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El País: Fim do auxílio emergencial deixa o Brasil entre o medo da pandemia e do desemprego em 2021

Segundo pesquisador, desemprego pode atingir 25 milhões de pessoas no país. “Como vou procurar emprego se a pandemia continua?”, questiona beneficiária do programa de ajuda do Governo

Heloísa Mendonça, El País

Não foi fácil atravessar o ano de 2020, mas o fim dele preocupa ainda mais a desempregada Bianca Duarte da Silva, de 25 anos. A partir de janeiro, ela fará parte do grupo de cerca de 67 milhões de brasileiros que deixarão de receber o auxílio emergencial, já que o benefício criado para minimizar os impactos econômicos da pandemia de covid-19 não foi prorrogado para 2021 pelo Governo de Jair Bolsonaro. Moradora de São Paulo, a desempregada já calcula o que precisará cortar no próximo ano. “Esse dinheiro ajudou muito nas despesas, na questão de alimentos e fraldas. Tenho um bebê e uma criança de 8 anos. Agora, dependemos todos de uma única renda, que é a do meu marido. Por conta da pandemia, não sei quando conseguirei procurar um emprego. Vai ficar apertado”, explica a jovem, que atuava antes como promotora de vendas, um exemplo da angústia vivida por essa parcela da população brasileira.

A equação para Bianca gerar mais renda não é fácil. Com as escolas e creches ainda fechadas, ela não tem com quem deixar os filhos para procurar um novo posto de trabalho e, ao mesmo tempo, está com medo do aumento dos casos de coronavírus na capital paulista. O ano terminou, mas a pandemia não. “Antes torcia para as escolas reabrirem, mas com o aumento de casos da doença colocaríamos todos em risco. O melhor seria mais parcelas do auxílio. Eu ainda tenho meu marido trabalhando. Mas e as tias dele que só vivem do auxílio, como vão fazer?”, lamenta. Hoje, 5% da população nacional vive apenas do benefício, segundo a última pesquisa PNAD Covid, do IBGE.

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A prorrogação desejada por Bianca e milhões que continuam sofrendo os impactos da crise sanitária já é, no entanto, carta fora do baralho para o Governo. “Auxílio é emergencial, o próprio nome diz: é emergencial. Não podemos ficar sinalizando em prorrogar e prorrogar e prorrogar”, afirmou o presidente Bolsonaro na última terça-feira (15). O presidente também ressaltou que não haverá oRenda Brasil, um novo programa que chegou a ser aventado durante este ano para substituir o auxílio emergencial. A expectativa era que o benefício fosse criado a partir da reformulação de vários programas sociais, mas ele não chegou a virar uma proposta nem no papel. “Quem falar em Renda Brasil, eu vou dar cartão vermelho, não tem mais conversa”, ressaltou o presidente. Segundo ele, a ideia é aumentar um pouquinho o Bolsa Família.

Além das famílias atingidas, o fim do auxílio emergencial, em um momento em que o país vê crescer novamente o número de casos de covid-19 e a economia está longe de sair da paralisia, também preocupa especialistas ouvidos pelo EL PAÍS. Os efeitos do benefício foram grandes e fizeram, inclusive, a pobreza diminuir no país, ainda que de forma temporária. Ela passou de 23% da população, em maio, para 20,9%. A extinção da transferência de renda pode, no entanto, causar um efeito contrário a partir do próximo ano. Caso o auxílio não tivesse sido oferecido desde abril, o índice de pobreza teria saltado para 36% durante a pandemia, segundo cálculos de Rogério Barbosa, professor do IESP-UERJ e pesquisador da USP. “A renda dos mais pobres de fato aumentou, mas essa melhora é ilusória. O dinheiro que chega é gasto imediatamente nas necessidades básicas, que se impõem. O auxílio não se converte em nenhum tipo de benefício duradouro. A real taxa de pobreza é quando você deixa de computar o auxílio”, pondera.

Queda de arrecadação e falência de pequenos negócios

Para o pesquisador, além da queda de renda da população, o fim do benefício irá afetar a arrecadação de Estados e municípios e também os pequenos comércios locais. O auxílio não tem apenas impacto sobre os pobres e vulneráveis que recebem, mas também no seu entorno, já que injeta recurso na economia. “O dinheiro recebido circula em comércios pequenos mantendo empregos e gera impostos no nível municipal e estadual. Claro que o auxílio não se paga ou volta para os cofres da União, mas vai para Estados e municípios de forma indireta. A pobreza pode chegar a 30% eventualmente se os negócios começarem a falir ainda mais e houver quebra generalizada”, explica.

O desafio da equipe econômica para decidir, nos últimos meses, sobre a continuidade do programa era encontrar uma fonte de financiamento que coubesse dentro da regra do teto ― que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação. Tarefa complexa para um orçamento engessado e em um momento que a saúde das contas públicas é uma das piores dos últimos anos, assim como a dívida do país, que pode chegar a 90% do PIB. As primeiras parcelas do auxílio no valor de 600 tiveram um custo de cerca de 51,5 bilhões de reais por mês. O valor caiu para a metade nos últimos meses do ano, quando a parcela do benefício foi reduzido em 50% (300 reais).

Na avaliação do economista Marcos Mendes, do Insper, se o país apresentar um aumento de despesa muita alto por um longo período certamente vão piorar as condições financeiras da economia. “E o que você eventualmente estará dando para a população mais pobre, você estará tirando por conta da deterioração econômica, com juros alto, inflação, estagnação”. Porém, o economista pondera que em uma situação de agravamento da pandemia não há como não dar assistência aos mais vulneráveis. “É uma situação bastante difícil porque a gente já gastou mais do que poderia em excesso e agora está faltando munição num eventual momento crítico da pandemia”.

Para Mendes, o ideal seria redirecionar os recursos atuais de política social para os 40% mais pobres da população. “Há dinheiro, mas ele é mal direcionado. Os programas precisam ser aperfeiçoados ao longo do tempo. O presidente interditou, no entanto, esse debate com o discurso populista, de que não iria tirar dinheiro de ninguém”, explica. Bolsonaro foi contra, por exemplo, qualquer mudança no abono salarial, uma espécie de 14º salário para quem ganha até dois salários mínimos. “Não podemos tirar dos pobres para entregar para os paupérrimos”, disse o presidente em agosto.

Já o pesquisador Rogério Barbosa defende que o momento atual de crise sanitária permite um endividamento do Estado. “Isso não é uma questão em outros países. A Inglaterra, por exemplo, está dizendo: ‘vamos endividar depois a gente paga. Não é um crescimento da dívida em condições normais, isso é uma precaução com respeito a consequências muito piores. Não estamos fazendo gastos estatais em tempos de bonança”, diz.

Embora o presidente insista que estamos hoje “no finalzinho da pandemia”, mesmo com o país voltando a registrar mais de 1.000 óbitos diários pela covid-19, a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva afirmou em entrevista a esta jornal que não estamos fora de perigo, e que o auxílio emergencial deveria continuar em países como o Brasil. “Tirar esse salva-vidas prematuramente é um perigo em relação à pobreza e desigualdade. Retirar o apoio também prejudicaria a recuperação: até agora o que vemos é que os países que estão se recuperando de forma mais rápida têm em comum ter conseguido controlar a pandemia e ajudado as pessoas e as empresas”, afirmou ao jornalista Ignacio Fariza.

Desemprego pode ter salto

Os empregos podem ser outras vítimas da pandemia. A taxa de desemprego ― em 14,6%, no terceiro trimestre ― pode dar um salto com o fim da transferência do auxílio emergencial. Muitas pessoas que perderam seus postos de trabalho não voltaram a procurar outro por conta da pandemia e as regras de quarentena. É o que Barbosa denomina “desemprego oculto” pelo distanciamento social. “Elas estão desempregados, mas não estão na estatísticas. O desemprego oculto foi diminuindo ao longo dos meses, se transformando em desemprego real, mas se você computa os dois índices você possui um taxa de 25% de desemprego. Ainda que a taxa de ocupação esteja de fato se recuperando, o desemprego cresce em velocidade mais rápida do que a própria ocupação”, explica. Pelos cálculos do pesquisador, podemos chegar a ter 25 milhões de pessoas na fila do desemprego no país. E as taxas de pessoas buscando emprego serão maiores nos Estados do Norte e Nordeste.


