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El País: Lula volta ao ringue político e se prepara para testar influência nas municipais
Ex-presidente escolhe data pátria para polarizar com Bolsonaro. Frente ao alcance do auxílio emergencial, tem o desafio de manter viva a memória da bonança dos anos petistas
Afonso Benites, El País
Na semana em que se comemorou a independência do Brasil, um movimento atraiu as atenções. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) claramente mostrou que estava de volta ao ringue político-eleitoral. Aproveitou a data patriótica do 7 de Setembro para, em um vídeo divulgado nas redes sociais, fortalecer a polarização com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Apostou como nunca num discurso pró-minorias, teceu críticas ao Governo e ao manejo da pandemia, falou de economia e política externa. Ensaiou apontar soluções. Fez questão de publicar versões do discurso em espanhol, inglês e francês. Com seus 23 minutos de vídeo, lançou de vez um questionamento: Lula será candidato à sucessão presidencial em 2022? A pergunta foi feita até pela consultoria de risco político internacional Eurasia. No que depender do Judiciário, a resposta hoje seria não. Ele tem condenações por corrupção em segunda instância na Justiça e, portanto, é considerado ficha-suja. Pelas regras atuais, quem for condenado por um colegiado de juízes não pode disputar o pleito.
E os embates com a Justiça estão longe de acabar. Além de ser réu em seis processos, nesta segunda a força-tarefa da Operação Lava Jato resolveu fazer uma nova denúncia contra Lula, acusando-o de lavagem de dinheiro ao receber doação da Odebrecht para seu instituto. A defesa do petista rebateu: disse que os procuradores não têm nenhuma prova nas mãos e apenas reagem aos reveses recentes que a Lava Jato sofreu no Supremo Tribunal Federal.
De fato, o clima tem estado mais hostil para a Lava Jato na mais alta Corte. O que eleva a esperança dos petistas de que Lula possa sonhar com a candidatura é uma possível vitória no Supremo nos processos que pedem que o ex-juiz Sergio Moro, que deixou a magistratura para se tornar ministro de Bolsonaro, seja considerado suspeito por ter condenado pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Um deles, que deve ser julgado até novembro, trata da sentença de nove anos e meio de prisão que Moro emitiu contra Lula no caso do tríplex do Guarujá ―a condenação foi aumentada para 12 anos posteriormente pela segunda instância. Esse processo tramita na Segunda Turma do STF, já tem dois votos contrários a Lula (Cármen Lúcia e Edson Fachin) e duas sinalizações de apoio ao petista (Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski). Mendes pediu vistas do processo e prometeu levá-lo a julgamento antes de novembro, quando o outro ministro da turma e potencial voto de minerva, Celso de Mello, deverá se aposentar compulsoriamente.
Para o cientista político Paulo Cesar Nascimento, professor da Universidade de Brasília (UnB), a fala do ex-presidente serve para incentivar o clima de radicalização e polarização com Bolsonaro, num momento em que o presidente vive um momento de alta de popularidade. O sucesso da estratégia ainda é incerto. “O Lula está de volta ao ringue. Mas ele já não depende mais só de si mesmo. Sua vida está presa ao que o Judiciário decidir. Enquanto isso, o PT continua se prendendo a figura de seu principal líder”. E essa polarização é que os dois lados querem.
Na direção petista, há a forte defesa da candidatura do ex-presidente. “Não há outra liderança que faça um contraponto ao Bolsonaro como ele faz. Por isso insistimos no nome do Lula”, diz a presidenta da legenda, a deputada federal Gleisi Hoffmann (PT-PR). A aparição de Lula nas redes sociais estava sendo programada há alguns meses. E a ideia era de parecer com um discurso de estadista, preocupado com a população. “Há tempos ele queria falar do Brasil, para o Brasil. E principalmente da questão da soberania, da democracia e da liberdade. Queria fazer um discurso que tivesse começo, meio e fim”, afirmou a deputada.
Prova de fogo
Um teste para saber se seu discurso ainda está reverberando junto aos seus eleitores será nas eleições municipais de novembro próximo. Lula será cabo eleitoral nas principais cidades em que o PT tiver candidato. Com a pandemia de coronavírus, sua participação será virtual, com a gravação de vídeos para seus aliados. Como estratégia de fortalecer sua hegemonia na esquerda, o PT prevê lançar concorrentes às prefeituras de 1.531 dos 5.568 municípios brasileiros ―mas,mesmo em bastiões tradicionais como São Paulo, enfrenta problemas, com candidatos pouco competitivos. A legenda deve fazer poucas alianças com outras siglas, como o próprio Lula sinalizou no discurso de 7 de setembro. Em nenhum momento ele tratou do tema em sua fala. O mais próximo que chegou disso, conforme a própria presidenta da legenda, foi quando disse: “Não contem comigo para qualquer acordo em que o povo seja mero coadjuvante”.
Oliver Stuenkel: Vitória de Biden nos EUA deixaria Brasil isolado no Ocidente
Pragmatismo do candidato democrata não seria suficiente para evitar uma ruptura na relação entre Washington e Brasília
Com menos de cinquenta dias até o pleito presidencial nos Estados Unidos, fica cada vez mais evidente que a reeleição do presidente Trump está em perigo. A reviravolta de 2016, quando Trump superou Hillary Clinton de última hora, sugere que é preciso ter cautela, mas a vantagem de Biden na maioria dos estados decisivos indica que o cenário mais provável hoje é uma vitória do candidato democrata. O Brasil, cujo presidente apostou todas as suas fichas na aproximação com Trump, seria um dos países mais afetados pela vitória de Biden. A parceria entre Bolsonaro e Trump pode não ter gerado frutos tangíveis para o Brasil, mas, ainda assim, o capitão perderia o líder que norteou a atuação externa do Brasil de Bolsonaro.
Vários especialistas acreditam que uma vitória de Joe Biden não necessariamente causaria uma ruptura nas relações entre os Estados Unidos e o Brasil. Roberto Simon, colunista da Folha de S. Paulo, recentemente escreveu que “um antagonismo profundo parece improvável”, afirmando que Biden seria “um pragmático convencido da importância da relação com o Brasil.” Não há dúvida de que o democrata teria pouco interesse em isolar o Brasil e empurrá-lo para os braços da China ― afinal, espera-se que Biden mantenha a atual estratégia de Trump em relação ao país asiático.
Porém, a avaliação dos otimistas tacitamente presume uma forte dose de pragmatismo do lado de Bolsonaro, e pouco na sua atuação externa até hoje sugere que tenha interesse ou capacidade para tal. O caso da derrota de Maurício Macri na Argentina no fim de 2019 serve como exemplo preocupante. A maioria dos analistas esperava que Bolsonaro adotasse uma postura pragmática quando ficou claro que Alberto Fernández, aliado de Cristina Kirchner, grande inimiga do bolsonarismo, se tornaria presidente. Deu-se o oposto. Bolsonaro disse que “bandidos de esquerda” estavam de volta ao poder em Buenos Aires e alertou que o Rio Grande do Sul teria que se preparar para a chegada de refugiados argentinos. Até hoje, Bolsonaro nunca falou com Alberto Fernández. A relação bilateral entre os dois maiores países da América do Sul está na sua pior crise desde os anos 1980.
O exemplo da relação bilateral com a China tampouco inspira otimismo. Muitos esperavam que Bolsonaro abraçaria o pragmatismo depois de ter atacado a China durante a campanha presidencial. Uma vez eleito, porém, pouco mudou. Enquanto o vice-presidente Mourão atuou como bombeiro em várias ocasiões e apagou incêndios, Eduardo Bolsonaro e o então Ministro de Educação, Abraham Weintraub, voltaram a atacar o Governo chinês neste ano, levando a um bate-boca público inédito, envolvendo o cônsul-geral chinês no Rio de Janeiro. A relação do Brasil com a China hoje está marcada pela desconfiança, longe daquilo que era poucos anos atrás.
No caso americano, portanto, não podemos ter a certeza de que o Governo Bolsonaro atuará de maneira diferente ― afinal, para Bolsonaro, a política externa é uma ferramenta chave para animar a base mais radical, e é utilizada para que o presidente possa se projetar como protetor do Brasil contra as numerosas ameaças internacionais. Mesmo com Biden liderando com folga, Eduardo Bolsonaro decidiu compartilhar, nas redes sociais, um vídeo pró-Trump, que levou o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Congresso Americano, controlado pelo Partido Democrata, a soltar uma nota de protesto.
Como o brasilianista americano Brian Winter apontou em um debate recente, para manter uma relação bilateral construtiva sob Bolsonaro e Biden, será preciso manter o presidente brasileiro longe do debate público americano. À primeira vista, parece viável ― afinal, o Brasil não é e nunca foi uma prioridade da política externa americana. Porém, três fatores sugerem que o plano de manter Bolsonaro longe dos holofotes nos EUA pode fracassar.
Em primeiro lugar, para pensar sobre a reação de Bolsonaro a uma possível vitória de Biden, é preciso lembrar que Trump dificilmente aceitaria o resultado ― afinal, mesmo em 2016, quando ganhou, insistiu, sem apresentar nenhuma evidência, que milhares de “imigrantes ilegais” teriam votado nos democratas. Agora, diz frequentemente que as eleições de 2020 serão as “mais corruptas da história”, outra vez sem apresentar nenhuma evidência para tal afirmação. Devido ao elevado número de eleitores que votarão por correio, serão dias ou semanas até que se finalize a contagem dos votos. Uma pesquisa recente da NBC News / Wall Street Journal mostrou que quase metade dos apoiadores de Biden planeja votar pelo correio, em comparação com apenas 10% dos apoiadores de Trump. Esse cenário aumenta a probabilidade de que Trump apareça como favorito nas primeiras pesquisas de boca de urna, uma vez que muitos democratas já terão votado. Não requer muita criatividade para imaginar que Trump poderia se aproveitar dessa situação para declarar vitória antes de a contagem dos votos enviados por correio começar.
Durante semanas ou meses de incerteza, em que Trump se recusasse a ceder e frequentemente apresentasse supostas evidências por fraudes, como reagiria Bolsonaro e sua família? Para um anti-globalista pró-Trump, como Olavo de Carvalho ou Ernesto Araújo, a teoria da conspiração que globalistas, comunistas, Biden, Maduro, o PT, George Soros e ateus e chineses se uniram para roubar a eleição de Trump poderia ser irresistível. Se Bolsonaro ou seus familiares optarem por defender publicamente Trump durante o impasse, haverá pouco espaço para pragmatismo quando Biden se tornar presidente.
Em segundo, o desmatamento e o aquecimento global tornaram-se, há tempos, uma preocupação não apenas do mainstream político no Ocidente, mas também são vistos, hoje, como uma ameaça de segurança por Forças Armadas ao redor do mundo. Presumindo-se que Bolsonaro continuará sua postura ambiental atual, seria ingênuo acreditar que Biden conseguiria ficar calado diante do tema ― e a crise diplomática causada pelos incêndios de 2019 nos dá pistas sobre como Bolsonaro responde a críticas internacionais.
