da Volta Grande pode causar a extinção de espécies que só existem naquele ecossistema, como o famoso acari-zebra, personagem de adoração de visitantes que vêm de várias partes do mundo apenas para observá-lo em seu habitat. Jansen também explica que o que acontece com os peixes também acontece com as outras espécies e até mesmo com os humanos que vivem como natureza:
“A população humana e não humana que habita a Volta Grande está acostumada aos ritmos do rio e conhece os sinais. Essas populações organizaram as suas vidas em torno da previsibilidades desses ritmos. Quando uma empresa passa a regular a quantidade de água a partir da necessidade de energia demandada pelo operador nacional do sistema, uma entidade alheia ao Xingu e a todos os seus ciclos naturais, perde-se todo o sincronismo, desestruturando completamente os ciclos biológicos das espécies. Ao regular a água nas torneiras da usina, a empresa acaba afetando direta ou indiretamente todos os ciclos que acontecem na Volta Grande do Xingu. Nem os peixes, nem os tracajás (quelônios), nem mesmo os humanos conseguem reconhecer os sinais, que passaram a ser contraditórios. A única forma de impedir o desastre total é manter uma quantidade suficiente de água para todas essas espécies e manter também o ritmo natural. É necessário que seja previsível. Sem isso, a desestruturação do ecossistema será completo. Se Belo Sun conseguir se instalar, sobrepondo o seu impacto ao de Belo Monte, aí estaremos no fio da navalha.”
Enquanto Belo Monte seca a Volta Grande do Xingu e provoca um desastre ecológico e uma crise humanitária, com famílias ribeirinhas enfrentando a fome pela primeira vez, outra empresa, essa transnacional, avança sobre a Volta do Xingu. A mineradora de origem canadense Belo Sun pressiona há anos para a instalação do que é vendido como “a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil”. Para conseguir se instalar, produz um lobby intenso junto ao governo do Estado do Pará e junto aos parlamentares, em Belém, e também junto às comunidades locais da Volta Grande do Xingu, cada vez mais desamparadas e testemunhando seu mundo entrar em colapso. Se Belo Sun conseguir avançar, vai sobrepor o seu enorme impacto sobre o já enorme impacto de Belo Monte e deixará como legado uma montanha de rejeitos tóxicos cujos efeitos permanecerão por gerações.
Essa é a situação. No microcosmo chamado Volta Grande do Xingu é possível assistir, em tempo real, o movimento do capitalismo mais predatório em sua ação para subjugar a natureza e os povos que são natureza. É quase uma vitrine, um museu do presente ou, como é chamado pelo ambientalista Marcelo Salazar, “um museu de ruínas”.
A guerra da humanidade em transe climático está se passando lá, agora, em miniatura. Entre os que são natureza —e os que esvaziam a natureza e a convertem em mercadoria. Entre os que chamam o que é vivo de “recurso”— e os que chamam o que é vivo de “vivo”. Esse é o mesmo embate que, travado em larga escala no planeta, tem numa ponta os povos originários, a juventude climática liderada por Greta Thunberg e 99% dos cientistas do mundo, e, na outra, grandes corporações, governantes, políticos, executivos, advogados, publicitários e lobistas a seu serviço.
É por isso que os olhos do mundo se voltam cada vez mais para a Volta Grande do Xingu e Altamira, considerada epicentro da destruição da Amazônia. É importante sublinhar ainda que, se a região se tornou um laboratório da destruição, também tem se mostrado um laboratório de resistência. Contra forças imensamente mais poderosas e um poder econômico totalmente desigual, sofrendo no corpo os impactos da transfiguração de seu mundo, ribeirinhos, indígenas, pescadores, agricultores familiares e ativistas resistem. Nem por um dia sequer deram trégua à Norte Energia e mais recentemente também à Belo Sun.
Não podem, porém, seguir lutando sozinhos uma luta que é pelo planeta de todos.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
El País: Saída de Trump prenuncia volta do multilateralismo nos organismos econômicos globais
Substituição na Casa Branca obriga que vários indicados pelo republicano no BID, Banco Mundial e FMI se realinhem com as prioridades de Biden
Ignacio Fariza e Isabella Cota, do El País
As ramificações da troca de guarda na Casa Branca são quase infinitas. Não só em chave interna: o abandono do unilateralismo, marca de Donald Trump, gera a necessidade de uma guinada na retórica imposta pelo republicano em vários organismos internacionais em que manobrou nos últimos anos para colocar nomes de sua confiança. “Quero dizer claramente: a América está de volta, o multilateralismo está de volta, a diplomacia está de volta”, sintetizou na semana passada Linda Thomas-Greenfield, futura embaixadora dos EUA na ONU na era Biden. Trata-se de uma declaração de intenções que deixa a baliza muita alta para os próximos quatro anos.
Desde sua chegada à Casa Branca, em janeiro de 2017, Trump dedicou-se o quanto pôde a colocar três homens de sua confiança na ponte de comando do Banco Mundial (David Malpass, nomeado em 2019), do Fundo Monetário Internacional (Geoffrey Okamoto, primeiro-subdiretor-gerente desde março passado) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Mauricio Claver-Carone, empossado em outubro). Nos três casos, a intenção era buscar reformar essas entidades à sua medida —sempre com a mentalidade de “a América [EUA] em primeiro lugar”— e reduzir ao mínimo as chances de colaboração multilateral: este Governo foi, afinal, marcadamente nacionalista, em que a condição para levar outros países em conta era que fosse Washington quem desse as ordens. E estas ordens deviam, acima de tudo, beneficiar os EUA.
“Não terão o mesmo peso que até agora, mas são pessoas não designadas diretamente pelo Governo dos EUA, e sim escolhidas pelos diretórios destas instituições”, recorda Arturo Valenzuela, subsecretário de Assuntos Hemisféricos dos Estados Unidos nos mandatos de Barack Obama, tendo o próprio Biden como vice-presidente. “Cabe perguntar por sua possível substituição, mas não há razão para esperar, de antemão, que não cumpram seus mandatos”, completa Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e ex-membro do conselho do FMI, que prevê em todo caso um giro radical nos valores e prioridades que terão que representar.
Cada caso, entretanto, é um mundo. Tanto Malpass como Okamoto têm sua continuidade praticamente garantida. O primeiro soube distanciar-se de seu padrinho político quase desde o primeiro dia, adotando uma invejável discrição. Embora crítico no passado quanto ao papel dos organismos multilaterais, como o que hoje comanda, modulou seu discurso e optou mais por reforçar um perfil de “reformista construtivo”, e não um mero espantalho de Trump no Banco. E não se deve esquecer que a nomeação do chefe do Banco Mundial sempre correspondeu aos EUA.
O segundo, Okamoto, embora muito próximo a Trump, também parece ter pista livre para esgotar seu mandato no FMI sem grandes sobressaltos: é o contrapeso norte-americano da búlgara Kristalina Georgieva —a cota europeia de um organismo que sempre esteve encabeçado por alguém com passaporte do Velho Continente. Com mil e uma frentes abertas, não parece que a nova Administração norte-americana vá querer abrir outra no fundo monetário.
O terceiro, Claver-Carone, é outra história, tanto pela poeira que sua nomeação levantou, a primeira de um não latino-americano à frente do BID, como pelo próprio perfil do cubano-americano, um falcão e membro da ala mais dura do Partido Republicano para assuntos do subcontinente. Também porque chegou ao cargo com a corrida eleitoral norte-americana já lançada e com boa parte das pesquisas contra Trump. “Vai ser difícil para ele trabalhar com o Governo Biden”, observa Valenzuela, recordando no entanto que o cubano-americano insistiu recentemente em nomear seus vice-presidentes no banco, que também precisam ser aprovados pelos Governos regionais, e não conseguiu: “Os países da região simplesmente disseram não”.
Seja como for, tanto Claver-Carone como Malpass e Okamoto se verão fadados a se alinharem com um direcionamento político oposto em muitos sentidos à sua própria visão de mundo. Terão, dito de outra forma, que deixar de lado sua própria ideologia e suas pulsões internas para defender princípios muito diferentes dos da Administração que os nomeou. “O presidente-eleito se apoiará no Banco Mundial, no FMI e no BID para enfrentar as dificuldades econômicas e sociais da pandemia, e esperará que estas pessoas respondam à direção da sua política”, esboça, em conversa com o EL PAÍS, Thomas Shannon, antecessor de Valenzuela nos tempos de George W. Bush. Poderão conviver com Biden no poder? “Dependerá de cada um deles: terão que se adaptar a um entorno completamente diferente em Washington”.
Mudança de retórica
Tudo indica que os anos de unilateralismo ficarão para trás a partir do próximo 20 de janeiro, quando Biden já estiver definitivamente instalado no número 1.600 da avenida Pensilvânia, em Washington. A julgar pelo discurso dele e da sua equipe, o democrata tratará de recolocar os EUA no centro da política econômica global, procurará tecer laços e cumplicidades com outros países em vez da política do “comigo ou contra mim”, defendida por seu antecessor e reforçará a capacidade de ação dos organismos internacionais quando o mundo mais precisa deles, em plena saída da crise do coronavírus. As indicações de Janet Yellen, ex-presidenta do Fed, como chefa do Tesouro e de Anthony Blinken como secretário de Estado são uma clara amostra dos rumos a partir de agora.
“Biden retornará à abordagem multilateral de Obama. Entre outras coisas, porque ficou demonstrado o fracasso das guerras comerciais unilaterais de Trump”, projeta Canuto. “O presidente-eleito utilizará o multilateralismo para demonstrar que os EUA voltam a se comprometer com o mundo, promovendo a cooperação e a colaboração”, salienta Shannon. “Se algo Biden fará é justamente recuperar o multilateralismo e fortalecer as instituições internacionais que ficaram à margem neste Governo”, conclui Valenzuela. À margem do FMI, do Banco Mundial e do BID, o caso da Organização Mundial do Comércio (OMC) brilha com luz própria: acéfala há meses e esmigalhada pelo impulso da retórica protecionista de Trump, deveria ser uma das entidades onde mais a substituição em Washington seria sentida. Sopram ventos de mudança na Casa Branca e nos principais organismos econômicos internacionais.
El País: Na briga entre Eduardo Bolsonaro e a China, Planalto deveria temer destino da Austrália
Igor Patrick e Lucas Wosgrau para o El País
Presidente vê o Brasil como intocável, mas deveria olhar com atenção para as reprimendas comerciais que Pequim impôs ao gigante da Oceania
“Não temos problema nenhum com a China (...), nós precisamos da China e a China precisa muito mais de nós”. A mais recente declaração do presidente Jair Bolsonaro em relação ao maior parceiro econômico do Brasil é menos um reconhecimento da importância estratégica da relação bilateral que a tentativa de deixar claro que seu governo não vê —ou, pelo menos, evita anunciar— a China como um inimigo.
O presidente assumiu um papel pelo qual seu vice, o general Hamilton Mourão, se tornou conhecido na China: o de bombeiro de posicionamentos incendiários do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). A confusão patrimonial entre o que é governo e o que é família —marca da atuação dos Bolsonaro na política doméstica— revelou finalmente seu potencial de minar a relação estratégica entre Brasil e China.
A fala em dia eleitoral conclui uma semana marcada por tweets pró-Estados Unidos, e anti-China, assinados pelo deputado federal e membro da família presidencial. Provocativas, ameaçadoras e filosóficas, as mensagens trocadas na rede social favorita dos Bolsonaro (e dos diplomatas chineses) esticaram a corda na já tensionada relação Brasil-China.
A postura da embaixada da China, porém, denota uma subida de tom. Desta vez, a diplomacia não foi velada quanto a ameaças ao Brasil. Pelo Twitter, reagiu alertando para “consequências negativas” ao relacionamento bilateral e acusou o parlamentar de “solapar a relação amistosa” entre os países. É um sinal inequívoco de que, mais do que relegar ao quase-embaixador em Washington o papel de um simples parlamentar com viés sinofóbico, Pequim começa a dar ao “03” a importância de um oficial do Governo.
É óbvio —aqui e na China— que Eduardo Bolsonaro não é um deputado abusando de sua liberdade de expressão. Mourão, em março, deixou clara a mensagem que o pai do deputado, e presidente da República, não poderia dizer: “Se o sobrenome dele fosse Eduardo Bananinha, não era problema nenhum (...), ele não representa o Governo”.
O vice —personagem frequente na imprensa chinesa pela sua defesa da evolução das relações comerciais e culturais entre os dois países— tentava superar a verborragia do filho do presidente, que dias antes comparava a pandemia de covid-19 ao encobrimento da catástrofe nuclear em Chernobyl e acusava diretamente a China pelo espalhamento do vírus.
Se havia alguma dúvida sobre a origem e o respaldo aos comentários dentro do Palácio do Planalto, foi o chanceler Ernesto Araújo, o responsável por corroborar a impressão. A despeito dos apelos da embaixada chinesa por uma intervenção do Itamaraty na contenção de danos, o ministro criticou as declarações irritadas do embaixador Yang Wanming e negou que o deputado tivesse ofendido o Estado chinês.
À época, coube ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) colocar panos quentes. O recado veio por meio de uma reprimenda pública a Eduardo, cuja “atitude não condiz com a importância da parceria estratégica Brasil-China e com os ritos da diplomacia”, nas palavras de Maia. Em parte, também era uma tentativa de blindar o Congresso: pelo menos por enquanto, Eduardo segue como presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e, se não fala pelo Planalto, em alguma medida representa seus colegas congressistas.
Entre política de Estado e estratégia eleitoreira
Os tweets de Eduardo Bolsonaro foram percebidos em março como perigosa provocação e depois como tomada de posição. A China vem denunciando mundialmente o que considera “antagonismo à moda da Guerra Fria” e os danos dessa mentalidade ao multilateralismo, ao direito internacional e à possibilidade de avanço do desenvolvimento global percebido desde sua entrada na Organização Mundial do Comércio em 2001.
Em um país democrático, a representação oficial chinesa no Brasil deveria esperar opiniões críticas e expressões de parlamentares que buscam representar um eleitorado tradicionalista —mais que conservador— insensível a qualquer argumento econômico. A disputa se justifica, no entanto, porque o sentimento vocalizado por Eduardo ecoa na opinião pública brasileira, normalizando a antítese do pragmatismo ganha-ganha que marcou a construção da relação bilateral desde Geisel até Dilma.
A política doméstica chinesa e a legitimidade do governo Partido Comunista da China se tornaram assunto nos salões do Itamaraty e do Alvorada. A chancelaria de Ernesto Araújo reservou à Fundação Alexandre Gusmão (a histórica FUNAG) o espaço de crítica intelectual —por falta de melhor adjetivo— ao comunismo, globalismo e materialismo anti-ocidental.
Essa ideologia esquerdista teria encontrado na China —após a queda do muro de Berlim— uma campeã irresistível apoiada por elites liberais, Hollywood, Wall Street e o Vaticano do papa Francisco. Os aliados ideológicos da China, por serem modernos, são os inimigos íntimos do tradicionalismo defendido por Olavo de Carvalho e Araújo. É compreensível que os chineses critiquem a convivência de pragmatas —capitaneados por Mourão e os ministros Teresa Cristina (Agricultura) e Tarcísio Freitas (Infraestrutura)— e cruzados dedicados à metapolítica.
