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El País: Brasil só tem vacinas para 4% da população prioritária e enfrenta desafio para ampliar estoque
Primeiro lote distribuído aos Estados deve vacinar 2,8 milhões de pessoas. Além de gargalo na importação, especialistas recomendam negociação com outros fabricantes de imunizantes
Beatriz Jucá, El País
Mesmo com atrasos, o Brasil começou a vacinar grupos prioritários contra a covid-19 em vários Estados, mas ainda enfrenta um grande desafio para conseguir ampliar o quantitativo de doses necessário para viabilizar, de fato, uma imunização em massa. O primeiro lote que começou a ser distribuído nesta segunda-feira deve ser suficiente para vacinar, com o protocolo recomendado de duas doses, apenas 2,8 milhões de pessoas, segundo estimativas do próprio Ministério da Saúde, que considera no cálculo a fatia que pode ser perdida por problemas durante a operação de logística.
Isso corresponde a 4% dos 68,8 milhões de usuários dos grupos prioritários estabelecidos no Plano Nacional de Imunização (PNI), que foram enxugados neste primeiro momento diante da escassez de doses. O país entra em desvantagem para disputar no cenário global tanto a aquisição dos insumos para produzir os imunizantes aqui quanto para comprar doses prontas, inclusive de outros fabricantes. No momento, o principal gargalo é a importação, da China, da matéria prima para a produção local das duas vacinas já aprovadas pela Anvisa, a do Butantan/Sinovac e da Fiocruz/Oxford/AstraZeneca.
O ministério orienta começar a aplicar as doses disponíveis nos idosos que vivem em asilos, pessoas com deficiência internadas, profissionais de saúde da linha de frente e indígenas aldeados. Mas isso pode ser adaptado na ponta pelos Estados, que podem priorizar mais um ou outro grupo desses conforme a realidade local. Até a noite desta segunda-feira, a vacina havia chegado a dez Estados, além do Distrito Federal: Tocantins, Piauí, Ceará, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Goiás. Veículos que transportavam caminhões foram aplaudidos em alguns locais, um símbolo do sopro de esperança em meio a uma pandemia que já matou mais de 210.000 brasileiros e levou sistemas de saúde ao colapso. A vacina chega depois do ano mais mortal da história do Brasil, segundo os registro da associação de cartórios.
Apesar do alento deste momento com a chegada dos imunizantes ―o primeiro passo rumo ao controle da pandemia―, pesquisadores e até a Organização Mundial da Saúde têm destacado que o início da vacinação no Brasil não deve estimular os brasileiros a relaxarem os cuidados preventivos, como uso de máscaras e distanciamento social. Isso porque o país vive um agravamento da pandemia e ainda é longo o caminho tanto para que o país consiga doses suficientes para vacinar seus mais de 200 milhões de habitantes quanto para que se alcance a imunidade de rebanho (proteção coletiva ao vírus). O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou nesta segunda-feira que o país pode ter 70% da população vacinada até o fim do ano.
O Ministério da Saúde estima chegar a 354 milhões em 2021, mas conta com doses que ainda serão fabricadas. Já existem contratos com a AstraZeneca/Fiocruz, o Butantan e o consórcio global Covax Facility, no qual o Brasil aderiu com a menor cota de doses possíveis de solicitar. Mas o cumprimento dos cronogramas de entrega, inclusive das doses que serão produzidas pelo Butantan e pela Fiocruz, dependem neste momento do cenário global de disputa tanto pelos insumos para produzir o imunizante quanto pelas doses prontas.
Por enquanto, estão sendo distribuídas 6 milhões de doses da Coronavac, aprovada neste domingo pela Anvisa para uso emergencial. O Governo Bolsonaro espera receber mais 2 milhões de doses da vacina de Oxford ―cujo uso emergencial também foi autorizado e que nos próximos meses deve ser produzida pela Fiocruz―, mas enfrenta dificuldades para conseguir consolidar a importação delas, que virão da produção da Índia. “Não há resposta positiva de saída até agora. Nós estamos contando com essas 2 milhões de doses para que a gente possa atender mais ainda a população”, admitiu o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que espera um desfecho nesta semana.
Dificuldade para importar insumos para a vacina
O Butantan já solicitou à Anvisa uma autorização para usar emergencialmente mais 4,8 milhões de doses prontas ou que estão sendo envasadas em São Paulo. Se por um lado a produção local nos laboratórios locais é uma importante arma brasileira, preocupa a dificuldade que Butantan e Fiocruz enfrentam para conseguir importar os insumos da China necessários para manter a produção dos próximos meses e conseguirem cumprir os cronogramas de entrega. Os acordos feitos pelo Governo Federal e pelo Governo de São Paulo com os laboratórios preveem transferência de tecnologia para que este insumo passe a ser produzido no país, mas é uma fase posterior, que só deverá ocorrer no segundo semestre.
Neste momento, há dependência dos insumos e atrasos preocupantes. A Fiocruz aguarda a chegada do IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) da China para iniciar a produção, segundo a Folha de S. Paulo. Isso deve acontecer até 25 de janeiro e, caso não se consolide, o contrato prevê a entrega de doses prontas. O cronograma da Fiocruz prevê a entrega de 1 milhão de doses até 15 de fevereiro e deve chegar a 100,4 milhões de doses até julho. Já o Butantan aguarda há dias a autorização do Governo chinês para que o insumo possa ser enviado ao Brasil. Segundo o presidente do instituto, Dimas Covas, o IFA disponível só é suficiente para a produção desta semana. “A capacidade de produção do Butantan é de 1 milhão de doses por dia, a depender chegada da matéria-prima. [A capacidade] foi atingida neste momento com a matéria-prima disponível”, explicou em coletiva de imprensa. A embaixada do Brasil na China foi acionada para ajudar nas negociações. O Butantan precisa do insumo para conseguir entregar um total de 46 milhões de doses da Coronavac ao ministério até abril.
Necessidade de seguir negociando compras
“O que temos hoje são gotas dentro do oceano diante da magnitude territorial e populacional do Brasil”, define Melissa Palmieri, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Imunizações - Regional São Paulo. Ela diz que, apesar da capacidade de produção nacional, o país não pode se furtar de continuar negociando para adquirir outros tipos de vacinas diante da gravidade da crise sanitária e de problemas que podem atrasar a produção nacional, como a falta de insumos. Praticamente toda a população precisará ser vacinada para que o país chegue à imunidade coletiva, ou de rebanho. Questionado sobre as negociações para comprar 70 milhões de doses da Pfizer, o ministro Eduardo Pazuello disse apenas que “na hora que o laboratório trouxer propostas plausíveis, sou o primeiro a comprar”. Não falou sobre planos de comprar outras vacinas. O imunizante da Janssen, por exemplo, é apontado por especialistas como uma boa opção, caso os estudos confirmem eficácia com apenas uma dose, o que simplificaria a logística.
“Por enquanto, precisamos trabalhar full time para manter a negociação com outros laboratórios. Só podemos começar a desestressar quando a maioria da população estiver vacinada”, diz Palmieri. O secretário da Saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn, que tem defendido publicamente a necessidade do país adquirir mais vacinas, endossa o coro. “Precisamos de vacinas para vacinar em massa. Se não vacinarmos, ainda teremos o caos no nosso sistema de saúde. Isso só resolve com o impacto da vacinação, especialmente nos grupos prioritários”, argumenta.
A vacina chega a outros Estados do Brasil
O Governo Federal distribuiu as primeiras 6 milhões de doses de forma proporcional à população de grupos prioritários dos Estados. A meta da campanha é vacinar, com duas doses, os 2,8 milhões que têm prioridade nesta fase ― que inclui idosos que vivem em asilos, pessoas com deficiência internadas, indígenas aldeados e cerca de 35% dos profissionais de saúde do país. Após um mal-estar gerado pela decisão do governador de São Paulo, João Doria, em arrancar com a imunização no próprio domingo para angariar o capital político da primeira foto, governadores viajaram até Guarulhos para receber simbolicamente as doses pessoalmente do ministro Pazuello. A única vacina disponível no momento é fruto de uma iniciativa do Governo paulista, mas as doses foram adquiridas pelo Governo Federal ―cuja atuação foi marcada por uma certa inércia― após uma longa batalha ideológica.
A previsão era de iniciar uma campanha nacional na quarta-feira (20), mas governadores pressionaram para começar a vacinar antes, já que São Paulo havia se antecipado. A segunda-feira foi, então, de esforço logístico para fazer os imunizantes chegarem aos Estados. Durante o dia, aviões e caminhões transportavam toneladas de doses pelo país. Lotes foram fracionados para tentar acelerar a chegada das primeiras doses nas capitais e cidades metropolitanas e foram registrados alguns atrasos. O Rio de Janeiro começou a aplicar as doses no simbólico Cristo Redentor. Governadores se articulam agora em uma força-tarefa para fazer as doses chegarem aos municípios nos próximos dias. Na semana passada, vários deles já haviam começado a distribuir seringas, agulhas e refrigeradores às cidades do interior. O Governo do Amazonas ―Estado que vive uma crise sem precedentes no seu sistema de saúde e concentra também grandes dificuldades logísticas― reuniu nesta segunda (18) autoridades de saúde do interior e as preparava para uma “longa noite” de recebimento de vacinas.
Tudo foi feito às pressas. Só depois que aviões levantaram voo para a distribuição das doses no extenso território nacional, o Governo publicou uma portaria determinando a obrigatoriedade da notificação da vacinação nos seus sistemas. A aplicação de doses começou antes de todos os detalhes da campanha nacional estarem ajustados, embora a estratégia central já viesse sendo discutida com Estados e municípios. O Governo Federal ainda testa, por exemplo, um painel para colocar no ar o balanço da distribuição das vacinas e das doses aprovadas. Mas o mínimo estava pronto para começar a vacinar no país, que tem o seu programa de vacinação como referência global. Estima-se que 50.000 postos estejam aptos para vacinar, quando as doses começarem a chegar. Os municípios agora são os maiores protagonistas da campanha. São eles que executam a vacinação nas mais longínquas regiões do país.
El País: Vacinas trazem alento ao Brasil em dia de redenção para a ciência e revés político para Bolsonaro
Aprovação de uso emergencial de imunizantes pela Anvisa coroa triunfo simbólico dos cientistas sobre negacionismo, mas vacinação ainda tem obstáculos logísticos e políticos pela frente
Breiller Pires e Carla Jiménez, El País
A decisão da Anvisa, que, neste domingo, aprovou por unanimidade o uso emergencial das vacinas de Oxford e AstraZeneca no Brasil, é celebrada não apenas como um alento diante do recrudescimento da pandemia de coronavírus, mas também como uma vitória do aparato científico sobre o negacionismo e os discursos antivacinas que ecoam até mesmo no Governo federal. Decisiva para o desenvolvimento dos imunizantes contra a covid-19, a ciência foi aclamada, sobretudo, nas análises técnicas e justificativas de votos favoráveis ao aval para o início da vacinação em território brasileiro.
“No nosso vocabulário, não há espaço para negação da ciência nem para a politização das vacinas. Verdadeiramente, não há”, disse Alex Machado Campos, ex-chefe de gabinete de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, ao proferir o voto que decretou maioria para a aprovação das vacinas. Antes, o diretor da Anvisa elogiou o rigor científico do parecer conduzido pela relatora Meiruze Freitas, que, ao esmiuçar seu relatório, cobrou que autoridades e governos sensibilizem a população sobre a importância de se vacinar. “A vacinação contra a covid-19 ajudará na proteção individual e coletiva. Uma vacina só é eficaz se as pessoas estiverem dispostas a tomá-la”, discursou. Ela ainda criticou a prescrição de medicamentos sem comprovação científica.