Por fim, seria um erro acreditar que o trumpismo como movimento acabaria com a derrota de Trump. Mesmo fora da Casa Branca, Trump estará no controle do Partido Republicano e tentará emplacar sua filha Ivanka como candidata a presidente em 2024. Steve Bannon e outros estrategistas buscarão se reagrupar para atacar nas eleições parlamentares já em 2022. É evidente que Eduardo Bolsonaro manteria contato com redes de extrema-direita nos EUA. Defender uma abordagem pragmática em tais circunstâncias seria um desafio enorme para Biden.
Se a política brasileira dos últimos dois anos nos ensinou alguma coisa é que nunca podemos subestimar o presidente da República. Seria uma excelente notícia se ele conseguisse adotar uma postura pragmática caso, de fato, Biden saia vitorioso. Porém, diante do histórico da política externa bolsonarista até agora, é preciso se preparar para uma crise na relação com os EUA ― e o crescente isolamento do Brasil no Ocidente.
El País: A pandemia empodera as Forças Armadas e policiais na América Latina
Do Brasil, onde militar comanda até a Saúde, à Colômbia e México, necessidade de controle social fortalece as forças de segurança enquanto abre debate sobre seus riscos
BEATRIZ JUCÁ|JAVIER LAFUENTE|FEDERICO RIVAS MOLINA|ROCÍO MONTES
Buenos Aires / São Paulo / Cidade Do México / Santiago
Um general está à frente até do Ministério da Saúde no Brasil. O estado de exceção vigora no Equador, Peru e Chile. A polícia de Buenos Aires se rebela por melhores salários. A morte de um advogado pelas mãos da polícia acende a ira popular em Bogotá. Uma operação contra uma festa clandestina termina com 13 mortos em Lima. No México, o Governo se apoia no Exército para quase tudo. As medidas extraordinárias contra a propagação da covid-19 conferiram um inesperado protagonismo a policiais e militares. Apesar da lembrança ainda fresca das ditaduras dos anos setenta e oitenta, as forças de segurança se apresentam agora como garantidoras da ordem e, sobretudo, “eficientes”. Esse papel dos quartéis, entretanto, desperta muitas desconfianças ―não só no Brasil―, pelas possíveis consequências futuras de acumularem tanto poder.
A necessidade de controle social empoderou as armas. O fenômeno não é homogêneo na região, mas segue como padrão que os soldados tomaram o controle das ruas. “Nos países onde as Forças Armadas já tinham um papel importante, como Brasil, México, Peru, Bolívia e Colômbia, o coronavírus acentuou esse papel. No caso do México, por exemplo, cederam-lhes até portos e rodovias”, diz o cientista político argentino Fabián Calle, especialista em questões de segurança. Os militares ganharam protagonismo silenciosamente, como se as pessoas vissem no novo status quo uma consequência natural e inevitável da pandemia.
O caso mais paradigmático deste crescente poder é o Brasil. O flerte do presidente Jair Bolsonaro com os militares lhes deu uma visibilidade sem precedentes na democracia. Seu vice, Hamilton Mourão, é um general da reserva, e 10 de seus 23 ministros passaram pelos quartéis. No gabinete militar destaca-se o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, um militar especialista em logística que pouco sabe de política sanitária. Todo o núcleo político do Planalto também é de generais, que se tornaram uma espécie de eixo de sustentação do Governo e, mesmo com a crise, conseguiram preservar o orçamento para a Defesa. A relação de Bolsonaro com os quartéis vem de seus anos de juventude. No início de sua carreira militar (reformou-se como capitão) encabeçou um motim. Foi assim que conseguiu o apoio político das forças de segurança e criou uma base que o ajudou a se manter no Congresso por 30 anos.
Nas eleições de 2018, quando chegou ao Planalto, o número de militares e policiais eleitos para cargos legislativos quadruplicou em relação a 2014. O setor mais radicalizado, formado principalmente por jovens soldados, não para de crescer. Só em São Paulo, o número de policiais e militares na ativa que tiraram licença para disputar eleições municipais aumentou 62% em comparação a 2016. Enquanto greves (não autorizadas legalmente) sacudiram Estados como o Ceará e Espírito Santos recentemente e avança a politização dos quartéis, especialistas alertam sobre os possíveis riscos de que os militares se tornem um vetor de ruptura democrática.
Fabián Calle não acredita nessa possibilidade, mas reconhece que as coisas já não serão como antes da pandemia. “Há Estados frágeis, burocracias pouco eficientes e crescentes problemas. Todos os Governos terminam recorrendo a uma das poucas burocracias ordenadas e com cadeia de mando que, além disso, funciona. Mas não há nenhum salto ao poder. O que haverá serão mais recursos econômicos e mais influência, porque isso não será grátis”, adverte.
Outro país onde as Forças Armadas sem dúvida adquiriram mais preponderância é o México, onde os militares nunca tiveram o mesmo peso de outros lugares da região. O presidente Andrés Manuel López Obrador, que na campanha defendia a volta deles aos quartéis diante do fracasso da chamada guerra ao narcotráfico, depois de empossado lhes concedeu o controle de diversas instâncias da Administração, como as alfândegas e os portos. Durante a pandemia, as Forças Armadas se encarregaram de montar hospitais de campanha e distribuir suprimentos por todo o país. A isso se soma uma maior presença nas ruas, com a nova Guarda Nacional, autorizada por lei a agir em assuntos de segurança pública.
A polícia da província de Buenos Aires, na Argentina, já cobrou a conta. Durante três dias, policiais armados fizeram uma greve sem precedentes que terminou com um aumento de salários. A Bonaerense, como é conhecida, é uma força de 90.000 homens da ativa com um longo histórico de excessos e corrupção que nenhum governo conseguiu controlar. Desde a volta à democracia, em 1983, as diversas administrações retiraram progressivamente as verbas das Forças Armadas, que pagaram assim por seu passado ditatorial, e transferiram recursos às corporações policiais. A de Buenos Aires se rebelou agora com o argumento de que a pandemia desbastou seus ganhos (sem futebol e espetáculos, acabaram-se as horas extras), enquanto seu trabalho se multiplicou por causa do controle da quarentena.
Não foi só o coronavírus que deu um papel de destaque às forças de segurança no último ano. Na Bolívia, a pressão da polícia foi o estopim para a renúncia do presidente Evo Morales, no final de 2019. Enquanto isso, na Colômbia, o assassinato de um jovem alvejado pela tropa de choque voltou a expor os excessos policiais. Os alarmes nesse país voltaram a se acender nesta semana, quando um advogado foi morto por uma arma de choques elétricos usada por um policial. O desencanto da população com a polícia só cresce, e a necessidade de uma reforma parece muito inevitável.
A polícia militar chilena também está na rua, mas por ordem do Governo. Nesta sexta-feira, o presidente Sebastián Piñera decidiu prorrogar por 90 dias o estado de exceção em todo o território. A medida começou a vigorar no Chile assim que a pandemia começou, por isso o país passará nove meses com os militares impondo as restrições de trânsito e reunião. O Executivo justificou a decisão pela covid-19, mas paira o fantasma da desordem pública. Em 18 de outubro completa-se um ano das revoltas sociais no Chile, e no dia 25 do mesmo mês terá lugar um plebiscito sobre uma nova Constituição, com mais de 14 milhões de pessoas convocadas às urnas. Será um referendo sob condições inéditas, como toque de recolher vigorando entre 23h e 5h.
“A crise sanitária não se resolve com militares nas ruas. É um excesso e, ao mesmo tempo, revela a incapacidade das autoridades para estabelecer normas básicas de segurança pública”, afirma o chileno Gabriel Gaspar, analista político e ex-subsecretário para as Forças Armadas do segundo Governo de Michelle Bachelet (2014-2018). Para o diplomata, em seu país os militares foram empurrados a “patrulhar os chilenos, quando as Forças Armadas estão desenhadas mais para defendê-los”. Podem os militares ficar tentados pelo poder? Fabián Calle opina que é pouco provável que alcancem o protagonismo dos anos de Pinochet, mas não descarta que “levantem o perfil” se a violência crescer. “Não será para tomar o poder”, diz, “mas marcarão terreno”.
El País: Candidato de Trump é eleito novo presidente do BID
Mauricio Claver-Carone se tornou o primeiro líder do organismo de origem norte-americana
Mauricio Claver-Carone foi efeito neste sábado presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para um período de cinco anos. O assessor de Donald Trump para a América Latina terá em suas mãos uma entidade crucial para a recuperação da região após a crise do coronavírus. Sua candidatura e nomeação provocaram tensões entre os países acionistas da instituição, já que quebram a tradição —não escrita— de que o líder do banco deve ser um latino-americano.
A assembleia que o elegeu, realizada em Washington por videoconferência, reuniu os 48 países que integram o capital do BID. “Essa vitória é para a América Latina e o Caribe. Quero agradecer a todos os nossos parceiros na região por manter a integridade deste processo eleitoral e compartilhar nossa visão comum de um BID mais forte”, declarou Claver-Carone numa mensagem enviada à imprensa após a eleição. O assessor de Trump obteve o respaldo de 30 países, incluindo 23 da região, e com eles alcançou 66,8% dos votos. Assumirá a presidência no próximo 1º de outubro por um período de cinco anos.
Claver-Carone foi o único candidato que se apresentou na votação deste sábado. A candidatura de um norte-americano à liderança do BID gerou tensões entre os países nos últimos dois meses. Trump ignorou as queixas de diversas nações e apresentou o advogado de ascendência cubana como seu homem forte na América Latina.
Os EUA nomearam Claver-Carone em junho para disputar a presidência da entidade. O anúncio levantou suspeitas em toda a América e também na Europa: o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, enviou uma carta em julho aos membros europeus do banco para advertir que o candidato norte-americano quebraria a harmonia na América Latina. Na época, a Argentina iniciou um esforço para adiar a votação até março de 2021, enquanto promovia seu próprio candidato: Gustavo Béliz. Claver-Carone acusou a Casa Rosada de “tentar sequestrar a eleição” do novo presidente.
A chave da estratégia proposta pela Argentina estava nos números. Inicialmente, buscou-se evitar o quórum da sessão deste sábado, que devia alcançar 75% para que houvesse votação. Chile, México e Costa Rica se uniram ao plano argentino e tentaram fazer com que outros países da região se ausentassem da assembleia. Nos últimos dias, porém, os apoios foram diminuindo até que o México reconheceu, na quinta-feira, que compareceria à votação. A Argentina anunciou na sexta que Béliz não seria candidato. O Executivo argentino também afirmou que se absteria de votar em protesto contra a candidatura do assessor norte-americano e incentivou os demais países a fazerem o mesmo. Fontes da Casa Rosada próximas às negociações dizem que 16 países se abstiveram da votação neste sábado —11 deles, latino-americanos— e somaram 31,23% dos votos, informou Federico Rivas.