Há, portanto, pouca margem de questionamento sobre por que a China deixou de ver Eduardo como um parlamentar sem filtros, com pouca influência na política externa brasileira para alguém que legitimamente fala em nome do governo. A resposta está em seu entorno, quando o líder da chancelaria, os membros da ala ideológica e, em alguma medida, até o presidente endossam seu discurso (mesmo que de forma mais sutil e, por vezes, normalizando embaraçosamente ideias pouco convencionais no debate público).
Esta abordagem caótica é, em parte, o reflexo direto de um problema nunca superado na cultura política brasileira e aprofundado consideravelmente nesta gestão bolsonarista: o patrimonialismo do presidente e sua família desconhece (ou ignora) a personalidade jurídica simbolizada na figura do Estado. Jogam para a claque porque o eleitorado fiel ou compra de bom grado a narrativa ou não se importa com as consequências dela. O bolsonarismo instrumentalizou o Itamaraty como braço da campanha de 2022.
Para os chineses —onde os limites entre Partido e Estado também são nebulosos—, os ruídos de comunicação são mais barulhentos que as vozes sensatas espalhadas em outras esferas políticas ou mesmo dentro da administração. Ainda que o Ministério das Relações Exteriores evite liderar acusações à China em matérias polêmicas, como as causas da pandemia da covid-19 e o leilão do 5G, o dano midiático já está feito.
Perdida, culturalmente ignorante sobre a história, a cultura e a política chinesa, a imprensa pouco faz para contestar o discurso xenofóbico e ignorante que escorre dos esgotos de Brasília. Sem repertório e com pouca tradição na cobertura de eventos internacionais, se fia pelos exemplos de outros países do hemisfério Norte na tentativa de encontrar alguma pista do que o futuro nos reserva nessa briga sem sentido. Mas as respostas não estão nos Estados Unidos: estão em um país da Oceania.
“Australização” das relações é ameaça real
No espectro de trocas bilaterais, poucos governos ocupam um espaço tão destacado para a política externa chinesa quanto o australiano. Não obstante ser o lar da maior comunidade chinesa fora da China em todo mundo, Camberra mantém fortes laços educacionais e comerciais com Pequim, essenciais ao seu crescimento. É a Austrália —não o Brasil— a principal fornecedora de carne bovina, vinhos e minério de ferro ao gigante asiático. Sua matriz exportadora é muito semelhante à nossa, guardadas as proporções em volume: a balança comercial deles com a China chegou a 103 bilhões de dólares (cerca de 600 bilhões de reais) em 2019, número maior que o Brasil registrou no mesmo período (pouco mais de 98 bilhões de dólares, ou 560 bilhões de reais).
Nada disso evitou as duras reprimendas comerciais chinesas aos australianos. Com o acirramento de relações e acusações que vão desde espionagem até crimes de guerra, passando pela insistência do premiê Scott Morrison em comandar uma investigação independente sobre as origens da covid-19, as trocas comerciais foram duramente afetadas.
Em agosto, a alfândega da China já tinha banido a importação de cinco tradicionais frigoríficos australianos, justificando a decisão por motivos sanitários (de acordo com os chineses, amostras indicavam o uso de cloranfenicol, um antibiótico veterinário para combate à febre tifóide). Coincidência ou não, a ordem foi anunciada dias após Morrison apresentar uma legislação dando ao governo federal o poder de veto a acordos com potências estrangeiras, uma clara tentativa de barrar cooperação comercial do Estado de Vitória com a iniciativa chinesa Um Cinturão, Uma Rota.
A mais recente investida de Pequim? A decisão de impor tarifas de até 212% ao vinho australiano, uma decisão que contrária ao próprio posicionamento chinês na Organização Mundial do Comércio, mas com potencial para efetivamente falir a indústria australiana.
Números e retórica tão dura assim ainda deixam margem para pensar que a China depende mais do Brasil que nós deles? Se ainda restar dúvidas, basta ver os movimentos recentes dos chineses. Em agosto, a Rússia anunciou que pretende ampliar o volume de suprimentos de soja para os chineses em 3,7 milhões de toneladas até 2024. Dois meses depois, Pequim fechou acordo para importar 103 milhões de toneladas de soja anualmente da Tanzânia, país com ambiente político muito mais favorável aos chineses. São iniciativas tímidas e incapazes de substituir o peso de Brasil e Estados Unidos para suprir a demanda do grão, mas funcionam como mensagem cifrada. Há alternativas.
A conta pelo isolacionismo promovido por Bolsonaro vem chegando aos poucos. Sem o apoio do “amigão” Donald Trump na cadeira da Casa Branca, os apelos de socorro podem encontrar uma comunidade internacional conscientemente surda e ansiosa por um escolha melhor e minimamente civilizada nas urnas de 2022.
Igor Patrick é um jornalista especializado na cobertura da China e mestrando em Política e Relações Internacionais na Yenching Academy da Universidade de Pequim. É diretor de comunicação da Observa China.
Lucas Wosgrau Padilha é advogado especializado em Direito Econômico e Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). É mestrando em Direito e Sociedade na Yenching Academy da Universidade de Pequim e diretor de estratégia da Observa China.
Beatriz Jucá: Brasil fica para trás na estratégia de vacinação contra a covid-19 e acende alerta
Ausência de informações sobre estratégia nacional levanta receio de que o país desperdice sua expertise na imunização contra o coronavírus. Governo admite que vacina não será oferecida a toda a população em 2021
Enquanto laboratórios anunciam resultados preliminares promissores de suas vacinas contra o coronavírus e o mundo já desenha seus planos de vacinação, ainda não se sabe quase nada sobre quais serão as estratégias que o Brasil deverá adotar. O país ―onde a pandemia voltou a ganhar velocidade nas últimas semanas― dispõe de um Programa Nacional de Imunizações (PNI) reconhecido mundialmente, mas tem visto a disputa ideológica contaminar as decisões sobre as ações de combate ao vírus deste o início da crise. Diante da ausência de informações sobre o plano vacinal, pesquisadores e parlamentares receiam que o país desperdice sua expertise e não consiga apresentar uma estratégia consistente à sociedade logo que as vacinas sejam registradas. Na última semana, o Ministério da Saúde admitiu que a vacina contra a covid-19 não deverá ser disponibilizada para toda a população em 2021 e que a lógica de imunização deve ser semelhante à da vacinação contra a gripe, que prevê a aplicação do medicamento em grupos específicos.
Por enquanto, nenhum laboratório solicitou ainda o registro de sua vacina à Anvisa e o órgão diz que precisará de pelo menos 60 dias pra analisar eventuais pedidos. No mundo, ainda não há um medicamento imunológico licenciado, mas os países já começam a informar parte de suas estratégias. A Espanha, por exemplo, já anunciou que dividiu a população em 15 grupos e definiu quais teriam prioridade para receber a vacina: idosos em casas de repouso, cuidadores e pessoas com deficiência. No Brasil, um comitê técnico (do qual participam representantes do Governo, secretarias estaduais e municipais da Saúde, entidades de classe e organismos internacionais) foi criado em setembro para pensar nas estratégias. Uma reunião está prevista para a esta terça-feira para discutir uma primeira versão de um plano de vacinação para a covid-19. O país optou por esperar os registros dos imunizantes para avaliar quais serão incorporados no SUS e, a partir daí, desenvolver seu plano nacional.
O Brasil já tem um acordo para a transferência de tecnologia da vacina da AstraZeneca e participa de um consórcio global para ter prioridade na aquisição de outras nove vacinas, o Covax Facility. Também tem dialogado com laboratórios, ainda que não haja novos contratos de aquisição avançados neste momento. Alguns Estados já fizeram acordos para adquirir vacinas promissoras, como por exemplo São Paulo com a Coronavac e a Bahia com a Sputinik V. Mas desde que a corrida por uma vacina entrou na retórica ideológica de Bolsonaro, paira uma desconfiança sobre as futuras ações de imunização. O Ministério da Saúde afirma que trabalha com a possibilidade de incorporar diferentes vacinas no plano nacional, mas a possibilidade de rejeição de determinados imunizantes ganhou força desde que o presidente desautorizou seu ministro a firmar um contrato de intenção de compra da Coronavac, adquirida pelo seu adversário político e governador de São Paulo, João Dória.
O ministro Eduardo Pazuello garante que o plano nacional está, sim, sendo construído e chegou a afirmar que parte dele já estaria pronto. “Podem ficar tranquilos. Estamos acima do momento, estamos adiantados. Quando estivermos com dados logísticos das vacinas, a gente fecha o plano”, afirmou na última semana, sem apresentar maiores detalhes. Pazuello disse apenas que a lógica segue a mesma de outras campanhas: estudar os grupos prioritários e as áreas mais afetadas. No dia seguinte, porém, a equipe técnica do Ministério da Saúde afirmou que o que está definido são os objetivos do plano: reduzir a mortalidade e proteger pessoas mais expostas, já que neste momento não há capacidade de produção de vacina para toda a população brasileira.
“Definimos objetivos para a vacinação, porque não temos uma vacina para vacinar toda a população brasileira. Além disso, os estudos não preveem trabalhar com todas as faixas etárias inicialmente, então não teremos mesmo como vacinar toda a população brasileira”, disse a coordenadora do Programa Nacional de Imunizações, Francieli Fantinato. Gestantes e crianças, por exemplo, não entraram nos testes dos imunizantes. Segundo Fantinato, os detalhes logísticos de um plano nacional de vacinação só devem ser definidos após o registro pela Anvisa. Por enquanto, a pasta trabalha em uma fase preparatória para desenvolver sua estratégia.
Mas a demora para algumas definições preocupa especialistas e parlamentares. A cobrança para que o Governo apresente um plano de vacinação para a covid-19 está na Justiça. O Supremo Tribunal Federal recebeu pelo menos quatro ações sobre o tema, motivadas pelo discurso de Bolsonaro contra a obrigatoriedade da vacinação e por sua rejeição à Coronavac. A Corte deverá tomar uma decisão no dia 4 de dezembro, mas nesta semana o ministro Ricardo Lewandowski, que é relator das ações, antecipou o voto favorável à iniciativa. Lewandowski declarou que, na iminência de aprovação de várias vacinas, “constitui dever incontornável da União considerar o emprego de todas elas no enfrentamento do surto da covid-19”.
A microbiologista Natalia Pasternak alerta que um atraso no planejamento da vacinação é prejudicial, mesmo com a expertise do SUS, especialmente no caso do coronavírus. O cenário que se desenha no momento é que os países precisarão adotar diferentes vacinas para atingir a imunização coletiva e, num país continental como o Brasil, exige-se um plano complexo. Os medicamentos imunológicos mais promissoras atualmente envolvem diferentes necessidades de logística e armazenamento (alguns precisam de ultracongeladores), então é importante que o Governo planeje quais deverão ser incorporadas e quais seriam as mais adequadas para cada região, além de desenvolver um sistema de controle da vacinação e das doses de cada usuário.
“O Ministério da Saúde está devendo esse planejamento. Espero que estejam planejando e só não tenham comunicado ainda à população. Pensar que não há um plano é desastroso”, afirma Pasternak. A pesquisadora argumenta que é preciso pensar na aquisição de equipamentos (como câmaras frias para determinados medicamentos), nas possibilidades de distribuição, nas necessidades de ampliação de estruturas de postos de saúde e mesmo um plano de capacitação rápida para profissionais. “Quais vacinas vão pra quais regiões? A Coronavac e a da AstraZeneca são mais fáceis de armazenar. Quem vai ser atendido com qual vacina? E fazer um acompanhamento adequado, porque cada uma delas tem seus regimes de doses. Tudo isso precisa de planejamento e treinamento de pessoal”, explica. Para ela, a falta de transparência do Governo sobre isso deixa a população desamparada e confusa, além de estimular teorias da conspiração contra as vacinas.
A questão também tem preocupado parlamentares da comissão externa da Câmara que acompanha as ações de enfrentamento à pandemia. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT), opositor de Bolsonaro e membro do colegiado, teme que o Brasil priorize a vacina da AstraZeneca e opte por um plano de vacinação mais restrito diante da guerra política protagonizada pelo presidente. “Acredito que o desejo do atual Governo é um plano limitado de vacinação, usando apenas a vacina de Oxford (Astrazeneca). Ele torce pra que esta seja a primeira registrada, quando o Brasil deveria ter uma postura mais ousada e participar de vários projetos, mas pra isso tem que ter investimento. E o Governo está querendo retirar recursos da Saúde em 2021″, afirma.
A vacina da AstraZeneca ―a principal aposta do Governo até o momento― deve refazer testes após um problema de falta de transparência sobre os dados preliminares. Novos dados apresentados sobre seu estudo geraram dúvidas sobre sua autêntica eficácia. Isso deve acarretar atrasos no seu registro, mas o Brasil diz que não modifica seu planejamento. O Ministério da Saúde dialoga com outros laboratórios, mas mesmo assim já admitiu que não deverá oferecer a vacina da covid-19 a toda a população em 2021. A estratégia, assim como na imunização contra a gripe, será a de definir grupos prioritários com base em mortalidade, exposição e análise epidemiológica. “O fato de determinados grupos da população não serem imunizados não significa que não estarão seguros, porque outros grupos que convivem com aqueles estarão imunizados e dessa forma não vão ter a possibilidade de se contaminar”, afirma o número 2 da pasta, Élcio Franco.
O risco de desigualdade na vacinação
As vacinas só poderão ser distribuídas nacionalmente pelo SUS se tiverem aval da Anvisa e forem implementadas pelo Governo Federal. São Paulo, por exemplo, pode incluir a Coronavac em seu programa, mas não pode distribuir para outros Estados. Nesse sentido, há um risco de que haja desigualdade na distribuição das vacinas, já que Estados mais pobres podem não ter recursos para adquiri-las. Isso já aconteceu no país, mas nos últimos anos o programa nacional foi ganhando robustez e promovendo campanhas unificadas e amplas de imunização. “O Governo Federal deve garantir calendário mais amplo possível. Até porque o Estado isolado dificilmente vai ter força para garantir a transferência de tecnologia”, argumenta Padilha. Por enquanto, o Governo de São Paulo não diz se trabalha com um plano próprio ou se esperará as diretrizes do Governo Federal. Afirma apenas que trabalha nas estratégias de vacinação e que elas serão divulgadas no momento oportuno.
Enquanto isso, a pandemia volta a ganhar força no Brasil. O ministro Pazuello admitiu nesta semana novos “repiques” de infecções, especialmente nas regiões Sul e Sudeste, mas não apresentou novas ações para conter os contágios. A estratégia continua voltada ao tratamento de pessoas já infectadas. O país segue falhando em uma política de controle e rastreio de casos, mesmo dispondo de um amplo exército de agentes de saúde, presentes em praticamente todos os municípios. O ex-ministro Mandetta chegou a justificar que, no início da crise, essa estrutura não foi utilizada para o rastreio porque havia escassez de equipamentos de proteção individual e testes.