El País: Marcelo Crivella, prefeito do Rio, é preso por suspeita de chefiar esquema de propina

Prisão foi realizada pela Polícia Civil e do Ministério Público, em um desdobramento da operação que investiga um suposto ‘QG da propina’ na Administração municipal

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), foi preso na manhã desta terça-feira durante uma operação conjunta do Ministério Público do Rio de Janeiro e da Polícia Civil. A poucos dias de deixar a prefeitura ―o prefeito eleito Eduardo Paes (DEM) toma posse em 1º de janeiro―, Crivella foi detido em sua casa e levado para prestar depoimento no início da manhã. Procurada, a Promotoria confirmou que realizou uma operação “para cumprir mandados de prisão contra integrantes de um esquema ilegal que atuava na Prefeitura do Rio”, mas que, em razão de sigilo de Justiça, não poderia fornecer outras informações.

Segundo informações da TV Globo, que mostrou o momento da condução do prefeito para a Cidade da Polícia, Crivella foi preso em um desdobramento da Operação Hades, iniciada no dia 10 março, que apura suspeita de irregularidades na Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro (Riotur). Ainda de acordo com a emissora, ao menos outras seis pessoas foram presas, incluindo o empresário Rafael Alves, apontado como operador do esquema.

Como mostrou reportagem do EL PAÍS em setembro, o prefeito é acusado pelo Ministério Público de montar um “QG da Propina”, esquema que motivou a abertura do processo de um impeachment na Câmara Municipal. Alves, que é irmão de Marcelo Alves, ex-presidente da Riotur, é suspeito de direcionar licitações, burlar a ordem cronológica de pagamentos que o Tesouro Municipal devia a empresas e, segundo a investigação, tinha poderes de indicar cargos.

Em um vídeo gravado durante a busca e apreensão na casa dele, em março, Crivella supostamente liga para um dos celulares de Rafael Alves para avisar de uma busca na Riotur e é atendido pelo delegado da Polícia Civil responsável pela ação. Ao perceber que não se tratava de Alves ao telefone, Crivella encerra a chamada. A desembargadora Rosa Helena Guita, que deu a ordem de busca na ocasião e determinou a prisão do prefeito nesta terça, disse que na época que “a subserviência de Crivella a Rafael Alves é assustadora”.

Ao ser preso nesta terça, Crivella afirmou aos jornalistas ser vítima de “perseguição política”, em declaração na entrada da Polícia Civil às 6h35. “Lutei contra o pedágio ilegal injusto, tirei recursos do carnaval, negociei o VLT, fui o Governo que mais atuou contra a corrupção no Rio de Janeiro”, disse. Questionado sobre sua expectativa agora, o prefeito disse: “Justiça”.

Bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, fundada por seu tio, o bispo Edir Macedo, Marcelo Crivella foi eleito prefeito do Rio de Janeiro em 2016, mas não conseguiu reeleger-se, apesar do apoio explícito do presidente Jair Bolsonaro, após acumular críticas a sua gestão. O presidente da Câmara do Rio, Jorge Felippe (DEM), deve assumir a Administração municipal pois o vice de Crivella, Fernando McDowell, morreu em 2018.

Já Eduardo Paes comentou pelo Twitter a prisão, afirmando que o trabalho de transição de Governo será mantido. “Conversei nessa manhã com o presidente da câmara de vereadores Jorge Felipe para que mobilizasse os dirigentes municipais para continuar conduzindo suas obrigações e atendendo a população. Da mesma forma, manteremos o trabalho de transição que já vinha sendo tocado”, escreveu.


Juan Arias: Sadismo de Bolsonaro com a vacina chega ao limite da loucura

O presidente é um caso único no mundo em meio à tragédia que vive. Chegou a caçoar de quem toma a vacina, dizendo entre gargalhadas que as pessoas “vão virar jacarés”

Enquanto o mundo inteiro sonha com a vacina como única solução para sair do pesadelo em que vive, o presidente Jair Bolsonaro zomba dela publicamente. Assim como no início da epidemia ele ria dizendo que era apenas uma “gripezinha”, que já fez quase 200.000 mortes, agora ri da vacina com seu sadismo habitual que parece gozar com a dor das pessoas. Acaba de dizer que “não haverá vacina suficiente para todos”. Além disso, acrescentou, não faz falta porque “a epidemia está acabando”. Ele não entende que o mundo inteiro está preocupado porque a segunda onda da covid-19 já chegou com uma virulência 70% maior, o que levou as autoridades mundiais a afirmar que em janeiro, depois das festas, a epidemia poderá ser assustadora. Por isso, na maior parte do mundo, as autoridades proibiram as festas públicas de Natal e de fim de ano.

E o pior do presidente brasileiro é que, enquanto o mundo está em pânico com o crescimento da pandemia que está amargando o fim de ano em que todos nós sempre desejamos um ano melhor, ele não só continua negando as evidências como até se concedeu a liberdade de fazer piadas homofóbicas sobre a vacina. É um caso único no mundo em meio à tragédia que vive. Chegou a caçoar de quem toma a vacina, dizendo entre gargalhadas que “nascerá barba nas mulheres”, que os homens “vão começar a falar fino” ou que as pessoas “vão virar jacarés” .

Que Bolsonaro carece completamente não apenas de empatia com a dor alheia e com aqueles que sofrem já não é um mistério. Ele vai além, a ponto de parecer simplesmente insensível às lágrimas das pessoas. Isso está levando não poucos psiquiatras a pensar que se acumulam nele vários problemas de tipo psíquico e até de psicopatia que o tornariam alguém inviável para dirigir o país.

O presidente do Câmara, Rodrigo Maia, o acusou publicamente de “mentir” à nação, o que em qualquer país civilizado seria motivo para retirá-lo do cargo. E não é que minta todos os dias, mas que tenha feito da mentira uma de suas armas de defesa.

Bolsonaro, como um obsessivo, segundo os analistas políticos, hoje tem apenas duas preocupações: salvar os filhos e a família das graves acusações de corrupção e se reeleger em 2022. Todo o resto —a crise econômica, o aumento da fome no país, a dor dos que morrem na epidemia— não lhe interessa. Nesse caso, ele chegou a usar a Abin, a agência de inteligência brasileira, para sua defesa, algo que em qualquer democracia normal seria um crime imperdoável.

Enquanto isso, e para se blindar contra um impeachment, está sendo criada uma couraça de defesa que engloba todas as forças de segurança do Estado. Ele encheu de privilégios todos os segmentos da polícia e do Exército e até das milícias que sempre estiveram ao seu lado.

Na sexta aconteceu uma cena terrível. Ele fez um discurso feroz contra os meios de comunicação aos comandantes da Polícia Militar. Disse-lhes que a imprensa e as televisões independentes estão todas contra eles, que são seus maiores inimigos, tentando desprestigiá-los perante toda a polícia, a qual encorajou a buscar informações nas redes sociais porque os meios de comunicação estão contra ela, só mentem e são seus piores inimigos.

Desta forma, e com seu amor quase sexual pelas armas, Bolsonaro está se preparando para que em um momento de desespero possa recorrer às Forças Armadas em sua defesa, enquanto continua defendendo a ditadura. Acaba de dizer que nas prisões da época até os terroristas “eram tratados com respeito”. Nada de novo, pois, desde que era um obscuro deputado, defendia a tortura e se acaso acusou a ditadura foi por ter perdido tempo torturando, já que o que deveria ter feito era simplesmente “matar”. Os sentimentos de Bolsonaro desaguam sempre no culto às armas, no ódio à democracia e no desprezo pelas liberdades. Todos os ingredientes dos velhos caudilhos.

Há quem tema que Bolsonaro, incomodado com as instituições independentes da República, esteja cansado de ter que harmonizar seu Governo contando com elas.

A crescente desconfiança em relação aos demais Poderes do Estado, que ficou clara em suas turbulentas relações com o Supremo Tribunal Federal e com o Congresso, aos quais desejaria ter a seus pés e que já ameaçou fechá-los, revela que sua própria essência de político é ter um poder absoluto com as instituições a seus pés.

Nasce daí nos analistas políticos o temor de que, se as forças democráticas não se unirem em 2022 para tirá-lo do poder, seu segundo mandato poderá ser muito mais autoritário e ele até poderia aproveitar para dar um golpe com o qual sonha desde que chegou ao poder sem perceber que na política não se pode trabalhar como nos quartéis.

A política é a arte do compromisso e conjugar a liberdade das diferentes instituições, caso contrário é a morte da democracia. E Bolsonaro sempre foi alérgico a mediações e a saber conviver com o diálogo.

Com tudo isso, se começa a pensar que se o presidente continuar em seu atual mandato a boicotar abertamente as instituições, com ausência de empatia com as dores da nação, trancado em seu labirinto de autoritarismo e mentindo como até agora, as outras instituições democráticas deveriam começar já a buscar uma forma de retirá-lo de um poder para o qual nestes primeiros dois anos de mandato está se revelando totalmente incapaz, causando um caos com seu Governo negacionista em todos os espaços.