Claver-Carone mostrou vantagem desde o anúncio da candidatura. Os EUA contavam com 30% dos votos, e seu nome foi apoiado por países com generosas participações no BID como o Brasil (11,3%) e Colômbia (3,1%), além de ter se apresentado como representante de El Salvador, Guiana, Haiti, Israel e Paraguai. Para vencer, o candidato só precisava do apoio de 15 dos 28 países americanos. Claver-Carone assumirá o posto do colombiano Luis Alberto Moreno, que esteve à frente do organismo desde 2005.
Na Casa Branca, o candidato de Trump conta com histórico de pulso firme contra o chavismo e o castrismo. Uma das preocupações entre os países latino-americanos com sua eleição é que ele previsivelmente terá em suas mãos a recuperação econômica da Venezuela nos próximos anos. Além disso, Claver-Carone revelou numa entrevista a este jornal que um dos principais interesses dos EUA é influir, através do banco, nos espaços que a China ocupou na América Latina.
A candidatura de Claver-Carone tampouco convenceu completamente Washington, sobretudo os democratas e os republicanos que se distanciaram da Administração Trump. Por isso, uma das incógnitas que prevalecerão até 3 de novembro, data das eleições presidenciais nos EUA, é se ele terá apoio do democrata Joe Biden caso este chegue à presidência. Biden considera que o candidato de Trump é “ideológico demais, pouco qualificado e está buscando um novo trabalho para depois de novembro”, como disse um porta-voz da campanha democrata ao site Politico.
Fundado em 1959, o BID possui um capital de mais de 100 bilhões de dólares (533 bilhões de reais). É o maior banco regional, e os EUA são o país que mais contribui. Com créditos de 12 bilhões de dólares (63,6 bilhões de reais), a entidade lidera a lista de ajudas ao desenvolvimento no continente. Seu funcionamento depende em boa medida dos aportes dos EUA, que são autorizados pelo Congresso.
El País: A Amazônia degradada já é maior que a desmatada
A área de selva alterada por extração de madeira ou fogo superou a desmatada nas últimas décadas
Miguel Angel Criado, El País
Há florestas que deixam de sê-lo mesmo sem desaparecer. É o que adverte um grupo de cientistas sobre o estado da região amazônica. Seu amplo desmatamento é bem conhecido, mas igualmente dramática (e mais complexa de medir) é a degradação do que resta. Com dados de mais de duas décadas, os pesquisadores comprovaram que a porção de floresta empobrecida já é maior que a desaparecida.
Com base em dados de satélite reunidos desde 1992, o grupo de pesquisadores mediu o impacto humano sobre a Amazônia. O mais fácil é calcular quanto da vegetação desapareceu para que suas terras fossem destinadas a outra coisa, em sua maioria a pastagem. Segundo o estudo publicado na revista Science, entre 1992 e 2014 desapareceram 308.311 km². A curva do desmatamento foi ascendente ano após ano, até atingir o pico em 2003, quando foram perdidos 29.000 km² ―uma superfície quase equivalente à da Catalunha ou a 75% do Estado do Rio de Janeiro. Seja pela pressão internacional ou pela ação política interna, o ritmo diminuiu até o patamar dos 6.000 km² perdidos anualmente desde 2014.
Mais difícil de calcular ―e de medir as consequências― é a degradação da floresta remanescente. Entre uma vegetação intocada e outra que deu lugar a pastagens, há um amplo leque de paisagens florestais mais ou menos empobrecidos. A degradação pode assumir distintas formas: uma menor densidade de árvores, uma perda de continuidade entre florestas cada vez menores e mais isoladas ou a queima de sub-bosque, entre outras. Uma série de algoritmos considerou as variações de refletância da luz de cada paisagem para determinar o grau de alteração.
“Uma floresta degradada é aquela que foi alterada de forma significativa ou que sofreu o impacto das atividades humanas. Continua contando com um dossel arbóreo, mas com biomassa reduzida”, explica David Skole, pesquisador do Observatório Global de Serviços ao Ecossistema da Universidade Estatal de Michigan (EUA) e coautor do estudo. “Um bom exemplo de degradação florestal é quando a floresta é submetida ao desmatamento seletivo, cortando-se algumas árvores e deixando-se outras.” Nas zonas desmatadas, a degradação se concentra nos limites entre a floresta e a terra nua. “Essas árvores que sobrevivem nas bordas dos terrenos desmatados são afetadas por mudanças no microclima. E há provas de que, no longo prazo, sofrem um colapso em sua biomassa. É o que chamamos de efeito-limite”.
Os autores do estudo estimam que a porção da floresta amazônica degradada já superou os 337.000 km². Ou seja, a superfície empobrecida excede a afetada pelo desmatamento. E se este provoca o desaparecimento da floresta e de todas as funções associadas, o empobrecimento também tem suas consequências: liberação de gases do efeito estufa, alteração do equilíbrio da água e dos nutrientes, queda da biodiversidade e surgimento de doenças infecciosas.
São quatro os agentes degradantes principais: corte mais ou menos seletivo, incêndios, efeito-limite ou fragmentação e isolamento de porções de floresta. Até 2003, auge do desmatamento, estes dois últimos agentes foram os protagonistas. Desde então, porém, o desmatamento e o fogo têm sido mais importantes.
“Nos anos anteriores, o desmatamento e a degradação geralmente ocorriam no mesmo espaço”, afirma Skole. Como se fosse uma condição prévia ou um estado precedente, “o que levou muitos a verem a degradação como um atalho para o desmatamento, não uma interferência diferente a ser considerada, medida e gerenciada. Demonstramos que agora existe degradação, sobretudo por corte ilegal, que é uma perturbação espacialmente diferente”. De fato, mais da metade das áreas degradadas pelas derrubadas, por exemplo, mantiveram-se nesse estado praticamente durante as duas décadas englobadas pelo estudo.
Raúl Sánchez, pesquisador florestal da Universidade Pablo de Olavide (Espanha), diz que “até agora colocávamos no mesmo saco o desmatamento e a degradação, e este trabalho mostra que não é assim.” O que ele não esperava eram as dimensões do problema ―mesmo com o patamar de 2014. “Este ano, o fator principal tem sido o incêndio de baixa intensidade, primeiro passo para a degradação”, afirma.
El País: Fux estreia no comando do STF
Ministro defende a Lava Jato e deve evitar temas conflituosos. Ele quer, em um primeiro momento, manter o foco nos casos sobre o combate à pandemia e sobre meio ambiente
Afonso Benites, El País
A assunção do ministro Luiz Fux à presidência do Supremo Tribunal Federal deve representar uma redução do chamado ativismo judicial e um momento de maior independência do Judiciário em relação Executivo e ao Legislativo. Seu antecessor no cargo, José Antonio Dias Toffoli, ficou marcado por se aproximar do Executivo e fazer acenos ao Legislativo com um pacto entre os Poderes que, na prática, nunca existiu. Fux quer que a Corte Suprema e o Judiciário como um todo interfiram cada vez menos na política. Em seu discurso de posse, o novo presidente afirmou que a judicialização da política, fenômeno no qual um poder interfere em atribuições de outros, têm equivocadamente transformado o STF em uma espécie de “oráculo”.
“O Supremo Tribunal Federal não detém o monopólio das respostas, nem é o legítimo oráculo, para todos os dilemas morais, políticos e econômicos de uma nação”, disse o ministro. Ele ainda cobrou que as autoridades ajudem a dar um “basta na judicialização vulgar e epidêmica de temas e conflitos em que a decisão política deva reinar”.
O ministro disse que a harmonia entre os Poderes não implica na subserviência a eles. “O mandamento da harmonia entre os Poderes não se confunde com contemplação e subserviência”. Fux também definiu cinco prioridades para a sua gestão: a proteção dos direitos humanos e do meio ambiente; a garantia da segurança jurídica para o ambiente de negócios; o combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro; o incentivo ao acesso à Justiça digital e; o fortalecimento da vocação constitucional do Supremo.
Essa independência é esperada entre quem acompanha o dia a dia do STF. “O ministro Fux é um juiz de carreira. Juiz não defende um dos lados. Juiz julga. É possível que ele se policie mais do que antecessores no trato com outros Poderes”, diz o advogadoTércio Sampaio Ferraz Júnior, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “Ele é uma pessoa que tem a vivência, que conhece a rotina de todo o Judiciário. Isso será positivo”, afirmou a advogada Beatriz Sena, mestre em Direito e Estado.
Poder reduzido na pauta
Uma das principais funções do presidente da Corte é o de definir a pauta de julgamentos do plenário. Esse poder foi reduzido durante a pandemia, quando prevaleceram os julgamentos virtuais em que os relatores dos processos podem levar seus casos diretamente. Pelo que a reportagem apurou, Fux deverá evitar temas conflituosos e quer, em um primeiro momento, manter o foco nos casos envolvendo o combate à pandemia de coronavírus e o meio ambiente.
Entre analistas críticos ao STF, há os que apostam que ele não entrará em nenhum conflito com o Executivo e suas pautas ideológicas. Um deles é o professor de direito da USP, Conrado Hubner Mendes. Em sua coluna na Folha de S. Paulo, Mendes sugeriu que Fux não compraria cinco temas caros ao bolsonarismo e que já tem ações à espera de julgamento. “O índice mais significativo de uma gestão no STF não é formado pelos casos que decide, mas pelos que prefere não decidir. Faço uma aposta sobre os cinco casos que Fux não decidirá nem que a República tussa”. Os temas são os seguintes: porte de drogas, prisões, interrupção da gravidez, juiz das garantias e decreto das armas.
Também pesa contra o novo presidente sua conduta tida como corporativista no passado. Foi ele quem, em 2014, concedeu auxílio moradia a todos os juízes do país por meio de uma liminar. E só a suspendeu quatro anos depois, quando o Governo Michel Temer (MDB), em um acordo com o Congresso Nacional, liberou o reajuste salarial aos magistrados. Até agora o caso ainda não teve o seu mérito julgado. “Essa questão de corporativismo é complicada. Todas as carreiras são. Em um ponto de vista externo, o auxílio moradia pode ser chamado de penduricalho, internamente dizem que compõe o que se chama de remuneração”, contemporizou Ferraz Júnior.
Em seu discurso, o ministro disse que a Corte não admitirá “qualquer recuo no enfrentamento da criminalidade organizada, da lavagem de dinheiro e da corrupção”. Conhecido pelos votos duros em matéria penal, citou textualmente a Lava Jato. Se não bastassem os desafios comuns para qualquer presidente de Tribunal, Fux ainda terá de se deparar com os embates que têm crescido entre a ala garantista e a ala lavajatista, da qual faz parte. De um lado, estão os ministros que têm impostos seguidas derrotas à Operação Lava Jato. Do outro, os que defendem que a investigação ainda é um baluarte do combate à corrupção. Entre os casos pendentes de julgamento, está o pedido da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que acusa ex-juiz Sergio Moro de ser parcial.
Até o fim do mandato de Fux, em setembro de 2022, ele se despedirá de dois ministros que se aposentarão compulsoriamente ―Celso de Mello, em novembro deste ano, e Marco Aurélio, em julho de 2021. Por essa razão, ele recepcionará dois nomes que serão indicados por Jair Bolsonaro, que tem feito uma espécie de leilão pelas vagas. Nesse meio tempo, possivelmente, colocará para julgamento o processo que deve advir dos inquéritos que apuram suposto esquema de fake news liderado por bolsonaristas no STF e do que apura se o presidente interferiu politicamente na Polícia Federal.