Mas nove meses e duas trocas de ministros depois, o país continua sem uma política efetiva de controle de casos. E quase sete milhões de testes RT-PCR que poderiam ser usados para controlar a pandemia estão vencendo nos estoques do Governo, conforme noticiou o Estadão. O Ministério da Saúde diz a empresa responsável pelos testes já pediu a prorrogação da validade desses insumos à Anvisa e que monitora o caso. Os testes venceriam em dezembro e janeiro. A pasta também diz que não há risco de falta de testes. “Estamos repetindo os mesmos erros. No começo do ano, a gente demorou a reagir. De novo, vemos aumento de casos na Europa e também não nos preparamos para o aumento que chegaria aqui. Nunca tivemos um planejamento realmente organizado, centralizado, e direcionado pelo Ministério da Saúde. Passaram-se nove meses. Não deu tempo até agora de termos um plano de enfrentamento?”, questiona a microbiologista Natalia Pasternak.
Pierre Rosanvallon: “O aspecto ‘positivo’ do populismo foi subestimado durante muito tempo”
Pierre Rosanvallon, referência intelectual da França contemporânea e professor do Collège de France, teoriza em seu ambicioso livro sobre “a ideologia ascendente” deste século
Se existe um fantasma que assombra a Europa e o mundo hoje é o do populismo. Reação de ira, estratégia política, palavra para deslegitimar ou estigmatizar o adversário político, o uso do conceito é tão diverso quanto as realidades a que se refere. No entanto, renunciar a ele e voltar a categorias de análise mais antigas seria perder a oportunidade de entender o caráter inédito “do ciclo político que se iniciou no início do século XXI”. Assim acredita Pierre Rosanvallon (Blois, França, 1948), cujo último livro, O Século do Populismo: História, Teoria, Crítica (ainda sem edição no Brasil), é uma ambiciosa tentativa de teorizar e definir a essência do que considera ser “a ideologia ascendente” deste século. Uma teoria do fenômeno, entendido como uma proposta política coerente, afirma o historiador, professor do Collège de France, que se recusa a ver na derrota de Donald Trump, o “grande ator do iliberalismo”, um sinal de enfraquecimento dessa corrente. A página não está sendo virada nos Estados Unidos, nem o populismo vai recuar no mundo, acredita Rosanvallon, que se dedicou nos últimos 20 anos ao estudo das mutações da democracia contemporânea.
Pergunta. Por que o senhor acredita que o populismo é uma doutrina e merece uma teoria política?
Resposta. Considerar o populismo simplesmente como uma reação de ira ou uma expressão do “fora todos eles” não é suficiente para explicar o fenômeno. Há um cansaço democrático subjacente na vida política de muitos Estados que se expressa de maneira muito ampla. E também uma espécie de esgotamento da política, de sua capacidade de ação. Se o populismo tem uma força de atração é porque aparece como solução para problemas contemporâneos como a crise de representação ou as injustiças sociais. Queria mostrar esse aspecto positivo do populismo porque acredito que foi subestimado durante muito tempo. Pareceu-me importante passar de uma visão do populismo como uma reação a uma visão do populismo como uma proposta política positiva e própria.
P. A diversidade de populismos, seja entre o de direita e o de esquerda ou na extrema direita chama a atenção...
R. Se você olhar para as personalidades populistas de hoje, pode ter a sensação de que existe uma grande diversidade. Porque, o que pode haver em comum entre Trump e Salvini, ou entre Mélenchon e Duterte? Mas se observamos o populismo a partir das categorias amplas que o caracterizam, podemos encontrar temas comuns que são sempre articulados de uma maneira específica.
P. Apesar dessas semelhanças, o senhor não acredita que há um abuso do qualificativo no debate atual ou na caracterização de algumas personalidades políticas ou regimes?
R. Vimos o surgimento de movimentos e regimes que não podem ser simplesmente categorizados como autoritários, ou como fascistas ou ditatoriais. Existem regimes, como na Rússia, que se inclinam, poderíamos dizer, legalmente para o autoritarismo mediante a aprovação de reformas constitucionais que permitem a eleição quase indefinida de seus líderes. A tentação desses regimes de se tornarem democracias é uma característica absolutamente comum dos populistas, ou seja, regimes autoritários validados pelo sufrágio universal.
P. O qualificativo serve para estratégias adotadas por líderes como Emmanuel Macron, que ganhou as eleições em 2017 se opondo ao que chamava de o “velho mundo” de partidos tradicionais?
R. É difícil comparar Macron com Viktor Orbán, Boris Johnson ou Evo Morales, mas o que mostra a estratégia que adotou em 2017 é que o populismo está presente na própria atmosfera das sociedades democráticas e pode ser entendido como a difusão de um todo conjunto de questões para além dos partidos ou regimes de essência estritamente populista.
P. Entre as cinco características que compõem o tipo ideal do populismo, o senhor insiste na instrumentalização das emoções.
R. Se tivesse que destacar uma importante contribuição do populismo –ainda que seja muito ambígua– para a democracia contemporânea, seria ter entendido que se governa também de acordo com as emoções. Os sentimentos de pertença, de identidade, de rejeição determinam a visão que os indivíduos têm de seu papel na sociedade. Frequentemente, aqueles que criticam essa ideologia não a entendem. Não se pode criticar o populismo superficialmente ou limitar-se a dizer que promove uma democracia antiliberal. Quando isso acontece é porque a democracia liberal não está cumprindo sua agenda. Está em crise.
P. Uma fórmula com a qual Trump esteve prestes a ganhar novamente a presidência dos Estados Unidos... Como o senhor interpreta o momento político?
R. Há dois pontos essenciais. O primeiro: Trump teve 10 milhões de votos adicionais, o que significa que o voto populista está solidamente instalado na sociedade e hoje representa quase metade da população. O segundo: o Partido Republicano entendeu que se quiser manter grande parte de seus representantes no Senado terá que abraçar e aceitar a fórmula populista. Deixou de ser um partido reaganista e passou a ser um partido trumpiano.
P. E inclusive conquistou o voto latino em certos Estados e em alguns casos o afro-americano...
R. O voto latino é compreensível de um ponto de vista sociológico e psicológico. Depois que um imigrante obtém seus documentos e se torna um cidadão norte-americano, é frequente que mude de atitude em relação à imigração. É muito mais difícil de entender no caso do voto afro-americano. O populismo fez que a sociedade norte-americana, que costumava se definir por suas classes sociais, hoje se defina por suas identidades, no sentido mais reacionário do termo.
P. O senhor explica em seu livro que o populismo nasce das falhas intrínsecas da democracia e insiste muito em sua fragilidade. É realista pensar que a democracia ocidental pode desaparecer?
R. A democracia não funciona apenas com regras de direito, mas também com uma moral democrática. Voltando a Trump, ninguém antes dele havia demitido um diretor do FBI por não lhe ser fiel, e não há dúvida de que com um segundo mandato ele teria continuado a minar as instituições democráticas. A história está cheia de exemplos de democracias que desaparecem. A Grécia Antiga e o Século de Péricles são um bom exemplo. A democracia não é uma conquista. É uma frente de batalha. É frágil e morre se não for renovada. Sem instituições democráticas vivas existe o risco de que os cidadãos se cansem desse modelo e consintam seu desaparecimento.
P. Chama muito a atenção a posição central ocupada pelas redes sociais na estratégia política de líderes e de movimentos populistas e a escassa regulamentação vigente...
R. Sem dúvida, a regulamentação da Internet e em particular das redes sociais é um ponto central para a continuidade da democracia. É vital legislar porque, do contrário, sobre muitas questões, se continuará alegando que existe uma verdade alternativa. O melhor exemplo disso está sendo oferecido por Trump ao se recusar a reconhecer a vitória de Biden. Uma posição à qual adere, sem dúvida, grande parte de seu eleitorado, que acredita que houve fraude e que a vitória democrata foi um roubo. Essa faixa do eleitorado de Trump já não faz sociedade comum com os outros. E essa foi a grande novidade, por assim dizer, dos últimos anos: descobrir um país dividido em dois campos irreconciliáveis enquanto a própria essência da democracia consiste em pensar que existe uma base comum que permite falar dessas diferenças, negociar, acordar. A regulamentação das redes terá de ser acompanhada por uma política de educação que inculque no cidadão a importância dos argumentos, e que não existe apenas a sua verdade.
P. O senhor apresenta o populismo como a ideologia em ascensão do século XXI, mas a crise da covid-19 foi um golpe para a imagem desses líderes.
R. Podemos nos perguntar se estamos presenciando uma espécie de ponto de inflexão no discurso populista, já que esse discurso costuma ser apresentado como o detentor da verdade absoluta sobre a realidade. A dimensão objetiva desta crise de alguma forma encurralou os líderes populistas. Ninguém pode negar esta pandemia. Por outro lado, o populismo na Europa também entrou em confronto com o papel da União Europeia. A Itália e a Espanha estão entre os principais beneficiários do que pela primeira vez qualificaria como uma espécie de orçamentação e oficialização da solidariedade entre os países europeus. Existe uma dupla realidade que ninguém pode ignorar: a realidade do vírus e a realidade da crise econômica. Dito isso, o populismo mantém uma visão da democracia, da liderança e da vontade política que conserva seu poder.
Juan Arias: Novo ministro do Supremo de Bolsonaro surpreende com defesa do Estado laico
Magistrados como Kassio Nunes Marques devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a lei
O presidente Jair Bolsonaro havia anunciado que a primeira nomeação de um novo magistrado do Supremo Tribunal Federal seria alguém “terrivelmente evangélico”, o que criou preocupação visto que o Brasil, pela Constituição, é um Estado laico. O novo ministro do STF, Kassio Nunes Marques, porém, surpreendeu, na última quarta-feira, ao defender enfaticamente a laicidade do Estado, que deve respeitar todas as confissões religiosas igualmente sem se identificar com nenhuma.
Segundo Nunes Marques, “a laicidade do Estado não significa Estado ateu, mas Estado de todas as religiões e de religião alguma”. E acrescentou que “o fato é que o Estado não deve professar religião alguma e que se manter neutro não significa manter uma postura hostil ou impeditiva da religiosidade”.
A postura impecável do novo magistrado na defesa da laicidade do Estado contrasta com a ideia quase obsessiva de Bolsonaro desde que era um simples deputado, quando defendia que o Estado brasileiro não é laico, mas cristão. “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico, não”, gritou durante a campanha eleitoral, acrescentando: “o Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”.
Não é descabido pensar que o sonho de Bolsonaro e dos pastores evangélicos, que já têm três partidos próprios no Parlamento e estão presentes em outros 16, é mudar a Constituição para eliminar sua laicidade e trocá-la pela Bíblia, para criar uma espécie de República islâmica.
E o sonho dos evangélicos, que passam de 30% da população, sempre foi ter um presidente deles. Até agora só conseguiram que um deputado, o pastor Marco Feliciano, presidisse a importante Comissão Parlamentar de Direitos Humanos. O pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, já havia profetizado que “era a vontade de Deus que um evangélico chegasse à presidência”.
Com Bolsonaro o conseguiram só pela metade, pois na verdade sempre foi católico e se fez rebatizar na Igreja Evangélica por cálculos eleitorais, já que essas igrejas poderosas movimentam milhões de votos sob o lema “o irmão vota no irmão”.
Todos os presidentes até agora nas campanhas eleitorais tiveram que se render aos evangélicos e se ajoelhar para pedir sua bênção, inclusive a candidata agnóstica Dilma Rousseff, escolhida por Lula para substituí-lo. Dilma foi obrigada, para não perder o voto dos evangélicos, a enviar-lhes uma carta se comprometendo a não tocar na lei contra o aborto durante seu mandato. Dilma foi eleita e cumpriu sua promessa.
O deputado Feliciano, que foi coroinha aos 13 anos na Igreja Católica e se converteu ao evangelismo quando conseguiu sair do mundo das drogas, hoje é um evangélico que chega a dizer que “os católicos adoram Satanás e têm seus corpos entregues à prostituição”.
No Brasil, o reino de Deus é cada vez mais deste mundo. As igrejas evangélicas e pentecostais atuam cada vez mais como um tea party à brasileira.
O pastor Feliciano, que dirige uma das igrejas mais importantes, chegou a dizer que os africanos carregam uma maldição divina desde os tempos de Noé, que faz com que vivam na miséria.
Ainda é cedo para saber se o novo ministro do Supremo, Nunes Marques, se manterá firme na defesa da Constituição e do Estado laico. E ainda é difícil saber o que Bolsonaro pensou da defesa da laicidade do Estado feita por seu magistrado. Como é cedo para saber se, em se tratando de assuntos que dizem respeito ao delicado tema das denúncias de corrupção da família Bolsonaro, o novo magistrado continuará sendo coerente com seu juramento de defender a Constituição em vez de ser um lacaio do presidente que o escolheu a dedo.
Para não cair no pessimismo, prefiro pensar que o presidente tenha ficado decepcionado com seu novo ministro e que este preferirá não sujar sua carreira de alto jurado da mais alta corte e, como acaba de fazer, seja fiel à Constituição.
Prefiro pensar que essa defesa aberta da laicidade do Estado estabelecida na Constituição continue alinhada com a independência que todo magistrado do Supremo deve ter, o que nem sempre tem sido o caso, pois levou não poucas vezes a relações espúrias entre alguns magistrados e o mundo político, ao que tantas vezes se dobraram, traindo a importante separação entre as instituições que devem ser independentes, como exige a Constituição.
Mais do que “terrivelmente evangélicos”, os magistrados do Supremo devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a Carta Magna dos brasileiros.
El País: 'Este vírus vai continuar entre nós para sempre', diz Ian Lipkin
Ian Lipkin, um dos maiores especialistas do planeta em vírus emergentes, avalia que será impossível erradicar o SARS-CoV-2
Nuno Domínguez, El País
Em 1999, uma patologista do Zoológico do Bronx encontrou vários corvos mortos na entrada do parque. Pouco depois, flamingos e outras aves começaram a morrer no mesmo recinto, todos com estranhas hemorragias cerebrais. Quase ao mesmo tempo, a cidade de Nova York detectou um número incomum de emergências de inflamação cerebral em humanos. Sete pessoas morreram. Ninguém tinha clareza sobre a causa da morte.
- Vacina de Oxford e AstraZeneca tem eficácia média de 70% contra a covid-19, anuncia laboratório
- OMS prepara missão à China em busca da origem da pandemia do novo coronavírus
- Maior estudo já feito sugere que defesas contra o coronavírus podem durar anos
O médico e epidemiologista Ian Lipkin foi um dos primeiros a identificar o culpado graças à análise genética. Era o vírus do Nilo Ocidental, um patógeno originado na África e importado para a América, provavelmente por meio do tráfico ilegal de animais.
Desde então, Lipkin se tornou um dos maiores caçadores de vírus do planeta — descobriu mais de 1.500 —, incluindo outro patógeno misterioso que matou quatro pessoas em uma cadeia de contágios relacionados a transplantes de órgãos na África do Sul.