O Brasil é maior que seus políticos. É um país que merece respeito e não pode estar nas mãos de uma pessoa que humilha todos os dias o seu povo, que mente com a maior desenvoltura, que não é capaz de organizar a economia, que ignora os problemas estruturais do país. Um presidente que zomba dos direitos humanos, que mente com o maior descaro e continua a caçoar do racismo estrutural de que o país ainda sofre, bem como dos direitos da mulher, e que não demonstrou num só instante um sentimento de compaixão com a perseguição aos diferentes e a todos aqueles que o capitalismo insensível está arrastando todos os dias para a pobreza, a fome e a violência.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.


Gil Alessi: Do ‘01’ ao ‘04’, Bolsonaro entra na mira do STF por suspeita de blindar seus filhos com a máquina pública

Suspeita de que a Abin produziu relatórios para ajudar a defesa de Flávio Bolsonaro se soma à lista que inclui troca no comando da PF, influência nas eleições do MP do Rio e outras manobras

O presidente Jair Bolsonaro sempre disse ser um “defensor da família”. Com quase dois anos à frente do Governo, transparece a preocupação do mandatário em proteger pelo menos uma delas: a sua própria. A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, determinou nesta sexta-feira que a Procuradoria-Geral da República investigue a suposta produção de relatórios pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) com o objetivo de auxiliar a defesa do senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente. O parlamentar é investigado ao lado do seu ex-assessor Fabrício Queiroz por ter supostamente organizado um esquema de rachadinha em seu gabinete à época em que era deputado estadual pelo Rio.

Esta “Abin paralela”, como vem sendo chamada, teria municiado a advogada de Flávio, Luciana Pires, com material a ser usado no caso, segundo reportagem da revista Época. De acordo com a defensora, as orientações teriam vindo diretamente de Alexandre Ramagem, diretor-geral da Abin e homem de confiança de Bolsonaro. Um dos relatórios deixa claro seu objetivo: “Defender FB [Flávio Bolsonaro] no caso Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro] demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”. A própria Luciana Pires confirma ter recebido o relatório, segundo a reportagem, uma afirmação que contradiz o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e a própria Abin, que negaram a produção de material para ajudar o senador. Ramagem confirmou, no entanto, ter participado de reunião com a defesa do parlamentar na qual estiveram presentes o presidente e Heleno. Em nota, a Agência e o GSI afirmam que o encontro foi “completamente regular”.

A repercussão do suposto relatório da Abin incendiou a oposição, que já se articula para protocolar mais um pedido de impeachment do presidente, como afirmou nas redes sociais a presidenta nacional do PT, Gleisi Hoffmann. O Governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), fez coro à petista: “Caso confirmado, o uso da Abin para interesses exclusivamente pessoais de Bolsonaro não é apenas crime de responsabilidade, sujeito a impeachment. É também crime comum e ato de improbidade administrativa”. Por sua vez, o PSB e a Rede pediram a saída de Ramagem do cargo. No momento, a bola está com o procurador-geral, Augusto Aras, que terá que investigar o caso e prestar contas ao STF sobre suas descobertas.

Caso fique provado que a Abin agiu para ajudar Flávio, será escrito mais um capítulo em uma história de episódios nos quais a atuação do presidente parece borrar a linha que separa os negócios privados do clã e a máquina pública. Do mais velho, o “01”, como Flávio é conhecido, até o “04”, referência a Renan, 22, o mais novo de seus quatro filhos homens, toda a prole de Bolsonaro (com exceção da caçula, Laura) foi afetada por ações do pai. Como o próprio presidente disse: “Pretendo beneficiar filho meu sim, pretendo, se puder dar um filé mignon para o meu filho, eu dou”. Veja as acusações de interferência do mandatário em órgãos públicos para ajudar a família:

A Justiça investiga Flávio, o “01”, e Carlos, o “02”

O suposto envolvimento da Abin para ajudar a defesa de Flávio é apenas o último movimento de um xadrez político que levou o presidente tomar medidas enérgicas para tentar aliviar a pressão sobre o senador e seu irmão, o vereador Carlos Bolsonaro, o filho “02”, que também entrou na mira das autoridades.

Sobre Carlos, pesam várias suspeitas. Uma delas é de peculato, ao empregar em seu gabinete funcionários fantasma. A mais rumorosa, no entanto, é a de que ele poderia ser o articulador de um esquema criminoso de disseminação de fake news. Um inquérito, com investigação da Polícia Federal, corre atualmente no Supremo. Nele, o “02″ é aparece como suspeito de ser líder do chamado “gabinete do ódio”, um grupo de assessores que se encarregam de espalhar mentiras sobre ministros do STF e apoiar manifestações antidemocráticas nas redes sociais e em grupos de apoiadores do presidente, pedindo o fechamento do Congresso e do STF.

Nos últimos meses, a PF desencadeou uma série de operações de busca e apreensão relacionadas a este caso, levando à prisão, inclusive, de influenciadores bolsonaristas. Foi o caso, na própria sexta-feira, do blogueiro Oswaldo Eustáquio. Ele estava em prisão domiciliar, mas descumpriu as restrições definidas pelo STF para ir participar de uma reunião no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, da ministra Damares Alves. A tornozeleira eletrônica denunciou seu deslocamento e ele foi recolhido por determinação do ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito.

Com os dois filhos mais velhos na mira de investigações, o clã presidencial passou para o ataque. O primeiro passo foi articular a troca no comando da Polícia Federal em abril deste ano, com a exoneração do diretor-geral da entidade, o delegado Maurício Valeixo —visto pela mandatário como muito independente. O então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, denunciou a orquestração: em seu discurso de renúncia, ele acusou o presidente de tentar influenciar politicamente a PF. “O presidente me disse, mais de uma vez, que ele queria ter uma pessoa do contato dele que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, colher relatórios de inteligência”, afirmou.

Posteriormente, o ministro demissionário apresentou à TV Globo uma troca de mensagens entre ele e o presidente na qual o mandatário teria sugerido a saída de Valeixo para proteger aliados. Posteriormente vieram à tona imagens de uma reunião ministerial na qual Bolsonaro diz que não esperaria alguém “foder” a família dele, ou amigo, para trocar alguém da “segurança”. A fala do mandatário também fazia referências ao Rio de Janeiro, onde as investigações se aproximam de Flávio e Carlos.

A suposta influência do presidente na chefia da PF para proteger aliados —dentre eles seus filhos— deu origem a um outro inquérito que tramita atualmente no STF para apurar se houve irregularidade. Não há prazo para sua conclusão, e o presidente ainda não foi ouvido.

Em outra frente para tentar blindar Flávio e Carlos, o clã entrou nas eleições para a chefia do Ministério Público do Rio, Estado onde correm investigações contra ambos. O atual procurador-geral, Eduardo Gussem, foi criticado pelo “01” por sua atuação no caso da rachadinha no gabinete. Os Bolsonaro cerraram fileiras em torno do procurador Marcelo Rocha Monteiro, bolsonarista assumido, como uma opção para a lista tríplice, definida em dezembro, de onde é escolhido o nome do próximo procurador-geral de Justiça do Estado. No final, Monteiro foi o quarto mais votado pelos promotores. Agora cabe ao governador interino Cláudio Castro optar por manter a tradição e indicar para a chefia um integrante da lista, ou fazer um aceno ao presidente nomeando o candidato da família para o cargo ―uma opção caso algum dos três integrantes da lista tríplice desista da candidatura.

Publicamente, o presidente alega que estes órgãos estão agindo para prejudicar seus filhos em uma tentativa de atingi-lo —ele chegou até a dizer que se tratava de perseguição política do então governador Wilson Witzel. Agora alvo de processo de impeachment, Witzel buscava se cacifar para disputar o Planalto em 2022, o que justificaria, segundo Bolsonaro, as tentativas de desmoralizar sua família.

Uma embaixada para Eduardo, o “03”

Em julho de 2019 o presidente fez um de seus mais ousados movimentos com o objetivo de colocar nas mãos da família um importante cargo público. Jair afirmou que iria indicar o deputado federal Eduardo Bolsonaro, o “03”, para a vaga de embaixador do Brasil em Washington, uma das mais cobiçadas e prestigiadas representações do país no exterior, tradicionalmente reservada para diplomatas de carreira que se destacam no exercício da função. “Vou nomear, sim. E quem disser que não vai mais votar em mim, lamento”, chegou a afirmar o presidente ao ser questionado sobre a medida. “Eu quero uma pessoa de confiança minha na embaixada dos EUA (...) Vocês acham que eu colocaria um filho meu em um posto de destaque desse para pagar vexame?”, indagou.