“Seja feliz”
A cerimônia de posse de Fux na presidência e de Rosa Weber, na vice-presidência, foi marcada por recados a outras autoridades e por gestos curiosos. Os primeiros foram disparados pelo ministro Marco Aurélio, que discursou como representante da Corte e deu uma dura sugestão ao presidente Bolsonaro. “Vossa excelência foi eleito com mais de 57 milhões de votos, mas é presidente de todos os brasileiros. Continue na trajetória havida. Busque corrigir as desigualdades sociais que tanto nos envergonham. Cuide, especialmente, dos menos afortunados. Seja sempre feliz na cadeira de mandatário maior do país”.
Por causa da pandemia de covid-19, os ministros e as autoridades no plenário do Supremo estavam separados por um painel transparente de acrílico. Havia distanciamento de ao menos duas poltronas entre o público. E uma cena curiosa foi vista algumas vezes. Bolsonaro, que estava sentado entre Fux e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (presidente da Câmara), dava breves espiadas para o celular deste, que é um contumaz usuário do aparelho. O hino nacional foi cantado pelo ícone da MPB Raimundo Fagner, um defensor da Lava Jato.
Aos 67 anos, Fux chega ao topo da carreira da magistratura depois de ocupar a maioria dos cargos possíveis na área. Foi advogado, promotor de Justiça, juiz de primeira instância, juiz eleitoral, desembargador no Tribunal de Justiça do Rio, ministro do Superior Tribunal de Justiça, ministro e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Quando chegou ao Supremo, em 2011 por indicação da então presidenta Dilma Rousseff (PT), ainda tinha muitos fios de cabelos pretos. Agora, com as madeixas acinzentadas, se depara com um Brasil bem diferente do que de nove anos atrás. As instituições, durante a gestão Jair Bolsonaro (sem partido), estão sob constante ataque, sejam ele virtuais, ou por meio de discursos do próprio mandatário ―apesar de nos últimos meses ter baixado o tom de suas falas.
Natural do Rio de Janeiro, ele é descendente de imigrantes judeus que vieram ao Brasil para fugir da perseguição nazista. Fora do tribunal, é conhecido pelas lições de Processo Civil que dá na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, pelos livros sobre este tema que escreveu, por ser um fiel praticante de jiu jitsu e por ter se arriscado em bandas de rock. Como atleta de artes marciais, frequentemente dá dicas de defesa pessoal a servidores que o circundam. Presidente do Supremo até 2022, às vésperas das presidenciais, resta saber como atuará, de fato, como presidente da Corte e o quão disposto estará para defender a Constituição e a independência do Judiciário.
El País: Casos de censura à imprensa no Brasil expõem clima de “degradação da liberdade”
Decisões costumam ser revistas pelo STF, mas são indicativo de “judicialização da política”, dizem especialistas. Globo, Portal GGN, revista ‘Crusoé’ e TV RBS foram alvo de censura este ano
Nas últimas semanas, uma série de decisões judiciais amordaçou veículos de imprensa após ações movidas por integrantes da classe política ou do mercado financeiro. O caso mais recente envolveu o parecer da juíza Cristina Serra Feijó, do Tribunal de Justiça do Rio. Na sexta-feira ela proibiu a TV Globo de exibir documentos ou trechos de peças relativas à investigação do caso das rachadinhas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que à época era deputado estadual. Trata-se de um caso de censura prévia, vedada pela Constituição Federal. Alguns dias antes, o Judiciário fluminense também determinou que o portal GGN retirasse do ar uma série de reportagens sobre o banco BTG Pactual. Em um contexto no qual o próprio presidente Jair Bolsonaro ataca veículos de imprensa e ameaça jornalistas que criticam sua gestão ou que abordam assuntos incômodos, especialistas alertam para um clima de “degradação” do ambiente de liberdade de expressão e de imprensa no país.
Quando uma reportagem é barrada pela Justiça antes mesmo de ter sido publicada, “quem perde é a sociedade. A censura prévia é sempre uma violação da liberdade de expressão e imprensa”, afirma Marcelo Träsel, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele destaca que, nos casos mencionados, ocorre ainda um “prejuízo de informações de interesse público, que ao serem ocultadas deixam a sociedade sem acesso a fatos fundamentais para monitorar atividades de um governante, empresa ou representante público”. No caso da investigação envolvendo Flávio, por exemplo, se a imprensa tivesse sido proibida de divulgar documentos do caso desde o início não se saberia que a primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu 89.000 reais em depósitos feitos pelo ex-assessor Fabrício Queiroz, ligado a milicianos. Os Bolsonaro negam ter cometido qualquer crime, mas o Planalto ainda não explicou porque Michelle recebeu mais valores do que a devolução de um empréstimo, sem comprovante ou declaração no imposto, que o presidente diz ter feito ao ex-assessor.
Se no curto prazo a população fica sem informações relevantes, Träsel destaca também prejuízos no horizonte distante. “Esse tipo de decisão degrada o ambiente público e a liberdade de expressão de uma maneira geral. Se não é revertida em instâncias superiores, mesmo a longo a prazo, isso tem um efeito ruim”, afirma. Ele diz que geralmente nestes casos o Supremo Tribunal Federal tende a derrubar as decisões de primeira instância de censura prévia.
Estes movimentos do Judiciário contra a imprensa precisam ser entendidos em um contexto maior, de “judicialização da política no Brasil”, afirma André Augusto Salvador Bezerra, juiz e pesquisador da Universidade de São Paulo. “É um fenômeno mundial, e tem atingido temas sensíveis para os valores democráticos”, diz. Para o magistrado, “a judicialização da política nunca deve ser comemorada, pois ela é sintoma de anomalia no sistema político: ou ele não está funcionando direito ou está com problemas de legitimidade”. Ele cita como um dos primeiros casos deste movimento as decisões jurídicas que obrigavam o poder público a fornecer medicamentos para tratamento do HIV. “Começou como garantia de direitos —o que já aponta anomalia do sistema, uma vez que os Governos deveriam garantir estes remédios para a população fora dos tribunais—, e se espalhou para praticamente todas as esferas”, diz. “Por isso nosso sistema democrático tem um tribunal constitucional: para que ele dê um basta quando entender que a Constituição foi desrespeitada”, conclui.
Mas nem sempre o STF age com a velocidade esperada. Um caso emblemático de censura e morosidade do Judiciário envolveu o clã Sarney e o jornal O Estado de São Paulo, que teve uma reportagem censurada a pedido de Fernando Sarney, filho do ex-presidente, por 3.327 dias. O ministro Ricardo Lewandowski derrubou em 2018, após nove anos de silêncio, a decisão de primeira instância da Justiça do Distrito Federal e Territórios. O caso em questão dizia respeito à publicação de gravações obtidas no âmbito da Operação Boi Barrica que apontavam para ligações entre Sarney e a contratação de parentes e afilhados políticos por meio de atos secretos.
Nem Bezerra nem Träsel, da Abraji, acreditam que a censura a veículos de imprensa piorou sob o Governo Bolsonaro. Ambos apontam para a existência de uma “pluralidade do Judiciário”, o que ajudaria a deixar os casos de censura prévia restritos a uma parcela menor de juízes.
Censura à Globo, GGN, RBS e Crusoé
A ação que censurou a Globo na semana passada foi movida pela defesa de Flávio Bolsonaro. No entendimento da magistrada que deferiu o pedido, como o processo corre em segredo de Justiça a divulgação dos dados comprometeria “sua imagem [de Flávio] no cenário político” e seria “potencialmente lesiva à sua honra”. O senador comemorou a censura nas redes sociais: “Não tenho nada a esconder e expliquei tudo nos autos, mas as narrativas que parte da imprensa inventa para desgastar minha imagem e a do presidente Jair Messias Bolsonaro são criminosas”.
Já no caso do GGN, a Justiça afirmou que as matérias publicadas não poderiam “causar danos à imagem de quem quer que seja”. O juiz Leonardo Grandmasson Ferreira Chavez afirma que “pelo conjunto da obra [do GGN]” parece haver uma “campanha orquestrada para difamar o banco, cuja imagem é “patrimônio sensível para seus acionistas”. Contrariando a jurisprudência da Corte, o ministro do STF Marco Aurélio Mello manteve a decisão do juiz do Rio que censurou o GGN. Os advogados do portal informaram que vão recorrer, mas ainda não existe data para que o plenário do Tribunal discuta a questão.
O próprio STF, no entanto, também pode agir de forma corporativa. No ano passado houve um caso de censura que partiu da própria Corte: o ministro Alexandre de Moraes ordenou que se retirasse do ar uma reportagem da revista Crusoé que envolvia o presidente do Tribunal, Antonio Dias Toffoli, e o delator Marcelo Odebrecht. Em seu despacho, Moraes ainda chamou a matéria de “fake news”, acusação refutada pela publicação.
Em junho deste ano, outro caso de censura prévia, desta vez envolvendo a TV RBS. O juiz Daniel da Silva Luz, do Rio Grande do Sul, concedeu decisão liminar proibindo a veiculação de uma reportagem sobre concessão irregular do abono emergencial.
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) se manifestou por nota sobre o caso da Globo, e afirmou que a decisão é inconstitucional: “A ANJ espera que a decisão inconstitucional da juíza seja logo revogada pelo próprio Poder Judiciário”. A reportagem tentou sem sucesso entrar em contato com os juízes mencionados.
El País: Ação do Exército na Amazônia é questionada no STF e reabre tensão com militares
Partido Verde questiona papel das Forças Armadas na região, que teve mais desmatamento e deixou de lado o Ibama. General Heleno ataca Carmen Lúcia e Mourão defende militares na selva até 2022
Carla Jimenéz, El País
“A selva nos une”, tuitou o vice-presidente Hamilton Mourão, neste dia 5, quando se celebra o dia da Amazônia no Brasil. Mas suas palavras não encontraram eco na realidade brasileira num momento que um campo de batalha se abre contra a gestão do Governo na região. Desde maio, o mesmo Mourão conduz as operações Verde Brasil na área, com apoio das Forças Armadas, para coibir queimadas e delitos ambientais em geral. Mas a legalidade da ação dos militares foi questionada na Suprema Corte pelo Partido Verde no dia 30 de agosto, diante do aumento do desmatamento na floresta amazônica, levantando ainda a desconfiança de que o Governo pode ter agentes que informam desmatadores sobre as operações de fiscalização em curso. O pedido pede a suspensão dos atos normativos do Exército, o que na prática é paralisar a operação Verde Brasil.