Lipkin dirige o Centro de Infecção e Imunidade da Universidade Columbia (EUA), onde continuam chegando de todo o mundo amostras de animais e humanos para sua análise. Em 2002, ele foi escolhido pelo Governo chinês como conselheiro para conter um coronavírus preocupante que matou quase 800 pessoas, o SARS, para o qual desenvolveu o primeiro teste de detecção. Em 2012, foi contatado pela Arábia Saudita e ajudou a identificar o animal de onde surgiu o segundo coronavírus preocupante por sua letalidade: o MERS 2012, que saltou de camelos para humanos. Desde janeiro, voltou a colaborar com as autoridades chinesas, agora na investigação do SARS-CoV-2 para desenvolver melhores testes de detecção do vírus.
Pergunta. Em que trabalha atualmente?
Resposta. Durante muitos anos pesquisei novas maneiras de detectar infecções e entender a forma como os agentes infecciosos causam doenças. Agora trabalho com um engenheiro da Columbia que cria circuitos nos quais as moléculas são impressas: proteínas ou DNA, por exemplo. Se o SARS-CoV-2 ou outro vírus estiver presente no detector, essas moléculas se ligarão a ele e enviarão um sinal positivo. O mais interessante é que isso também permite identificar outros vírus que podem produzir os mesmos sintomas do SARS-CoV-2. É um teste múltiplo. É o futuro.
P. Que moléculas utiliza para detectar os vírus?
R. Anticorpos de lhamas. Os camelídeos não só produzem anticorpos convencionais como os de outros mamíferos, como também outros muito menores, de cadeia simples. Eles são muito eficazes unindo-se aos vírus. Em teoria, o teste poderia funcionar com amostras de saliva, sangue e até aerossóis, algo fundamental agora que estamos pensando em reabrir teatros, salas de concerto e outros espaços públicos. Esperamos ter os primeiros protótipos em janeiro.
P. Quando avalia que esta pandemia terminará?
R. Vamos viver o resto de nossas vidas com este vírus. Não vai desaparecer. Os recém-nascidos terão que ser vacinados para sempre e provavelmente teremos que dar doses de reforço adicionais aos já vacinados. Vai ser um problema recorrente. Não acho que a vida volte a ser completamente normal de novo.
P. Nem mesmo se eliminarmos todos os possíveis reservatórios animais?
R. Compare com a varíola, a única doença infecciosa erradicada. Não possui reservatório animal e todos os infectados sofrem a doenças. Nesta ocasião, não se dá nenhuma dessas duas coisas. Há transmissão assintomática ou pré-sintomática e também muitos animais em todo o mundo que vão se tornar reservatórios desse vírus. Morcegos, mustelídeos, talvez outros. Assim que começarmos a vacinação em massa, os níveis de infecção cairão drasticamente. Essas vacinas mais a imunidade associada à infecção real farão com que a partir de 2022 tenhamos uma redução drástica nas mortes. Mas o SARS-CoV-2 não desaparecerá e teremos que continuar monitorando.
P. Qual sua opinião sobre os últimos resultados de eficácia das vacinas?
R. Os dados sobre as vacinas baseadas em RNA mensageiro da Moderna e da Pfizer são surpreendentes. Tenho certeza de que essas vacinas também vão reduzir a quantidade de vírus que uma pessoa infectada gera e também reduzirão o tempo em que uma pessoa transmite vírus contagiosos. E seremos capazes de distribuir essas vacinas na maior parte da Europa e nos Estados Unidos. Mas levá-las aos países em desenvolvimento será um desafio extraordinário. Nessas áreas, precisamos de vacinas que não precisam de frio.
P. Essas vacinas nos permitirão voltar à normalidade?
R. A única maneira de voltar à normalidade é alcançando a imunidade de grupo global. Para isso, entre 60% e 80% da população mundial tem que estar imune. A covid-19 requer soluções globais e é encorajador ver o G20 se comprometer com um programa de vacinação mundial, em vez de buscar soluções nacionais. Não acredito que voltaremos à normalidade de antes da pandemia, da mesma forma que não retornamos à normalidade anterior ao 11 de Setembro. A covid-19 nos mostrou nossa vulnerabilidade a vírus emergentes, mas também demonstrou nossa capacidade de responder com ciência, compaixão e um objetivo comum.
P. Como acha que este vírus se converteu em pandemia?
R. A única coisa que podemos dizer com certeza é que ninguém, nenhum ser humano, criou deliberadamente este vírus. Afora isso, ninguém sabe como aconteceu. A China vai investir muito dinheiro na análise de animais selvagens. Em 2012, quando fomos buscar a origem da MERS, começamos a procurar em morcegos porque o vírus mais semelhante a este que se conhecia foi encontrado nesses animais. Mas o paciente zero do MERS tinha quatro camelos e então começamos a olhar para esses animais. Descobrimos que tinham anticorpos. Começamos a estudar camelos em praticamente toda a península arábica e descobrimos que 75% de todos os camelos tinham anticorpos. Fomos a bancos de sangue de camelos e vimos que esse vírus já circulava havia pelo menos 10 anos. Provavelmente havia casos de MERS em humanos que ninguém soube ver.
P. Nossos sistemas de vigilância podem ser aprimorados contra novos vírus?
R. Minha equipe estimou que existem pelo menos 320.000 vírus desconhecidos que podem infectar mamíferos. Outras estimativas falam de um milhão. Nos Estados Unidos se discutiu um projeto de cooperação internacional que iria destinar cerca de 6 bilhões de dólares [32 bilhões de reais] na caracterização de todos esses vírus. O problema dessa abordagem é que encontrar um desses vírus não indica se ele infectará humanos ou não. Considerando os recursos limitados, esta é a melhor forma de gastar o dinheiro? Acredito que existem outras formas. Por exemplo, há zoológicos em todo o mundo. Cada novo patógeno que chega pode se infiltrar nos zoológicos. Alguns animais podem morrer e estudá-los nos daria muitas pistas. O mesmo pode ser feito com animais selvagens mortos e também domésticos. Eles podem ser o termômetro de que um novo vírus está circulando. Caracterizar esses surtos é mais simples do que procurar o vírus em si.
P. Há mais formas de chegar antes?
R. Antes de uma epidemia estourar, o vírus circula silenciosamente por um período de tempo. Foi o que aconteceu com o HIV na década de 1940. O mesmo acontecerá com o SARS-CoV-2. Quando tivermos a tecnologia adequada baseada em anticorpos, possivelmente vejamos que havia pessoas infectadas muito antes de ser detectado em Wuhan em dezembro. Pode ter sido até mesmo anos antes. Uma maneira de detectar isso é usando bancos de sangue; fazer ensaios sorológicos. Outra forma é fazer mais autópsias. São feitas pouquíssimas porque são caras e em geral não são muito úteis. Mas se pudermos encontrar uma maneira de fazer uma autópsia rápida baseada na sorologia, poderíamos saber muito mais do que sabemos sobre este e outros vírus.
P. Você também está estudando, como tratamento, o uso de plasma de pessoas curadas. Há resultados?
R. Temos um estudo com cerca de 200 pacientes que recebem plasma imune ou plasma normal. São pacientes em estado grave. Depois teremos outro ensaio com pessoas com sintomas muito leves. Acreditamos que é nesses casos que essa intervenção funcionará melhor: você evita que a infecção se dissemine e descarta a possibilidade de que o próprio sistema imunológico reaja exageradamente e cause covid-19 grave.
P. Qual sua opinião sobre o remdesivir, o primeiro fármaco aprovado contra a covid-19, ao preço de 2.000 euros [cerca de 13.000 reais]?
R. Tem um efeito muito modesto. Encurta a hospitalização, mas não reduz a mortalidade. Não é um bom fármaco. Provavelmente não vale seu preço. Mas as pessoas o vão tomar porque foi aprovado. Como os anticorpos monoclonais e o plasma, é possível que só funcione nos estágios iniciais da doença. Depois que o vírus se espalhou por todo o corpo, é tarde demais. Nesse caso, será mais importante controlar a resposta imune com esteroides e usar anticoagulantes.
P. Colabora há anos com a China e esteve lá em fevereiro. Acredita que realmente conteve o vírus?
R. Sim. Na China, se o Governo decide fazer algo, faz. Não é como na Espanha ou nos Estados Unidos, onde pode haver debate sobre confinamentos e fechamentos. Todo mundo obedece. Existem vantagens e desvantagens nas ditaduras, mas na saúde pública claramente a política é muito mais consistente. Em comparação, a UE e os EUA deveriam ter políticas mais consistentes.
P. Em 2011, você foi consultor científico de Contágio, um filme que contava como um vírus pandêmico se apoderava do mundo. Está surpreso com a semelhança com a realidade?
R. Não estou surpreso com a precisão do que o filme expôs porque nos baseamos em nossa experiência durante os surtos do vírus do Nilo Ocidental, do SARS, do Ebola, do estado em que se encontravam os programas de vigilância biológica de novos vírus emergentes e em como as redes sociais estavam evoluindo.
El País: O efeito das eleições na (re)organização das forças políticas e em 2022
A fragmentação atual da esquerda não tem paralelo na experiência política brasileira das últimas décadas, e isso pode resultar em posição minoritária do campo na próxima eleição
Débora Gershon e Leonardo Martins Barbosa, El País
Nas eleições de 2020, partidos da direita tradicional reafirmaram sua importância na política brasileira e apresentaram crescimento expressivo, não apenas nos pequenos municípios, mas também no grupo de cidades com mais de 200.000 eleitores. A compilação dos resultados revela três aspectos relevantes para 2022, que desde já merecem atenção, embora as eleições municipais difiram, em termos de lógica e organização, das nacionais: a) a direita tradicional mostrou-se bastante competitiva tanto no agregado, quanto nas maiores cidades; b) partidos do chamado Centrão aprofundaram sua interiorização, aproximando-se do MDB, líder inconteste nos municípios nas últimas décadas, e c) o campo da esquerda acumulou perdas no total de municípios, mas mostrou vitalidade naqueles com mais de 200.000 eleitores, onde obteve crescimento. O encerramento das eleições nas 57 cidades que disputarão o segundo turno não deve alterar de maneira significativa esse quadro. Além disso, o segundo turno não revela tanto quanto o primeiro as preferências do eleitor, já que nele as maiorias são construídas mais artificialmente em função dos chamados votos úteis. Analisar, portanto, os efeitos dessas mudanças já é tarefa útil e absolutamente necessária para o desenho de cenários futuros.
No campo da direita ou, mais amplamente, da centro-direita, DEM e PP foram os partidos que mais cresceram nesse pleito, considerados os cargos de prefeito e vereador. O crescimento do DEM foi de mais de 70%, enquanto o do PP de cerca de 40%. É o PP, no entanto, que reúne o maior número de prefeitos eleitos em primeiro turno, atrás apenas do MDB, partido de tradição municipalista há décadas, cuja performance atual não constitui ponto fora da curva. O desempenho do PP foi ainda melhor do que o do PSDB, em termos de prefeituras conquistadas.
O PSDB manteve bom desempenho geral e nos grandes municípios, mas com sinais de concentração eleitoral cada vez maior em São Paulo. MDB e PSDB, diga-se de passagem, partidos estruturantes da política brasileira até então, foram os dois que mais perderam prefeituras e votos nessas eleições. Partidos da esquerda também o fizeram, mas em menor escala.
Mais importante, o crescimento de DEM e PP expressa a derrota da direita mais radical. Os dois partidos, oriundos da antiga Arena, adaptaram-se bem ao pluralismo partidário e ao sistema político do presidencialismo de coalizão. Em contraste, PSL e Novo, os mais alinhados ao Governo de extrema direita, consideradas as votações nominais no Congresso, tiveram resultado pífio nas eleições. O PSL cresceu, a despeito da enorme queda de popularidade sofrida pela ruptura de Bolsonaro com a legenda, mas dificilmente se recuperará para as eleições de 2022. Em suma, a direita que teve bom desempenho nas eleições de 2020 não é a mesma que venceu o pleito de 2018.
O desempenho do DEM, particularmente, merece olhar mais cuidadoso. Nas décadas de 1980 e de 1990, sob a denominação de PFL, o partido se tornou um dos maiores do país, com base na sua estatura no interior, particularmente na região Nordeste. No entanto, desde o início dos governos Lula e do consequente fortalecimento do PT na região, sofreu reveses sistemáticos. Seus movimentos de reorganização partidária dos últimos anos e sua aproximação a importantes setores do empresariado urbano são explicações prováveis para o resultado eleitoral obtido. Soma-se a esses fatores a posição atual do partido de relativa independência com relação à figura de Bolsonaro (a despeito da convergência em pautas econômicas), e cresce a possibilidade de que o partido apresente um projeto presidencial alternativo ao da extrema direita em 2022. Com um crescimento significativo e homogêneo, o DEM cria condições, inclusive, de reorientar, de forma inédita, sua dinâmica de usual parceria com o PSDB, assumindo maior centralidade em eventual coligação para as próximas eleições. Até lá, no entanto, considerada também a proximidade da troca de comando na Câmara dos Deputados, pode-se esperar aumento significativo do custo do seu apoio ao Governo. O mesmo pode se reproduzir com o PP, uma vez que suas quase 700 prefeituras aumentam seu poder de barganha. Mas, se mantida a estratégia atual de Bolsonaro de aproximação com o Centrão, um cenário de maior protagonismo congressual do partido pode vir a ser favorável ao presidente.
Sobre o chamado Centrão, valem alguns comentários. Apesar de certa indefinição sobre partidos que compõem esse grupamento informal, caracterizado por vínculos ideológicos irrisórios (embora pautado por comportamento à direita do campo político), as oito legendas mais atuantes do grupo alcançaram resultados positivos. Além do benefício trazido pela própria falta de identidade e visibilidade política do grupo, tendo em vistas as características de eleições locais, é bastante provável que o fim das coligações em eleições proporcionais tenha sido decisivo para isso. A nova legislação cria incentivos para que os partidos lancem candidatos às prefeituras, estimulando, assim, o aumento de suas bancadas de vereadores, embora seja de se esperar, que, nos próximos anos, esse efeito não intencional da legislação dê lugar a fusão de legendas, a depender da capacidade competitiva das pequenos e do poder de atração das maiores.
Dos oito partidos do Centrão, além do já citado bom desempenho do PP, vale destacar também o PSD e o Republicanos. O PSD foi o segundo partido com maior número de candidaturas este ano, atrás apenas do MDB, e o terceiro com mais prefeitos eleitos no primeiro turno (650). De 2016 para 2020, o crescimento do partido foi pouco expressivo, mas de grande valia no processo de sua consolidação como nova força política nacional.
Por fim, resta observar a performance nas urnas dos partidos mais à esquerda, que, no cômputo geral, perderam menos do que a extrema direita, com destaque especialmente para aqueles de viés ideológico mais previsível e consistente no campo, a exemplo do PT e do PSOL. No geral, contudo, todos tiveram bons resultados em câmaras municipais mais do que em prefeituras. PDT, PCdoB e PSB, por exemplo, fizeram menos prefeitos do que em 2016, mas o PDT está na disputa pelo segundo turno em duas capitais (Fortaleza e Aracaju), o PSB em três (Recife, Rio Branco e Maceió), e o PCdoB em uma (Porto Alegre). O PSOL teve cerca de 6% a mais de votos na comparação com 2016, embora grande parte de sua votação em 2020 deva-se à candidatura de Guilherme Boulos. Em número de prefeituras, o partido cresceu, mas mantém-se em patamar comparativo muito baixo ―são 4 prefeitos eleitos em 2020, ainda que existam chances de eleição de mais dois (Belém e São Paulo). O crescimento foi suficiente para deslocar o PT em poucas, porém importantes cidades, como Florianópolis, Belém, e mesmo São Paulo, com a consolidação, em paralelo, de nomes de projeção nacional.
O PT, por sua vez, partido da esquerda que reúne maior número de cadeiras eletivas e de filiados e tem presença ainda muito expressiva em movimentos sociais tradicionais, acumulou mais perdas do que em 2016, que já havia representado uma queda enorme com relação à 2012. Apesar disso, é a legenda que disputa mais vagas no segundo turno, estando no páreo em duas capitais (Recife e Vitória), bem como em grandes colégios eleitorais como Diadema, Contagem, Caxias do Sul, São Gonçalo e Juiz de Fora, entre outros. Do ponto de vista do total de votos, houve pequeno crescimento nessas eleições, fato significativo diante do aumento da abstenção eleitoral, pois revela que as perdas não foram distribuídas de forma homogênea. De modo geral, o partido perdeu espaço nos pequenos municípios, mas manteve vitalidade em grandes cidades, nelas permanecendo como principal força da esquerda.
Dada a conjuntura política atual, e o fato de que a esquerda nunca foi campo majoritário no Brasil, nem mesmo durante os governos de Lula e Dilma, quando MDB ou PSDB exerciam a liderança em prefeituras Brasil afora, os resultados atingidos por algumas legendas foram profícuos, inclusive do ponto de vista da inclusão de minorias sociais que, cada vez mais, exercerão pressão importante sobre o sistema político brasileiro. É preciso fazer a ressalva, contudo, de que a fragmentação atual da esquerda não tem paralelo na experiência política brasileira das últimas décadas. Os resultados municipais, nesse sentido, podem vir a impulsionar esforços para correção de rumos e produção de candidaturas coligadas competitivas nas próximas eleições. Caso contrário, a fragmentação excessiva tende a resultar em posição minoritária do campo em 2022.
Em resumo, 2020 nos revela um cenário de menor polarização, em que cresce a direita mais moderada, em detrimento da extrema direita mais do que da esquerda, com menor adesão do eleitorado a discursos e projetos antipolítica e antissistema. Tal resultado gera desafios adicionais ao Governo federal e, particularmente, a Bolsonaro. Faltam dois anos para as eleições presidenciais e uma série de variáveis, de maior ou menor controle, podem interferir nesse cenário, a economia sendo a mais importante delas. As eleições municipais, entretanto, ajudam a formar o quadro em que os arranjos políticos se darão daqui para frente.
Débora Gershon é cientista política na Poliarco Inteligência Política. Doutora (IESP/UERJ) e mestre em Ciência Política (IUPERJ), com pós-doutorado pela University of California, San Diego (UCSD), onde atuou como pesquisadora visitante. É também pesquisadora do Observatório Legislativo Brasileiro (OLB).
Leonardo Martins Barbosa é cientista político na Poliarco Inteligência Política. Doutor em Ciência Política pelo IESP/UERJ. É pesquisador do Núcleo de Estudos sobre o Congresso (NECON) e do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB), tendo ampla experiência em análise de cenários políticos, com foco em comportamento partidário e arena legislativa.
Eliane Brum: Precisamos falar sobre o PSDB
Como o partido abandonou a social-democracia, migrou para a direita e deixou amplas digitais na destruição do processo democrático
Um dos principais riscos da polarização é justamente embaralhar o que é continuidade e o que é ruptura. Neste momento, em que o PSDB, hoje um partido de direita, tenta se vender como o “centro” que um dia foi, é fundamental recuperar a perspectiva do processo histórico. A falta de responsabilização do PSDB como um dos principais agentes de destruição da democracia é um dos enigmas da atual paisagem política brasileira. Ao embarcar no discurso do antipetismo, o PSDB colaborou fortemente para colocar na conta exclusiva do PT todo o desencanto com a política e os políticos, ao mesmo tempo em que se aproximou de tudo o que Jair Bolsonaro representa e defende. O partido deixou amplamente suas digitais na corrosão da democracia cujas consequências são Jair Bolsonaro. O PSDB não é apenas mais um que tem seu DNA na mais recente escalada autoritária do Brasil. O PSDB está em sua gênese.
Ao longo de suas primeiras fases, o Partido da Social Democracia Brasileira construiu uma fama de ficar em cima do muro, manter-se nem lá nem cá, nem à esquerda, nem à direita. Durante muitos anos foi o mais próximo de um partido de centro, ainda que mais para a esquerda do que para a direita, já que alguns de seus fundadores e principais expoentes, como Fernando Henrique Cardoso e José Serra, tinham sido exilados pela ditadura civil-militar (1964-1985). Com o tempo, ser “tucano”, como eram chamados os pessedebistas, por conta do pássaro que simboliza o partido, passou a significar não tomar posição clara. A expressão valia para a política, mas ampliou-se e passou a valer, como gíria, também para qualquer pessoa que ficava no sim, só que não.
Os tucanos, majoritariamente homens brancos, eram vistos como gente culta, com diploma universitário e pós-graduação, de gestos educados e boas maneiras, mais afinados com os salões europeus e sua arrogância blasé do que com o exibicionismo explícito e movido por fortunas familiares dos Estados Unidos. Também se vendiam como modernos, urbanos e de mente arejada, o que os mantinha longe do coronelismo truculento da política brasileira, marcas de clãs como Sarney, Magalhães e Barbalho, que preferiam liderar partidos assumidamente de direita ou fincar seus bigodes no amplo guarda-chuva do PMDB, hoje MDB.
O quanto de verdade continha essa imagem de senso comum é algo a se discutir, mas o mais importante é perceber que hoje essa imagem não tem nenhuma correspondência na realidade. Dela ainda resiste, como a rainha da Inglaterra num rodeio de Barretos, a figura de Fernando Henrique Cardoso, às vezes chamado a dar um lustro na imagem externa do partido, mas que já pouca influência tem na vida cotidiana do PSDB.
O próprio Fernando Henrique Cardoso, duas vezes presidente do Brasil (1995 a 2002), ainda lida com a persistente suspeita de que, em 1997, o partido comprou os votos para aprovar no Congresso a emenda constitucional que permitiria —como permitiu— a sua reeleição. Os indícios de que houve compra de votos eram —e seguem sendo— fortíssimos, mas diferentes esferas do judiciário e do legislativo impediram o prosseguimento das investigações e engavetaram as denúncias. Geraldo Brindeiro, procurador-geral da República, passou para a história como “engavetador-geral da República”. A mancha sobre a figura de FHC permanece até hoje e o assunto, como aqueles fantasmas com pendências a resolver no mundo dos vivos, volta de tempos em tempos, como agora. Os fatos são como os corpos sepultados em covas clandestinas: teimam em emergir por mais camadas de terra e silêncio que se empilhe sobre eles.
Fernando Henrique Cardoso fez uma transmissão bonita da faixa presidencial a Lula, em 2003. Ele estava visivelmente emocionado ao passar o bastão para o primeiro presidente de classe operária eleito na história do Brasil, como um seguimento natural e desejável ao seu próprio Governo. Lula foi um tanto ingrato neste sentido, incapaz de reconhecer o que havia de positivo no Governo do antecessor. E isso mesmo tendo continuado a política econômica de FHC tal e qual, o que causou estupor na ala mais à esquerda do partido.
No Governo durante mais de 13 anos, o PT se tornou mais parecido com um partido de centro. Em alguns campos, porém, como na política de imposição de grandes hidrelétricas na Amazônia e na aproximação crescente com o agronegócio, que chegou instalar a ruralista Kátia Abreu no Ministério da Agricultura no segundo mandato de Dilma Rousseff e um ex-diretor de manicômio ligado a torturas de pacientes na coordenação da saúde mental, foi francamente conservador. Parte da esquerda do PT deixaria o partido nos anos que se seguiram à primeira posse de Lula para fundar o PSOL, em 2004 —ou para fundar seu próprio partido, como fez Marina Silva ao deixar o Governo e depois o PT, durante o segundo mandato de Lula, por não compactuar com a política ambiental e para a Amazônia, cada vez mais influenciada pelo desenvolvimentismo predatório de Dilma Rousseff.
Não estou aqui a resgatar os fatos para fazer textão, mas porque é importante revisitar o processo e onde cada personagem nele se situa para compreender o que hoje está em jogo. Neste momento, o PSDB de Bruno Covas, assustado com a possibilidade de perder a Prefeitura de São Paulo, essencial para os planos de João Doria para disputar a eleição presidencial de 2022, tenta carimbar Guilherme Boulos, do PSOL como “radical”, o mesmo truque que era usado contra Lula quando o então sindicalista despontou na política partidária nos anos 1980. Naquele momento, o Brasil iniciava a redemocratização do país, depois de 21 anos de ditadura civil-militar (1964-1985), período em que 8.000 indígenas e centenas de opositores foram mortos por agentes de Estado que nunca foram responsabilizados e período também em que os atuais generais no entorno de Bolsonaro fizeram sua formação.
Resgato aqui um trecho do meu último livro —Brasil construtor de ruínas, um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago), para que não me acusem de plagiar a mim mesma. O nome do capítulo é sugestivo: “O tucano arrasta as penas na sarjeta”. Busco mostrar o papel que José Serra pode ter desempenhado nos acontecimentos que começaram a desenhar o abismo do Brasil. Um dos fundadores do PSDB, Serra foi ministro do Planejamento e depois da Saúde de Fernando Henrique Cardoso, foi também prefeito e governador de São Paulo e ainda ministro de Relações Exteriores de Michel Temer. Hoje é mais um senador da República às voltas com denúncias de corrupção movidas pela Operação Lava Jato.
1) O PSDB, José Serra e o aborto como moeda eleitoral: o momento em que o vale-tudo faz sua entrada triunfal nas campanhas políticas
Há uma data marcando o momento em que um limite que jamais poderia ter sido ultrapassado foi rompido na política brasileira. O ato foi precursor das quebras que viriam depois. Aconteceu na campanha de 2010. Na ocasião, os caminhos de Eduardo Cunha se cruzaram com os de Dilma Rousseff e de seu adversário José Serra. O PSDB começava o declínio que o levaria a alcançar os dias atuais com o rosto de João Doria.
Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura civil-militar, a maioria dos candidatos costumava evitar abordar o tema do aborto. Nem enfrentar a questão, para evitar perder eleitores, nem usá-la como moeda eleitoral para ganhar apoio entre os mais conservadores. Se não havia coragem para enfrentar o tema a partir de um debate responsável, também existia pudor para não baixar o nível, fazendo proselitismo com uma das causas de morte de mulheres jovens no Brasil, a maioria delas negras e pobres. Fernando Collor de Mello ensaiou romper essa fronteira, ao usar a filha de Lula com Miriam Cordeiro para atacar seu principal adversário, em 1989. Mas uma espécie de acordo tácito foi mantido nas eleições que se seguiram.
Em 2010, ao constatar o potencial eleitoral dos evangélicos, em especial dos neopentecostais, que seguem crescendo e podem superar o número de fiéis católicos nas próximas décadas, políticos e marqueteiros perceberam que jogar o aborto na mídia e no palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores com escrúpulos de se tornarem crentes de última hora. Ninguém fez isso com maior afinco do que José Serra, na campanha eleitoral em que disputou a presidência com Dilma Rousseff.
No final do primeiro turno, a Internet e as ruas foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma Rousseff era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos, e também parte dos bispos e dos padres católicos exortou os fiéis a desistirem de votar nela. Circularam suspeitas de que o ataque teria partido da campanha de Serra, mas a autoria não chegou a ser provada. O que se pode afirmar é que Serra se empenhou em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante.
Dilma Rousseff, por sua vez, correu a buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nesta carta, Dilma comprometeu-se, caso vencesse a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava suas trajetórias. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e, usando o mote dos grupos extremistas do catolicismo, afirmou que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.
A campanha de 2010 marcou o momento mais baixo desde a redemocratização do país. Isso significa que foi o momento mais baixo em 21 anos de eleições presidenciais. E inaugurou o primeiro de uma série de momentos cada vez mais baixos que se seguiriam a ele, culminando com o discurso de ataque aos negros e aos indígenas, às mulheres e aos homossexuais e transexuais de Jair Bolsonaro em 2018.
O que se passou em 2010 escancarou as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual. Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que seria usado nas escolas públicas para trabalhar o respeito às diferenças e prevenir a violência contra homossexuais.
O kit Escola Sem Homofobia foi batizado pejorativamente de “kit gay” por pastores e políticos homofóbicos —ou apenas oportunistas— e lembrado em todas as campanhas eleitorais que se seguiram, inclusive a que deu a vitória ao declaradamente homofóbico Jair Bolsonaro, em 2018. Também vale a pena lembrar da retirada do ar do vídeo de uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida por doenças evitáveis.
A campanha de 2010 mostrou que rebaixar o tema do aborto à moeda eleitoral atingia dois propósitos: 1) fazer com que o adversário, liberal nos costumes, o que caracteriza a esquerda, de modo geral, e a direita genuinamente adepta do liberalismo, perdesse uma grande quantidade de votos entre as pessoas religiosas, em especial evangélicos neopentecostais e católicos carismáticos; 2) pressionar candidatos que, caso eleitos, poderiam levar adiante o debate do aborto como o problema de saúde pública que efetivamente é, assim como outras pautas relativas à sexualidade e à diversidade, de forma a se comprometerem a deixar tudo como está ou mesmo a retroceder.
A campanha de 2010 provou, principalmente, que o aborto e outros dos chamados “temas morais” são um eficaz instrumento de barganha política, quando não de chantagem. Desde então, parlamentares se agarraram a essa pauta, deram declarações públicas e lançaram projetos de lei marcados por um retrocesso que não parecia mais possível. Muitos desses oportunistas fizeram nome e ganharam importância na guerra moral assinalada pela imoralidade das práticas e pela desonestidade dos argumentos dos religiosos de ocasião.
O rebaixamento do nível da campanha de 2010 rompeu uma barreira ética no debate público do Brasil —e esse rombo nunca mais parou de ser escancarado. É necessário jamais esquecer que essa fronteira não foi derrubada nem pela parcela mais fisiológica do PMDB, hoje MDB, nem pelos líderes evangélicos mais inescrupulosos. Ela foi ultrapassada por José Serra, um representante do PSDB histórico, de raiz.
Este não é um detalhe. E sim um fato crucial para compreender o papel que o PSDB desempenhou para os rumos do Brasil. O modo de operação do MDB é muito mais pesquisado, esmiuçado e conhecido, tanto por intelectuais que se dedicaram a ele, caso da tese do “pemedebismo”, do filósofo Marcos Nobre, quanto pelo público que acompanha a política de Brasília. No campo da Justiça, a Operação Lava Jato mostrou muito mais claramente como o MDB e o PT atuavam do que o PSDB.
O PSDB desempenhou um papel determinante para a ampla e múltipla crise vivida hoje pelo Brasil —e esse papel precisa ser iluminado. Não foi por acaso, nem sem a responsabilidade dos tucanos mais emplumados, que o rosto do PSDB deixou de ser o de FHC para se tornar o de Doria, com uma transição pela face de Geraldo Alckmin.