A indicação logo começou a fazer água. Sob acusações de nepotismo, parlamentares de oposição e mesmo alguns aliados do presidente começaram a boicotar a nomeação de Eduardo, alegando que ele não seria aprovado na sabatina a que teria que se submeter no Senado antes de ser empossado. A reação da população também desencorajou o Planalto a manter o nome do deputado para a vaga, com 62,8% dos brasileiros se opondo à ascensão do filho do presidente para o novo emprego, segundo uma pesquisa da consultoria Atlas Político. No final de outubro, pouco mais de um mês após o início das articulações em prol do “03” em Washington, o próprio Eduardo tomou a palavra da tribuna da Câmara e anunciou a desistência, alegando que precisava ficar no Brasil para ajudar a manter viva a onda conservadora que o elegeu.

O empreendedorismo de Renan, o “04”

Os negócios do filho caçula se misturaram recentemente com os do Governo, em ações que suscitaram críticas por possível tráfico de influência do presidente. A primeira sinalização de que Renan estava entrando no jogo político político com suacompanhia startup ocorreu em 13 de novembro, quando o caçula articulou e participou de uma reunião entre o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e um grupo de empresários da Gramazini Granitos e Mármores —companhia que patrocina a Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, fundada pelo caçula e cuja sede fica em um camarote do estádio Mané Garrincha. O compromisso não constava na agenda oficial do ministro e foi revelado pela revista Veja. A Gramazini apresentou a Marinho durante o encontro um projeto de moradias populares feitas em pedra. A pasta informou que Renan “participou na qualidade de ouvinte e por acreditar que o sistema construtivo teria potencial de reduzir custos para a União”, e que a reunião foi um pedido do Planalto.

Mas as relações da empresa de Renan com o Planalto vão além de promover reuniões entre os investidores de seu negócio e ministros. A Astronautas Filmes, produtora de audiovisual que possui contrato milionário com o Governo —tendo feito vídeos para os ministérios da Saúde, Educação e Turismo— realizou gratuitamente a cobertura da festa de inauguração da Bolsonaro Jr. Eventos e Mídia, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo. O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) solicitou à Procuradoria da República que investigue suposto tráfico de influência no caso.

Em nota, a Astronautas Filmes afirma que “a chamada ‘parceria’ com Renan Bolsonaro foi restrita à produção de um único vídeo de lançamento para um projeto social, que tinha como público-alvo empresários da cidade de Brasília. Ressalte-se, a convite dos organizadores do evento. Por se tratar de um público de interesse, optamos por inserir a marca da produtora na comunicação do evento em contrapartida ao produto entregue”. Eles também alegam que não existe nenhum “laço de favorecimento”.


Juan Arias: Brasil reage com iniciativas de vida aos instintos de morte de Bolsonaro

Sobre os ombros do presidente cairá a dor de que o o país tenha um Natal de luto e de dor por tantas vidas perdidas pela covid-19

Os dois maiores crimes do presidente Jair Bolsonaro em seus dois anos de Governo foram o negacionismo da pandemia, chamando-a de “gripezinha” e depois qualificando de “covardes e maricas” aqueles que se esforçam em tomar as medidas ditadas pela medicina e pela ciência para se proteger do contágio. Para dar o exemplo, Bolsonaro desprezou publicamente todas as medidas de prevenção.

Junto com o desprezo pela epidemia que fez mais de 180.000 vítimas, o que lhe valeu o qualificativo de genocida, Bolsonaro entrará tristemente na história também por seu desprezo pelo meio ambiente e sua destruição da Amazônia, uma das maiores riquezas do país e do mundo.

Diante desses crimes com instintos de morte e destruição, o Brasil começa a reagir com uma iniciativa de vida fortemente simbólica: a de plantar uma árvore para cada vítima da epidemia que terá gravados seus nomes. Dois desafios de vida contra os instintos de destruição do presidente.

O Brasil está, efetivamente, perdendo sua imagem no mundo com as atitudes de morte e destruição de seu Governo. O The New York Times, considerado um dos jornais mais sérios do mundo, acaba de publicar que o Brasil é o país que travou da pior maneira a luta contra o vírus, talvez junto com os Estados Unidos de Trump, o ídolo de Bolsonaro. Não por acaso são os dois países do mundo com mais óbitos.

A pastora evangélica Damares Alves, ministra da Mulher e dos Direitos Humanos que quer que os meninos usem azul e as meninas, rosa, nas escolas, teve o sarcasmo de afirmar que o Brasil finalmente tem o presidente que necessitava: um presidente “macho”. Talvez tenha querido dizer um presidente que odeia as mulheres, as pessoas frágeis, os diferentes, a quem chama de covardes. Um presidente sem empatia pelos que vivem à margem da sociedade, sofrendo o flagelo das terríveis desigualdades sociais e que está destruindo a economia e a convivência nacional. Um presidente com o qual o Brasil perdeu cinco posições no ranking de desenvolvimento humano, como a ONU acaba de anunciar.

Não, o Brasil não precisa de um presidente “macho”. Está precisando de um estadista com projetos de vida e de reconstrução de um país em crise. Um estadista que aposte em projetos de vida e não de morte. Que tenha um sentimento de empatia pelas pessoas, que saiba sofrer com suas dores e suas tristezas. Que seja solidário com as famílias das vítimas, que apresente programas capazes de fazer o país crescer e lhe devolva o amor pela vida e não pela morte. Um presidente que acredite no melhor deste país, que é seu amor pela vida em vez de semear ódios e instintos de morte.

Dizer que o que este país precisa é de um presidente “macho” é ofender as mulheres em um país que mais as mata e onde elas ainda não ocupam o lugar que lhes corresponde na sociedade. É a melhor forma de dizer que o Brasil deve ser governado por machistas, autoritários, amantes das armas, do autoritarismo, que despreza tudo o que é frágil e marginal. É ir na contramão de uma luta universal contra o desprezo pelo feminino e onde, com muito sofrimento e lutas, o mundo da mulher começa a abrir espaço.

Machismo é o que o mundo tem de sobra. Chegou a hora de abrir novos espaços e horizontes para combater definitivamente o preconceito em relação aos valores femininos. Com a presença de Bolsonaro, o presidente macho, o Brasil continuará indo ladeira abaixo em suas lutas para construir uma sociedade mais humanitária, menos classista e desigual. Enquanto isso o Brasil afunda, brincando com o caos, brincando com a vida. O Natal se aproxima, e o presidente macho, que coloca em seu emblema “Deus acima de tudo”, continua apostando na morte em vez de na vida.

Sobre seus ombros cairá a dor de que o Brasil tenha um Natal de luto e de dor por tantas vidas perdidas. Na boca de Bolsonaro, com o nome de Deus que evoca amor por todos e principalmente pelos abandonados e marginalizados, a vida soa mais como uma blasfêmia.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.


Beatriz Jucá: A “angústia” quase ofensiva de Pazuello

Ministro chama de “ansiedade” e “angústia” a cobrança por um plano de vacinação em um país que conta mais de 183.000 mortes, após semanas marcadas por falta de transparência e guerra ideológica

Depois de meses vendo o Governo Bolsonaro mergulhar no negacionismo e abrir mão de um valioso arsenal do Sistema Único de Saúde (SUS) no combate à pandemia, o Brasil enfim viu uma luz no fim do túnel nesta quarta-feira. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, ampliou o leque de vacinas consideradas no plano nacional e incluiu até a do laboratório chinês Sinovac ―já rejeitado verbalmente pelo presidente Bolsonaro, mas cuja aquisição vinha sendo requisitada por pesquisadores, governadores e prefeitos diante de uma sinalização de resultados promissores. Uma coordenação nacional da vacinação era pleiteada por todos eles. Foram semanas de cobranças sem respostas efetivas, reuniões a portas fechadas, colaboradores técnicos com microfones silenciados e informações difusas disparadas para a população a conta gotas pelo Governo. Ainda assim, um Brasil atormentado por mais de 183.000 mortes causadas pela covid-19 ouviu do ministro: “Para quê esta ansiedade, esta angústia?”.

A declaração foi feita pelo ministro durante a apresentação oficial do plano de operacionalização da vacinação contra a covid-19 no país. Um documento “prévio” de 94 páginas já havia sido enviado a pedido do Supremo Tribunal Federal (STF) e aberto uma crise com pesquisadores do próprio corpo técnico do Ministério ―listados entre os elaboradores, mas que só viram o documento publicado na imprensa. Nenhuma menção oficial direta à intenção de adquirir a Coronavac aparecia nos documentos ou coletivas de imprensa, apesar da pressão intensa de governadores e da velocidade que a pandemia voltava a ganhar no país, com os sistemas de saúde de vários Estados funcionando no limite da sua capacidade.