Na quinta-feira, 3, a ministra do Supremo Carmen Lúcia solicitou “com urgência e prioridade, informações ao presidente da República e ao ministro da Defesa sobre os dispositivos legais questionados, a serem prestadas no prazo máximo de cinco dias”. Na sequência, serão pedidas manifestação da Advocacia Geral da União e da Procuradoria-Geral da República. Coube ao ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o general Augusto Heleno, expressar sua irritação e reavivar atritos públicos de membros do Governo com a Corte, ao escrever: “A ministra Carmen Lúcia, do STF, acolheu ação de um partido político e determinou que o presidente e o ministério expliquem o uso das Forças Armadas, na Amazônia. Perdão, cara Ministra, se a Sra conhecesse essa área, sabe qual seria sua pergunta: “O que seria da Amazônia sem as Forças Armadas?” O vice-presidente Mourão já havia se manifestado sobre o assunto nesta sexta, 4, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, dizendo que o pedido da ministra “é mais um uso político do STF”. O tuíte de Heleno veio neste sábado completar a provocação, e colocar as redes sociais no fla-flu de sempre, depois de uma aparente trégua do Governo Bolsonaro com os demais poderes.
O cabo de guerra sobre a Amazônia, um bioma de 4,2 milhões de quilômetros quadrados, ganha a cada dia novas camadas sob a gestão do presidente Jair Bolsonaro. Com a crítica permanente no exterior sobre a condução da política ambiental – e a ameaça de reduzir investimentos no país por isso —, Bolsonaro colocou o vice-presidente a cargo da proteção da floresta, principalmente depois das queimadas em agosto de 2019, quando o Brasil virou alvo de críticas no mundo inteiro. Ali nasceu a primeira Operação Brasil, que ficou dois meses [agosto a setembro] na região para controlar focos de incêndios e delitos ambientais.
O desmatamento, porém, não cedeu em 2020, e em abril os alertas para queimadas e desmatamentos na Amazônia Legal cresceram 63,7%, o que levou o Governo a editar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que prevê o uso das Forças Armadas para proteger a floresta. Nasceu assim a Operação Verde Brasil 2, ao custo de 60 milhões de reais, que duraria, em princípio, dois meses. Embora ambientalistas tenham reconhecido o esforço do Governo de chegar antes de novas altas de queimadas no segundo semestre, o plano foi visto com desconfiança pelo custo alto previsto – maior que o orçamento anual do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), responsável pela fiscalização e redução do desmatamento até então — e pela falta de articulação conjunta.
Mourão reforça que a ação visa dar apoio aos órgãos de fiscalização, como o próprio Ibama e o Instituto Chico Mendes (ICM-Bio). “É apoio logístico e de segurança ao trabalho das duas instituições, que não têm pernas para cumprirem suas tarefas na Amazônia”, disse ele ao O Estado de S. Paulo. A posição do vice-presidente é vista com bons olhos por quem está em campo, mas os ruídos permanecem nesta que é uma área extremamente sensível para os brasileiros e para o mundo que combate o aquecimento global e depende de florestas, como a Amazônia, em pé. “Queremos e precisamos do trabalho com as outras Forças. Mas cada um tem que entrar com sua especialização. A especialização do Exército é logística, risco operacional. Nós temos prática em montar operações e ações contra infratores ambientais”, disse ao repórter Gil Alessi, sem se identificar, um fiscal que atua no instituto há mais de dez anos. Mourão ainda fez um mea culpa em sua entrevista ao dizer que o Governo errou ao sair da floresta em setembro ao final da operação Brasil 1. “Se tivéssemos permanecido no terreno desde o ano passado, teríamos números melhores para apresentar. Essa é a mea culpa que faço”, disse. Entre maio e agosto o número de queimadas foi praticamente o mesmo que o de 2019, nesse mesmo período, ainda que em agosto tenha havido uma redução de 5%. Mas este ano, as queimadas chegaram forte inclusive ao bioma do Pantanal, no centro oeste do país.
As convergências, porém, acabam se esvaindo com o Governo de um lado sob pressão com a imagem desgastada pelas dificuldades em concluir o trabalho, e ambientalistas de outro vendo-se ignorados. Na ação do PV na Corte, o partido menciona relatos de agentes de fiscalização que revelam falta de colaboração. “Criaram uma operação que concorre para o desmonte da política ambiental brasileira”, relata a arguição do PV, que menciona ainda uma ação do Ibama do dia 6 de agosto, vazada para os que seriam alvo de fiscalização. A Polícia Federal acompanhava há semanas uma operação ilegal de garimpo no Pará, mas foram proibidos a seguir a pedido de um militar. “Houve divulgação do áudio encaminhado para o grupo de WhatsApp denominado ’Garimpeiro não é bandido’, alertando sobre a presença dos agentes do Ibama naquele dia 6 de agosto na região. O autor do áudio foi identificado e confirmou que a informação foi repassada por funcionário do Governo Federal”, diz o recurso, citando reportagem divulgada no programa Fantástico.
O alerta no áudio, no caso, foi feito por Josias, um indígena urbanizado, favorável ao garimpo, que tem contato com “uma pessoa” no Governo, como ele mesmo admite na reportagem. São indígenas como ele que são mencionados por Mourão ou Bolsonaro quando o assunto é a Amazônia, e a construção de uma cadeia de atividade econômica na região. “A gente tem de entender as ansiedades da comunidade indígena. Eles não podem continuar segregados, afastados do século XXI. Precisam ter renda própria e não podem viver de esmola do Estado”, disse o vice-presidente. A leitura, porém, não leva em conta os diferentes estágios de integração dos indígenas num país com mais de 300 povos diferentes, incluindo isolados e outros que se negam a se aculturar, porque entendem a floresta como seu meio de vida, e de respeito aos seus ancestrais, que sobrevivem na mata desde antes do Brasil ser descoberto em 1500.
Vladimir Safatle: Identitarismo branco
Demorou muito tempo até que eu percebesse o quanto a pretensa especificidade da filosofia ocidental era um dos mais brutais dispositivos coloniais já inventados
A noção de “identidade” conseguiu colocar-se no centro dos embates políticos de nossa época. Ela trouxe novos problemas e novas sensibilidades com as quais precisaremos lidar no interior das lutas sociais contemporâneas por reconhecimento. Para ela, convergem questões práticas e teóricas complexas que concernem a integralidades dos sujeitos, pois tocam a gramática social naquilo que ela tem de mais estruturador, a saber, em suas dinâmicas de relação e de unidade.
Muitos utilizam “identidade” para desqualificar lutas que questionam práticas seculares de exclusão naturalizadas sob as vestes de discursos universalistas. Assim, na perspectiva desses críticos, as lutas ligadas a movimentos feministas, negros, LGBT+ seriam em larga medida “identitárias” porque visariam, na verdade, criar uma nova geografia estanque de lugares de poder. Lugares esses indexados por identidades específicas.
Muitos dos sujeitos organicamente vinculados a tais lutas lembram, no entanto, que até para não cristão vale o dito do Evangelho: “Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás ver com clareza para tirar o cisco do olho de teu irmão”. Ou seja, antes de acusar qualquer um de regressão identitária seria o caso de começar por se perguntar sobre o identitarismo naturalizado pela hegemonia de uma história violenta de conquistas e sujeição operada, majoritariamente, por brancos europeus.
Essa colocação é astuta e irrefutável. Ela não afirma que a naturalização de identidades e suas fronteiras é o horizonte efetivo das lutas que nos atravessam, mas que falar em qualquer experiência de universalidade concreta está interditada até que o foco mais forte de identidade seja deposto, e esse foco encontra-se normalmente do lado dos que atacam certas lutas sociais por serem “identitárias”.
Se me permitem, gostaria de usar a primeira pessoa do singular para descrever um aspecto desse problema, pois há vários outros que deverão ser acrescidos. Quando ainda era estudante de filosofia, lembro de um colega perguntar a um professor sobre a razão pela qual não estudaríamos, em nosso curso, filosofia chinesa, indiana, africana, entre outros. “Simplesmente porque não há”, foi a resposta. Em todo lugar que não tivesse sido marcado pelo “milagre grego” o que haveria era a prevalência do mito. Razão, logos, era uma invenção grega que nos havia salvo, “nós, os ocidentais”, da cegueira do pensamento mítico e de seus limites à autorreflexão.
Essa razão, esse logos seria não apenas uma capacidade argumentativa de dar e reconhecer razões, mas uma forma de vida capaz de racionalizar processos sociais em direção à realização de uma sociedade livre composta por sujeitos autônomos (“autonomia”: mais uma invenção pretensamente grega). Assim, não apenas a razão seria o presente do ocidente ao mundo, mas também a liberdade.
Demorou muito tempo até que eu fosse capaz de perceber o quanto essa pretensa especificidade da filosofia no ocidente era um dos mais brutais dispositivos coloniais já inventados, era o núcleo de um dos mais resilientes processos identitários que conhecemos. Pois, se a Europa com sua matriz grega era um mar de filosofia cercada de mito por todos os lados, então qual destino teríamos todos a não ser querermos nos tornar “bons europeus” e a abraçar os processos de “modernização” que começaram em seu solo, a nos abrirmos à “maturidade” de sua forma de vida? Outras formas de pensamento poderiam nos oferecer belos mitos, ensinamentos morais edificantes, mas muito pouco a respeito de processos concretos de emancipação e interação racional com o mundo.
Mas, se assim fosse, havia uma conta que teimava em não fechar. Quando chegaram à América, vários jesuítas ficaram estarrecidos com o que encontraram entre vários povos ameríndios. Não foi canibalismo ou a pretensa selvageria que os estarreceram. Deixemos falar um desses jesuítas, que escreveu em 1642 sobre um povo que habitava o atual Quebec: “Os Neskapi imaginam que eles devem, por direito de nascimento, gozar da liberdade dos burros selvagens, sem respeitar a quem quer que seja, salvo quando sintam vontade. Eles me criticaram cem vezes por termos medo de nossos capitães, enquanto eles riem e zombam dos seus. Toda a autoridade de seus chefes está no domínio da língua, pois eles são potentes na medida em que são eloquentes, e mesmo se eles morrem de falar, eles só serão obedecidos se agradarem aos selvagens”. Povos sem medo, cujas relações a autoridades se fundam na eloquência, ou seja, na capacidade contínua de argumentação racional e persuasão. Não era estranho encontrar gente como o padre Lallemant em 1644, dizendo a respeito dos Wendats do Quebec: “Não creio que existam pessoas sobre a terra mais livres que eles”. Sua capacidade de argumentação, diz o padre, era maior do que a de um francês médio, já que eles viviam em sociedades nas quais o poder precisa a todo momento dar e reconhecer razões para agir. Era isso que efetivamente estarreciam os jesuítas, a saber, a descoberta de que eles eram mais livres do que “nós”.
Ou seja, quando alguém como Thomas Hobbes dizia, na mesma época, que no estado de natureza encontrávamos “o homem como lobo do homem”, para completar lembrando: “os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos dias daquela maneira brutal que antes referi”, isso só se sustentava como, digamos, uma “fake news”. Bastava ler o padre Lallemant. E quando o “tolerante” Locke dizia que, mesmo sendo livres, faltava a esses povos segurança porque lhes faltavam Estado e outras instituições políticas nossas, alguém deveria ter lembrando a Locke que termos como “estado”, “nação”, “povo” só tem algum sentido quando nos perguntamos contra quem eles são mobilizados.