É também em 2010 que Eduardo Cunha enxerga uma brecha para ampliar seu poder de influência. Com o aval de Lula, esse personagem nebuloso vai peregrinar por templos evangélicos para afirmar que Dilma Rousseff é contra o aborto. É este novo “aliado” que lidera o contra-ataque e pede votos para Dilma nos redutos do evangelismo neopentecostal. Por pragmatismo eleitoral, ao se ver atacada, Dilma capitulou diante de seus princípios. Naquele momento, nem ela nem ninguém poderia saber, mas se iniciava ali, mesmo antes de Dilma se eleger para o primeiro mandato, sua triste marcha rumo ao impeachment.
Nos anos seguintes, Eduardo Cunha se tornaria o rei do “centrão” —grupo de parlamentares ligados menos à direita ou a qualquer ideologia e bem mais a seus interesses pessoais e privados, que tem como característica o apoio a qualquer Governo, em troca de cargos e favores. Em resumo: se elegem para se colocarem à venda. Eduardo Cunha uniria também as bancadas conservadoras da Câmara dos Deputados para barrar, na prática, o aborto legal. A partir de 2015, já como presidente da Câmara, tornou-se o principal ator do impeachment de Dilma Rousseff, depois de concluir que o PT não impediria a investigação de seus atos de corrupção. O impeachment foi movido por muitas razões e também paixões, entre elas a vingança do vilão.
2) O PSDB, Aécio Neves e o pré-bolsonarismo ou pré-trumpismo: a estratégia nojenta de duvidar do processo eleitoral
A cena produzida em 2010 marca a derrocada ética do PSDB, assim como assinala o ponto aparentemente sem retorno em que o partido se desliga do que existia de progressista em sua história. O momento em que o corpo das mulheres virou moeda eleitoral no Brasil tem seu impacto na história recente minimizado, até porque a maioria dos analistas é composta por homens.
Tucanos-pena-longa se omitiram ao testemunhar José Serra arrastar as asas —as suas e as do partido —nos esgotos, em 2010. E se omitiram mais uma vez quando outro membro do PSDB histórico, Aécio Neves, desferiu o ataque mais grave à democracia desde o fim da ditadura civil-militar. Aqueles brasileiros que hoje torcem a boca de indignação, ao acompanhar o estrago que Donald Trump tem feito na até então aparentemente sólida democracia dos Estados Unidos, deve olhar com mais atenção para o seu próprio quintal.
Aécio Neves, neto do ícone Tancredo Neves, teve a irresponsabilidade criminosa de duvidar do resultado eleitoral, sem uma única prova, abrindo espaço para toda a corrosão da democracia que veio depois. Quando Aécio Neves perdeu a eleição de 2014 para Dilma Rousseff, ele e seu partido cometeram o ato, ao mesmo tempo oportunista e irresponsável, de questionar o processo eleitoral sem nada que justificasse a suspeição do pleito. O Brasil, com as urnas eletrônicas, tem um dos mais confiáveis e eficientes sistemas de votação do mundo. Aceitar a derrota faz parte das regras fundamentais da democracia. E negá-la, como hoje faz Donald Trump, para assombro do mundo, e fez Aécio Neves, em 2014, é um ataque inaceitável ao voto de todos os eleitores.
Aécio iniciava ali uma nova crise, e isso já num cenário grave para o país, marcado por dificuldades econômicas crescentes e pela perda acelerada do apoio à presidenta reeleita. Naquele ato, abriu um precedente mais do que perigoso. Mais tarde, uma gravação revelaria Aécio afirmando que pediu a auditoria dos resultados eleitorais só “para encher o saco”. Aécio deve entrar para a história não só pelos seus crimes de corrupção, mas por esse gesto contra o país. Aécio Neves e José Serra devem ser lembrados como políticos que praticaram gestos determinantes para a destruição da democracia brasileira.
Quatro anos depois, em 2018, mais uma eleição. Durante a campanha, de dentro do hospital, onde se recuperava de um atentado a faca, Jair Bolsonaro gravou um vídeo questionando as urnas eletrônicas e sinalizando que poderia não aceitar o resultado do pleito, em caso de derrota. Seu vice, o general Hamilton Mourão, já havia dado uma entrevista à Globo News afirmando a possibilidade de um autogolpe do presidente eleito, com o apoio das Forças Armadas. Bolsonaro e os generais anunciavam ali que não aceitariam a derrota. A democracia, pelo visto, só valia se o resultado fosse positivo. O que planejavam não foi usado, já que Bolsonaro venceu a eleição de 2018 pelo voto. E, como venceu, suas suspeitas sobre as urnas eletrônicas desapareceram de imediato.
Nas recentes eleições municipais de 15 de novembro, perfis bolsonaristas nas redes sociais atuaram fortemente para lançar suspeita sobre o processo de apuração eleitoral, já sinalizando o que planejam para 2022. Bolsonaro, porém, não inventou esse truque absolutamente repugnante. No Brasil, o responsável atende pelo nome de Aécio Neves —e, ainda assim, o playboy de Minas conseguiu se eleger deputado federal em 2018, apesar de toda a ficha corrida, da qual faz parte a literalidade de uma mala cheia de dinheiro da corrupção.
3) O PSDB acelera rumo ao botox: tardia autocrítica de Tasso Jereissati, nenhum efeito concreto sobre o partido engolido por João Doria
O PSDB desempenhou um papel importante no impeachment de Dilma Rousseff e participou do Governo de Michel Temer (MDB). Quando aderiram aos movimentos das ruas a favor do impeachment e contra o PT, vestidos com a camiseta da seleção brasileira, políticos tucanos também se iludiram que a rua era deles. Não era nada disso, como logo descobririam.
Em setembro de 2018, um dos tucanos de plumagem grossa, Tasso Jereissati, afirmou, em entrevista ao jornalista Pedro Venceslau, no jornal O Estado de S. Paulo: “O partido cometeu um conjunto de erros memoráveis. O primeiro foi questionar o resultado eleitoral. Começou no dia seguinte [à eleição]. Não é da nossa história e do nosso perfil. Não questionamos as instituições, respeitamos a democracia. O segundo erro foi votar contra princípios básicos nossos, sobretudo na economia, só para ser contra o PT. Mas o grande erro, e boa parte do PSDB se opôs a isso, foi entrar no Governo Temer. Foi a gota-d’água, junto com os problemas do Aécio. Fomos engolidos pela tentação do poder”.
Autocrítica importante, ainda que tardia. E além de tardia, sem efeito, porque o PSDB apenas acentuou sua guinada às piores práticas com João Doria. Quem acha que controla as ruas não estudou nem a história nem a psicologia humana. Com telhado de vidro fino, tanto Serra quanto Aécio e o PSDB são hoje muito menores do que no passado, em todos os sentidos.
Pior do que não ter ressonância, porém, é perder o respeito. O PSDB que surgiu com a volta da democracia não existe mais. O que existe agora é outra coisa. Que coisa é essa, o presente já está mostrando. O PSDB atual tem o rosto, o estilo e a estética de Doria, um milionário exibicionista, esteticamente muito mais parecido com Trump do que com Bolsonaro, mas sem nenhum ponto de contato com Joe Biden, o moderado recém-eleito para a presidência dos Estados Unidos, por exemplo. É fácil imaginar como a face, o estilo e a estética devem horrorizar os tucanos ainda “finos” que sobrevivem como decoração nas prateleiras empoeiradas da história do partido. Mas se calaram demais diante de tantas atrocidades ao longo dos anos e hoje só lhes resta engolir sem cuspir.
Não se pode esquecer de Geraldo Alckmin, o padrinho traído de Doria no partido, que ao governar São Paulo mostrou que era tudo menos picolé de chuchu. É difícil trabalhar com a hipótese de “e se”, mas também faz sentido imaginar o que teriam sido os protestos de 2013, que mudaram o Brasil, não fosse Alckmin ter despachado sua Polícia Militar para bater em manifestantes e jornalistas, expulsá-los das ruas com gás lacrimogênio e spray de pimenta, num nível de violência que revoltou até mesmo a classe média, sempre tão conservadora.
Alckmin e uma das mais assassinas polícias do mundo —que também morre muito, é preciso dizer— foram protagonistas às avessas dos protestos. Mesmo assim, Alckmin não aprendeu. Em 2015 colocou a mesma truculenta PM para bater em crianças e adolescentes que protestavam contra uma reforma imposta à comunidade escolar sem suficiente consulta e debate, alunos de escolas públicas apanhando como se o país vivesse numa ditadura e como se manifestações não estivessem contempladas na Constituição. João Doria, o afilhado de Alckmin, se elegeu prefeito em 2016 fazendo discurso contra a política e os políticos e autoproclamando-se “gestor”, em mais um ataque à democracia.
Em 2018, Doria deixou sem pena a Prefeitura de São Paulo, depois de uma coleção de maldades como demolir um prédio do que chamam “Cracolândia”, ferindo pelo menos três moradores. João Doria elegeu-se governador literalmente colado a Jair Bolsonaro, no slogan “BolsoDoria”. Agora, de olho na disputa pela eleição presidencial de 2022, o governador de São Paulo descolou-se do atual presidente e desde então busca se apresentar, e também o partido, como o último reduto da moderação. Algo como “Doria, o pacificador”.
4) Bruno Covas e o vice-problemão: a prefeitura foi deixada para os vices nos últimos dois mandatos do PSDB
Para distanciar-se de Bolsonaro e da extrema direita, o PSDB precisa mostrar que ainda guarda na alma uma lembrança carinhosa do tempo em que era centro político. Neste sentido, apostar na eleição de Bruno Covas para a prefeitura de São Paulo foi uma jogada esperta. Covas tem o sobrenome certo, na medida em que é neto de Mário Covas, ex-governador de São Paulo e fundador do PSDB, portanto herdeiro de uma espécie de aristocracia do partido, hoje tomado por novos ricos com a cara cheia de botox. Se há várias críticas a se fazer a Bruno Covas no comando de São Paulo, é preciso reconhecer que ele está ainda longe de poder ser equiparado ao trio Doria-Aécio-Serra.
Espertamente, Bruno Covas tentou se afastar de Doria e de Bolsonaro para chegar ao segundo turno, mas a realidade acaba sempre se impondo. Além de outros partidos e figuras de direita, Covas tem hoje o apoio formal de Celso Russomanno (Republicanos), candidato derrotado no primeiro turno, declaradamente apoiado por Bolsonaro. O maior complicador, porém, atende pelo nome de Ricardo Nunes (MDB), seu candidato a vice. Ricardo Nunes foi imposto a Bruno Covas por João Doria, em sua articulação para que o MDB apoie o seu nome para a eleição presidencial de 2022. Nunes é um sapo de um tamanho difícil de passar na garganta para alguém que se anuncia como “centro” e como “moderado” e como “responsável”. Covas o defende e até afirma que Ricardo Nunes foi escolhido por ele mesmo, mas o sapo só aumenta de tamanho.
Em 2011, o vice da chapa de Covas foi acusado pela mulher de violência doméstica e um mês mais tarde ele mesmo acusou-a de lesão corporal. Hoje eles vivem juntos. Vereador influente na zona sul de São Paulo, Ricardo Nunes é alvo de um inquérito policial que investiga corrupção nas relações de políticos com entidades gestoras de creches conveniadas, caso conhecido como a “máfia das creches”. Na Câmara de vereadores de São Paulo atua contra os direitos das mulheres e dos homossexuais e transgêneros e apoia o ultraconservador projeto Escola Sem Partido, que busca criminalizar professores, dinamitar a educação sexual e reescrever a história do país.
Seria possível alegar que um vice influi pouco nos rumos do Governo, mas, no Brasil, apenas dois presidentes não foram substituídos pelo vice desde a redemocratização do país. Em São Paulo, dois vices viraram prefeitos porque o titular, do PSDB, resolveu concorrer a um cargo de mais poder. O próprio Bruno Covas era vice de João Doria, que deixou a prefeitura para concorrer ao cargo de governador, o que até hoje é pouco perdoado por seus eleitores. Antes dele, em 2006, foi a vez de José Serra deixar a prefeitura para concorrer ao Governo do Estado, e então assumiu um quase desconhecido Gilberto Kassab. Hoje, Kassab é um dos principais líderes dessa praga política que atende pelo nome de “centrão”, mas que é muito mais à direita do que próxima a qualquer ideia de centro ideológico.
Vale a pena observar que tanto Serra quanto Doria assinaram compromissos de que jamais fariam o que efetivamente fizeram. Serra assinou um documento afirmando que cumpriria o mandato até o fim. Mais tarde, ao ser cobrado por trair a própria assinatura, disse que era só um “papelzinho”. E Doria, durante a campanha, também assinou um documento a pedido do portal Catraca Livre: “Eu, João Doria, comprometo-me a cumprir integralmente meu mandato nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 caso seja eleito prefeito de São Paulo em 2016”. Bem, o que aconteceu todos sabem.
Diante do histórico do PSDB na prefeitura de São Paulo, faz bastante sentido o eleitor paulistano se preocupar que o prefeito acabe se tornando Ricardo Nunes. Com a biografia embrulhada e sob investigação, Nunes foi orientado —ou talvez proibido— de participar de debates com a vice da chapa opositora, Luiza Erundina. Uma das mais experientes políticas brasileiras, ex-prefeita de São Paulo, atual deputada federal, Erundina tem uma biografia de absoluta coerência, uma história pessoal fascinante e, para aumentar os pesadelos do PSDB, é uma debatedora afiada. A campanha para o segundo turno já começou com uma intensa campanha nas redes, com o título de “Exigimos o debate dos vices”, mas Ricardo Nunes e o PSDB deram uma de Jair Bolsonaro e fugiram da raia pelos fundos, o que também diz bastante a um eleitor minimamente atento.
Desde que Guilherme Boulos e Luiza Erundina chegaram ao segundo turno, o PSDB joga sujo, apostando no discurso sacana da suposta “radicalidade” de Guilherme Boulos. Considerar “radical” a luta por moradia, no sentido pejorativo, e buscar criminalizar movimentos sociais são gestos muito mais ligados à extrema direita truculenta de Bolsonaro do que a qualquer aceno de “moderação”. O antipetismo quase patológico apresenta o PT como o principal responsável pela crise múltipla vivida pelo Brasil nos últimos anos. Sem tirar a responsabilidade do PT, que é grande, o que hoje vive o Brasil está longe de ter um único responsável e muito menos exime a direita que se rearranja durante toda a história republicana para seguir no poder e não perder privilégios de raça e de classe. As ruínas construídas pelo Brasil ao longo dos séculos são um bem-sucedido trabalho de longo prazo das elites conservadoras.
5) Uma eleição municipal que é nacional: o que está em jogo no voto de São Paulo diz respeito ao futuro de todo o Brasil
O antipetismo dos últimos anos permitiu que o PSDB fosse menos cobrado pelos seus ataques à democracia. Por isso é urgente refletir sobre o papel do PSDB no momento em que está em curso mais um rearranjo da direita que apoiou Bolsonaro e hoje se descola quase vergonhosamente dele para disputar 2022 se vendendo como “pacificadora” e “moderada”. Doria é o expoente deste movimento. Era BolsoDoria há menos de dois anos, hoje é anti-Bolsonaro desde bebezinho. João Doria, como Geraldo Alckmin aprendeu duramente ao ser traído pelo afilhado, é como Jair Bolsonaro: só tem um partido, que é ele mesmo.
A surpreendente chegada de Guilherme Boulos e do PSOL ao segundo turno da maior, mais rica e mais influente cidade do país foi um susto para o projeto de poder de João Doria e de seus mais novos sócios. Nos últimos meses, o atual governador de São Paulo, o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro Sergio Moro e o apresentador da TV Globo Luciano Huck tentam costurar uma candidatura com o mote da “moderação” e da “união do país”. Uma candidatura proposta como sendo de centro.
Doria e seus amigos da direita travestida de centro estão muito preocupados com o que dirão as urnas no próximo domingo, 29 de novembro. Eles davam a esquerda por enterrada, com boas razões, já que até esse momento os partidos de esquerda e de centro-esquerda não conseguiam se entender para fazer oposição real a Bolsonaro. A consolidação de um novo líder, fora do guarda-chuva do PT, aponta que a esquerda pode chegar a 2022 com uma frente ampla e chances reais de disputar a sucessão de Bolsonaro —ou de pelo menos atrapalhar bastante os acertos da direita consigo mesma. O apoio de expoentes como Lula (PT), Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede) e Flávio Dino (PCdoB), mostram que uma frente ampla à esquerda se tornou realidade no segundo turno da eleição de São Paulo e já está no campo das possibilidades também para a sucessão de Bolsonaro.
Mesmo que o PSOL perca, o cenário político mudou no Brasil. Se Guilherme Boulos e Luiza Erundina vencerem, São Paulo é uma força poderosa. No próximo domingo, os eleitores paulistanos vão determinar muito mais do que o futuro da cidade de mais de 12 milhões de habitantes. É o futuro do Brasil e de mais de 210 milhões de pessoas que já está sendo tecido no presente.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
El País: Biden lança um Governo para enterrar a era Trump: “Os EUA estão de volta, prontos para liderar o mundo”
O presidente eleito delineia um Gabinete antagônico ao ideário do republicano, embora, por enquanto, sem gestos à ala esquerdista do Partido Democrata
O processo de transmissão de poderes começou formalmente nos Estados Unidos, com um Donald Trump finalmente derrotado pela realidade, que concordou em colocar em movimento a maquinaria da transferência, e um presidente eleito, Joe Biden, imerso na criação de sua equipe de Governo. O perfil do Gabinete que começa a tomar forma em Washington ainda não tem gestos para a ala esquerdista do Partido Democrata, aposta em veteranos da Administração de Barack Obama, mas deixa clara sua missão: enterrar a era Trump. “Os Estados Unidos estão de volta e prontos para liderar o mundo”, disse Biden, ao apresentar seus primeiros escolhidos.
As nomeações conhecidas até agora representam uma espécie de emenda a toda a estratégia externa de Trump e sua guinada isolacionista. Um adeus ao ‘América primeiro’ que caracterizou a doutrina do republicano. Antony Blinken, nomeado chefe da Diplomacia, é um paladino do multilateralismo; como Jake Sullivan, que trabalhou para Hillary Clinton no Departamento de Estado e será assessor de Segurança Nacional. Antigos membros da Administração de Barack Obama, ambos encarnam a doutrina, ou melhor, o estilo, que na época um funcionário democrata resumiu como “liderar por trás” no caso da Líbia e que muitos de seus detratores usaram como argumento de crítica. A própria criação de um czar do meio ambiente ―o ex-secretário de Estado John Kerry― é o sinal definitivo de que a era Biden tentará reverter boa parte das políticas de Trump, que por sua vez desmantelou os planos ambientais de Obama.
“Esta é uma equipe que manterá nosso país seguro e é uma equipe que reflete que os Estados Unidos estão de volta. Prontos para liderar o mundo, não para se retirar dele. Prontos para enfrentar nossos adversários, não para rejeitar nossos aliados e prontos para defender nossos valores”, destacou Biden durante a cerimônia de apresentação de seus primeiros indicados, em Wilmington (Delaware), a cidade do presidente eleito, de onde desenha o futuro Governo. De fato, acrescentou o democrata, “nas conversas por telefone que tive com líderes mundiais desde que venci as eleições, fiquei surpreso com o quanto esperam que os Estados Unidos recuperem o papel histórico de líder mundial”.
As intervenções posteriores ressaltaram essa vocação. Blinken defendeu que os Estados Unidos devem se comportar com “humildade e confiança” no mundo. Humildade, disse ele, porque eles não podem “resolver os problemas sozinhos e que é preciso cooperar com outros países”. E confiança porque, apesar disso, os Estados Unidos, na sua melhor versão, “são o país com maior capacidade de unir o resto para enfrentar os desafios do nosso tempo”. Alejandro Mayorkas, que será o primeiro hispânico a dirigir o Departamento de Segurança Interna, disse que os Estados Unidos devem “avançar” em sua “orgulhosa história” como país de “boas-vindas”. Kerry prometeu que Biden “confiará em Deus”, mas “também na ciência”. “E a afro-americana Linda Thomas-Greenfield, nomeada embaixadora nas Nações Unidas, proclamou: “O multilateralismo está de volta. A diplomacia está de volta. Os Estados Unidos estão de volta”.
Voltar, regressar. Esses foram alguns dos verbos mais repetidos. Até agora os nomes apontam mais para a restauração de uma era do que para o início de outra. Nenhum dos altos cargos tornados públicos significou uma integração dos setores mais progressistas do Partido Democrata, embora haja nomeações pendentes. O círculo do senador esquerdista Bernie Sanders fez saber que o veterano político de Vermont gostaria de ser secretário do Trabalho e outras fontes fizeram circularam neste outono a candidatura da senadora Elizabeth Warren como possível secretária do Tesouro, embora a própria Warren tenha comemorado a nomeação de Janet Yellen.
O Gabinete de Biden deve ser referendado pelo Senado, que atualmente tem maioria republicana, e perfis demasiado inclinados à esquerda enfrentariam dificuldades. Marco Rubio, senador da Flórida e candidato à presidência em 2016, adotou um tom trumpiano de crítica, agitando a bandeira antiestablishment. “Os escolhidos por Biden para o Governo frequentaram as universidades da Ivy League [de elite], têm bons currículos, vão às conferências certas e serão educados cuidadores do declínio dos Estados Unidos”, escreveu em sua conta de Twitter Rubio, que se apresenta como aspirante a manter o legado trumpista para 2024. “Apoio a grandeza dos Estados Unidos e não tenho interesse em voltar à ‘normalidade’ que nos deixou dependentes da China”, acrescentou.
Na realidade, o vínculo dos futuros membros do Governo, além de Biden, com a nata da educação universitária norte-americana ―seja este um sintoma melhor ou pior― é um dos poucos elementos de continuidade entre a era Trump e a que Biden começa a esboçar, pelo menos por enquanto. O secretário de Estado da atual Administração republicana, Mike Pompeo, formou-se em Harvard; o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, também, e o procurador-geral William Barr, em Columbia, por exemplo. O próprio presidente Trump estudou na escola de negócios Wharton, da Universidade da Pensilvânia, membro do seleto grupo de oito universidades que fazem parte da Ivy League.
Com a transferência de poderes finalmente iniciada, o dirigente republicano cumpriu nesta terça-feira um dos últimos ritos presidenciais que o aguardam, o perdão de dois perus por ocasião do Dia de Ação de Graças, que se comemora nesta quinta-feira. Um Trump ciente de que o fim está próximo aproveitou o discurso para lançar um apelo a favor da “América primeiro” que marcou o seu tempo e que, disse ele, “não deveria ser abandonada”.
Embora continue sem aceitar publicamente o resultado eleitoral e ameace uma nova intentona nos tribunais, sua sorte está decidida. Se havia alguma dúvida, basta ver como a Bolsa de Valores de Nova York reagiu na terça-feira à luz verde que o republicano acabou dando na noite anterior para que todos os protocolos de transição de um Governo a outro fossem finalmente ativados. O Dow Jones, um dos índices de referência de Wall Street, bateu recorde impulsionado pelo cenário de estabilidade que se abre na maior potência mundial depois de vários dias de otimismo com as notícias sobre as vacinas contra o coronavírus. Enquanto isso, Pensilvânia, Nevada e Carolina do Norte se juntaram aos Estados que já confirmaram os resultados. A era Trump começa a se desfazer.
El País: Derrota de Trump abala o populismo no mundo, mas não o derruba
Os Governos e partidos da Europa e da América Latina que recebem com frustração o afastamento de sua grande referência continuam desfrutando de considerável popularidade
A saída de Donald Trump da Casa Branca deixou os movimentos populistas sem sua liderança mais visível no poder mundial. Alguns líderes e Governos confiavam com entusiasmo na reeleição do presidente dos Estados Unidos, com destaque para Hungria, Polônia e Brasil. Não saiu como esperavam. Mas sua derrota está longe de ser o fim das tendências eleitorais que nos últimos anos colocaram os partidos de extrema direita no comando de vários executivos ou na liderança da oposição.
A vitória de Trump em 2016 foi um presente para líderes como Jair Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria, Vladimir Putin na Rússia,Narendra Modi na Índia e Rodrigo Duterte nas Filipinas. O presidente do país mais poderoso do mundo ingressou em um clube de contornos difusos formado por dirigentes nacional-populistas. “Isso complica um pouco suas vidas porque eles perdem seu ídolo”, diz o analista Oliver Stuenkel, colunista do EL PAÍS, que acrescenta: “É óbvio que eles vão analisar os erros que Trump cometeu e que farão o que for preciso para evitá-los. Trump não tinha a disciplina necessária para permanecer no poder. Com um pouco mais de disciplina, de tenacidade, de pragmatismo, poderia ter vencido as eleições”.
Na Europa, em particular, tanto os partidos nascidos antes da vitória do presidente dos Estados Unidos em 2016 como aqueles que cresceram no rastro de seu mandato continuam a gozar de uma importante parcela de popularidade, como é o caso de Orbán. E embora o drama da covid-19 tenha deixado em segundo plano seus proclamas identitários e xenófobos, analistas alertam que a tremenda ressaca econômica e social que a pandemia deixará poderá revitalizar a força eleitoral de partidos como o Reagrupamento Nacional, na França, a Liga na Itália, a Alternativa pela Alemanha (AfD) e o Vox, na Espanha.
A vitória de um político com o perfil de Trump há quatro anos teve mais repercussão entre os populismos do que a derrota agora do republicano. Pawel Zerka, analista do Conselho Europeu de Relações Exteriores, acredita que o ímpeto de 2016 sobreviverá à saída do atual inquilino da Casa Branca “porque Trump mostrou que não há tabus e isso torna mais elegíveis os populistas europeus ou de qualquer outra parte do mundo”.
Além do mais, a hidra populista agora tem muito mais cabeças, tanto visíveis como soterradas. E sua influência não se limita mais aos extremos do arco político, pois também está no cerne das formações tradicionais à direita e à esquerda. Tanto o Partido Popular Europeu (PPE) como os Socialistas (S&D) e os Liberais (Renew) abrigam grupos e líderes claramente identificados com a corrente populista mundial que entre 2016 e 2018 assumiu o poder nos Estados Unidos, Brasil e Filipinas, ficou às portas do Governo na Holanda e na Itália e conseguiu a saída do Reino Unido da UE.
“Sofreram um duro golpe com a derrota de Trump, mas o trumpismo e o populismo continuam vivos”, concorda Shada Islam, analista e fundadora do New Horizons Project, uma empresa de consultoria e serviços estratégicos com sede em Bruxelas. Islam acredita que os partidos tradicionais cometeriam um erro se dessem por derrotadas as candidaturas eleitorais populistas. E recomenda que a presença de Joe Biden na Casa Branca seja aproveitada “para se estabelecer uma corrente transatlântica progressiva que se contraponha à articulação internacional que o populismo organizou durante o mandato de Trump”.
A pressão populista no Velho Continente atingiu seu auge entre 2016 e 2019: o Brexit se impôs no referendo do Reino Unido, a extrema direita de Marine Le Pen parecia estar às portas do Eliseu na França e a de Geert Wilders aparecia com possibilidades de assumir o Governo da Holanda. O líder da extrema direita italiana, Matteo Salvini, alcançou a vice-presidência do Governo (vice-premiê) de seu país. Além disso, Steve Bannon, ex-conselheiro de Trump, agora caído em desgraça por seus problemas com a Justiça, desembarcou na Europa com a intenção de encorajar uma onda populista que arrasasse nas eleições para o Parlamento Europeu.
Mas as previsões mais catastróficas não se concretizaram. A vitória de Emmanuel Macron na França marcou um ponto de inflexão no avanço dos populistas, que também não conseguiram se tornar uma força-chave no Parlamento europeu. Bannon partiu em retirada. E Salvini caiu do Governo por um erro de cálculo eleitoral. A reeleição de Trump significaria o fim da sequência de reveses. Mas a maré de votos democratas impediu seu segundo mandato, apesar do bom resultado obtido por ele.
“Uma das consequências positivas do populismo é que provoca uma grande mobilização do restante do eleitorado”, diz Zerka. Ele recorda que a grande participação nos Estados Unidos também ocorreu nas eleições presidenciais de julho na Polônia, onde o populismo nacionalista liderado por Jaroslaw Kaczynski continua vencendo as eleições, mas se depara com uma resistência popular cada vez maior.
A Europa Central e do Leste se tornou um dos principais celeiros do voto populista no âmbito da UE. E o único onde os dirigentes mais próximos de Trump estão no poder, seja de forma arraigada, como Orbán na Hungria, ou de maneira instável, como Janez Jansa na Eslovênia. Tanto Orbán quanto Jansa pertencem ao PPE. Mas suas estratégias políticas são muito mais semelhantes ao populismo de Trump do que ao conservadorismo tradicional da primeira-ministra alemã, Angela Merkel.
“Sem dúvida, a vitória de Biden complicará a futura atitude política de líderes como Orbán ou Jansa”, prevê Boris Vezjak, filósofo e professor da Universidade de Maribor, na Eslovênia. Vezjak acredita que a Hungria, a Eslovênia e outros países da Europa Central terão mais dificuldade em continuar com políticas que, na opinião deste filósofo, “defendem novas formas de autoritarismo e a chamada democracia iliberal, com a liberdade individual limitada e subordinada a uma cultura nacional e à tradição”.
Os populistas europeus perderão, de cara, o incentivo que recebiam da Administração Trump por meio de seus embaixadores e enviados no Velho Continente. “Os embaixadores de Trump se dedicavam a propagar o populismo, a insultar a UE e a tentar erodir o sistema democrático em geral”, acusa Islam. Talvez o mais beligerante de todos os diplomatas procedentes de Washington tenha sido Richard Grenell, estrategicamente colocado em Berlim e enviado especial aos Bálcãs para mediar o conflito entre a Sérvia e Kosovo. Grenell chegou a ser descrito na Alemanha como “uma máquina de propaganda tendenciosa”. Assim que chegou a Berlim e em meio à ascensão da AfD, de extrema direita, Grenell afirmou que parte de sua tarefa como diplomata era “dar poder a outras forças conservadoras na Europa”, aludindo à substituição de partidos tradicionais como o de Merkel.
A perda do incentivo diplomático de Washington e do apoio financeiro que Bannon tentou canalizar pode enfraquecer os populistas europeus. Entre os potenciais prejudicados está o atual primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que, embora não se enquadre na classificação de populismo puro, mostrou sem rodeios sua boa sintonia com Trump. Depois do Brexit, Johnson esperava chegar a um rápido e vantajoso acordo comercial com os Estados Unidos, graças a essa relação privilegiada com a Casa Branca, que obrigasse a UE a aceitar termos semelhantes. O pacto de Londres com Washington não chegou e a entrada de Biden deixa essa possibilidade ainda mais distante, o que forçará Johnson a ajustar sua posição negociadora com Bruxelas a menos de 50 dias da consumação, em 31 de dezembro, da saída do Reino Unido da UE.
Zerka também acredita que os ultraconservadores norte-americanos vão se concentrar nos próximos quatro anos na oposição a Biden e na tentativa de retornar à Casa Branca, o que deixará líderes próximos a Trump, como Johnson, Orbán e Kaczynski, sem interlocutores disponíveis em Washington. Islam, por sua vez, está convencida de que “a colaboração populista transatlântica se intensificará porque essas forças têm uma agenda de longo prazo e a experiência dos Estados Unidos lhes mostrou que aquelas que ainda não tomaram o poder podem fazer isso”.
Os analistas concordam em que a grave crise econômica causada pela pandemia, cujo maior impacto poderia ocorrer no primeiro semestre de 2021, dará ao populismo europeu a oportunidade de recuperar o terreno perdido. Nos últimos meses se viu deslocado pelas medidas de ajuda emergencial e de estímulo fiscal adotadas pela maioria dos Governos. “Mas se a pandemia se prolonga, a frustração aumentará e os líderes populistas estão cientes de que poderão transmitir sua mensagem”, prevê Zerka. Sem Trump e com a pandemia no meio, o populismo europeu está abalado, mas não afundado. Somente agachado.
Revés para Bolsonaro
Fora da Europa, o Brasil é um dos principais expoentes do populismo. O resultado eleitoral dos Estados Unidos representa para Bolsonaro, além de um descontentamento pessoal, um revés político e diplomático. Primeiro, perde seu aliado mais estratégico e poderoso. E também “a narrativa de que esta é uma espécie de Governo do futuro, na vanguarda do processo político, foi derrotada”, explica Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas. Uma boa notícia para os que acreditam na democracia e nas sociedades abertas.
A chegada de Trump à Casa Branca em 2017 deu asas à vitória eleitoral de Bolsonaro, seu discípulo mais fiel, mas não é o único fator que a explica. O brasileiro se encaixa perfeitamente na tradição do caudilho latino-americano. A primeira consequência para o Brasil de Bolsonaro é que, sem um Trump no poder atraindo quase toda a atenção, o escrutínio sobre o gigante latino-americano aumentará. E “com Biden apoiando o multilateralismo e o meio ambiente, o custo da atuação radical do Bolsonaro no exterior vai aumentar muito”, acrescenta o analista.
Mas moderar suas posições dentro e fora do Brasil implica um desgaste do apoio fundamental que lhe dão seus partidários mais extremistas. A política externa brasileira deu um giro enorme neste biênio para focar em questões que, em sintonia com a Casa Branca trumpista, ativam sua base eleitoral mais leal, como as críticas pontuais e estridentes à China, o alinhamento com Israel, a defesa de valores conservadores cristãos, a batalha contra o feminismo e os direitos das minorias.
O Brasil ficará isolado como nunca antes, mas a popularidade do presidente tem melhorado, apesar de sua recusa explícita em administrar a pandemia que causou mais de 160.000 mortes, enquanto os desempregados agora já são 14 milhões. Bolsonaro deu mostra de seu instinto político ao aprovar rapidamente um dos maiores pacotes de ajuda pública do mundo, o que amorteceu o golpe e fez sua popularidade disparar.
Outro grande aliado de Trump na América Latina é Andrés Manuel López Obrador, no México. A vitória de Biden abalou a política externa do Governo mexicano, que mantém sua recusa em felicitar o democrata, informa Jacobo García. A reação de Trump após a derrota remete ao protesto público que López Obrador empreendeu em 2006, quando perdeu a eleição presidencial para Felipe Calderón por uma estreita margem de 250.000 votos e mobilizou milhares de seguidores nas ruas. Isso provocou uma crise institucional sem precedentes.
Ao mesmo tempo, a derrota de Trump exige de López Obrador um jogo de cintura política incomum para ele. O presidente terá de reciclar as boas relações que estabeleceu com Trump, a quem sempre se refere em termos elogiosos como um presidente respeitoso. As boas relações que afirma ter com ele significaram, no fundo, suportar em silêncio cada um dos ataques de Trump e permitir que o republicano usasse desde sua primeira campanha em 2016 os insultos ao México como forma de somar votos entre o eleitorado mais racista.
Jamil Chade: Eras pós-pandemias trouxeram sementes do nazismo e novas geopolíticas. E agora?
Em 2020, há uma diferença fundamental entre tudo o que ocorreu na história da humanidade e a atual crise: temos a nosso alcance o avanço inédito da ciência e mais consciência dos erros passados
2019 foi o ano dos protestos. Do Chile à Catalunha, de Paris ao Sudão as ruas arderam. Mas muitos desses movimentos foram silenciados pela pandemia e o cheiro da morte que o vírus deixou. Entre líderes políticos, movimentos sociais e mesmo serviços de inteligência, a pergunta que permanece é uma só: esses protestos serão retomados uma vez superado o vírus e quais abalos políticos serão sentidos como eco da crise sanitária? Ao longo dos séculos, surtos e epidemias transformaram países, populações e o destino de guerras. Basta dizer que nas cidades mais afetadas pela pandemia da gripe espanhola de 1918 na Alemanha, há indícios de que os primeiros brotes do nazismo tomaram forma, como mostrou um estudo realizado pelo FMI.
O resgate da história também nos revela que não são raras as ocasiões em que pandemias foram seguidas por revoltas e distúrbios sociais, além de uma nova ordem mundial.
Em 2020, há uma diferença fundamental entre tudo o que ocorreu no passado e a atual crise: o avanço inédito da ciência. Em um tempo recorde, o mundo terá mais de uma vacina, no que está sendo considerado dentro da OMS como a vitória definitiva da ciência contra a ideologia. Também ficou claro que o populismo mostrou suas limitações nas urnas - tanto no Brasil como nos EUA - e que lideranças robustas como a de Angela Merkel ou Jacinda Arden se fortaleceram.
Mas, ainda assim, resgatar a história pode servir de guia, principalmente diante de um mundo profundamente desigual que ameaça, uma vez mais, deixar bilhões de pessoas às margens do avanço da medicina. Uma dessas vacinas, por exemplo, exige que seja estocada em um local com uma temperatura de -70 graus Celsius. Um desafio que mais parece um capítulo de ficção científica para 900 milhões de pessoas pelo mundo que ainda fazem suas necessidades básicas ao ar livre por falta de simples privadas e banheiros.
Susan Wade, professora de história da Keene State College, traça um paralelo entre a situação atual e a revolta na Inglaterra de 1381. Naquele momento, a peste bubônica havia feito milhares de mortes, um tragédia que se somava a uma exploração do trabalho de camponeses. “E como hoje, a maioria da riqueza era detida por uma elite que compreendia cerca de 1% da população”, disse. Quando uma doença mortal começou a alastrar, foi pedido aos mais vulneráveis e impotentes que pagassem a conta da crise. “Eventualmente, os camponeses decidiram responder”, apontou. Essa, portanto, foi a origem da revolta camponesa na Inglaterra.
Entre historiadores, há ainda um acirrado debate sobre o papel de uma epidemia como um dos fatores que poderiam ter contribuído para uma destruição final do Império Romano e jogado a Europa em sua era da escuridão. A partir do ano 541, uma peste ganhou força no Egito, atingiu Alexandria e outras cidades, até chegar à região palestina e subir até Constantinopla, a então capital do Império Romano Oriental.
O imperador Justiniano, que havia chegado ao trono com a ambição de resgatar a glória do Império Romano, foi um dos infectados. Ele sobreviveu. Uma parcela dos especialistas, porém, aponta que o que não sobreviveu foi seu império, derrotado em parte por um micro-organismo. Sem soldados diante da peste e com a fome que se alastrava, ele viu territórios conquistados serem tomados por revoltas e seu poder minado em todas essas regiões.
Para o historiador Procopius, no auge da crise sanitária a cidade de Constantinopla - atualmente Istambul - perdia dez mil pessoas por dia. A capital teria perdido 40% de sua população e, pelo império, 25% dos habitantes não sobreviveram.
Nos últimos anos, o relato de Procopius é considerado como exagerado. Historiadores da Universidade de Jerusalém e de Princeton, por exemplo, insistem que não existem evidências para provar o que a narrativa construída ao longo de séculos estabeleceu em termos de mortes. Para eles, portanto, não se pode atribuir à peste o fim do Império Romano. A realidade, porém, é que por quase duzentos anos a peste assolou a região em diferentes ondas e gerou diferentes revoltas. Quando finalmente desapareceu, o mundo vivia uma nova geopolítica.
Na Itália, um outro estudo traça uma ligação entre pandemia, surtos e eclosão de rebeliões. “Em diferentes graus, a maioria das grandes epidemias do passado parecem ter sido incubadoras de agitação social”, apontou Massimo Morelli, professor de ciência política na Universidade de Bocconi, e Roberto Censolo, professor da Universidade de Ferrara.
Num estudo publicado na revista acadêmica Peace Economics, Peace Science and Public Policy, os especialistas analisaram protestos e agitações sociais no período próximo a 57 epidemias pelo mundo. Isso incluiu desde a Peste Negra em no século 14 até a pandemia de gripe espanhola de 1918.
Desses 57 casos, apenas quatro revoltas não estariam claramente relacionadas com os respectivos surtos, o que leva os especialistas a acreditarem que existe uma possível relação entre as epidemias e distúrbios na sociedade civil.
No caso específico da covid-19, os acadêmicos deixam claro que as restrições e o impacto econômico “estão causando um sentimento latente de descontentamento público”. Para Morelli e Censolo, teorias de conspiração em torno do vírus e o seu apoio por parte de alguns líderes políticos são “sintomas de fricções potencialmente perigosas dentro da sociedade”.
Onda de ódio
Já Samuel K. Cohn, professor de história medieval da Universidade de Glasgow, confirmou que “a doença mais mortal e devastadora da Europa, a Peste Negra de 1347-51, desencadeou violência em massa: o assassinato de catalães na Sicília, e de clérigos e mendigos em Narbonne e outras regiões”, além de ataques contra judeus, com mais de mil comunidades na Renânia, na Espanha e França".
Antes mesmo do final da atual pandemia, a ONU já alerta que a crise sanitária abriu uma onda de violência. Num alerta com forte tom de desespero, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, afirmou que a pandemia está gerando um “tsunami de ódio e xenofobia”, além da criação de bodes expiatórios e ataques contra médicos, enfermeiras e jornalistas.
Segundo os levantamentos da entidade, a atual crise aprofundou o sentimento contra estrangeiros e que, das redes sociais, o ódio passou para as ruas. Entre os fenômenos estão atos anti-semitas com teses de conspiração, além de ataques contra muçulmanos. Em alguns países, Guterres aponta que os migrantes e refugiados foram apontados como os culpados pela proliferação do vírus, inclusive com serviço médicos negando acesso aos tratamentos médicos.
Outra dimensão do ódio tem sido os ataques contra idosos. Contra essa população surgiram memes desprezíveis, sugerindo que eles também são os mais dispensáveis.
Os estudos de Cohn revelam que, de fato, a xenofobia foi também uma marca da peste negra, com judeus “trancados em sinagogas ou reunidos em ilhas fluviais e queimados até à morte” por serem os supostos responsáveis pela crise sanitária. “Cruelmente, os tribunais de justiça condenaram coletivamente os judeus por envenenamento de poços e de alimentos”, destacou.
Já nos séculos XVI e XVII, a crise sanitária na Europa desencadeou mais uma vez rumores de propagação maliciosa da peste. Desta vez, o alvo da ira eram médicos e mesmo coveiros, acusados de perpetuarem a doença por uma variedade de razões, incluindo para se enriquecerem.
Cohn conta como a praga de 1575 levou que “ciganos, negros, cantores de rua, atores e prostitutas” fossem proibidos de entrar em determinadas cidades.
Logo vieram ainda as acusações mútuas. Fora de Nápoles e pelo território que hoje se designa como Itália, o surto era conhecido como a doença napolitana. Na Alemanha, ela era chamada de doença polonesa, enquanto na Polônia era conhecida como a doença alemã.
Siga a cobertura em tempo real da crise da covid-19 e acompanhe a evolução da pandemia no Brasil. Assine nossa newsletter diária para receber as últimas notícias e análises no e-mail.
A Gripe Espanhola de 1918 e 1919 também deixou suas marcas sociais e políticas. Em seu livro de 2017, Pale Rider, a escritora Lauren Spinney revela como a pandemia pode ter sido fundamental para a instabilidade entre as duas guerras mundiais. Um dos aspectos que a crise ressaltou naquele momento foi o egoísmo como forma de sobrevivência. Uma vez terminada a crise, muitas sociedades fizeram a opção deliberada por esquecer o que havia ocorrido.
Entre os impactos, historiadores estimam que os ataques da população branca contra afro-americanos no verão de 1919 em várias cidades dos EUA ainda têm uma relação direta com a doença. Aquele período de violência ficou conhecido como “Red Summer”.
Um estudo realizado pelo FMI correlaciona as cidades mais afetadas pela pandemia de 1918 na Alemanha, as sementes do nazismo que derivaram na Segunda Guerra Mundial. O levantamento indicou que as cidades com o maior número de vítimas pela doença registraram cortes em gastos sociais. E, em seguida, foram nesses locais que se viu um “aumento na parcela de votos conquistados por extremistas de direita”. “As mortes causadas pela pandemia de gripe de 1918-1920 moldaram profundamente a sociedade alemã”, diz o documento, que ainda sugere que a doença pode ter mudado as “preferências sociais” das camadas mais jovens da sociedade, além de ter despertado um sentimento contra estrangeiros.
O estudo não é conclusivo. Mas foi amplamente usado por Kristalina Georgieva, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, para apelar aos governos que destinem tudo o que puderem para aliviar o impacto do vírus.
Hoje, mesmo com a vacina, o mundo pós-pandemia também é alvo de um redesenhar. Se bilhões de pessoas estiveram fechadas por meses, a disputa por poder não foi colocada em quarentena em nenhum momento. A história do século 21 é, de fato, radicalmente diferente das pandemias da Idade Média ou do início do século 20. Mas o que ela mostra é que abandonar populações inteiras diante de uma sensação de que a crise está solucionada para uma parcela privilegiada do mundo é o caminho mais seguro para a tradução do profundo mal-estar em protestos e revoltas.