O STF precisou entrar no jogo e obrigar o Governo a apresentar um plano com todas as vacinas e, depois, um prazo para iniciar a vacinação. Só então Pazuello indicou que demoraria cinco dias para fazer as vacinas chegarem aos Estados, a serem contados após registro da Anvisa e entrega aos estoques do Ministério. Enquanto isso, seu chefe Jair Bolsonaro que já havia dito que não compraria a “vacina chinesa do Doria”― ia à televisão afirmar que não tomaria a vacina do coronavírus e que pretendia exigir um termo de responsabilidade aos que fossem ser vacinados. Bolsonaro, que jogou mais desconfiança sobre as vacinas, mudou o tom nesta quarta e pediu união. “Se algum de nós exagerou foi no afã de buscar solução”, disse. Pazuello também resolveu tentar aplacar a guerra ideológica abraçada pelo Governo do qual participa. “Qualquer fumaça ou discussão anterior ficou para trás. Todos os brasileiros receberão a vacina de forma grátis e igualitária”, afirmou.

Os sinais de que o Governo coordenará a estratégia de vacinação é um alívio para a sociedade brasileira ―que corria o risco de assistir a uma desastrosa disputa entre Estados e uma estratégia desarticulada. O próprio ministro Pazuello agora prega a união entre os três entes federativos, depois de meses com a pasta que conduz seguindo uma agenda ideológica bolsonarista ―da posição contrária às políticas de restrição de circulação implementadas pelos Estados à aposta na cloroquina (ou, como costumam dizer nas coletivas, “o tratamento precoce” que a ciência não reconhece) como ação de combate à pandemia. Diante da apatia da União, foram intensas as movimentações de governadores e prefeitos nos últimos dias em busca de um plano B para antecipar a campanha de vacinação. Pazuello parece ignorar todo este contexto ao dizer, só agora: “Não podemos abrir mão de nos tratar como um país”.

O ministro ―que já projetou várias datas para iniciar a vacinação e, nesta quarta, estimou meados de fevereiro para jornalistas e 21 de janeiro a governadores― ainda critica uma suposta onda de “desinformação” sobre a capacidade do SUS de realizar uma ampla campanha. O Brasil tem um dos maiores sistemas de saúde do mundo e um reconhecido Programa Nacional de Imunização (PNI). Tem dois potentes institutos capazes de produzir imunizantes: a Fiocruz e o Butantan ―com acordos, respectivamente, para produzir a Astrazeneca e a Sinovac. Cientes desta expertise, pesquisadores levaram as mãos à cabeça diante de uma aparente inércia e da falta de transparência do Governo nas últimas semanas. Vários deles alegam que o Brasil saiu atrasado na corrida por um imunizante e agora precisa correr atrás do prejuízo para garantir a entrega breve de vacinas e até a compra de seringas e agulhas. O Brasil planeja uma campanha de 16 meses, e os cronogramas para a chegada de cada vacina ainda são vagos.

“Vamos levantar a cabeça. Acreditem: o povo brasileiro tem capacidade de ter o maior Sistema de Saúde Único do mundo, de ter o melhor plano de vacinação”, animou Pazuello. O ministro pede a confiança de milhares de brasileiros que já viram as armas do SUS serem desperdiçadas neste ano. Um exército de agentes de saúde, presente em praticamente todos os municípios, não foi aproveitado em uma estratégia coordenada de rastreio de casos para frear contágios. O Brasil tampouco conseguiu implementar políticas eficazes no controle da pandemia, mas tem sim um SUS forte e um PNI robusto. Os anúncios desta quarta-feira foram celebrados por pesquisadores, enfim ouvidos pelo ministério. Os próximos passos dependem do registro dos imunizantes na Anvisa e da capacidade do Governo de formalizar as compras e garantir entregas num contexto de escassez global e de produção ainda pequena no país, no momento iniciada apenas pelo Butantan. A Fiocruz deve começar a produção em janeiro. “Precisamos produzir mais e ter a capacidade de controlar a ansiedade e a angústia”, insiste o ministro. O Governo precisa dar respostas a um país que segue amplamente vulnerável à pandemia há quase dez meses e que vê seus profissionais da linha de frente exaustos na iminência de uma nova grande onda de contágios.


El País: Suprema Corte enterra a tentativa de Trump de reverter as eleições

O tribunal rejeita ação iniciada no Texas, com o apoio do presidente, para anular os votos de quatro estados, o que deixa quase morta a cruzada republicana contra sua derrota

Amanda Mars, El País

A Suprema Corte dos EUA rejeitou nesta sexta-feira uma ação movida pelo procurador-geral do Texas para anular os resultados eleitorais de quatro estados-chave na derrota do ainda presidente Donald Trump―Geórgia, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin― e deixou praticamente morta a cruzada legal em andamento para reverter as eleições, acenando com o espectro da fraude. A resolução se soma à da terça-feira passada, que também rejeitou uma tentativa republicana da Pensilvânia na mesma direção, e deixa claro que a mais alta autoridade judicial do país, com maioria conservadora, não participará da campanha incomum do presidente.

Sim, participaram disso vários altos funcionários e membros do Partido Republicano, companheiros de viagem em mais de cinquenta iniciativas judiciais, todas e cada uma delas malsucedidas. Este último processo no Texas foi um dos mais desconcertantes, apresentado pelo procurador-geral Ken Paxton diretamente à Suprema Corte para anular o escrutínio de quatro outros territórios. “O Texas não demonstrou interesse judicial em sua jurisdição na forma como outro estado conduziu suas eleições. O resto das moções pendentes é rejeitado como discutíveis “, disse o tribunal superior em sua decisão.

Além do apoio do próprio presidente, a tentativa do Texas teve o suporte de uma centena de republicanos no Congresso e de mais de uma dúzia de advogados de estados da mesma cor política. Paxton alegou perante o tribunal superior que Joe Biden havia vencido graças a “votos ilegais” naqueles territórios, uma fraude causada pelo relaxamento das regras de votação antecipada e por correio (que um grande número de Estados promoveram pela pandemia). Assim, solicitou que sejam as câmaras legislativas desses Estados a conceder o voto final.

Trump lançou alegações infundadas de fraude ao longo da campanha, alegando que a enxurrada de votos pelo correio era um terreno fértil para irregularidades. Assim que a derrota foi percebida, já na noite das eleições, ele disse que o levaria à justiça. Com os resultados finais, Biden é o claro vencedor das eleições, com seis milhões de votos à frente de Trump, e depois de ter recuperado para os democratas aqueles territórios que o republicano reivindicou para si em vários processos: Wisconsin, Pensilvânia, Michigan , Arizona e Geórgia.

No entanto, nenhum juiz, independentemente de sua cor política, nem seu próprio Departamento de Justiça encontraram vestígios de fraude nas urnas com entidades que alterariam esse resultado. Ainda há algumas questões legais pendentes, mas a Suprema Corte deixou a batalha de Trump mortalmente ferida. Nesta segunda-feira, o Colégio Eleitoral dará os votos finais ao democrata. Os norte-americanos elegem seu presidente de forma indireta: seus votos populares servem para eleger delegados que são os que, na próxima segunda-feira, 14 de dezembro, confirmarão a vitória de Biden. Ele obteve 306 dos 538 votos eleitorais em jogo (são necessários 270 para vencer), em comparação com 232 para Trump. Em 6 de janeiro, o Congresso deve contar esses votos e, no dia 20, Biden toma posse.

Mas Trump não planeja admitir a derrota. Seus seguidores mais leais também não. Neste sábado, eles convocaram novamente uma manifestação em Washington para protestar contra esta suposta fraude e pedir ao seu líder que não ceda.


El País: Estados Unidos processam Facebook por monopólio

Procuradores de 48 Estados do país e o órgão regulador do Comércio pedem que a empresa de tecnologia venda o Instagram e o WhatsApp

A Comissão Federal do Comércio dos Estados Unidos (FTC na sigla em inglês) e um grupo de procuradores de 48 dos 50 Estados do país entraram com uma ação contra o Facebook nesta quarta-feira para reduzir o tamanho da empresa e sua posição de mercado. De acordo com o processo, a empresa de tecnologia dirigida por Mark Zuckerberg mantém seu “monopólio” no setor de redes sociais há anos por meio de condutas empresariais que atentam contra o livre exercício da concorrência.

A reação da empresa de tecnologia foi imediata e, em comunicado, lamentou os “efeitos adversos” que essas restrições terão sobre a comunidade empresarial e os usuários de seus serviços. O penúltimo capítulo da repressão antitruste à gigante de Palo Alto gerou inquietação no pregão, com o índice de tecnologia Nasdaq caindo quase 2%. Os restantes índices registraram ligeiras quedas, devido ao continuado bloqueio em torno do novo pacote de estímulos.

A ação, movida em um tribunal federal de Washington, foi anunciada pela procuradora-geral do Estado de Nova York, Letitia James, que lidera a ação. Os Estados acusam o Facebook de adquirir ilegalmente concorrentes como Instagram e WhatsApp, privando dessa maneira os consumidores dos benefícios e vantagens de um mercado competitivo com maior proteção da privacidade. O Facebook comprou o Instagram em 2012 por um bilhão de dólares e o sistema de mensagens WhatsApp dois anos depois por 1,9 bilhão de dólares. Desde que foram adquiridas pelo Facebook, as redes sociais viram sua popularidade disparar, contribuindo para reforçar o monopólio da empresa de tecnologia, que começou em um alojamento estudantil de um campus e cujo valor agora é estimado em mais de 800 bilhões de dólares.

Os reguladores federais e estaduais investigaram a empresa de Zuckerberg por 18 meses. “Essa conduta prejudica a concorrência, deixa os consumidores com pouca margem de escolha para suas redes sociais pessoais e priva os anunciantes dos benefícios da concorrência”, disse a FTC em um comunicado. Os autores da ação solicitam ao tribunal que obrigue o Facebook a desinvestir em ativos ou implementar uma reestruturação de seus negócios, especialmente em relação à rede social fotográfica e ao popular serviço de mensagens.

“As redes sociais são fundamentais para a vida de milhões de norte-americanos. A prática do Facebook de se entrincheirar e manter seu monopólio nega aos consumidores o benefício da concorrência”, afirmam os reclamantes, em uma conduta que consideram claramente “anticompetitiva”.

O processo ilustra a crescente ofensiva nacional e internacional contra o gigante da tecnologia. Legisladores e reguladores há muito buscam o Facebook, Google, Amazon e Apple por seu domínio no comércio, eletrônicos, mídia social, mecanismos de busca e publicidade na Internet, algo que para muitos representa uma injeção econômica em tempos de crise devido à pandemia, mas que, na consideração de outros, como o presidente Donald Trump e seu rival, o presidente eleito Joe Biden, representa um risco pelo poder e influência que acumulam. Tanto o partido Democrata quanto o Republicano têm sido a favor da regulamentação da atividade das grandes tecnologias, o que foi comprovado nos últimos meses em uma ação do Departamento de Justiça contra o Google por abusar de sua posição diante da concorrência. Outro na mesma direção é esperado, a pedido de legisladores republicanos e democratas, até o final do ano. Os reguladores na Europa também defendem leis mais rígidas para limitar o domínio da indústria de tecnologia e impuseram multas de bilhões de dólares por violar as leis de concorrência.

As batalhas contra o Facebook devem desencadear uma guerra jurídica árdua e prolongada, diante da qual a tecnologia parece blindada por seu valor de mercado incomensurável e uma defesa de luxo mais do que provável. A empresa rejeitou repetidamente que viola quaisquer regras antitruste. Muito poucos casos antitruste importantes apontaram para fusões aprovadas e encerradas anos antes; na verdade, a Federal Trade Commission aceitou os acordos para adquirir o Instagram e o WhatsApp pelo Facebook durante o mandato de Barack Obama.


El País: Ofensiva judicial de Trump para reverter as eleições desmorona na Suprema Corte

A principal instância do Judiciário dos EUA rejeita o pedido de anulação dos resultados da Pensilvânia feito pelos advogados do presidente

A Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou na terça-feira uma solicitação apresentada por membros do Partido Republicano para que os resultados eleitorais da Pensilvânia ― já certificados em favor de Joe Biden ― sejam anulados. Desde a noite eleitoral de 3 de novembro, Donald Trump depositava suas esperanças em impugnar o resultado na principal instância judicial norte-americana, de maioria conservadora. Mas a primeira decisão do tribunal não foi favorável ao republicano, que insiste em apontar fraude nas eleições.

Os juízes da Suprema Corte votaram a favor de manter a sentença de um tribunal da Pensilvânia que havia rejeitado a ação dos republicanos relativa aos votos pelo correio. Os autores da ação, encabeçados pelo congressista republicano Mike Kelly, pediram à corte estadual que anulasse os 2,5 milhões de cédulas enviadas por via postal, por considerarem que são irregulares, ou então que ordenasse aos deputados estaduais que escolham eles próprios, independentemente do voto popular, os delegados que representarão o Estado na reunião do Colégio Eleitoral, em 14 de dezembro, que elegerá formalmente o próximo presidente do país. Esse cenário configurava uma tentativa de subverter o processo democrático, segundo argumentaram os advogados que representavam o Estado da Pensilvânia, pois seria ignorar o sentido do voto dos cidadãos locais.

A decisão da Suprema Corte publicada na tarde de terça-feira consistiu em uma só frase, aprovada de maneira unânime (não houve dissidências por escrito): “A solicitação de uma medida cautelar apresentada ao juiz [Samuel] Alito e por ele remetida ao Tribunal foi rejeitada”. Os autores da ação solicitavam que os magistrados obrigassem os funcionários do Governo estadual da Pensilvânia a deterem o processo de certificação dos votos ou “anular qualquer ação já adotada” enquanto os republicanos continuam apresentando novas ações e recorrendo das já rejeitadas nos tribunais de recursos estaduais. O governador democrata do Estado, Tom Wolf, já certificou a vitória de Biden, e os seus 20 eleitores se reunirão em 14 de dezembro para votar a favor do democrata.

A Suprema Corte da Pensilvânia rejeitou a ação republicana por entender que ela viola uma lei estadual de 2019 que permite votar por correio sem necessidade de dar explicações. “No momento em que se apresentou esta ação, em 21 de novembro de 2020, milhões de eleitores da Pensilvânia já haviam manifestado sua vontade tanto nas eleições primárias de junho de 2020 como nas eleições gerais de novembro de 2020”, observou o tribunal.

Os advogados do Estado acusaram os autores da ação de tentarem criar uma das disputas mais “dramáticas e perturbadoras do Poder Judiciário na história da República”. “Nenhum tribunal jamais emitiu uma ordem que anulasse a certificação dos resultados de eleições presidenciais por parte de um governador”, escreveram os juízes na sua sentença no final de novembro. A Suprema Corte dos EUA não costuma questionar sentenças dos órgãos estaduais em matéria eleitoral.

Biden teve 50% dos votos na Pensilvânia, contra 48,8% de Trump. O presidente-eleito somou 306 votos no Colégio Eleitoral, superando comodamente os 270 necessários para chegar à Casa Branca. Mesmo se o republicano tivesse conseguido reverter o resultado da Pensilvânia, com 20 votos eleitorais, o democrata continuaria como vencedor do Colégio Eleitoral.

Mais de um mês depois das eleições, Trump continua sem admitir sua derrota, e a ofensiva judicial por ele iniciada até agora só acumula derrotas, chegando a ser ridicularizada em alguns despachos. Antes da divulgação da sentença da Suprema Corte, Trump, em um ato na Casa Branca relacionado às vacinas contra o coronavírus, estimulou seus partidários a “terem a coragem” de reverter os resultados. “Vejamos se alguém tem a coragem, um parlamentar ou os Legislativos estaduais, um juiz da Suprema Corte ou vários juízes da Suprema Corte. Vejamos se terão a coragem de fazer o que todo mundo neste país sabe que é o certo”, disse.

Na tarde de terça-feira, o procurador-geral do Texas, Ken Paxton, moveu uma ação junto à Suprema Corte para impugnar os resultados das eleições na Geórgia, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin, por supostamente descumprirem a legislação eleitoral e aprovar mudanças de última hora relativas ao voto postal ― as quais foram adotadas para facilitar a participação em meio à pandemia de coronavírus sem pôr o eleitorado em risco. Paxton, um grande defensor de Trump, acusou os quatro territórios que deram o triunfo a Biden de terem “inundado seus cidadãos com solicitações e cédulas ilegais”. A ação busca impedir que os eleitores dos Estados votem em 14 de dezembro seguindo o resultado de cédulas “ilegais e constitucionalmente contaminadas”. Não há nenhum indício que sustente essas acusações.


Jamil Chade: As veias abertas do mundo

Três décadas depois do ápice da crise da Aids, o planeta comete os mesmos erros e ameaça deixar bilhões de pessoas sem acesso a tratamentos e vacinas contra a covid-19

Em meados dos anos noventa, um tratamento contra o vírus HIV já existia, permitindo ampliar a sobrevivência daqueles que tinham sido infectados. Mas esse benefício da ciência praticamente só era uma realidade para aqueles que viviam em países ricos. O tratamento custava em média 10.000 dólares por ano e, assim, um paciente na África precisaria do equivalente a 20 anos de salários para pagar por apenas alguns meses do coquetel de remédios que deveria tomar para o resto de sua vida.

Na prática, o tratamento não existia para uma enorme porção da população mundial.

De acordo com a entidade Médicos Sem Fronteiras, até que os remédios fossem disponibilizados em sua versão genérica e sem patentes para essas populações mais pobres a um custo de 1 dólar por dia, 11 milhões de pessoas morreram apenas no continente africano.

Nem todos eles teriam sido salvos se os remédios chegassem antes. Mas certamente milhões de famílias poderiam ter evitado o pior e prolongado a vida —inclusive produtiva— de seus entes queridos.

Trinta anos depois, o mundo caminha para repetir uma história similar e revelar que a humanidade sofre de uma amnésia aguda quando o tema é salvar vidas.

Diante da pandemia da covid-19, vacinas começam a chegar ao mercado e a ciência revela todo seu esplendor em promover um resultado em tempo recorde. No Reino Unido, uma senhora de 90 anos, Margaret Keenan, entrará para a história como a primeira a receber a vacina num país ocidental, nesta terça. Para muitos, a esperança é de que aquela dose represente o começo do fim de um pesadelo.

Mas nem essa ciência é para todos nem esse recorde é universal. Como já foi dito antes, se na primeira vez a história ocorreu como uma tragédia, ela se repete como uma farsa.

Atualmente, mais de 50% da capacidade de produção de vacinas no mundo já está reservada ou compradapor um grupo pequeno de países que, juntos, representam apenas 13% da população mundial. Levantamentos da Universidade Duke, nos EUA, revelam que Canadá, EUA e UE já garantiram doses que seriam suficientes para vacinar várias vezes toda sua população. Já dezenas de Governos simplesmente não contam com nem sequer uma dose.

Na esperança de garantir maior acesso e um melhor equilíbrio na distribuição, cem países em desenvolvimento apresentaram um projeto ambicioso: suspender patentes de produtos relacionados com a covid-19 e, assim, garantir sua produção genérica para permitir uma queda acentuada de preços e uma maior fabricação pelo mundo. Mas nem todos estão de acordo.

Nesta quinta-feira, uma reunião na Organização Mundial do Comércio (OMC) pode começar a definir qual o caminho que será tomado. Fundamental para a inovação, as patentes também são monopólios estabelecidos para recompensar o inventor pelos riscos que assumiu. Mas a qual preço para a humanidade?

Em salas elegantes em Genebra, negociadores de países desenvolvidos e detentores dessas patentes circulam na OMC com argumentos eloquentes, aparentemente sofisticados e repletos de diplomacia para justificar uma recusa ao projeto.

Para esse grupo, basta seguir a lei internacional de propriedade intelectual para assegurar um abastecimento. Por essas normas, um país pode solicitar a importação de um produto genérico caso uma situação de emergência exija. Na teoria, isso pode fazer sentido. Mas a realidade é que, em alguns casos, tal autorização poderia levar até três anos para ser concedida. Quantos morrerão até lá?

Alguns desses negociadores usam ainda de argumentos reais: de que vale quebrar uma patente para um remédio, tratamento ou vacina se a estrada até chegar a um certo povoado não existe?

Ao mencionar fragilidades dos países pobres, eles parecem ignorar como, no caso da Aids, os remédios genéricos transformaram a realidade de dezenas de países.

Eles tampouco citam dados da ONU que revelam que, durante a atual pandemia, a importação per capita de produtos médicos destinados a mitigar o impacto da covid-19 foi 100 vezes maior nos países ricos, em comparação às economias mais pobres do mundo.

Tampouco é mencionado como, na Itália, dois engenheiros resolveram usar uma impressora 3D para fabricar válvulas para respiradores de um hospital foram processados por violar regras de patentes. Quantas vidas aquela impressora teria salvo?

Uma vez mais, a crise sanitária de 2020 escancara a falácia de que o avanço da ciência funciona para todos. Por décadas, empresas abandonaram pesquisas sobre doenças que afetavam os mais pobres e que, portanto, não renderiam dividendo aos investidores. Elas foram chamadas de “doenças negligenciadas”, um nome hipócrita para falar, no fundo, de povos negligenciados.

Outro argumento que se desfaz na atual pandemia é de que empresas privadas precisam ser devidamente recompensadas por suas apostas na pesquisa de uma nova vacina, que poderia não funcionar. Elas têm razão. Mas, antes, precisariam revelar como, apenas no caso da covid-19, receberam o equivalente a 12 bilhões de dólares em recursos públicos de Governos para garantir suas inovações.

A equação é clara: o risco é coletivo. Se uma aposta numa vacina não funcionar, a empresa tem a segurança de ser resgatada por dinheiro público. Mas, em caso de vitória, a patente é sua recompensa e o lucro, obviamente, é privado.

A longo da atual pandemia, empresas têm alegado que precisam de 1 bilhão de dólares para desenvolver uma vacina e, portanto, querem a proteção de suas invenções. Esse mesmo setor privado, porém, não revela quanto recebem em isenções fiscais, em apoio de instituições públicas de inovação e nem qual será a margem de lucro de seu novo produto.

Na atual crise, há ainda um casamento silencioso sendo estabelecido. Nas negociações internacionais, Governos de países ricos garantem a proteção a suas multinacionais e indicam que não vão aceitar a ideia da quebra de patentes de produtos relacionados com a covid-19 na OMC. Em troca, recebem garantias de que serão os primeiros a serem abastecidos pelas vacinas.

Para preencher o vácuo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se apressou para criar um sistema que permita que uma parcela dessa inovação chegue aos países mais pobres e que essas populações não sejam pisoteadas na corrida pela salvação. Assim, a aliança mundial de vacinas —a Covax— foi estabelecida.

Mas a iniciativa vive uma falta crônica de recursos e simplesmente, com o que tem em caixa, não conseguirá atingir seu objetivo de chegar a 1 bilhão de pessoas até o final de 2021 em mais de 90 países.

Em eventos na ONU, na OMS, no G20 ou em outros fóruns internacionais, não são poucos os líderes que fazem discursos garantindo que a vacina precisa ser um bem público internacional.

Mas não aceitam a quebra de patentes nem abrem seus bolsos para garantir que a inovação chegue aos países mais pobres. Promessas vazias e uma fraude à humanidade.

Uma vez mais, os ricos vão ser os primeiros a serem imunizados. Enquanto isso, o restante —frequentemente mais escuro, mais exausto, mais distante de seus sonhos e mais desprotegido— faz uma fila interminável de esperança na forma de uma dose da vacina.

Em 2020, existe a cura para muitas doenças que matam. Existem alimentos para abastecer três planetas. E existem pessoas dispostas a ir ao socorro dessas populações. O que nem sempre existe é o compromisso politico para que isso se transforme em realidade.

O que existe hoje no mundo é um sistema que serve para estancar o sangue de uma ferida mais profunda, sem que a estrutura de poder seja modificada e sem que o monopólio seja desfeito. Para as veias abertas do mundo, o que temos no momento são curativos improvisados e insuficientes, prestes a definhar.

Assim como nos anos noventa, fica mais uma vez claro em 2020 que a vida ou a morte não dependem apenas do avanço da ciência. Mas de quem você é e onde, por acidente, nasceu.


Clara Becker e Gabriela de Almeida: Desinformação sobre processo eleitoral mira base da democracia

Neste ano, grande parte das notícias falsas não foi contra candidatos ou partidos, mas contra a eleição em si. A estratégia, especialmente perigosa, pode mostrar seus danos apenas no longo prazo

Em comparação com 2018, as eleições deste ano apresentaram uma redução na circulação de fake news. Essa foi a avaliação feita pelo ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e que encontrou respaldo na diminuição do volume de desmentidos publicados pelas agências de checagem parceiras do Programa de Enfrentamento a Desinformação nas Eleições 2020, da corte. Em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, Cristina Tardáguila, diretora da International Fact-Checking Network, apontou que a aliança de checadores detectou neste ano apenas um terço do total de notícias falsas visto na última eleição presidencial, quando comparados os dois finais de semana que antecederam o primeiro turno dos pleitos.

Mas talvez ainda seja cedo para comemorar. Primeiro porque eleições municipais tendem a polarizar menos o país do que as nacionais. Segundo porque grande parte das notícias falsas não foi contra candidatos ou partidos específicos, mas colocava em dúvida o processo eleitoral em si. A estratégia, especialmente perigosa, pode mostrar seus danos apenas no longo prazo.