Em suma, todos esses dispositivos de pensamento eram peças de um profundo identitarismo branco que visava não apenas jogar na invisibilidade formas outras de vida, mas principalmente impedir que essa experiência de descentramento produzida pelo contato com a alteridade implicasse um processo efetivo de transformação. O pretenso universalismo dessas formas de pensar era, na verdade, um sistema defensivo contra a força de descentramento própria a um mundo em expansão potenciał.
Lembrar desses momentos da filosofia ocidental é apenas uma forma de insistir como a universalidade efetiva nunca existiu e como tudo feito em seu nome foi marcado pelo saque e pelo roubo. Foi apenas quando ela se voltou contra si mesma e contra os horizontes sociais que a produziram que a experiência ocidental do pensamento esteve a altura de seu objeto. Mas, fora desses momentos, processos de segregação e silenciamento foram a verdadeira norma.
Não haveria outra forma de terminar esse artigo que não se lembrando de um dos maiores acontecimentos históricos que conhecemos, a saber, a revolução haitiana que se inicia em 1791. Ela marca a luta de libertação daqueles que até então tinham sido colocados na condição de “coisas”, de “escravos” pelo poder colonial. Em 1804, quando a libertação estava consolidada, os haitianos promulgam uma impressionante constituição. Vale a pena lembrar aqui dos artigos 12, 13 e 14. O primeiro afirma: “Nenhum branco, independente de sua nação, colocará o pé neste território a título de senhor ou proprietário, e não poderá no futuro adquirir propriedade alguma”. Mas o artigo 13 produz uma especificação: “O artigo precedente não tem efeito algum para as mulheres brancas naturalizadas haitianas pelo Governo, nem para as crianças nascidas ou a nascer delas. Estão ainda compreendidos neste presente artigo, os alemães e poloneses naturalizados pelo Governo”.
De fato, ao tentar reescravizar os haitianos, Napoleão enviou tropas nas quais havia uma legião de 5.200 poloneses. Ao chegar no campo de batalha, eles descobriram que não se tratava de uma revolta de prisioneiros, como os franceses haviam lhes contado, mas uma insurreição pela liberdade. Muitos soldados então desertaram e começaram a lutar ao lado dos haitianos. Eles foram para o Haiti acreditando que estavam a defender os “ideais iluministas”, mas logo compreenderam que tais ideias estavam, de fato, do outro lado do campo de batalha.
Daí o sentido do artigo 14 da Constituição haitiana: “Toda acepção de cor dentre as crianças de uma mesma família, cujo chefe de Estado é o pai, deve necessariamente cessar. Os haitianos serão conhecidos apenas através da denominação genérica de Pretos”. Ou seja, a extrema inteligência política dos haitianos lhes permitiu fazer de um termo até então usado como marca de exclusão o nome de uma verdadeira universalidade por vir. O nome de algo que indica o vetor efetivo de uma sociedade em revolução. Para os haitianos, pretos serão também aqueles que lutaram a seu lado por uma sociedade radicalmente livre e igualitária, que não querem mais defender essa sociedade marcada pela espoliação, silenciamento e segregação, mesmo que eles sejam brancos como um polonês.Adere a
El País: As mulheres do poderoso clã Bolsonaro
A atual esposa e as duas ex do presidente compõem uma extensa família cujo lema poderia ser “política (ou poder) acima de tudo”. Investigações sobre Queiroz rondam primeira-dama
Embora o núcleo duro do clã Bolsonaro seja claramente masculino, ele também inclui mulheres, as três com quem o presidente compartilhou sua vida, as mães de seus filhos. Por motivos diferentes, elas também são notícia. A atual esposa, a primeira-dama Michelle Bolsonaro, de 38 anos, protagonizou o fenômeno viral da semana por conta de um dinheiro de origem suspeita que recebeu de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro. A segunda mulher, Ana Cristina Valle, uma advogada de 53 anos, também sob suspeita por esse mesmo caso de desvio de dinheiro público. E a primeira, Rogéria Nantes Nunes Braga, de 65 anos, mãe dos três filhos mais velhos do mandatário, os três políticos profissionais com vários mandatos legislativos nas costas, cogita disputar as próximas eleições municipais por uma vaga na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro.
Juntas, compõem uma árvore genealógica complexa, uma família com vários ramos cujo lema poderia ser “política (ou o poder) acima de tudo”, parafraseando seu lema de Governo, “Brasil a cima de tudo, Deus acima de todos”. Os laços −incluindo os trabalhistas e políticos− sobrevivem às rupturas sentimentais. Desde que se casou pela primeira vez, em 1978, Jair Bolsonaro nunca chegou a ficar um ano solteiro.
Formou uma dessas famílias cada vez mais comuns, mas que pouco tem a ver com a família clássica apregoada pelas Igrejas evangélicas que tantas alegrias lhe deram em forma de votos. Cinco filhos de três casamentos, exatamente como seu admirado Donald Trump.
A primeira-dama do Brasil é uma mulher discreta quase três décadas mais jovem que o presidente. Evangélica, mãe da única filha de Bolsonaro, Laura ―a menina por quem esse presidente machista baba. Conheceram-se no Congresso quando Michelle era secretária de outro deputado. Às vezes ela participa de algum ato governamental de perfil social ou acompanha seu marido, mas sempre em segundo plano. Raramente fala em público. Foi vista usando máscara antes que fosse obrigatório, nada a ver com ele, sempre relutante. E, assim como ele e vários ministros, acaba de superar o coronavírus sem consequências graves.
Uma ameaça explícita de Bolsonaro a um jornalista se voltou como um bumerangue contra ele na última semana, embora sua esposa é que tenha sido colocada sob os holofotes. No domingo passado, um repórter perguntou ao presidente sobre umas transferências suspeitas de um amigo da família preso por corrupção, e Bolsonaro lhe respondeu com uma frase inadequada para um chefe de Estado, mas que não destoa de seu histórico de grosserias: “Tenho vontade de encher tua boca de porrada”. Nas horas seguintes, mais de um milhão de tuiteiros o bombardearam com a pergunta que o deixou nervoso e ficou sem resposta: “Presidente @JairBolsonaro, por que sua esposa Michelle recebeu 89.000 reais de Fabrício Queiroz?”. Essa quantia foi depositada na conta da primeira-dama, como descobriu a polícia. A pergunta continua sem resposta. Michelle também não abriu a boca.
É um caso complicado, coisa que no Brasil não é incomum. A polícia suspeita que o primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, administrava com Queiroz, seu faz-tudo, um sistema para ficar fraudulentamente com parte dos salários de assessores de seu gabinete, quando ele era deputado estadual no Rio de Janeiro. E é aí que aparece a conexão com a segunda esposa de Jair Bolsonaro, a mãe de Renan, o único filho que não está na política. Aos 22 anos, ele estuda direito. Embora tenham se separado há mais de uma década, Ana Cristina Valle −que não usa o sobrenome de seu ex− colocou parentes como funcionários nos escritórios legislativos de Flávio e de seu irmão Carlos, familiares que agora estão sendo investigados pela polícia por repassar ao chefe parte de seus salários, uma prática conhecida como “rachadinha”.PUBLICIDADE
O Bolsonaro pai tem conseguido manter boas relações com suas ex-esposas. As duas saíram em sua defesa quando a ocasião exigiu e pediram votos para ele. Isso também não causa muita surpresa se olhamos para os Bolsonaro mais como uma marca ou como uma empresa.
O presidente foi militar antes de iniciar uma longa e insignificante carreira de deputado enquanto ia colocando sua prole na política. A jogada funcionou. Tem cada um dos filhos mais velhos colocado em uma casa legislativa. Flávio, 39 anos, é senador, o calcanhar de aquiles de uma família que fez da luta contra a corrupção sua grande bandeira política. Carlos, 37 anos, é vereador no Rio. E Eduardo, de 36, deputado federal. Seu pai os defende com unhas e dentes.
Dizem que Jair Bolsonaro tem mais instinto que inteligência. O fato é que, depois de um ano e meio no poder, com uma trajetória repleta de escândalos, sua popularidade está mais alta que nunca. Escrúpulos, certamente, não lhe sobram. Quando se separou de Rogéria após uma década de casamento, Bolsonaro fez com que Carlos, então com apenas 17 anos, concorresse contra ela nas eleições municipais, para que não fosse reeleita vereadora. O jovem obteve três vezes mais votos que sua mãe e ficou com a cadeira na Câmara do Rio, que ainda ocupa. Está em seu quinto mandato. Agora Rogéria aspira a reconquistar o cargo no Rio, nas eleições municipais de novembro. Seus planos de concorrer como vice na chapa do prefeito Marcelo Crivella, um pastor evangélico, esfriaram, mas quem sabe, ainda faltam três meses.
El País: STJ manda afastar Witzel do Governo do Rio sob suspeita de corrupção em contratos
Operação nesta sexta-feira cumpre mandado de prisão do Pastor Everaldo, presidente do PSC, e faz buscas contra primeira-dama e presidente da Assembleia Legislativa
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) ordenou nesta sexta-feira o afastamento do governador Wilson Witzel (PSC) do cargo por 180 dias e autorizou diversos mandados de prisão e de busca e apreensão em endereços ligados às principais autoridades do Rio de Janeiro. A investigação é um desdobramento da Operação Placebo, que investiga corrupção em contratos do Executivo fluminense na área da saúde e que mirou o governador em maio. Agora, a suspeita é a existência de um amplo esquema de corrupção que envolveria também outras áreas da administração e que teria a participação de membros do Legislativo e do Judiciário.
As medidas foram determinadas pelo ministro Benedito Gonçalves, que em decisão monocrática também proibiu o acesso de Witzel às dependências do Governo, com exceção do Palácio Laranjeiras, sua residência oficial, e vetou a comunicação dele com funcionários e a utilização dos serviços do Estado. O Ministério Público Federal chegou a pedir a prisão preventiva do governador, mas o ministro entendeu ser suficiente o seu afastamento do cargo para evitar a continuidade das supostas atividades de corrupção e lavagem de dinheiro apontadas na investigação.
Agentes da Polícia Federal cumprem mandados no Laranjeiras, no Palácio Guanabara, na residência do vice-governador e na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, além de outros endereços no Estado. Entre os alvos das ordens de busca e apreensão estão a primeira-dama, Helena Witzel, o vice-governador, Cláudio Castro (PSC), e o presidente da Assembleia Legislativa, André Ceciliano (PT). Há também 17 mandados de prisão, sendo seis preventivas (sem prazo) e 11 temporárias. Um dos alvos é Pastor Everaldo, presidente do PSC, partido de Witzel, que foi detido nesta manhã.
A operação desta-sexta foi chamada de Tris in Idem, uma referência ao fato de se tratar do terceiro governador do Rio que se “utiliza de esquemas ilícitos para obter vantagens indevidas”, nas palavras dos procuradores. Os ex-mandatários Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, ambos do MDB, estão presos em decorrência de investigações da Operação Lava Jato.