Durante a apresentação técnica da análise das vacinas, o gerente geral de Medicamentos e Produtos Biológicos, Gustavo Mendes, destacou que o panorama de “muita tensão pela falta de insumos necessários para o enfrentamento da doença” no Brasil justifica a autorização para o início de aplicação dos imunizantes. Ao longo da reunião, a Anvisa deixou claro que um dos motivos que embasaram a decisão de liberar o uso emergencial é a “ausência de alternativas terapêuticas” para o vírus, contrapondo a tese de “tratamento precoce” —sem comprovação científica— defendida pelo Governo Bolsonaro.
Miguel Nicolelis, colunista do EL PAÍS e coordenador do projeto Mandacaru, um coletivo de pesquisadores voluntários no combate à pandemia, encara a aprovação em caráter de emergência das vacinas no Brasil como um marco para a ciência global. “É um ponto de partida muito importante, uma vitória da ciência em termos gerais”, diz o neurocientista. “Presenciamos uma ampla colaboração entre a ciência chinesa, que desenvolveu a tecnologia das vacinas com uma agilidade sem precedentes, e a ciência brasileira. Se Butantan e Fiocruz não tivessem sido capacitados ao longo de décadas, não viveríamos esse momento. É uma prova de sucesso do método de colaboração científica sem fronteiras, e de que as instituições de Estado devem ser sempre apoiadas, independentemente de quem governa o país.”
Nas redes sociais, a autorização da Anvisa também foi comemorada sob ares triunfais pela comunidade científica. “Estamos vendo a história ser escrita e transparência é fundamental. Assim como critérios técnicos”, escreveu o pesquisador Atila Iamarino ao elogiar a exposição minuciosa da agência reguladora. “Nós temos a solução que a ciência nos trouxe: vacinas seguras e eficazes.” Segunda pessoa a ser vacinada no Brasil, logo após a enfermeira Mônica Calazans, o também enfermeiro Wilson Paes de Pádua, 57, exaltou o trabalho científico por trás da batalha contra o coronavírus. “Nós temos de lutar pela vacina, lutar pela ciência, para melhorar a saúde e sair dessa pandemia. Eu me sinto muito orgulhoso de fazer parte desse momento histórico.”
Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) acompanhou a reunião da Anvisa ao lado de uma comissão científica, congregando, segundo ele, “alguns dos mais renomados cientistas do país”. Assim que foi anunciada a aprovação, Doria publicou um vídeo para comemorar o início da imunização de profissionais da saúde no Estado. “Dia histórico para ciência brasileira”, afirmou o governador. “A vacina do Butantan é uma vitória da ciência. Vitória da vida. Vitória do Brasil.” Para ele, particularmente, uma vitória política sobre o presidente Jair Bolsonaro, com quem passou a travar corrida para exibir a primeira foto de uma pessoa vacinada no país.
O baque do espetáculo midiático protagonizado por Doria, que chegou ao fim do dia com mais de 100 pessoas imunizadas em São Paulo, foi rapidamente acusado pelo Governo. Enquanto o governador paulista posava para as câmeras com a enfermeira Mônica Calazans, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, abria uma coletiva de imprensa irritado com o que qualificou como “jogada de marketing” do rival de Bolsonaro. “Nós poderíamos iniciar a primeira dose em uma pessoa hoje mesmo, num ato simbólico. Em respeito a todos os governadores, não faremos isso. Não podemos desprezar a lealdade federativa”, disse o ministro.
Pazuello ainda fez uma espécie de desabafo, em que cobrou do Instituto Butantan, ligado ao Governo de São Paulo, exclusividade sobre as 6 milhões de doses atualmente disponíveis da Coronavac. Para o ministro, a aplicação de doses neste domingo “está em desacordo com a lei” e acusou “movimentos políticos e eleitoreiros” de capitalizarem com a pandemia. “Ouço calado, o tempo todo, a politização da vacina. A produção do Butantan, por exemplo, foi bancada com recursos do Ministério da Saúde.” Doria, por sua vez, rebateu o ministro, afirmando que não houve investimento da pasta nem nos testes nem na fabricação da Coronavac. “Não há um centavo do Governo Federal na produção da vacina”.
De acordo com o Ministério da Saúde, a distribuição proporcional das vacinas aos Estados começará a partir das 7h desta segunda-feira, e a data inicial da vacinação segue mantida para quarta, 20 de janeiro, apesar do atraso na remessa de 2 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca e do embate político com São Paulo pelo estoque de 6 milhões da Coronavac. Por enquanto, Doria só assegura o envio de 4,7 milhões de doses, pois 1,3 milhão ficam em São Paulo. O governador dedicou grande parte do tempo de coletiva de imprensa para criticar o Governo Bolsonaro e identificá-lo como afeito à morte, uma característica cruel em plena pandemia.
Pazuello, por sua vez, também fará seu ‘marketing’ num ato simbólico às 7 da manhã em Guarulhos, na grande São Paulo, para marcar a distribuição das doses da Coronavac. O ministro espera que, até o fim da semana, a Índia libere o lote retido dos insumos produzidos pelo Serum Institute. O Ministério da Saúde não detalhou como pretende distribuir o percentual de cada Estado nem como será a logística de entrega das vacinas. A única sinalização do Governo é de que o Ministério da Defesa auxiliará o transporte por via aérea.
Ainda na entrevista coletiva, o ministro Eduardo Pazuello afirmou que a China não tem dado celeridade aos trâmites burocráticos para fornecimento de matéria-prima das vacinas ao Brasil. Remessas de Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), necessário para a produção tanto do imunizante de Oxford quanto da Coronavac, ainda não chegaram à Fiocruz. Segundo o ministro, o ministério está mapeando essas “resistências” para avançar na produção.O ministro só esqueceu que o Governo Bolsonaro, os filhos do presidente e seus seguidores, tem se notabilizado por ataques à China, inclusive com deboches ao composto desenvolvido pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, pejorativamente chamado de “vachina” pela tropa de choque bolsonarista.
Neste domingo, o esforço de bolsonaristas em assumir a paternidade do imunizante era escancarado. “Governo Bolsonaro bancou a vacina do Butantã!”, escreveu em letras maiúsculas o senador Flavio Bolsonaro, filho do mandatário. Uma ironia aos brasileiros que viram seu pai questionar até os efeitos nos sistema imunológico de quem tomasse a Coronavac, incluindo virar “jacaré”.
Para além da vitória de Doria neste domingo, a guerra pública entre ele e Bolsonaro até mesmo durante o dia de uma boa notícia nacional deixa claro que o caminho para a vacinação tem percalços políticos pela frente. O tucano anunciou que enviaria diretamente 50.000 doses da Coronavac a Manaus por não confiar no ministério numa provocação explícita. As frases causam desconforto em quem conhece as engrenagens da saúde pública por entender que não há benefício numa relação tensa entre um Estado que vai responder pela produção de vacinas e o governo federal.
Em que pesem as barreiras políticas e logísticas para a distribuição dos lotes, a vacinação em massa da população brasileira tem pela frente processos ainda mais complexos que a autorização de uso emergencial. Vacinas como a de Oxford e a Coronavac ainda precisam requisitar a aprovação definitiva na Anvisa, algo que não ocorrerá de imediato, já que a agência reguladora informou que há pendências de documentação para a manutenção do aval provisório votado neste domingo. Por outro lado, o país observa um crescimento alarmante dos números de casos e mortes por coronavírus em todas as regiões.
Para Nicolelis, a aprovação das vacinas não pode gerar a ilusão de que o Brasil está próximo de superar a pandemia. “A decisão da Anvisa é uma vitória a ser celebrada, mas existem ações em paralelo que precisam ser tomadas imediatamente”, afirma o cientista, que defende que o país deveria adotar um lockdown nacional, de duas ou três semanas, para frear a onda de novas infecções e ganhar tempo para a imunização gradual, citando o drama vivido pelo Reino Unido —onde a vacinação começou em dezembro, mas o número de contágio ainda não desacelerou de maneira significativa. “O impacto desse avanço sincronizado do vírus pelo Brasil tende a ser pior que o da primeira onda. A vacina vai demorar meses para fazer efeito por aqui e neste momento, temos um percentual mínimo de doses. É hora de reimplementar as medidas restritivas. Não podemos abandonar o barco enquanto a vacina está longe de contemplar a maioria da população.”
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Bob Woodward: 'A democracia resistiu, o fracasso foi Trump'
Legendário jornalista, duas vezes ganhador do Pulitzer, considera que o presidente falhou em proteger os norte-americanos
Amanda Mars, El País
Há cerca de seis meses, quando faltava meio ano para o primeiro mandato de Donald Trump terminar, o legendário repórter Bob Woodward (Geneva, Illinois, 77 anos) acreditava que “qualquer coisa”, ou pelo menos “quase qualquer coisa”, ainda poderia ocorrer no restante da presidência do republicano. Chegava a essa conclusão no seu último livro, Raiva (editora Todavia), segundo volume dele sobre a era Trump. Mas também fazia a seguinte avaliação:
“Trump fala com muita dureza, às vezes de um modo que incomoda os seus próprios seguidores. Mas não impôs a lei marcial nem suspendeu a Constituição, apesar das previsões de seus adversários. Ele e seu secretário de Justiça, William Barr, desafiaram várias vezes o tradicional Estado de direito. Desnecessariamente, na minha opinião. Usar o sistema judicial para favorecer a amigos e punir inimigos é ruim e nixoniano. O sistema constitucional pode ter parecido eventualmente cambaleante, que podia mudar da noite para o dia. Mesmo assim, a democracia resistiu. A liderança falhou.”
O que pensará agora o famoso farejador de notícias? Uma semana depois do violento ataque ao Congresso por uma turba trumpista, um dia depois de aprovação da abertura de um segundo processo de destituição (impeachment) contra o mandatário por “incitação à insurreição”, e quase três meses depois de uma dura campanha de boatos sobre uma suposta fraude eleitoral para tentar reverter a vitória do democrata Joe Biden... Woodward espera que o sistema resista? Na manhã desta quinta-feira, do outro lado do telefone, o veterano repórter, duas vezes ganhador do prêmio Pulitzer, reflete um pouco antes de responder. “É uma grande pergunta. Acho que reafirmo o que escrevi. A democracia nos Estados Unidos resistiu, embora tenha sofrido abalos. O fracasso foi Trump, fracassou em entender a responsabilidade de sua presidência, fracassou em liderar”, diz ao EL PAÍS.
Woodward, que saltou para a fama ainda muito jovem ao revelar junto com Carl Bernstein o caso Watergate, escândalo que levou o presidente Richard Nixon a renunciar em 1974, é um dos grandes cronistas das presidências norte-americanas do último meio século. No primeiro livro sobre o Trump (Medo), não conseguiu entrevistar o republicano. Para o segundo, manteve quase 20 conversas com Trump ―além de dezenas de colaboradores dele― ao longo de 2020, um total de nove horas. No livro, traça o retrato de um Governo febril e errático, semelhante à sua conta do Twitter, e após estes últimos meses não tira conclusões muito diferentes do ocorrido na semana passada em Washington.
“Trump age controlado por seus próprios impulsos, não planeja, não pensa as coisas, de um modo muito alarmante falhou na hora de proteger as pessoas deste país, tanto do vírus como da violência que ocorreu na semana passada quando o Capitólio foi atacado por seus seguidores”, opina. Embora a Justiça tenha arquivado todas as ações judiciais movidas pela campanha de Trump para tentar reverter o resultado do pleito presidencial e as autoridades eleitorais tenham confirmado a validade da votação, mais da metade dos eleitores republicanos continua achando que Biden ganhou de forma fraudulenta. A mídia também parece ter fracassado na hora de combater os boatos.
Para Woodward, a imprensa vive uma era em que “a impaciência, a velocidade e o resumo” dominam tudo, e Trump “é algo muito difícil de cobrir, porque os jornalistas precisam lutar com fatos”, enquanto o magnata é “um especialista em dizer coisas que não são verdade”. Ele discorda, no entanto, da decisão de vários canais de TV ―inclusive a conservadora Fox News― de suspender a exibição das coletivas do mandatário quando ele lançava sua ladainha de acusações infundadas de fraude.
Primeira Emenda
“Acho que deveríamos deixar que as pessoas digam o que quiserem dizer, incluindo os presidentes. O problema são a internet e as redes sociais, que se guiam pela impaciência e a velocidade, e acho que precisamos desacelerar isso, por isso dedico meu tempo a escrever livros”, afirma. Também é cético quanto às decisões tomadas nos últimos dias pelos poderosos executivos de grandes empresas tecnológicas que fecharam as contas de Trump no Facebook e Twitter, junto com as de milhares de trumpistas radicais. “Sou jornalista há 50 anos e acredito na Primeira Emenda, que permite a liberdade de expressão. Muita gente diz coisas falsas ou revoltantes, é muito difícil estabelecer uma norma. Acredito que o mercado de ideias e expressões deveria ser o mais livre possível”, afirma. Considera que o furor midiático em torno de Trump começará a diminuir depois de 20 de janeiro, quando Biden tomar posse. “Há indicações de que ele pode se candidatar em 2024, mas a ênfase então estará em Biden, porque será o presidente, assumirá um poder extraordinário e terá que lutar com problemas extraordinariamente difíceis. Trump sempre será pauta, mas espero que isto diminua e vire uma pauta secundária, não a principal pauta dos EUA”. E o assalto ao Capitólio pode acabar com essas aspirações do republicano? “Pode ser que sim, ou que simplesmente ele perceba que é uma montanha alta demais para escalar com as coisas que deixou para trás, um sistema sanitário saturado, com mais de 300.000 mortos.”
A pandemia
Woodward não se interessa pelos rankings de quem foi o pior presidente da história recente e, embora admita a gravidade da invasão do Capitólio, não deixa de pôr o foco na gestão da pandemia. “As coisas pelas quais Trump foi submetido ao impeachment ―incitar uma revolta no Capitólio― são horríveis, e algumas pessoas morreram ali. Mas o vírus matou mais de 300.000 pessoas. Não digo que ele poderia evitar todas elas, mas muitas sim, simplesmente pedindo às pessoas que usassem máscara, que mantivessem a distância de segurança, que lavassem as mãos. Se tivesse feito isso em fevereiro, talvez o vírus estivesse sob controle neste país”, salienta.
O assunto leva diretamente à própria polêmica gerada pelo novo livro do jornalista. Raiva revelava que Trump sabia que o coronavírus era mortal e, durante meses, confundiu deliberadamente a opinião pública sobre sua letalidade. Enquanto nas entrevistas coletivas ele dizia ao público que “praticamente o paramos” (em 2 de fevereiro) ou que “um dia desaparecerá, como por milagre” (27 de fevereiro), a Woodward, em 7 de fevereiro do ano passado, ele declarou: “Você simplesmente respira e se contagia”. “E isso é muito complicado. É muito delicado. É mais mortal inclusive que uma gripe intensa. É algo mortal”, admitiu. Em 19 de março, reconheceu em outra conversa com Woodward: “Eu sempre quis minimizar a importância [da pandemia]. Ainda gosto de minimizar sua importância, porque não quero criar pânico”.
Quando o livro saiu, em setembro, Woodward foi bastante criticado porque, enquanto pessoas morriam, se calou durante meses sobre essas discrepâncias, até que o livro saísse. O repórter protesta: “Qualquer um que tiver lido o livro percebe que isso não é verdade. Ele me disse em fevereiro que o vírus era transmitido pelo ar e que era pior que a gripe, e em fevereiro eu achava ―e o mundo achava― que o vírus estava na China. Não achei que estivesse falando dos Estados Unidos. Só em maio fiquei sabendo daquela reunião que ele manteve em janeiro e na qual recebeu um alerta detalhado, mas em maio todo mundo já sabia do vírus, e o vírus estava dizimando as pessoas, não ia dizer às pessoas coisas que não sabia. Pude fazer isso no livro, que saiu antes das eleições”.
El País: Mike Pence rejeita apelos para destituir a Trump e abre as portas para o impeachment
Câmara de Representantes, dominada pelos democratas, vota a favor do uso da 25ª emenda, apesar da recusa do vice-presidente
O vice-presidente dos EUA, Mike Pence, rejeitou os apelos dos deputados democratas para que destitua Donald Trump com base na 25ª emenda da Constituição. A recusa de Pence, expressa em carta à presidenta da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, foi anunciada horas antes de a Câmara baixa colocar em votação, na noite de terça, uma resolução em que se solicitava formalmente ao vice-presidente que invocasse a 25ª emenda para declarar a vacância do cargo, sob a alegação de que Trump se encontra incapaz de cumprir seus deveres e obrigações. Os democratas deram um prazo de 24 horas para que Pence aja, e se isso não ocorrer pretendem votar nesta quarta-feira o segundo impeachment do presidente, para depois esperar que o Senado o destitua, quando faltam sete dias para o final do mandato de Trump e a posse do democrata Joe Biden como novo titular da Casa Branca.
“Não cedi à pressão para exercer um poder além de minha autoridade constitucional”, afirmou Pence em sua carta a Pelosi, “e não cederei agora aos esforços da Câmara de Representantes de fazer jogos políticos em um momento tão grave na vida da nossa nação”. Com a possibilidade de uma destituição via 25ª emenda sendo rejeitada antes mesmo de começar a correr o prazo dado pelos deputados, o caminho para o impeachment fica aberto.
Pence exibe assim um último gesto de lealdade a Trump. Ou talvez um zelo escrupuloso pelos limites do seu cargo, como diz em sua carta. Entre as limitadas atribuições constitucionais do vice-presidente ―único cargo eletivo de âmbito nacional, além do próprio presidente ― está a de evocar a 25ª emenda. Isso se dá informando por escrito aos líderes das duas casas do Congresso que o presidente, na avaliação da maioria do gabinete, se encontra “incapaz de cumprir os poderes e obrigações de seu cargo”, o que leva o próprio vice-presidente a assumir esses poderes e obrigações na qualidade de presidente interino. O desafio lançado a Pence pelos congressistas punha em xeque um relacionamento, vizinho ao servilismo, que permeia estes turbulentos quatro anos, desde que os dois políticos compuseram a chapa republicana para as eleições presidenciais de 2016 ―repetida em 2020. Mas se trata de uma relação que, nestas últimas semanas, esfriou de maneira notável.
Se já era remota a probabilidade de que Pence decidisse trair Trump na reta final, entrando para a história como um efêmero 46º presidente dos Estados Unidos, ela praticamente se extinguiu na noite de segunda-feira. Trump e Pence se reuniram no Salão Oval e, segundo fontes da Administração, se comprometeram a continuar trabalhando juntos “no que resta de mandato”. O fato de a reunião ser a primeira interação entre os dois desde a invasão do Capitólio, na quarta-feira passada, revela a insólita deterioração da confiança de Trump naquele que era um dos seus mais fiéis escudeiros.
O esfriamento começou em 15 de dezembro, quando alguém convenceu Trump de que Pence era sua última esperança para reverter o resultado das eleições que perdeu em 3 de novembro. A possibilidade de o vice-presidente impugnar a contagem dos votos do Colégio Eleitoral no Congresso virou uma obsessão para o presidente. Pence estudou a possibilidade com constitucionalistas, que concordaram em considerá-la inviável. A equipe do vice-presidente soube, segundo o The Washington Post, que os advogados de Trump preparavam inclusive uma ação judicial contra ele. O fato de Pence se basear em juristas do Departamento de Justiça para neutralizar essa ação, segundo o Post, deixou Trump ainda mais furioso.
A pressão sobre Pence incluiu um telefonema na manhã de 6 de janeiro, a fatídica data em que o vice-presidente presidiria o Senado para o ritual da certificação do resultado eleitoral. Depois da negativa de Pence, o presidente arremeteu publicamente contra seu vice. “Mike Pence não teve a coragem de fazer o que deveria ter feito para proteger o nosso país e a Constituição”, tuitou às 13h24 daquele dia (hora local). Àquela altura, as hordas trumpistas, estimuladas pelo presidente, já tinham tomado o Congresso de assalto. “Cadê o Pence?”, gritavam os amotinados. O vice-presidente tinha sido retirado do plenário do Senado e se estava escondido numa localização secreta do Capitólio. O presidente não ligou para Pence para saber se estava bem. Nem naquele dia nem nos seguintes.
O presidente anunciou que não assistirá à posse de Joe Biden e Kamala Harris na próxima quarta-feira. Pence, entretanto, confirmou que estará lá. O vice-presidente se manteve ao lado de Trump em todas as crises. Deu um jeito inclusive de esquivar os golpes à frente da errática resposta da Casa Branca à crise do coronavírus, transitando com destreza pelo cisma entre a ciência e as gafes do presidente. Agora, seu distanciamento com as bases trumpistas gera incógnitas sobre suas mal disfarçadas aspirações presidenciais.
Amanda Mars: Trump dinamita o final com o qual sonhava
Até quarta-feira, o presidente republicano imaginava uma etapa pós-presidencial na primeira linha de combate. O ataque ao Congresso o deixa mais isolado e silenciado que nunca
Silenciado nas redes sociais, repudiado pelo establishment republicano, abandonado por uma série de altos funcionários de seu Gabinete e derrotado nas urnas, Donald Trump nunca esteve tão sozinho como agora. Sua última grande batalha contra o sistema dos Estados Unidos, na qual tentou reverter o resultado das eleições presidenciais espalhando acusações infundadas de fraude, serviu de teste final sobre as lealdades, e também sobre as forças democráticas, e o presidente se deu mal.
O secretário de Justiça William Barr, nomeado pelo próprio Trump, não encontrou nenhum fundamento da alegada grande operação fraudulenta; as autoridades republicanas dos Estados cujos resultados eleitorais foram contestados pelo mandatário resistiram às suas pressões; a Suprema Corte, de maioria conservadora e com três dos nove juízes nomeados por ele, decidiu por unanimidade não envolver-se; e no último momento, na quarta-feira, quando o Congresso se reuniu para certificar em Washington a vitória eleitoral do democrata Joe Biden, apenas um punhado de legisladores fiéis ao presidente se animou a torpedear o processo.
Naquele 6 de janeiro, já escrito para sempre nos livros de história, o magnata nova-iorquino resolveu fazer uma nova demonstração de força. Pela manhã, antes que os membros do Congresso se reunissem para ratificar Biden, convocou um comício em frente à Casa Branca, aproveitando a enorme quantidade de seguidores que tinham chegado de todo o país. Depois, incentivou-os a ir protestar diante do Capitólio, a ser fortes, a recuperar o país sem fraquejar.
Até quarta-feira, Donald Trump tinha planejado uma etapa pós-presidencial na primeira linha de combate, pensando em se manter como uma voz destacada do eleitorado conservador. Tinha revelado inclusive sua intenção de voltar a ser candidato nas eleições presidenciais de 2024 e, pelo que seu entorno vazou para a imprensa, pensava em anunciá-la formalmente no dia da posse de Joe Biden, em 20 de janeiro. Ninguém gosta tanto de um bom espetáculo como esse empreendedor imobiliário de 74 anos que conquistou a presidência mais poderosa do mundo ao saltar dos reality shows para a política. Irritado com a linha da TV conservadora Fox News —outra que o abandonou, segundo seu ponto de vista—, pensava em lançar uma plataforma própria para continuar conectado com suas bases. A batalha de fundo era o controle do eleitorado republicano. Alguns membros de sua família, como sua filha, Ivanka, e seu filho mais velho, Donald, também consideraram a possibilidade de seguir uma carreira política. Em suma, para a família Trump, a política estava apenas começando.
Todos esses planos se complicaram para Trump depois do violento assalto de seus seguidores radicais ao Congresso, uma revolta — instigada por sua campanha dos últimos meses— na qual morreram cinco pessoas e que pôs a imagem dos Estados Unidos, a democracia mais poderosa do mundo, em uma situação vergonhosa.
Segundo o procurador Ken Kohl, do gabinete do Ministério Público dos EUA em Washington, o Departamento de Justiça não planeja, pelo menos por enquanto, denunciar por crimes de incitação à violência o presidente ou outros que discursaram no comício da manhã de quarta-feira diante da Casa Branca (como seu filho Donald Jr.), onde foi aceso o pavio. No entanto, o Partido Democrata pretende submeter Trump a um processo de impeachment, ou seja, a um julgamento político no Congresso para decidir sobre sua destituição, a não ser que ele renuncie ou seu próprio Gabinete o deponha recorrendo à 25ª emenda da Constituição (estas duas últimas opções são improváveis).
Resta para Trump pouco mais de uma semana na Casa Branca, mas, se for condenado nesse processo, o Senado poderia votar também para incapacitá-lo como candidato no futuro. O impeachment teria caminho livre na Câmara dos Representantes, que iniciaria o processo e tem maioria democrata, mas seria complicado no Senado, onde ocorreria o julgamento político em si, no qual um presidente só pode ser condenado por maioria de dois terços dos votos —o que, atualmente, o partido de Joe Biden não tem.
“É muito difícil que tenham tempo para tudo isso; o que os democratas querem fazer é prejudicá-lo politicamente, evitar que possa se candidatar nas eleições em 2024, e buscam o apoio dos republicanos para isso, mas essa não é sua prerrogativa, é uma prerrogativa dos eleitores”, considera o jurista republicano Robert Ray, que atuou como procurador independente no caso Whitewater, um escândalo imobiliário que atingiu Bill e Hillary Clinton nos anos noventa.
Além dos episódios violentos no Congresso, o que estará à espera de Trump quando ele deixar o Governo é a Justiça. A procuradoria de Manhattan está investigando seu histórico tributário e, graças a uma vitória na Suprema Corte, terá acesso a oito anos de suas declarações, como parte de inquéritos sobre pagamentos a mulheres para ocultar possíveis infidelidades matrimoniais durante a campanha de 2016 e sobre uma possível fraude fiscal. Além disso, a procuradora de Nova York Laetitia James está analisando possíveis acusações contra sua construtora por alterar o valor real de seu ativos para obter empréstimos.
O Departamento de Justiça também terá o caminho livre para reativar o caso de obstrução à Justiça durante a investigação da trama russa —Trump já não terá a imunidade presidencial— e, por outro lado, continuam os processos por sua conduta pessoal: uma ação de sua sobrinha Mary Trump por fraude em uma herança e duas por difamação, uma destas movida pela escritora E. Jean Carroll, que o acusa de uma agressão sexual supostamente cometida nos anos noventa.
Essas questões, porém, já estavam na mesa antes do pleito de novembro e não minaram o apoio ao presidente, que perdeu as eleições, mas obteve 74 milhões de votos, quase 12 milhões a mais do que em 2016. A dúvida é se o magnata conseguirá manter sua capacidade de mobilizar as bases a partir de agora; se realmente, como afirma, poderá continuar sendo o líder dos eleitores conservadores depois de ser expulso do poder político, com menos atenção da mídia e com outros republicanos já pensando em varrê-lo do mapa para entrar na corrida pela Casa Branca.
Para o estrategista político Rick Wilson, um dos fundadores do The Lincoln Project, uma plataforma de republicanos contra Trump, o presidente perdeu “seu superpoder”, ou seja, seu alto-falante nas redes sociais, Twitter e Facebook, “e não poderá se comunicar com seus seguidores tão facilmente quanto antes”.
Wilson relativiza o peso dos 74 milhões de votos que Trump recebeu nas eleições, e alerta que metade deles é de “republicanos comportamentais”, ou seja, eleitores que “votarão em republicanos aconteça o que acontecer, porque para eles as eleições são uma alternativa entre socialismo e liberdade, luz e escuridão, bem e mal”. Resta, acrescenta o estrategista, essa outra metade que participa do culto à figura do magnata nova-iorquino. “Mas o grande cisma com que esta nação se defronta é se as pessoas que se dizem republicanas, que acreditam nos princípios conservadores, estão bem servidos com Trump”, assinala. Para o Partido Republicano, diz ele, o que ocorreu quarta-feira foi “devastador”.
Fala-se muito sobre os próximos movimentos de Trump. Renegado como nova-iorquino, espera-se que ele se mude para a Flórida, principalmente por conveniência fiscal. Um personagem tão singular como esse, alérgico às derrotas e orgulhoso até a agonia, não pode ser considerado varrido do mapa. Se vir opções, continuará lutando pelo controle dos eleitores republicanos, mas ninguém acredita mais que ele tenha coragem de convocar outra manifestação para coincidir com a posse de Biden.
El País: Ameaças de neonazistas a vereadoras negras e trans expõem avanço do extremismo
Ataques contra vereadoras de várias cidades ocorreram em dezembro e polícia ainda busca autores. Vítimas relatam rotina de medo especialistas alertam para escalada das ameaças no país, enquanto os EUA refletem sobre banalização dos discursos de ódio nas redes
Injúrias raciais, infelizmente, não são uma novidade para a professora Ana Carolina Dartora, 37 anos. Primeiro vereadora negra eleita nos 327 anos da Câmara Municipal de Curitiba, e a terceira mais votada na capital paranaense nas eleições 2020, sua campanha foi permeada por ataques, sobretudo nas redes sociais. Até então, Carol Dartora ―como é conhecida a vereadora filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT)― considerava as mensagens inofensivas. Mas no início de dezembro ―logo após uma entrevista do prefeito Rafael Greca (DEM) na qual o mandatário disse discordar da existência de racismo estrutural na cidade― ela recebeu por e-mail uma mensagem a ameaçando de morte, inclusive com menção ao seu endereço residencial.
No texto, o remetente chama a vereadora de “aberração”, “cabelo ninho de mafagafos”, e diz estar desempregado e com a esposa com câncer. “Eu juro que vou comprar uma pistola 9mm no Morro do Engenho e uma passagem só de ida para Curitiba e vou te matar.” A mensagem dizia ainda que não adiantava ela procurar a polícia, ou andar com seguranças. Embora Carol tenha ouvido de algumas pessoas que as ameaças eram apenas “coisas da Internet”, especialistas ouvidos pelo EL PAÍS ponderam que não se deve subestimar os discursos de ódio ―a exemplo de toda a discussão que permeiam os Estados Unidos desde a quarta-feira, 6 de janeiro, quando extremistas apoiadores de Donald Trump invadiram o Capitólio em protesto contra a derrota do presidente, provocando cinco mortes.
O e-mail, com texto igual, também foi enviado para Ana Lúcia Martins (PT), também a primeira mulher negra eleita para vereadora em Joinville (SC). As vereadoras trans Duda Salabert (PDT), de Belo Horizonte, e Benny Briolly (PSOL), de Niterói (RJ), também foram ameaçadas pelo mesmo remetente. Até aqui, as investigações policiais dão conta de que o ataque orquestrado partiu de uma célula neonazista que atua sobretudo nas profundezas da internet, a chamada deep web. O provedor do qual a mensagem foi enviada tem registro na Suécia, o que dificulta o rastreamento por parte das polícias civis e, no caso do Paraná, do Núcleo de Combate aos Cibercrimes.
“Fiquei olhando para a mensagem perplexa, sem conseguir processar muito. O espanto de outras pessoas do partido me deu o alerta”, contou Carol ao EL PAÍS. “A violência não é só objetiva. A violência política acompanha a minha trajetória e a das outras vereadoras ameaçadas, com barreiras que vão se criando para que a gente não tenha êxito. Nenhuma mulher deveria enfrentar tanta coisa para exercer um direito básico da democracia”, frisa.
Desde então, o medo faz parte do cotidiano da vereadora de Curitiba. “Tô tentando ser mais discreta. Estou pensando até em mudar o meu cabelo. Isso é muito minimizado, desprezado. As pessoas pensam que é bullying, coisa de Internet. É muito nítida a questão de gênero, do sexismo aliado ao racismo.” Mas foi na Internet, por exemplo, que foi planejado, durante semanas, os ataques ao Capitólio dos EUA por grupos de extrema-direita que não aceitam a derrota de Trump para o democrata Joe Biden.
Ódio racial
Filiada ao PT desde os anos 1980, Ana Lúcia Martins, 54, foi a primeira mulher eleita pelo partido em Joinville (SC) e, assim como Carol Dartora, a primeira negra na Câmara Municipal. A professora, educadora física e alfabetizadora iniciou a sua formação e participação política ainda na adolescência, em grupos de jovens da Igreja do Cristo Ressuscitado, no bairro Floresta, onde nasceu e cresceu. Decidiu disputar o pleito após um longo amadurecimento junto aos movimentos negros e de mulheres.
Após sua vitória nas eleições 2020, as primeiras intimidações já surgiram pelo Twitter, quando ela ainda comemorava a vitória. “Uma conta fake veio e comentou: ‘agora a gente precisa matar ela para o suplente, que é um homem branco, assumir’. Então não era uma questão de ódio ao partido, ou somente machismo. O ódio era racial mesmo”, pontua. Dias depois recebeu o mesmo e-mail que a vereadora curitibana, do mesmo remetente. “Diante dessa denúncia a gente pensou que não podia mais descuidar” conta Ana Lúcia, que agora anda escoltada por seguranças pagos por membros do partido. Segundo ela, essas pessoas fizeram uma vaquinha para arcar com os custos.
Foi oferecido à vereadora integrar o Programa Federal de Assistência a Testemunhas. “Para nós isso não serve, porque aí não poderia exercer meu mandato, e queremos essa garantia” salienta Ana Lúcia. A Polícia Militar catarinense ofereceu rondas e viatura em eventos públicos, desde que a vereadora solicite com antecedência, via ofício.
Pressão internacional
Advogado do Diretório Municipal do PT em Curitiba e também professor da pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paulo Opuska disse acreditar que medidas mais assertivas em relação à proteção de Carol, Ana Lúcia e outras vereadoras ocorrerão por pressão de entidades internacionais. Ele, que acompanha o caso, fez um relatório a respeito para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Opuska procurou a Secretaria de Segurança Pública do Paraná (Sesp) para solicitar segurança à vereadora do Estado. “O secretário [Romulo Marinho Soares] não atendeu a Carol. Você não pode deixar que a responsabilidade saia da mão do agente [Estado]. Temos que ter o cuidado de não banalizar. Não é difícil acontecer o que aconteceu com a Marielle [Franco]em uma cidade como Curitiba, cujo racismo estrutural aparece no discurso do próprio prefeito.”
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública afirma que “após haver solicitação de audiência para que o secretário atendesse a vereadora eleita, ele designou um delegado especializado, integrante da Segurança Pública, para recebê-la (tendo em vista que ele estava com outras agendas prévias e externas). Sendo assim, a vereadora teve o devido atendimento”, argumenta a pasta. Ainda de acordo com a entidade, o caso requer uma “investigação complexa”.
Necessidade de reação
Na análise da professora do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), Megg Rayara Gomes de Oliveira, existe um consentimento por parte do Poder Público para que esses grupos neonazistas se movam com certa liberdade. Primeira travesti negra a obter o título de doutora pela universidade onde hoje leciona, Meggy fala que as denúncias de mulheres negras acabam sendo desacreditadas. “Para ter validade precisa passar pela tutela de pessoas brancas. As pessoas respeitam o cargo que ocupam nosso título. Quem é respeitada não é a mulher preta mas a vereadora eleita.”
Ela também critica a atuação dos partidos sobre a coação sofrida pelas vereadoras. “Elas são de três partidos de esquerda, que não estão dando importância para a gravidade dessas ameaças. Fica evidente que o PSOL não deu atenção para tudo o que acontecia com a Marielle. Parece que os partidos não estão muito preocupados em proteger esses corpos.”
Precursora no Brasil em pesquisas sobre grupos neonazistas que se movimentam na internet, a antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias fala que o neozanismo no Brasil é uma “miríade”. “Existem muitos grupos, cada um deles com uma ou várias células que às vezes partilham da mesma base”, explica.
Em sua tese de doutorado pela Unicamp, ela reúne mais de 15 anos de pesquisas junto a sites, fóruns, blogs e comunidades para descrever como pensam esses extremistas. “Há grupos antigays, de supremacia branca, hitleristas, os que tendem para um discurso nacionalista. No ferver dos ovos, o que está ali é o ódio. Que busca desmanchar a humanidade de uma pessoa, impedir que ela tenha a sua personalidade reconhecida”, explica.
De acordo a antropóloga Adriana, a situação no Brasil hoje é grave e houve um crescimento desses grupos após a eleição que elegeu Jair Bolsonaro presidente em 2018, com um discurso bastante violento. “Para se ter uma ideia, uma professora de ensino fundamental me disse que estava dando uma aula sobre o livro da Anne Frank [autora infantil judia assassinada na Segunda Guerra] e a videoconferência foi invadida. A situação está ficando grave no Brasil, e as pessoas não estão se dando conta. É preciso que a sociedade civil reaja de forma veemente. Não pode acontecer a essas vereadoras o que aconteceu com Marielle. Elas precisam ser protegidas pelo Estado. Como sociedade civil que pensa no processo civilizatório, temos que reagir.”
El País: Descumprir o teto de gastos ou paralisar serviços públicos, a encruzilhada das contas públicas brasileiras
Governo empurrou definições cruciais, como Orçamento para este ano e correções no mecanismo de teto de gastos. Para piorar, alta da inflação pressiona despesas previdenciárias e de assistência
O Brasil não está quebrado, como alarmou o presidente Jair Bolsonaro na semana passada, muito menos uma maravilha, como disse horas depois ao tentar minimizar sua declaração após forte repercussão. O país vive, sim, hoje uma situação fiscal grave, com as contas públicas no vermelho há mais de seis anos e deve registrar um rombo sem precedentes devido à pandemia de coronavírus. A expectativa do Ministério da Economia é que o déficit primário de 2020, que considera o que a União arrecada com impostos, seus gastos e transferências, mas não as despesas com juros da dívida pública, chegue a 844 bilhões de reais, o que representa 11,7% do Produto Interno Bruto (PIB). Neste novo ano, os desafios novamente são enormes e não há um plano fiscal claro. Nem um consenso dentro do próprio Governo. Enquanto o ministro Paulo Guedes (Economia) quer retomar a agenda de reformas, a ala militar aposta na expansão de gastos para reativar a economia que deve registrar um tombo de mais de 4% em 2020.
Com a pandemia ainda em curso, o Governo volta a lidar com as regras fiscais, suspensas no ano passado pelo decreto de calamidade pública. O Orçamento do ano ainda será votado, mas o risco de estourar o teto de gastos ―regra que impede que as despesas públicas cresçam mais do que a inflação― é grande, segundo economistas escutados pelo EL PAÍS. “Para esse ano, o corte das despesas discricionárias [não obrigatórias] para cumprir a regra terá de ser tal que só restam duas opções: ou descumprir o teto ou levar o Estado a um risco de shutdown [quando há paralisação dos serviços públicos]”, diz Felipe Salto, diretor-executivo do Instituto Fiscal Independente (IFI) do Senado.
Com o prolongamento da crise sanitária, gastos com compra das vacinas, saúde e até mesmo com algum tipo de transferência de renda, que substitua o auxílio emergencial ou o prolongue, dada a precariedade do mercado de trabalho e o aumento do desemprego que já atingem mais de 14 milhões de brasileiros, agravam o problema fiscal, segundo Salto. “Ou se constrói uma solução a curto prazo ou as contas e o custo de financiamento da dívida vão para o vinagre. Não faltaram alertas sobre a não sustentabilidade do teto para o pós-2020. Infelizmente, o Governo prefere fazer ouvidos moucos e repetir que cumprirá o teto”, completa.
Inflação alta agrava quadro
Um ingrediente extra, no entanto, pode dificultar ainda mais o compromisso da equipe econômica: a aceleração da inflação na reta final do ano passado. Isso porque o teto de gastos é corrigido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado até junho (2,13%), enquanto as despesas indexadas ao salário mínimo, como sociais e previdenciárias, crescerão acima de 5%, mais que o dobro, porque são reajustadas de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) acumulado até dezembro, o que gera um descasamento entre os índices. “O efeito sobre o orçamento é muito significativo. Vale dizer que, pelas minhas contas, cada ponto a mais de inflação representa 8,4 bilhões de reais de gastos extras anualizados”, explica Salto.
O Governo afirma que o reajuste do valor do salário mínimo de 1.045 para 1.100 reais mensal em 2021, que foi anunciado, no fim do ano, respeita todas as regras fiscais e não fere o teto. Segundo o secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, o Ministério da Economia reconhece que há impactos nos gastos, mas alerta que a equipe está atenta ao equilíbrio das contas. Cada um real de aumento no salário mínimo gera elevação de despesas de 351,1 milhões de reais, segundo a pasta. “Estamos aqui para garantir que todos esses impactos estarão dentro do teto”, garantiu o secretário.
Para Juliana Damasceno, pesquisadora da área de Economia Aplicada do FGV-IBRE, as regras de reajuste para o salário e a o teto são incompatíveis e apontam uma falha no próprio desenho da regra do teto de gastos, que segundo ela, precisa ser revista. O descasamento já tinha acontecido também de 2019 para 2020, mas com uma diferença bem menor que a que vemos agora. “Existe um problema de execução, se você desenha um teto para ser corrigido por um índice de inflação de junho e você tem uma série de despesas decidido por outro, você se expõe ao risco desses dois índices não conversarem”, diz.
Para conseguir algum respiro no orçamento engessado é preciso rever também a estrutura dos gastos obrigatórios, segundo a economista. Com um Orçamento previsto de cerca de 1,5 trilhão de reais, o Governo terá liberdade de manejar somente menos de 100 bilhões. “Há gastos ineficientes, como incentivos tributários que não são avaliados, é preciso fazer uma melhor avaliação das políticas públicas.” Damasceno acredita que, neste ano, o Governo deve ter uma certa margem de manobra se conseguir novamente um crédito extraordinário devido à pandemia. “Pode conseguir estender o estado de calamidade, o Orçamento de guerra. Mas para uma peça realista, é preciso existir algum programa de transferência de renda. O desemprego vai continuar alto, as demandas sociais idem. A licença para gastar que a gente tinha acabou, mas a pandemia não”, opina. Ela critica ainda a falta planejamento plano de longo prazo. “O Brasil precisa consolidar uma política fiscal e parte disso depende de uma articulação política que esse Governo não tem. Prometeram voltar com o debate da reforma tributária em setembro e até hoje nada.”
Revisão do teto
Na avaliação da pesquisadora, apesar do teto de gastos ter entrado em vigor em 2017, já é necessário reconhecer os problemas técnicos e torná-lo mais factível. “É algo muito delicado a forma que deveria ser feito, porque ele não pode deixar de ser uma âncora fiscal.” Para além do descasamento dos índices ela aponta também a necessidade de se levar em conta o crescimento também vegetativo. “As despesas previdenciárias, por exemplo, têm um crescimento muitas vezes acima da inflação, então por que não associar o teto ao crescimento vegetativo? Precisamos pensar em desenhos factíveis.”
O grande problema na visão de Felipe Salto, do IFI, é a falta de rumo na política fiscal. O ajuste fiscal pode vir pelo lado da receita, da despesa ou uma combinação das duas coisas. “Na presença do teto, o lado do gasto tem maior importância. Mas está óbvio que não se construiu a solução necessária para a sobrevivência da regra. Refiro-me à possibilidade de acionamento dos gatilhos, por exemplo”, diz.
É preciso, ainda, sinalizar o que será da relação dívida/PIB, que hoje já chega a quase 100%. “É fundamental que se aponte de que forma o superávit primário [o dinheiro que “sobra” nas contas do Governo depois de pagar as despesas, exceto juros da dívida pública] será recuperado. Não adianta dizer que vai cumprir o teto, porque quem faz conta vê que isso é impraticável”, completa.
O economista André Perfeito, da Necton, avalia que a fala de Bolsonaro de que o país estaria quebrado e que o Governo não teria o que fazer é um argumento retórico para preparar politicamente os cortes de gastos emergenciais e tentar reequilibras as contas públicas. Perfeito analisa que o problema central hoje do Brasil não é a “falta de dinheiro”, mas sim de um planejamento claro. “A questão fiscal não será resolvida apenas com cortes de gastos, sabemos que terão que tributar mais”, afirma. Ele ressalta, no entanto, que nenhum planejamento será feito antes dos novos presidentes da Câmara e do Senado serem escolhidos em fevereiro. “Logo continuaremos no escuro neste começo de ano”, diz.
El País: Polarização se revela como fator de risco na pandemia
Ideologia e partidarismo atrapalham a resposta à expansão do coronavírus, segundo muitos estudos. Um novo trabalho encontra correlação entre posicionamentos políticos e as mortes por covid-19 em certas regiões
“O vírus se tornou um indicador de identidade tribal”, advertia recentemente o psicólogo social Jonathan Haidt nas páginas do The New York Times. Referia-se à sociedade norte-americana, onde muitos estudos observaram que o cumprimento ou não das restrições para frear contágios de coronavírus está intimamente ligado ao voto dos cidadãos: o partidarismo influi mais no comportamento que a gravidade dos contágios no entorno. Um novo estudo aproxima agora esta realidade tribal ao contexto europeu e, pela primeira vez, mostra uma correlação direta entre as mortes por covid-19 e a crispação política em 153 regiões de 19 nações do continente. “Uma maior polarização social e política pode ter acabado por custar vidas durante a primeira onda da covid-19 na Europa”, conclui esse trabalho.
“Observamos que maiores níveis de polarização predizem [um excesso de] mortes significativamente maior. Por exemplo, a diferença no excesso de mortes entre duas regiões, uma sem polarização das massas (2,7%) e outra com níveis máximos (14,4%), é mais de cinco vezes maior”, aponta o estudo, em processo de publicação por uma revista científica. “Queríamos testar essa possibilidade da que tanto se falou e observamos que há uma associação bastante clara, correlações que vão nessa linha. Há indicadores claros de que [a polarização] prejudica seriamente o desempenho”, afirma Víctor Lapuente, da Universidade de Gotemburgo (Suécia), que assina o trabalho com seus colegas Nicholas Charron e Andrés Rodríguez-Pose, da London School of Economics.
Ou seja, os estragos decorrentes da pandemia aumentavam em regiões europeias onde havia mais divisão entre apoiadores e detratores dos seus respectivos Governos. A polarização é entendida como tribalismo identitário e animosidade contra o outro. Porque, como mostra este estudo, as maiores diferenças em excessos de mortalidade por covid-19 não se dão entre países, e sim entre os territórios dentro dos próprios países. Os autores propõem três mecanismos que explicariam esse fenômeno. Primeiro, que é mais difícil para os Governos construírem um consenso político sobre as medidas; segundo, que as prioridades são definidas em função das exigências dos grupos de pressão (empresários, por exemplo), em detrimento da saúde pública; e, terceiro, porque com a polarização as políticas se tornam mais populistas e menos baseadas em critérios de especialistas.
“Subjaz o medo da reação da mídia, de que a oposição caia matando. Nestas condições, não é possível tomar as melhores decisões, porque o contexto atende aos governantes”, comenta Lapuente, professor da escola de negócios ESADE. Os líderes ficam paralisados pelo medo de exagerarem ou ficarem aquém das circunstâncias, quando, contra a pandemia, a rapidez e a consistência são essenciais. “Seja rápido, sem remorsos. Se você precisar ter razão antes de se mexer, nunca ganhará”, avisou Michael Ryan, diretor de Emergências Sanitárias da OMS, já em 13 de março de 2020. “A Espanha é um caso particularmente sério”, observa Lapuente, “onde o debate foi muito dicotômico e a estratégia da comunicação domina a política”. Em um editorial, a revista médica The Lancet Public Health disse que “a polarização política e a governança descentralizada da Espanha também poderiam ter prejudicado a rapidez e a eficiência da resposta de saúde pública”.
Durante a gestão da pandemia, em alguns países medidas sanitárias que em princípio não têm nada de ideológico acabaram se politizando até níveis extremos. A atitude de Donald Trump sobre as máscaras determinava seu uso nos EUA, assim como o distanciamento social era maior entre eleitores democratas nos EUA, e menor entre partidários de Jair Bolsonaro no Brasil. Um estudo publicado na Nature Human Behaviour detecta “uma forte associação entre os níveis de animosidade partidária dos cidadãos e suas atitudes sobre a pandemia, assim como as ações que adotam em resposta a ela”. Outro, no Science Advances, é mais taxativo: “Nossos resultados apontam para uma conclusão inequívoca: o partidarismo é um determinante muito mais importante da resposta de um indivíduo à pandemia que o impacto da covid-19 na comunidade desse indivíduo”.
Joaquín Navajas, neuropsicólogo do Conicet (agência argentina de pesquisa científica), acaba de realizar um estudo analisando a polarização na resposta popular em quatro países com trajetórias pandêmicas muito interessantes de comparar: Argentina, Uruguai, EUA e Brasil. Primeiro perguntaram às pessoas sobre a quantidade de mortos que haveria em seu país, e não houve surpresas: quanto maior o apoio ao Governo, menor o número de mortos previsto. “O que nos surpreendeu muitíssimo é que não havia absolutamente nenhuma relação entre o prognóstico do número de mortes que citavam e seu grau de concordância com as políticas públicas pensadas para combater a covid”, observa Navajas, diretor do Laboratório de Neurociência da Universidade Torcuato Di Tella. De maneira aparentemente irracional, na Argentina e Uruguai os partidários da oposição prognosticavam mais mortes, mas mostravam menor apoio às restrições impostas por seus líderes para evitá-las.
Neste trabalho, também observaram que a ideologia não é determinante, já que não havia diferenças entre a Argentina e Uruguai, cujos governos têm sinais políticos distintos: os partidários do Governo opinavam da mesma forma em ambos os países, assim como os da oposição – só que um país é governado pela esquerda, e o outro pela direita. “O que importa é o tribalismo partidário”, sustenta Navajas. E acrescenta: “A incerteza sobre a falta de informação nos leva a procurar soluções na liderança. Não é estranho que esses tribalismos tenham se acentuado, durante milênios funcionou nos refugiarmos em nossa tribo para sobreviver”.“Em circunstâncias de alta desinformação e falta de informação, as pessoas observam os exemplos. Só podemos ser racionais se nossos líderes forem racionais”
“Em circunstâncias de alta desinformação e falta de informação, as pessoas observam os exemplos. Só podemos ser racionais se nossos líderes forem racionais”, argumentava recentemente a cientista política Sara Wallace Goodman, da Universidade da Califórnia. Ela publicou um estudo segundo o qual “os norte-americanos interpretam a pandemia de uma maneira fundamentalmente partidarista, e as condições objetivas da pandemia desempenham quando muito um papel menor na configuração das preferências das massas”.
Líderes e falsos dilemas
“Nas crises curtas isso não acontece porque todo mundo segue o líder e se considera traição [não fazê-lo]”, diz Eloísa del Pino, pesquisadora de políticas públicas do CSIC (agência espanhola de pesquisa científica), que estudou a gestão dos asilos para idosos durante a pandemia. “Mas quando essas crises se prolongam e aumenta o potencial de culpabilização, esses fenômenos se dão, e quando as medidas sanitárias se politizam, perdem eficiência”, resume.
A cada fator em disputa surge um falso dilema nas elites políticas e midiáticas, gerando tensão entre os cidadãos, que se sentem empurrados a decidir com teimosia identitária sobre assuntos científicos que desconhecem. Há alguns meses, saiu um estudo que explicava como o apoio político polarizava repentinamente assuntos até então neutros, podendo gerar uma animosidade inclusive maior: “O efeito positivo gerado entre os simpatizantes do partido e do seu líder é compensado pelo aumento da rejeição dos detratores”. Neste momento, o maior apoio à vacina contra a covid-19 na Espanha se dá entre os votantes dos partidos que governam, enquanto os seguidores do partido ultradireitista Vox são os que manifestam maior receio.“É grave que muitíssimas pessoas que morreram teriam se salvado com outra atitude. Isso mostra também que é mais difícil mudar o comportamento humano que conseguir a vacina em menos de um ano”
“Este trabalho [de Lapuente] demonstra que o resultado da pandemia também tem muito a ver com o comportamento das instituições e dos representantes políticos”, aponta Arantxa Elizondo, professora da Universidade do País Basco. Segundo ela, há duas questões que estão constantemente atrapalhando a resposta: o medo da paralisação econômica “e a busca por rentabilidade eleitoral sobre o bem-estar coletivo”. “E isso não é só uma falta de humanidade, é um erro colossal”, denuncia Elizondo, presidenta da Associação Espanhola de Ciências Políticas e da Administração. “Se for assim, a polarização custou vidas, é grave que muitíssimas pessoas que morreram teriam se salvado com outra atitude. Isso mostra também que é mais difícil mudar o comportamento humano que conseguir a vacina em menos de um ano”, resume Elizondo.
À medida que a pandemia transcorria, descobriu-se que idosos e pessoas com doenças pré-existentes corriam mais risco. Mais adiante, acrescentaram-se aqueles com menos recursos e com piores condições de vida. Agora, se as conclusões destes estudos se confirmarem, podemos acrescentar outro fator de risco: viver em um país polarizado.
El País: Democratas conseguem o controle do Senado dos EUA
Raphael Warnock e Jon Ossoff conquistam as cadeiras no segundo turno da eleição na Geórgia
Em meio ao caos gerado pelo ataque ao Capitólio feito por partidários de Donald Trump em Washington, o Partido Democrata arrebatou do Republicano o controle do Senado dos Estados Unidos com a vitória dos dois candidatos progressistas na eleição desta terça-feira na Geórgia, que disputava no segundo turno as duas cadeiras atribuídas a este Estado. O resultado abre caminho para o mandato do presidente eleito, Joe Biden, que, pelo menos pelos próximos dois anos, governará com as duas Câmaras legislativas a seu favor, a dos Representantes e o Senado. A maioria democrata deste último será, no entanto, mínima. Com a vitória do reverendo Raphael Warnock e do documentarista Jon Ossoff, o Senado será composto por 50 republicanos e 50 democratas (dois deles independentes). A próxima vice-presidenta, Kamala Harris, exercerá o voto decisivo nos casos de empate.
O resultado vem depois de uma campanha de alta tensão, marcada pela ofensiva do presidente republicano Donald Trump para anular o resultado das eleições presidenciais brandindo acusações infundadas de fraude em massa, que implicam o questionamento de todo o sistema e que culminou com o caos na sessão que ratificaria o mandato de Biden. A Geórgia estava no olho do furacão depois de ter elegido, em novembro, o primeiro presidente democrata em 28 anos, tornando-se assim o único oásis azul no chamado “cinturão bíblico” do sul, em uma votação apertada que Trump tentou desacreditar sem sucesso. Nesta terça-feira, o sul do Estado voltou a fazer história e elegeu o primeiro senador democrata desde 1996 no segundo turno depois de um primeiro empate em 3 de novembro.
Com a recuperação do Senado depois de seis anos de maioria republicana, os democratas deram outro basta à era Trump, embora o resultado apertado reflita a necessidade de consensos. A vitória democrata na Geórgia também marca o fim do reinado do dirigente republicano Mitch McConnell na Câmara Alta, que passará a ser o líder da minoria. McConnell foi durante anos o muro no qual a Administração de Obama se chocou em seus últimos anos, um veterano político orgulhoso do apelido de La Parca [A Morte], por sua capacidade de enterrar projetos da oposição.
A maciça participação da comunidade afro-americana e a mobilização dos jovens foram fundamentais para a vitória de Warnock, que enfrentou a senadora republicana Kelly Loeffler, de 50 anos, e de Ossoff, de 33, que disputou uma vaga contra David Perdue, até o último domingo senador republicano, de 70 anos.
O reverendo Warnock, o primeiro afro-americano a chegar ao Senado pela Geórgia, era um forte adversário. O pastor, que há mais de 15 anos pertence à Igreja Batista Ebenezer, a mesma do líder pelos direitos civis Martin Luther King Jr., foi imediatamente bem recebido pela comunidade, que sentiu sua proximidade em relação aos seus problemas cotidianos. A Geórgia é o segundo Estado com maior população negra do país (33,5%), um grupo demográfico que costuma favorecer os democratas. Por seu lado, Loeffler, que foi escolhida a dedo pelo secretário de Estado da Geórgia depois que um legislador se afastou por problemas de saúde, era uma incógnita.
Embora as pesquisas indicassem uma ligeira vantagem para Ossoff sobre Perdue, sua vitória foi uma surpresa ainda maior. O agora ex-senador conquistou sua cadeira em 2014, quando venceu confortavelmente com 52,9% dos votos. Durante a última semana, o fiel seguidor de Trump não pôde fazer campanha no terreno porque esteve em contato direto com um contagiado por coronavírus. Ossoff será o senador mais jovem na Câmara Alta e também o democrata mais jovem a chegar ao Senado desde Joe Biden, há quase meio século.
Uma das dúvidas da jornada consistia em quanto pesaria ―e se positiva ou negativamente― a retórica do presidente cessante sobre a confiabilidade do sistema eleitoral. Trump denuncia há dois meses sem provas que houve fraude nas eleições de novembro, mas ao mesmo tempo convidava suas bases a votar nos dois candidatos republicanos na Geórgia. O último escândalo relacionado à inédita cruzada do presidente foi a chamada telefônica publicada no domingo na qual Trump pressionou o secretário de Estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, para “encontrar” votos suficientes para reverter a vitória de Biden.
A imigração para a capital e para as áreas residenciais de minorias étnicas e profissionais da indústria cinematográfica favoreceu o Partido Democrata. O núcleo da área metropolitana de Atlanta vem se expandindo rapidamente há uma década e agora representa quase metade do eleitorado do Estado. Esse crescimento do capital progressista conseguiu ganhar o braço de ferro contra a zona rural do Estado, conservadora.
A eleição dos senadores pela Geórgia acontece em uma semana intensa para a política norte-americana. Nesta quarta-feira terá lugar a certificação de Biden como vencedor da eleição presidencial, em uma sessão bicameral no Capitólio, e um grupo cada vez maior de senadores e congressistas republicanos planeja torpedeá-la, embora não tenha votos suficientes para realizar mais do que um ato de rebeldia contra a vontade que os cidadãos norte-americanos expressaram nas urnas.
El País: Bolsonaro apoia Trump e diz que houve fraude nos EUA enquanto mundo critica assalto ao Capitólio
Premiê do Reino Unido, Boris Johnson, diz que imagens são “vergonhosas” e ministro alemão fala em “democracia pisoteada”
Os principais líderes mundiais assistiram com espanto ao ataque à sede do Congresso dos EUA por manifestantes instigados pelo presidente Donald Trump. A seriedade dos acontecimentos no Capitólio dos Estados Unidos levou à condenação de grande parte dos líderes mundiais, que concordam em pedir calma e respeitar a vontade das urnas. Não foi, no entanto, o caso de Jair Bolsonaro.
Um aliado entusiasta de Trump, Bolsonaro, um dos últimos líderes a parabenizar Joe Biden pela vitória nos EUA, deu apoio tácito à investida incitada pelo republicano quando perguntado por apoiadores nesta quarta-feira. “Eu acompanhei tudo. Você sabe que eu sou ligado ao Trump. Você sabe da minha resposta. Agora, muita denúncia de fraude, muita denúncia de fraude. Eu falei isso um tempo atrás”, disse o brasileiro, em referência ao ainda ocupante da Casa Branca.
Ato seguido, Bolsonaro voltou, novamente sem provas, a dizer que sua eleição em 2018 também foi alvo de fraude. “A minha eleição foi fraudada. Eu tenho indícios de fraude na minha eleição. Era para eu ter ganho no primeiro turno.” O brasileiro insiste tanto na tese infundada de fraude como na campanha de desconfiança sobre o sistema eleitoral brasileiro que deixa poucas dúvidas de que seguir a estratégia de Trump, de questionamento de resultados eleitorais e incitação da base radical, faz parte de um roteiro que ele pode acionar em 2022. Os presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, criticaram os acontecimentos em Washington.
Veja a seguir a reação de líderes internacionais. A maioria escolheu a rede social Twitter para tornar pública sua reação.
Reino Unido. O primeiro-ministro Boris Johnson, também um aliado de Trump, condenou o que aconteceu: “Imagens vergonhosas no Congresso dos Estados Unidos. Os Estados Unidos representam a democracia em todo o mundo e agora é vital que haja uma transferência de poder pacífica e ordeira.”
Alemanha. “Trump e seus apoiadores devem definitivamente aceitar a decisão dos eleitores americanos e parar de pisotear a democracia”, tuitou o ministro das Relações Exteriores alemão, Heiko Maas.
OTAN. O secretário-geral da Aliança Atlântica, o norueguês Jens Stoltenberg, chamou os violentos protestos em Washington como “cenas chocantes” e destacou que “o resultado dessas eleições deve ser respeitado”.
Rússia. “De DC vêm imagens no estilo Maidan”, tuitou o número dois do embaixador russo na ONU, Dmitry Poliansliy, referindo-se às mobilizações populares que culminaram na derrubada do aliado presidente ucraniano de Moscou, Viktor Yanukovich. “Alguns dos meus amigos perguntam se alguém vai distribuir cookies como nas travessuras que Victoria Nuland estrelou”, referindo-se ao comportamento do número dois na diplomacia dos EUA durante uma visita à Ucrânia em 2013.
União Europeia. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, expressou sua confiança na “força das instituições americanas e na democracia. Uma transição pacífica está no centro”, tuitou a líder europeia. “Joe Biden ganhou a eleição. Estou ansiosa para trabalhar com ele como o próximo presidente dos Estados Unidos.” Da mesma forma, o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, declarou que “contamos com os Estados Unidos para permitir uma transferência pacífica do poder para Joe Biden”.
Espanha. O presidente de Governo (premiê) Pedro Sánchez tuitou: “Estou acompanhando com preocupação as notícias que chegam do Capitólio, em Washington. Estou confiante na força da democracia americana. A nova presidência de Joe Biden vai superar este momento de tensão, unindo o povo americano.” Por sua vez, a ministra das Relações Exteriores, Arancha González-Laya, lembrou que “a democracia se baseia na transferência pacífica do poder: quem perde tem que aceitar a derrota. Confiança plena nos senadores e deputados para cumprir a vontade do povo. Confiança total no presidente eleito Joe Biden.”
Argentina. O presidente Alberto Fernández expressou sua “rejeição aos graves atos de violência e indignação do Congresso” e confiou em que “haverá uma transição pacífica que respeite a vontade popular”. Ele enfatizou seu “forte apoio ao presidente eleito Joe Biden”.
França. De Paris, o ministro das Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian, condenou o “sério ataque à democracia” que representa o ataque ao Capitólio em Washington por partidários de Trump: “A vontade e o voto do povo americano devem ser respeitados”.
Venezuela. “Com este lamentável episódio, os Estados Unidos sofrem o mesmo que geraram em outros países com suas políticas agressivas”, diz um breve comunicado, que também condena “a polarização política e a espiral de violência”.
El País: Congresso dos EUA confirma vitória de Biden após revolta instigada por Trump
Ao final de um dia caótico, que deixou quatro mortos, presidente republicano se compromete com uma transição “ordenada”
Amanda Mars, El País
As urnas e as instituições deram o tiro de misericórdia na era Trump, na madrugada desta quinta-feira, após uma jornada lamentável para a história dos Estados Unidos. O Congresso confirmou a vitória do democrata Joe Biden horas depois de ser invadido por uma turba de seguidores do presidente republicano, agitados por suas acusações infundadas de fraude eleitoral. Os graves distúrbios, que deixaram quatro mortos, obrigaram à suspensão da sessão e à mobilização da Guarda Nacional, mas os parlamentares voltaram a se reunir ainda na noite de quarta-feira, numa sólida exibição de firmeza, e cumpriram a Constituição. Às 3h40 horas (5h40 em Brasília), o vice-presidente Mike Pence ―que pela Constituição é também o presidente do Senado― declarou a vitória do candidato democrata, após dias de pressões do seu chefe, que lhe pedia para se rebelar. Imediatamente depois, Trump emitiu um comunicado em que continuava protestando pelo resultado mas, pela primeira vez, se comprometia a uma transição de poderes “ordenada” em 20 de janeiro.
Nesse dia Biden tomará posse e iniciará um mandato que terá ampla margem de manobra, pois os democratas controlarão a Casa Branca, a Câmara de Representantes (deputados) e também o Senado, após a eleição de dois democratas ―Raphael Warnock e Jon Ossoff― no Estado da Geórgia. Começará então o duro trabalho de curar feridas, estender pontes e reparar reputações. Líderes de todo o mundo condenaram o ocorrido nos EUA (uma das poucas exceções foi o brasileiro Jair Bolsonaro), país visto como referência de democracia e solidez institucional, e que há 200 anos não vivia algo assim.
“Vamos terminar exatamente o que começamos e certificaremos o vencedor das eleições presidenciais de 2020. O comportamento criminal nunca dominará ao Congresso dos Estados Unidos”, disse o líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell. Ele qualificou a revolta como “insurreição fracassada” e proclamou com orgulho: “Os Estados Unidos e este Congresso já confrontaram ameaças muito maiores que a turba perturbada de hoje. Não nos dissuadiram antes e não nos dissuadirão agora. Tentaram romper nossa democracia e fracassaram”. O vice-presidente Mike Pence havia reaberto a sessão, pouco antes, dizendo que “vocês não ganharam, a violência nunca ganha, a liberdade ganha.” Os discursos tinham algo de terapia de grupo.
Após quatro anos acolhendo a retórica incendiária de Donald Trump, os republicanos se depararam neste nublado dia de janeiro de 2021 com um monstro de aspecto muito feio, uma multidão que quebrava vidraças do seu grande templo democrático, escalava suas paredes, irrompia nos plenários e se sentava na poltrona da presidência do Senado. A democracia se impôs, mas o sistema ficou abalado.
O pavio havia sido aceso pela manhã por Trump num comício em frente à Casa Branca, justamente por ocasião da sessão parlamentar que certificaria a vitória democrata nas eleições presidenciais. “Depois disto, vamos caminhar até o Capitólio e vamos incentivar nossos valentes senadores e congressistas”, disse a uma multidão formada por milhares de pessoas vindas de todo os EUA. “A alguns não vamos incentivar muito, porque vocês nunca irão recuperar o país de vocês com fraqueza, têm que mostrar força”, acrescentou. Ao final, os trumpistas partiram para o Capitólio e, depois de romper o cordão policial, desencadeou-se a violência.
Os legisladores correram para se refugiar, e Mike Pence foi retirado, enquanto os manifestantes zanzavam pelo interior do edifício, alguns com bandeiras confederadas e outros fantasiados, deixando uma nota tragicômica na jornada. Um deles se sentou na poltrona do presidente do Senado; outro, no gabinete da presidenta da Câmara, Nancy Pelosi, a quem, segundo a Associated Press, deixou uma mensagem que dizia: “Não recuaremos”. Quatro pessoas morreram, segundo a polícia: uma mulher atingida por um tiro, e outras três por emergências médicas. A cifra de detidos chegava a 52, o que parecia muito pouco para o espetáculo vivido, e a polícia encontrou duas bombas caseiras e uma geladeira com coquetéis molotov nas imediações. O escasso preparativo do dispositivo de segurança diante de uma manifestação que já se previa monumental e a lentidão da resposta fizeram as perguntas se multiplicarem, sobretudo depois da ostensiva presença das forças da ordem durante os protestos contra o racismo em meados deste ano.
“O que aconteceu aqui é uma insurreição incitada pelo presidente dos Estados Unidos”, denunciou o senador republicano Mitt Romney, de Utah. “Assim é como se discutem as eleições em uma república bananeira, não em nossa república democrática”, afirmou em nota o ex-presidente republicano George W. Bush. Mas é nessa rica república onde esta tempestade foi se formando dia a dia desde a derrota eleitoral de Trump em 3 de novembro, com a conivência de uma parte dos políticos conservadores.
Um grupo de senadores e deputados republicanos planejava torpedear a sessão de confirmação de Joe Biden com o argumento das supostas irregularidades nas urnas, embora inúmeros tribunais tenham concluído que não havia base para essas suspeitas, e de exaustivas recontagens não terem levado a resultados diferentes. O Congresso deveria contar os votos certificados pelos Estados em dezembro passado, numa sessão conjunta da Câmara de Deputados e do Senado, um último trâmite exigido pela Constituição antes da posse do novo presidente, em duas semanas. Os legisladores insubmissos tinham preparado uma bateria de objeções aos escrutínios dos Estados que foram decisivos para a derrota de Trump, embora elas não tivessem perspectiva de prosperar, já que seria necessário o aval da Câmara de Representantes, de maioria democrata, e do Senado, onde apenas uma dúzia de republicanos apoiava a manobra. O objetivo, portanto, era fazer barulho, mas o estrondo afinal veio do lado de fora.
O cômputo das cédulas era feito em voz alta, território por território, por ordem alfabética, e o primeiro protesto chegou cedo, na vez do Arizona, um Estado que, ao se inclinar por Biden em 3 de novembro, escolheu um presidente democrata pela primeira vez desde 1996. Quando o debate sobre essa objeção começou, a confusão se instalou às portas do Capitólio e a sessão teve que ser suspensa. Mike Pence foi retirado, os legisladores se refugiaram sob suas mesas, e foram observadas cenas de grande violência no Capitólio. Depois do ocorrido, pelo menos quatro dos políticos que pretendiam lançar as objeções mudaram de opinião, como a senadora georgiana Kelly Loeffer – que acaba de perder a reeleição –, alegando problemas de “consciência”. A objeção foi derrubada e o cômputo em voz alta continuou, com outra longa interrupção ao chegar à Pensilvânia.
De Trump não se ouvia nada a essas horas. A rede social Twitter tinha decidido bloquear sua conta durante 12 horas, e o Facebook, durante 24, depois de apagar as mensagens em que desculpava a violência de seus seguidores e insistia nas teorias conspiratórias da fraude eleitoral. “Estas são as coisas e acontecimentos que ocorrem quando se tira uma vitória sagrada e esmagadora de grandes patriotas, que foram tratados de forma má e injusta durante muito tempo. Vão para casa em paz e amor. Recordem este dia para sempre”, tinha publicado em sua conta. Em uma declaração em vídeo, chegou a dizer aos participantes dos distúrbios: “Vão para casa, amamos vocês, vocês são muito especiais, mas precisam ir para casa”. Por causa dos incidentes, quatro funcionários graduados da Casa Branca se demitiram, segundo a Bloomberg, entre eles o subassessor de Segurança Nacional, Matt Pottinger, e Stephanie Grisham, chefa de gabinete da primeira-dama.
Ao todo, o drama se prolongou por quase 15 horas. O ataque da quarta-feira não foi o primeiro sofrido pelo Capitólio, pois em 1954 um grupo de nacionalistas porto-riquenhos disparou na Câmara de Representantes e feriu vários deputados, e em 1998 um homem matou dois policiais. Mas a última vez que o prédio havia sido sitiado por uma turba foi durante o ataque britânico liderado pelo general Robert Ross, em 1814, depois da batalha de Bladensburg.
Apesar do tumulto, intuía-se que a invasão não configurava um golpe de Estado, já que a Bolsa de Nova York subiu 1,4%, mais atenta aos estímulos econômicos prometidos pelo novo Senado do que aos tumultos que os investidores viam pela televisão. Mas morreu gente, passou-se medo, e Washington debruçou-se sobre o abismo. E agora, até 20 de janeiro, restam duas semanas com um Trump na Casa Branca que ninguém no seu círculo parece capaz de frear.
El País: Apesar do recorde de desmatamento em 2020, cada vez menos fiscais atuam na Amazônia
Sob Bolsonaro, a maior floresta tropical do mundo perdeu no último ano 11.088 quilômetros quadrados de área, o recorde em 12 anos
Naiara Galarraga Gortázar, El País
Entre os fatores que impulsionam o desmatamento da Amazônia há os clássicos e os menos óbvios, como a taxa de câmbio. Um dólar alto (a 5 reais), como agora, incentiva o corte ilegal de árvores, seja pela febre do ouro ou para limpar espaços que sirvam depois para pastos e cultivos. A maior floresta tropical do mundo perdeu no último ano 11.088 quilômetros quadrados de área florestal, o recorde em 12 anos. Perseguir os crimes ambientais na Amazônia brasileira sempre foi um desafio descomunal, porque é mais extensa que a soma dos 27 países da União Europeia, mas com o presidente Jair Bolsonaro isso fica ainda mais difícil. Quando as nuvens permitem, os satélites exercem há anos um papel valioso no combate ao desmatamento, mas antes ou depois dele são necessários inspetores ambientais que atuem no terreno. Sempre foram poucos, e agora estão prestes a se tornar mais uma espécie em extinção.
Isso significa um punhado de homens com alguns barcos e helicópteros em um território hostil, com poucos aeroportos e estradas, e onde explorar ilegalmente as riquezas da terra é um dos raros negócios realmente lucrativos. Um veterano fiscal do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) fazia a este jornal, em plena pandemia, as seguintes contas sobre sua equipe: descontados os que por idade ou doença pré-existentes foram afastados pelo coronavírus, os aptos a participar das operações de fiscalização são pouco mais de 20 no Estado do Amazonas, o maior do Brasil. A eles se soma um punhado de investigadores de polícia e algumas dezenas de soldados do batalhão ambiental da PM. Isso para cobrir uma área equivalente a três vezes a Espanha.
Sobretudo na última década, os dados dos satélites “ajudam o Ibama a priorizar as áreas de atuação, porque a mão de obra é limitada”, diz o professor Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais, cujo doutorado abordou justamente o papel da tecnologia neste âmbito. Mas o acadêmico acrescenta que esses funcionários “dependem muito do trabalho de campo, sobretudo nas áreas indígenas, em unidades de conservação, onde existe um desmatamento muito agressivo”. É preciso chegar até lá porque o satélite é capaz de detectar indícios de crime, mas não de neutralizá-lo. Isso implica se apresentar no local para confiscar e destruir os instrumentos usados para cometer o crime ambiental (escavadoras, caminhões, motosserras…).
Segundo Rajão, coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais, são cada vez mais raras as operações que reúnem na Amazônia fiscais do Ibama vindos de todo o Brasil para perseguir suspeitos importantes em momentos críticos, como secas ou picos de desmatamento.
Quando no começo do século o Brasil tomou consciência da gravidade do desmatamento, agiu contra ele e conseguiu reduzi-lo até atingir um mínimo histórico em 2012. Mas desde então voltou a crescer, acompanhando a grave crise política que culminou na destituição de Dilma Rousseff. E depois veio a recessão.
O problema mais urgente já não é a cuidadosa logística necessária para combater o desmatamento, ou o seu custo. É a falta de vontade política. Ao chegar ao poder, dois anos atrás, Bolsonaro tentou criminalizar as ONGs ambientalistas, nomeou como ministro do Meio Ambiente um defensor do lobby pecuarista e sojicultor, Ricardo Salles, e, como se não bastasse, substituiu ambientalistas veteranos da direção do Ibama por comandantes da PM que pouco ou nada sabem de mudança climática ou biodiversidade.
O professor Rajão observa que uma das consequências disso é que a destruição de equipamentos dos criminosos, “um processo muito importante na luta contra o desmatamento, passou a ser um tabu dentro da instituição. E isso é nefasto porque priva os fiscais do Ibama de um instrumento muito importante”.
Um dos motivos para a falta de fiscais é que desde 2012 não há concurso para o cargo; outro é que a rígida burocracia brasileira impede contratações extraordinárias. O resultado é que, se o Ibama teve em seus melhores anos, por volta de 2009, até 1.600 pessoas zelando pelo cumprimento da ambiciosa legislação ambiental brasileira, agora não chegam a 700, segundo a informação obtida pela Fiquem Sabendo, uma agência especializada em transparência. Sua distribuição territorial é um mistério.
Um veterano da luta contra o desmatamento, que pede para ficar no anonimato por medo de represálias, argumenta que viver longe das zonas mais quentes dos crimes ecológicos reduz os riscos aos quais os fiscais estão expostos —muito maiores se estivessem nas regiões onde agem os madeireiros ilegais. Por isso, não acha ruim que residam em Estados distantes da Amazônia e viajem para lá quando há operações.
Mas não cabe mais ao Ibama dirigir a luta contra os crimes ambientais. Transformado em vilão ambiental do planeta com os incêndios na Amazônia no inverno de 2019, Bolsonaro recorreu às Forças Armadas. Agora são elas que decidem onde e quando os fiscais do Ibama agirão. Também fornecem soldados e aeronaves que, segundo os críticos, na verdade atrapalham operações que exigem o sigilo e a discrição que um batalhão ou um comboio de caminhões dificilmente oferecem.
Outro dos efeitos da chegada de Bolsonaro à presidência é que as multas por crimes ecológicos batem recordes negativos. Se antes o problema era recebê-las, agora não são nem emitidas. O Ibama proibiu todos os seus funcionários de falarem com a imprensa. Os indígenas se queixam de que é cada vez mais frequente que as autoridades façam ouvidos surdos às denúncias de invasão de suas terras e corte das suas árvores. É verdade que denunciar, na Amazônia, nunca foi tarefa simples. Para isso é preciso se dirigir a um lugar que tenha linha telefônica ou Internet, ou fazer uma viagem que pode durar dias.
Não foi surpresa a notícia, no começo de dezembro, de que o desmatamento bateu um novo recorde, segundo a medição oficial do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A União Europeia e o próximo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, pressionam o Brasil para que atue com firmeza contra a destruição da Amazônia, num momento em que a mudança climática vai recuperando o protagonismo que a pandemia lhe roubou.
Obstáculo para o acordo comercial UE-Mercosul
O desmatamento agrava o aquecimento climático e, em termos político-econômicos, é o grande obstáculo para que se materialize o tratado comercial entre a União Europeia e o Mercosul. Vários países, com a França à cabeça, não querem nem ouvir falar de ratificá-lo enquanto a destruição da Amazônia persistir neste ritmo.
Para o embaixador da UE em Brasília, Ignacio Ybañez, os 11.088 quilômetros quadrados destruídos no último ano são “cifras ruins”. Para salvar este acordo, negociado durante duas décadas e selado há um ano e meio, a UE exige do Governo do Brasil “um compromisso político que permita restabelecer a confiança, que garanta que as cifras não vão se repetir e que haverá uma mudança de tendência”. A União, que já decidiu não tocar nos termos do acordo, pretende obter garantias do Brasil para dissipar as dúvidas dos sócios reticentes, e que a Comissão Europeia possa apresentar o acordo ao Conselho e ao Parlamento Europeu para avançar no processo de ratificação.