Quando se trata de desinformação, é impossível elencar qual é a mais prejudicial. As que difamam e ferem a honra de alguém podem destruir reputações injustamente, as que enganam sobre assuntos relacionados à saúde podem levar à morte ou ajudar a propagar doenças já erradicadas. Mas e quando o conteúdo enganoso coloca em suspeita o sistema eleitoral?

Na superfície parece ser uma atuação sem grandes danos, mas por baixo a democracia vem sendo golpeada. Golpes nada singelos, nem um pouco silenciosos, mas que muitas vezes só apresentarão suas reais marcas —e o tamanho dos estragos— mais à frente.

Não é de agora que sistema eleitoral vem sendo colocado em xeque no Brasil. Nas eleições de 2014, quando Dilma Rousseff (PT) foi eleita presidente do país, o candidato derrotado Aécio Neves (PSDB) pediu, via partido, que fosse feita uma auditoria para verificar a “lisura” da eleição. Um dos argumentos do texto protocolado apontou para um questionamento que estaria circulando pelas redes sociais a respeito da infalibilidade da apuração.

Corta para 2020. Seis anos depois, os atores são outros, mas o discurso segue uma lógica muito semelhante.

Um estudo feito pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV (Fundação Getulio Vargas), em cooperação com o TSE, mapeou e analisou postagens que questionam a integridade do processo eleitoral desde 2014 no Facebook e no YouTube. De acordo com a pesquisa, o recorde de achados ocorreu em 2018, com a soma de 32.586 publicações sobre desconfiança no sistema eleitoral. Em 2020, em apenas nove meses foram encontrados 18.345 posts sobre o assunto, superando todo o ano de 2014.

Em entrevista à Folha, o coordenador digital de combate à desinformação no TSE, Thiago Rondon, chamou atenção para o horizonte que se forma para as eleições de 2022. “Há uma probabilidade altíssima de que o cenário que estamos vendo na eleição americana, de tentativa generalizada de desacreditar o sistema eleitoral, vá se repetir no Brasil em 2022 se não nos prepararmos de forma adequada”, alertou.

Analisando o cenário dos últimos meses, esse futuro de fato não parece tão distante assim. Uma apuração feita por Marianna Spring, repórter especialista em desinformação da BBC, revelou que a estratégia de Donald Trump de alegar uma possível fraude no sistema eleitoral vem acontecendo há meses, com o auxílio de contas influentes no Twitter. E foi na plataforma favorita do presidente americano que foi dada a largada para as primeiras acusações de fraude em abril deste ano.

Desde então, e até as eleições que ocorreram no início de novembro, Trump mencionou “eleições fraudulentas” ou “fraude eleitoral” pelo menos 70 vezes, criando paulatinamente um conflituoso clima de desconfiança no sistema eleitoral. A estratégia agitou os aliados e fez crescer uma onda questionadora que embarcou nas teorias conspiratórias criadas pela equipe do presidente.

A ferramenta de monitoramento da agência de checagem Aos Fatos verificou que entre os dias 15 e 22 de novembro, mensagens criadas com o intuito de questionar a lisura do sistema eleitoral no Brasil foram compartilhadas ao menos 303 vezes em 55 grupos de discussão política no WhatsApp.

Assim como a experiência americana, por aqui esses conteúdos também ganharam força ao serem impulsionados por influenciadores e apoiadores de Jair Bolsonaro, um dos principais questionadores do sistema eleitoral brasileiro e, veja só, também do praticado nos Estados Unidos.

Em live recente em seu perfil no Facebook, Bolsonaro endossou o apoio à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/19, de autoria da deputada federal Bia Kicis (PSL), que exige a impressão de cédulas em papel na votação e na apuração de eleições, plebiscitos e referendos.

De acordo com o texto, essas cédulas poderão ser conferidas pelo eleitor e deverão ser depositadas em urnas indevassáveis de forma automática e sem contato manual, para fins de auditoria, mas críticos temem que a medida possa ser alvo de ações fraudulentas, com o intuito de um retorno da prática massiva de compra de votos.

Para especialistas, as falas públicas de Bolsonaro que colocam em suspeita o sistema eleitoral preparam o terreno para as eleições de 2022, para o caso de um resultado que seja desfavorável para o presidente.

Ao defender as urnas eletrônicas após o fim do segundo turno das eleições municipais, no domingo (29), Luís Roberto Barroso chamou atenção para a impossibilidade de fraude no sistema eleitoral e disse não ter “controle sobre o imaginário das pessoas”. “Há aqueles que acreditam que a terra é plana, tem gente que acha que o homem não chegou na lua e tem gente que acha que o Trump venceu as eleições nos Estados Unidos”, ironizou.

Poucas horas depois, apoiadores do presidente orquestraram uma ação de ataque ao ministro, que chegou aos trending topics do Twitter. Por meio do nome de João de Deus, médium que está preso acusado por mais de 300 mulheres de crimes sexuais, Barroso foi citado em posts que questionavam a fala dele sobre crenças a partir da reprodução de um vídeo antigo em que o ministro falava abertamente sobre o respeito que tinha pelo médium após a cura de um câncer, em um caso clássico de desinformação movida por descontextualização.

Barroso tem razão, não temos controle sobre o imaginário das pessoas.

Mas agentes da desinformação conhecem estratégias eficazes para manipulá-lo. A repetição é uma delas. O cérebro humano tende a confundir aquilo que é familiar com aquilo que é verdadeiro. Por isso, mentiras repetidas muitas vezes acabam se tornando verdades para alguns.

E é por isso também que precisamos agir desde já contra esse tipo de desinformação que não é de hoje que vem envenenando o processo democrático.

Clara Becker e Gabriela de Almeida Pereira integram o Redes Cordiais, uma iniciativa que alia educação midiática no combate às notícias falsas.


El País: Trump começa a preparar candidatura de 2024: “Vejo vocês em quatro anos”

Em ato com republicanos na Casa Branca, presidente insinua que voltará à linha de frente na próxima eleição presidencial

Amanda Mars, El País

Quando um presidente norte-americano vê seu tempo na Casa Branca se aproximar do final, começa a trabalhar no seu legado: criar uma fundação, abrir uma biblioteca, escrever memórias, esse tipo de coisa. Donald Trump parece estar decidido a romper também essa convenção e já aponta abertamente uma etapa pós-presidencial na linha de frente da luta política, com a possibilidade inclusive de voltar a disputar o cargo em 2024. “Foram quatro anos fabulosos, estamos tentando ter outros quatro anos. Se não for assim, vejo vocês em quatro anos”, disse na terça-feira à noite em uma festa de Natal antecipada com membros do Comitê Nacional Republicano, como mostra o vídeo do evento publicado no site Politico e corroborado pelo relato de vários presentes compartilhado com o canal Fox.

O encontro ocorreu horas depois de o secretário de Justiça, William Barr, impor o enésimo e mais duro revés até agora ao presidente em sua cruzada judicial contra a vitória eleitoral do democrata Joe Biden. Barr, importante aliado de Trump no Executivo, afirmou à agência Associated Press que o Departamento de Justiça não encontrou provas dessa fraude maciça que o republicano denuncia, ainda obstinado em não reconhecer que seu rival eleitoral foi eleito presidente. Entretanto, com a bandeira dessa batalha judicial contra uma suposta fraude generalizada, Trump arrecadou até agora cerca de 170 milhões de dólares, dos quais a maior parte acabou engrossando um comitê destinado a financiar suas futuras atividades políticas, sob o nome de Salvar a América.

É mais um sinal de que o magnata nova-iorquino não pensa em desaparecer do cenário político depois de 20 de janeiro, quando Biden assumirá o mandato. Ele quer manter mobilizados esses 74 milhões de pessoas que votaram nele. A possibilidade de uma nova candidatura de Trump em 2024 começou a ser mencionada pouco depois da votação de 3 de novembro, a partir de declarações de seu círculo, sob condição de anonimato. Também amigos e outras pessoas próximas à sua filha, Ivanka Trump, que desempenhou o cargo de assessora presidencial nestes quatro anos, afirmaram a diferentes veículos de comunicação que ela também cogita um voo próprio na política. Outros Trumps ―como Donald Júnior, o mais velho entre os homens, e Lara, esposa de seu filho Eric —já consideraram a possibilidade de se lançar a diversos cargos eletivos.

A declaração de terça à noite foi a primeira manifestação pública das futuras intenções de Trump, de quem, em todo caso, não se espera uma aposentadoria discreta em sua mansão de Mar-a-Lago, na Flórida. O perfil que ele adotar, mais ou menos influente, marcará o processo de transição a ser aberto no Partido Republicano para as próximas eleições, algo semelhante ao que o Partido Democrata viveu após sua derrota de 2016.