Witzel, que é ex-juiz, foi eleito em 2018 com um discurso anticorrupção e aliado ao bolsonarismo. Segundo a Procuradoria, porém, desde a sua vitória no pleito organizou-se no Governo um esquema criminoso dividido em três grupos, que disputavam o poder mediante o pagamento de vantagens indevidas a agentes públicos. “Liderados por empresários, esses grupos lotearam algumas das principais pastas estaduais —a exemplo da Secretaria de Saúde— para implementar esquemas que beneficiassem suas empresas”, dizem os investigadores em nota.
Em maio, Witzel foi alvo de uma operação que investigava um contrato emergencial assinado entre o Governo e a organização social Iabas no valor de 835 milhões de reais para construir e gerir sete hospitais de campanha para pacientes infectados com o coronavírus. De acordo com a Procuradoria, esse esquema de direcionamento de licitações era o principal mecanismo de atuação do grupo. Os investigadores apontam a existência de uma “caixinha de propina” abastecida pelas organizações e a cobrança de um percentual sobre pagamentos que abastecia mensalmente agentes políticos e servidores públicos da Secretaria da Saúde.
“O grupo criminoso agiu e continua agindo, desviando e lavando recursos em pleno pandemia da covid-19, sacrificando a saúde e mesmo a vida de milhares de pessoas, em total desprezo com o senso mínimo de humanidade e dignidade”, destacou o ministro do STJ na sua decisão.
O esquema de desvios não se limitava ao Poder Executivo, segundo a investigação. Na Assembleia Legislativa, deputados estaduais são suspeitos de repassar sobras de duodécimos, percentuais recebidos por lei do Governo, para o tesouro estadual. “Dessa conta única, os valores dos duodécimos ’doados’ eram depositados na conta específica do Fundo Estadual de Saúde, de onde eram repassado para os Fundos Municipais de Saúde de municípios indicados pelos deputados, que, por sua vez, recebiam de volta parte dos valores”, detalha a Procuradoria.
No Judiciário, as organizações atuariam por meio do pagamento de dívidas trabalhistas judicializadas. Com a ajuda de um desembargador, segundo aponta a investigação, entidades pagavam honorários a uma advogada que, após obter as decisões favoráveis, repassava os valores para os participantes do esquema.
Denúncia
Em uma das frentes de investigação, o Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra Witzel, a primeira-dama e outras sete pessoas, incluindo advogados e empresários. O objeto da investigação são os pagamentos de empresas ao escritório de advocacia de Helena Witzel, realizados supostamente a partir de contratos simulados para permitir a transferência de valores à família do governador. Foram denunciados os empresários Mário Peixoto, Alessandro Duarte, Cassiano Luiz; Lucas Tristão, ex-secretário de Desenvolvimento Econômico de Witzel; João Marcos Borges Mattos, ex-subsecretário executivo de Educação; Gothardo Lopes Netto, ex-prefeito de Volta Redonda (RJ); e o contador Juan Elias Neves de Paula.
Outro lado
Em nota, a defesa do governador Wilson Witzel afirmou receber “com grande surpresa a decisão de afastamento do cargo, tomada de forma monocrática e com tamanha gravidade”. Os advogados dizem que aguardam o acesso ao conteúdo da decisão para tomar as medidas cabíveis.
Também em nota, o PSC declarou que o Pastor Everaldo sempre esteve à disposição de todas as autoridades, assim como o governador Wilson Witzel. Com a prisão de Everaldo, o ex-senador e ex-deputado Marcondes Gadelha, vice-presidente nacional, assume provisoriamente a presidência da legenda. O partido afirma ainda que o calendário eleitoral do partido nos municípios segue sem alteração.
Eliane Brum: O “gado humano” que Bolsonaro leva ao matadouro
No país em que a maioria da população é reduzida à sobrevivência, quem são os burros e os mal-informados?
O Brasil superou as 100.000 mortes por covid-19 e, na velocidade atual em torno de 1.000 mortos por dia, poderá chegar aos 200.000 ainda em outubro. E então a Folha de S.Paulo estampa na manchete de 15 de agosto a conclusão da pesquisa do Datafolha: “para 47% dos brasileiros, Bolsonaro não tem culpa pelas 100 mil mortes por covid-19”. Nenhuma culpa. O Brasil tem 21 novos casos/dia por 100.000 habitantes, quando a média global é 3. Mesmo vilões como os Estados Unidos de Donald Trump têm 17 novos casos/dia por 100.000 e a Índia de Narendra Modi, 5. Mesmo com as evidências de negligência intencional e deliberada na relação com a pandemia, que já motivou três petições de crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional, a mesma pesquisa já tinha mostrado que Bolsonaro alcançou sua melhor aprovação desde o início do mandato: 37% de ótimo ou bom. A melhora é puxada especialmente pelos mais pobres e pelo Nordeste do Brasil, região onde ele teve menos votos em 2018. A rejeição caiu enquanto o número de mortos explodiu. Por que quase metade dos brasileiros se comportaria como “gado humano”, como tem sido chamada, e aceitaria Bolsonaro conduzi-la alegremente para o matadouro?
A conclusão mais fácil, amplamente difundida nas redes sociais, é a de que as pessoas são burras. E também mal-informadas. O auxílio emergencial de 600 reais por mês para os mais pobres devido à pandemia teria feito com que Bolsonaro fosse visto momentaneamente como o capitão dos pobres. A desinformação seria por conta de que o Governo federal foi obrigado pelo Congresso a pagar 600 reais. Bolsonaro não queria passar dos 200. O campo da esquerda, que quase dois anos depois da eleição ainda não foi capaz de fazer oposição efetiva a Bolsonaro, apavora-se porque o Governo emite sinais de que o Bolsa Família do lulismo pode virar o Renda Brasil do bolsonarismo. E, se isso acontecer, Bolsonaro tem mais chances de se reeleger em 2022.
O que é ser burro e o que é ser inteligente, porém, não é uma definição fácil, muito menos simples. Grande parte da população brasileira vive apenas o dia de hoje. Para a maioria, o mês seguinte já é longe demais. A ideia de futuro é considerada um privilégio dos mais ricos, e este é um dado muito importante, porque emancipação política só é possível com pessoas que têm acesso à ideia de futuro. Quando o futuro se torna um privilégio dos mais ricos, e não um direito assegurado a todos, a maioria é condenada ao presente. E o presente é movido por comer ou não comer, ter um lugar para dormir ou ser despejado, manter-se respirando.
A realidade é que os 600 reais do auxílio emergencial garantiram uma renda inédita a pelo menos 65 milhões de brasileiros e suas famílias. E, quando o benefício acabar, o que pode acontecer em seguida, voltarão a ter que se virar com muito menos, num país com um número ainda maior de desempregados e com a recessão se ampliando. Segundo artigo de Mauro Paulino e Alessandro Janoni, diretor-geral e diretor de Pesquisas do Datafolha, “dos cinco pontos de crescimento da taxa de avaliação positiva [de Bolsonaro], pelo menos três vêm dos trabalhadores informais ou desempregados que têm renda familiar de até três salários mínimos, grupo alvo do auxílio emergencial pago pelo governo”.
Vale a pena ressaltar que o que se chama de classe média no Brasil, assim como aqueles que se entendem como classe média, nada têm de média. Em São Paulo, por exemplo, segundo a calculadora preparada pelo Nexo, se você ganha 12.000 reais por mês já faz parte do seletíssimo clube do 1% mais rico do Brasil. A tabela tem suas limitações, mas cada um pode calcular sua renda em comparação com o restante da população e ter uma ideia muito aproximada da situação.
O Brasil tem a segunda pior concentração de renda do mundo, conforme o Relatório de Desenvolvimento da ONU: o 1% mais rico concentra 28,3% da renda total do país. Só perde por muito pouco para o Catar, onde a concentração de renda chega a 29%. Este é o tamanho do abismo da desigualdade brasileira. Vale a pena lembrar ainda que os bilionários não são 1%, como se costuma dizer no senso comum —e sim 0,00003% da população global. Mais especificamente 2.153 pessoas como eu e você, que concentram 60% mais riqueza material que quase 7,8 bilhões de pessoas da mesma espécie.
O mundo tem uma pessoa bilionária para cada 3,7 milhões de outras. No Brasil, segundo o último ranking da Forbes, há 45 pessoas bilionárias. Quarenta e cinco. Enquanto isso, a metade mais pobre da população brasileira, cerca de 104 milhões de pessoas, vivia em 2018 com 413 reais de renda mensal. Não há futuro para a maioria com essa desigualdade monstruosa. Só um presente vergonhosamente precário. E o presente vergonhosamente precário é, neste momento, ainda absurdamente precário, mas menos precário com o auxílio emergencial de 600 reais —composto por recursos públicos, mas interpretado como uma benemerência de Bolsonaro.
A redução da miséria e da pobreza, conquistada nos anos dos Governos do PT (e, antes dele, em níveis consideravelmente menores, nos governos do PSDB de FHC), foi imensamente importante, mas suficiente apenas para reduzir a fome e garantir melhorias pontuais, como acesso a bens básicos como geladeira e fogão. Isso, é necessário assinalar, não é pouca coisa. A questão, que já era apontada na primeira década deste século, é que jamais foi suficiente para criar cidadãos, no sentido daquilo que é definido como sujeitos de direitos. Para criar cidadãos é necessário reduzir a desigualdade, o que nunca foi feito de forma significativa no Brasil.
Para diminuir a desigualdade é preciso fazer mudanças estruturais capazes de reduzir os privilégios da minoria mais rica e taxar pesadamente as grandes fortunas. Só assim se garante uma redistribuição mais igualitária da riqueza existente. O Governo mais próximo de um ideário social de esquerda no Brasil, o de Lula, era um governo de conciliação. Lula e principalmente Dilma Rousseff sacrificaram a Amazônia e o Cerrado, assim como bandeiras históricas como a da reforma agrária, para garantir a massiva exportação de matérias-primas durante um momento de crescimento da economia global, especialmente da China. Era a fórmula —limitada, como se viu— para os pobres ficarem menos pobres e, ao mesmo tempo, os ricos mais ricos.
Há muitas definições de cidadania. Eu gosto daquela que define o cidadão como aquele que pode ter a certeza do básico —alimentação, transporte, saúde e educação— e então pode ser capaz de imaginar e criar futuros onde quer viver porque o seu tempo não é devorado pela estrita manutenção do corpo, mas para desenvolver seu potencial para a ampliação do bem comum. Se o mundo é hoje extremamente desigual, o Brasil, com seu tamanho continental e 210 milhões de habitantes, é o exemplo mais eloquente da violência representada pelo sequestro do futuro da maioria da população, reduzida ao esgotamento cotidiano dos corpos para manter-se respirando.
Diante das condições de vida absolutamente precárias da maioria dos brasileiros e do súbito aumento da renda com o auxílio emergencial, o surpreendente não é que a aprovação de Bolsonaro suba durante a pandemia. O surpreendente é que isso seja uma surpresa. Se a reação previsível e lógica dos mais pobres é uma surpresa para parte da população, especialmente no campo da esquerda, quem então são os burros e os mal-informados sobre o que se passa no país?
O boicote intencional de Bolsonaro ao enfrentamento da covid-19 pode ser comprovado por atos documentados no Diário Oficial da União, além de uma comunicação feita deliberadamente para desinformar a população. As pesquisas também provam que são os mais pobres, e a maioria dos mais pobres no Brasil é negra, que morrem mais de covid-19. No Campo Limpo, um dos bairros com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixos de São Paulo, a letalidade da covid-19 por 100.000 habitantes é altíssima —52%. Já nos bairros mais ricos, com IDH mais alto, como Pinheiros, a taxa é de 5%. Na maior cidade do Brasil, há 10 vezes mais letalidade por covid-19 nos bairros mais pobres quando comparados aos mais ricos.
Como então é possível que a melhoria nos índices de aprovação do antipresidente seja justamente puxada pelos mais pobres? A resposta também pode ser buscada na precarização da vida. O que chamamos de povo brasileiro é composto, em sua maioria, por pessoas que só vivem porque teimam. A história do Brasil é uma trajetória de espoliação de matérias-primas extraídas da natureza e, no caso da maioria da população, de corpos escravizados e depois brutalmente explorados. O que se transmite de pai e mãe para filhos e filhas é que a sobrevivência não é garantida, ela é arrancada. A morte é normalizada.
A história das famílias mais pobres é uma história em que os filhos mortos são contados junto com os vivos. As mulheres sabem que parte da sua prole pode morrer pelas condições precárias da vida, pela falta de acesso à saúde, à água, a saneamento básico e também a alimentos. Também sabem que morrer por violência é uma probabilidade, especialmente se seu filho for negro, seja pelas balas da polícia, da milícia ou por assalto. Há periferias do Brasil em que você pode bater aleatoriamente em uma fileira de portas e todos terão uma morte ou mais para contar, por violência e/ou por falta de condições de saúde.
A tragédia crônica do Brasil é ter um povo para quem a morte por doenças evitáveis e por violência é normalizada porque foram colocados na condição de matáveis e de morríveis desde a formação do país. Não é um povo, é uma massa de desesperados extremamente criativos que vem resistindo há séculos contra todas as formas de extermínio.
O que quero explicitar é que os brasileiros mais pobres vivem sujeitados a aceitar a perda dos que amam. Esta é uma das faces mais horrendas da desigualdade, mas o horror desta face nunca a impediu de ser aceita como normal, em especial pelos mais ricos, inclusive os que se consideram classe média. Neste sentido, a covid-19 é mais uma forma de morte. Se as outras mortes não são evitadas, por que esperar que um governante evitasse esta?
Para suportar o horror de estar na condição dos que podem morrer por aquilo que não mata os brancos e os mais ricos —ou pelo menos que mata muito menos os brancos e os mais ricos—, uma parcela significativa dos brasileiros atribui seu destino à vontade divina. Pelo menos, neste caso, podem rezar, pagar o dízimo para o pastor, tentar reverter o destino ou, pelo menos, encontrar um sentido para suas tantas perdas numa vontade superior. Numa realidade que parece imutável, o que não se pode entender, como a vontade de um deus, pode ser mais suportável do que a explicação de que a sua vida pouco importa para quem tem seu destino terreno nas mãos.
Assim, a covid-19, tanto quanto as outras doenças, também é considerada culpa de ninguém. Nem mesmo de Bolsonaro, apesar dos seus vômitos públicos de irresponsabilidade. O “E daí?” de Bolsonaro é apenas um degrau a mais, por ter sido dito em voz alta, para o grande “e daí?” histórico, permanente e persistente vivido pelos mais pobres ao longo de gerações e de Governos. Para alguns fiéis de determinadas igrejas neopentecostais, pragas do gênero já estão inclusive previstas na Bíblia. As doenças são em geral uma alegoria com muita ressonância numa população cada vez mais evangélica. A pergunta do Datafolha pode nem fazer muito sentido para uma parcela da população: como assim um presidente vai ter culpa por uma doença? Doença acontece, é fatalidade, quando não enviada por Deus para castigar a imoralidade reinante.
Isso é ignorância? Pode ser. Mas é principalmente sobrevivência, inclusive psicológica. Se você aceitou que a perda e a morte fazem parte do seu lugar no mundo, como fizeram parte antes do destino de seus pais e avós, o que importa é garantir a comida, o gás, o puxadinho para quem sobrar. Garantir os 600 reais. E quando os 600 reais acabarem? O amanhã é longe. Não há futuro para quem foi reduzido ao hoje. Se a maior parte da população está na condição de matável e de morrível —e isso nunca mudou, nem nos melhores anos do governo Lula—, qual é a surpresa no fato de que os 100.000 mortos não impactem negativamente na aprovação de Bolsonaro e que os 600 reais impactem positivamente? De novo, quem são os burros e os mal-informados?
Neste momento, há um debate sobre as variáveis. Bolsonaro cada vez mais se descola da agenda neoliberal de Paulo Guedes, com a qual de fato nunca se importou, era apenas seu passaporte para ter o apoio dos representantes do que chamam de “mercado” na eleição. Rifou meses antes Sergio Moro e a classe média que ele representava, isso quando o próprio Moro já tinha rifado antes sua reputação e levado para o esgoto um pedaço da Operação Lava Jato. A Bolsonaro interessa o poder e a proteção da sua família. E se o poder é o único princípio, nenhum problema em se unir ao Centrão no momento em que se vê acuado pela aproximação cada vez maior das investigações envolvendo Fabrício Queiroz, as rachadinhas no gabinete do filho zeroum e o envolvimento com as milícias do Rio. Há chances consideráveis de que em algum momento próximo Bolsonaro possa mesmo rifar Guedes e se tornar o novo pai dos pobres, fazendo a migração do auxílio emergencial para o Renda Brasil, mirando seus dedos de arminha na reeleição de 2022.
E a oposição? Bem, é preciso entender que quem fez a oposição mais efetiva à extrema direita de Bolsonaro foi a direita. O presidente do Câmara, Rodrigo Maia (DEM), assim como governadores até ontem aliados, como João Doria (PSDB), em São Paulo, e Wilson Witzel (PSC), no Rio de Janeiro. Hoje, com Bolsonaro fazendo os giros necessários para agradar a uma parcela dessa direita, Rodrigo Maia está confortavelmente sentado sobre a pilha de quase 60 pedidos de impeachment e chegou a dizer em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, que não vê Bolsonaro praticando crime nenhum que justifique a abertura de processo de impedimento no Congresso.
No Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, o ministro mais ligado à política partidária de direita e de centro-direita, passou meses batendo duramente no governo. Recentemente, alertou os generais de Bolsonaro sobre o risco de serem atingidos por denúncias de genocídio relacionadas à atuação deliberadamente catastrófica do Governo na covid-19. Dias atrás, porém, assinou uma decisão liminar considerando que Fabrício Queiroz, ex-PM e assessor do senador Flávio Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, têm o direito de cumprir prisão em casa em vez de na cadeia. Decisão bastante incomum dada a trajetória do casal, ele escondido por meses e ela foragida. Por coincidência —ou não—, a decisão vem num momento em que as investigações por corrupção e envolvimento com milícias chegam mais perto de Bolsonaro, mas ele faz acenos a partidos como o MDB de Michel Temer, seu mais recente conselheiro, que chegou a ser enviado em missão oficial ao Líbano pelo novo amigo.
E a esquerda partidária? Esta não conseguiu fazer oposição efetiva até hoje. Enquanto parte da direita dá sinais de estar se acertando com a extrema direita bolsonarista, o PT não consegue se acertar com a esquerda nem para disputar a Prefeitura de São Paulo nas próximas eleições municipais. Com a ameaça de o Renda Brasil substituir o Bolsa Família na memória da população, os petistas se moveram para estimular a memória do povo. A realidade mostra, porém, que memória curta é questão de sobrevivência para grande parte da população. Num país em que uma renda de 600 reais por mês é a maior alcançada por dezenas de milhões de pessoas numa vida inteira, o que se pode esperar? Vivem como se não houvesse amanhã porque há mesmo grandes chances de não haver.
Se a direita se acertar com a extrema direita, ainda que momentaneamente, o Brasil vai viver uma situação inédita: no pior Governo da história da República, com quatro petições por crimes contra a humanidade perpetrados por Bolsonaro no TPI e mais de 110.000 mortos de covid-19 não haverá nenhuma oposição partidária. Sim, porque a esquerda está ocupada brigando entre si e fazendo oposição a si mesma.
Quando uma parte significativa da população aprova Bolsonaro e diz que ele não tem culpa nenhuma pela covid-19, essa parcela está fazendo a única política que conhece. Graças a essa adesão, Bolsonaro vislumbrou um caminho para ser reeleito e, pela primeira vez, cogita garantir sua popularidade distribuindo renda para os mais pobres. Justo ele, que foi o único presidente da redemocratização que não citou a redução da pobreza num discurso de posse, está revendo sua posição. Quem conseguiu esse feito? Não foi a oposição nem foi a esquerda. De novo e pela última vez: quem são os burros e os mal-informados?
É claro que se trata de Bolsonaro. Se ele vislumbrar outro caminho para garantir a reeleição, salvar sua família —e a si mesmo— das investigações ou para consumar o golpe de forma mais clássica, o Renda Brasil pode desaparecer do horizonte das possibilidades em um segundo. Da mesma forma, se ele mudar de conveniência, os novos amigos podem virar inimigos de novo em menos de 24 horas. No momento, porém, sem combinar entre si, mas combinados pela experiência dos séculos, os que só têm o dia de hoje para viver elogiam o coronel da ocasião, neste caso um capitão reformado que gosta de armas e de bombas, e o absolvem de todos os pecados. Esse cenário de adesão também pode mudar da noite para o dia, caso não exista algum tipo de continuidade do auxílio emergencial.
O mais surpreendente na pesquisa do Datafolha é justamente o outro lado: que, neste Brasil precarizado e povoado por desesperados, 52% da população ache que Bolsonaro tem alguma culpa pelos 100.000 mortos —a maioria— ou toda a culpa —uma minoria. Sinal de que as forças emergentes dos Brasis que seguem avançando pelas fissuras e pelas bordas têm se movido —e muito— por um país em que futuro não seja coisa de rico. Sinal também de que há muitos entre os mais pobres que, contra todas as estatísticas, se recusam a seguir reduzidos à exaustão dos corpos e vêm lutando ferozmente pelo exercício da solidariedade, pela responsabilidade coletiva e pelo direito ao futuro. E esta é uma notícia incrível, que aponta para a resistência.
Ainda um acréscimo: para quem chama os bolsonaristas e também os brasileiros pobres, que neste momento aprovam Bolsonaro, de “gado humano”, um aviso. A boiada, quando é brutalmente empurrada para o matadouro, sofre horrores, esperneia, os olhos parecem saltar das órbitas, se mija de pavor. Tenta desesperadamente escapar.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum