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Afonso Benites: Oposição fracassa na criação de frente de esquerda contra Bolsonaro na eleição de 2020
Hegemonia do PT e cláusula de barreira são alguns dos empecilhos para unificar partidos na disputa pelas principais prefeituras
“Não há unidade entre a esquerda. Cada um está cuidando da sua própria vida.” O diagnóstico feito pelo presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB), Carlos Siqueira, é uma síntese da frustrada tentativa de seis legendas de se integrarem e unificarem os discursos anti-Jair Bolsonaro nas eleições municipais deste ano. Há cerca de três meses, esse grupo que tem feito um trabalho quase uníssono no Congresso Nacional como oposição ao presidente intensificou as conversas para dividirem os palanques nas 92 maiores cidades brasileiras, que é onde há a possibilidade de haver segundo turno. Nacionalmente, as negociações foram encerradas há duas semanas. “Temos convergências de pensamentos, mas na hora da disputa eleitoral, encontramos dificuldade nessa unidade”, avalia a presidenta do PCdoB, Luciana Santos.
Entre as razões estão a falta de interesse do Partido dos Trabalhadores em abrir mão de sua hegemonia na oposição, disputas políticas internas em cada município e a preocupação dos partidos menores em ter uma base de sustentação para 2022, quando a cláusula de barreira, mecanismo que traça uma quantidade mínima de votos para continuar existindo como legenda, será elevada. As conversas estavam sendo feitas por dirigentes de PT, PSB, PDT, PCdoB, PSOL e REDE.
Estimulado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o principal antagonista de Jair Bolsonaro, o PT decidiu que precisa ter o máximo de candidaturas possíveis para poder se defender. “O PT precisa ter voz. Falar de seu legado, das experiências que já teve nas gestões municipais, se defender dos ataques”, diz a presidente da legenda, a deputada federal Gleisi Hoffmann. Nesta eleição, deverá lançar candidatos em 1.531 dos 5.570 municípios brasileiros. Juntas, essas cidades representam 60% da população nacional. Em 2016, último pleito municipal, foram 993 cabeças de chapa. “O grande problema do PT é a cultura hegemônica dele. O PT só pensa em seus candidatos”, reclamou o presidente do PDT, Carlos Lupi.
Entre as 26 capitais onde as prefeituras estarão em disputa, já há pré-candidaturas petistas encaminhadas em 23 delas. Há dúvidas sobre o pleito em São Luís, capital do Estado comandado por Flavio Dino (PCdoB). E em apenas duas capitais o partido concordou em se aliar a outros grupos: Belém com Edmilson Rodrigues (PSOL) e Porto Alegre com Manuela D'Ávila (PCdoB), que foi vice na chapa presidencial do partido em 2018.
Três casos locais servem para exemplificar as tentativas frustradas de união. Em Recife, os diretórios estadual e municipal da legenda decidiram se aliar com o PSB, que lançou a pré-candidatura de João Campos. Mas a direção nacional interveio e determinou que o nome deveria ser o de Marília Arraes, prima em segundo grau de Campos e que disputa com ele o legado familiar deixado pelos ex-governadores Miguel Arraes e Eduardo Campos. No Rio de Janeiro, os petistas estavam inclinados a se juntar à candidatura de Marcelo Freixo (PSOL). Quando este desistiu de disputar por não se sentir seguro com a almejada unidade da esquerda, três outras legendas seguiram unidas (REDE, PSB e PDT), mas o PT lançou Benedita da Silva, ainda sem apoio externo. E em São Paulo, os petistas lançaram Jilmar Tatto, apesar de parte da base defender o apoio a Guilherme Boulos (PSOL) ou a Orlando Silva (PCdoB). Em entrevista ao EL PAÍS nesta terça, Tatto avaliou como natural a escolha do partido e disse que o primeiro turno serve justamente para apresentar propostas, não impedindo união no teste das urnas final.
Nem mesmo em um dos casos “bem-sucedidos” de união citado por Gleisi, ela se concretizou com toda a esquerda. Em Porto Alegre, o PSOL anunciou a pré-candidatura de Fernanda Melchiona e o PDT, a de Juliana Brizola. A REDE ainda avalia qual dessas duas últimas apoiará. “Desde 2013 as forças de direita tentam fazer a desconstrução do PT, de preferência a anulação do partido. Numa frente, é mais difícil fazer a defesa individualizada”, diz Gleisi ao explicar o motivo pelo qual não deu sequência às conversas para a formação de uma frente de esquerda. Ela reclama diretamente do processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, o chamando de golpe, e da prisão de Lula, que trata como uma detenção política.
“No fim, acaba sendo aquela velha máxima. Nos momentos decisivos para o país, o PT ficou sempre na contramão da história”, diz Siqueira, do PSB. Ele cita os posicionamentos contrários dos petistas à Constituinte de 1988, ao governo de integração promovido por Itamar Franco, em 1992, e à aprovação do Plano Real, em 1994. “Não cobramos nada do PT, gostaríamos que entendessem da gravidade do momento e unificasse a esquerda”, queixou-se Siqueira.
Sobre as críticas de que o PT prefere manter essa característica hegemônica a defender a bandeira de toda esquerda, Gleisi diz que as alianças encaminhadas nas duas capitais (Porto Alegre e Belém) demonstram que o partido estaria aberto ao diálogo. E cita ainda a necessidade de todas as legendas se reforçarem em 2020 para colher os frutos em 2022. “É a oportunidade de reafirmar a sua legenda, de proteger-se. Não é o nosso caso, mas têm partidos que podem sumir, caso não superem a cláusula de barreira”.
Na prática, esse mecanismo deverá reduzir a quantidade de partidos políticos porque: 1 - só terá acesso ao fundo partidário e ao tempo de TV as siglas que receberem 2% dos votos válidos nacionalmente para deputado federal em um terço das unidades da federação, sendo um mínimo de 1% em cada uma delas; ou 2 - tiverem elegido ao menos 11 deputados federais distribuídos em nove unidades. “Com a proibição das coligações para vereadores e a elevada cláusula de barreira é natural que os partidos tenham suas candidaturas para afirmar seu lugar político, sua identidade e a defender a sua sobrevivência”, avaliou a comunista Luciana Santos.
Repetição de 2018
Sem essa integração, há quem entenda que o PT insistirá na polarização contra bolsonaristas como uma antessala de 2022. E o resultado pode ser que, em duas ou três eleições seguidas, o cidadão acabe tendo de escolher mais por exclusão do que por adesão a determinada ideia ou plataforma política. “A polarização para o PT é muito boa. Bolsonaro e PT são um melhor amigo do outro do ponto de vista de manter o status quo”, diz o cientista político Leandro Consentino, professor do Insper. “Tanto o PT quanto Bolsonaro enxergam um no outro o inimigo capaz de aglutinar suas hostes”, acrescenta o cientista político Valdir Pucci, doutor pela Universidade de Brasília.
O porta-voz nacional da Rede, Pedro Ivo Batista, diz que o ideal era haver uma união entre os partidos progressista já em um primeiro turno. Mas, como as características de eleições municipais são distintas das nacionais, quando os temas macros ficam em evidência, dificilmente isso ocorrerá na grande maioria das cidades. “O Brasil nunca teve um governo neofascista como esse. O ideal era unir mais para poder evitar esse perigo de forças totalitárias. Corremos o risco de perdermos a eleição agora como perdemos em 2018”, disse Batista.
Presidente do PSOL, Juliano Medeiros, discorda da tese de que neste ano haverá uma prévia de 2022. Entende que servirá como um termômetro, indicará tendências. “O fortalecimento da oposição e um enfraquecimento eleitoral do bolsonarismo, por exemplo, não garantem a derrota da extrema direita em 2022, mas aponta um cenário mais favorável para as forças populares”, analisa. Dos seis dirigentes partidários consultados pela reportagem, apenas ele contemporizou a divisão na esquerda. Disse, por exemplo, que é papel do PT tentar manter sua hegemonia e das demais siglas progressistas de buscarem seus espaços, desde que se mantenha o diálogo respeitoso. Disse ainda que a ideia de frente ampla tem crescido aos poucos, já que não pode ser imposta de cima para baixo.
A expectativa entre os representantes desse campo político é que a frustrada unificação no primeiro turno seja possível ocorrer na segunda etapa da eleição. Resta saber o que ainda estará em disputa.
El País: 'O SUS foi minado. O que vem pela frente é mais complicado do que o que já ficou para trás', diz Mandetta
Ex-ministro da Saúde diz que o sistema de saúde perdeu a coordenação federal diante da pandemia e virou 'terra de ninguém'. Funciona, neste momento, com o esforço das esferas estadual e a municipal
Afonso Benites e Beatriz Jucá, do El País
Desde que foi demitido em abril do Ministério da Saúde por não embarcar na política negacionista e anti-ciência do presidente Jair Bolsonaro, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (Campo Grande, 1964) está em quarentena laboral. Impedido de assumir outro trabalho durante seis meses por ter exercido cargo de confiança no Governo, segue recebendo o salário de cerca de 30.000 reais. Por ora, divide seu tempo entre escrever um livro contando os bastidores de Brasília durante a pandemia de coronavírus, visitar a fazenda da família no Mato Grosso do Sul e exercer seu hobby de marceneiro. Médico ortopedista e ex-deputado pelo DEM, Mandetta tem participado de várias entrevistas e lives ―como a que esteve nesta quinta-feira (13) no EL PAÍS― nas quais costuma fazer críticas ao Governo principalmente pelas políticas de enfrentamento ao coronavírus.
É recorrendo a seus conhecimentos médicos que ele fala da postura de Bolsonaro diante da pandemia que já vitimou mais de 106.000 brasileiros, oficialmente. “Tem pessoas que, quando recebem uma notícia dura, uma notícia ruim na área de saúde, quando o médico diz que ele está com leucemia, ele diz: ‘Eu não acredito nisso. Vou pedir outro exame’”, diz Mandetta que classifica a reação como a fase da negação de um paciente. “A pessoa nega, é natural do ser humano. Na fase seguinte, passa a ter raiva. Eu vi o presidente oscilar entre a fase da negação, que foram essas frases infelizes ―”isso é uma gripezinha”― e vi ele passar para a fase da ira”, testemunha.
Mandetta viu também no entorno do presidente um grupo de pessoas que fomentou essa fase da ira, do combate à realidade. Empresários, médicos e deputados que davam entrevistas sugerindo que o Brasil teria menos de 10.000 óbitos por covid-19, fortalecendo o negacionismo do mandatário. “Ele se aconselhava muito pouco com os ministros. Tinha um aconselhamento paralelo. E, quando você tem pessoas que te aconselham falando o que você quer ouvir, dizendo que você está certo e que isso vai acabar, não escuta a ciência”, diz. “Tentei falar, tentei explicar, entreguei por escrito”, lembra ele. Mas foi voto vencido e sua permanência no Governo ficou insustentável. No dia 16 de abril, anunciou no Twitter sua saída. “Acabo de ouvir do presidente Jair Bolsonaro o aviso da minha demissão do Ministério da Saúde”, afirmou.
Bolsonaro queria que o Ministério da Saúde embarcasse numa disputa política num ano de eleições municipais. “Ele queria que o ministério saísse dessa doença, ficasse calado, e fosse crítico aos prefeitos e governadores, porque na eleição municipal o ponto principal é saúde”, recorda. “E esse tema ficaria restrito à eleição municipal, e na hora que viesse a fase econômica, ele poderia dizer que estaria lutando pela recuperação econômica porque economia é a pauta presidencial.”
Para o ex-ministro, as ações do presidente Jair Bolsonaro visam mais descolá-lo da crise do que mitigá-la. A estratégia, aponta, passa por retirar o protagonismo do Ministério da Saúde, que deveria evitar entrevistas, amenizar os números da pandemia e empurrar a responsabilidade para governadores e prefeitos. A postura do presidente teria apagado a coordenação nacional das políticas de saúde e aberto espaço até para ações “fora da curva”, como por exemplo os chamados kit covid. Algumas cidades passaram a distribuir esses kits de medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento ― incluindo a cloroquina alardeada pelo presidente. “O sistema por parte federal apagou as luzes e se calou. Então vai ter que se reaproximar pra reconstruir um sistema que hoje está à deriva”, diz o ex-ministro.
Mandetta acredita que as duas substituições do comando da Saúde durante a crise ― depois dele, o cargo de ministro foi assumido pelo médico Nelson Teich durante um mês e agora é exercido de forma interina por um militar, o general Eduardo Pazuello― foram prejudiciais, mas a troca da equipe técnica do Ministério foi mais grave e deixou o país “sem referência”, além de ter repercutido em ações preventivas de saúde que deixaram de ser tocadas e que podem causar uma explosão de outras doenças no futuro. “O que vem pela frente é mais complicado do que o que já ficou pra trás”, analisa.
O ex-ministro conta que tentou alertar o presidente Bolsonaro várias vezes sobre a gravidade da doença, verbalmente e por escrito, e que Bolsonaro conhecia as projeções de mortes caso não houvesse uma política de enfrentamento. Dentre os vários cenários com os quais o ministério trabalhava, um deles indicava que o país poderia chegar a 100.000 óbitos em setembro. O Brasil atingiu essa marca em agosto ― e hoje já conta mais de 106.000 mortes pela covid-19.
Preso à “ira” para se eximir de culpas, o Governo apontou o dedo para responsabilizar Mandetta. É sob essa leitura que ele atribui declarações de Pazuello, de que o ex-ministro teria errado ao orientar que as pessoas só buscassem os hospitais quando sentissem falta de ar, no início da pandemia. “Uma crítica vinda dele [Pazuello], eu escuto. Não posso criticá-lo porque eu não entendo nada de militarismo, de paraquedas, de armadilha, de [fuzil] AR15. Se eu fosse fazer uma crítica de que ele não dobra bem um paraquedas, ele ia olhar pra mim e ia dizer: ‘Mas vem cá, você já dobrou algum na sua vida?’ Eu ia dizer, não. Na Saúde é mais ou menos a mesma coisa”, responde.
Mandetta acredita ter conseguido enviar uma mensagem clara à população no início da crise, apesar do presidente, mas pontua que as informações desencontradas da OMS fizeram com que o mundo ocidental precisasse rever estratégias nos primeiros meses de pandemia. Segundo ele, o coronavírus foi apresentado ao mundo como um vírus lento e, naquele momento, se pensava que fazendo a vigilância e determinando bloqueios seria possível contê-lo. Só quando o vírus ganhou força na Itália, o mundo ocidental atentou para a gravidade do problema. “O nosso SUS se prepara até esse caso da Itália para um vírus lento. Quando a gente vê que ele é um vírus extremamente competente, com velocidade de transmissão muito grande, a gente tem de redimensionar todo nosso sistema”, conta.
Quando o presidente Donald Trump passou a classificar a doença como uma gripe menor, Mandetta diz ter acreditado que os Estados Unidos tivessem uma “bala de prata”, seja uma vacina ou um medicamento, mas a queda do sistema de saúde de Nova York logo demonstrou que ela não existia. Mesmo assim, ele diz que Bolsonaro seguiu os passos de Trump no discurso e usou a cloroquina como um atalho para acabar com o distanciamento social e priorizar sua pauta econômica.
Mandetta avalia que o Brasil seguiu as projeções mais duras da epidemia previstas pelo seu ministério, mas acredita que o número de mortes diárias no país deve começar a cair ainda neste mês de agosto, gradualmente. Apesar das inúmeras críticas à condução da crise pelo presidente Bolsonaro, o ex-ministro diz não ver um genocídio ―como alegam denúncias apresentadas ao Tribunal de Haia―, mas sim “negligência” e “omissão de socorro”. Indagado se está arrependido de seu voto em Bolsonaro nas últimas eleições, Mandetta diz que não, mas espera não ter de escolher por exclusão em 2022, como o fez em 2018 diante da polarização política. “É impossível para mim hoje ter essa sensação de quero mais com ele [Bolsonaro], porque ele jogou a favor de quem eu mais combato na vida, que é a morte”. O ex-ministro ainda sinaliza que pode disputar as eleições de 2022, mas pondera que a disputa está muito distante.
A seguir, os principais trechos da entrevista do ministro por tópicos:
Dificuldades inicias no combate à pandemia
O vírus foi apresentado ao mundo como se fora um vírus lento. E todo mundo entendendo que se houvesse vigilância, identificasse o caso, você partia para o bloqueio. (...) Somente quando o vírus derruba o sistema italiano ―a Itália abre a sua epidemia no dia que o Brasil tem seu primeiro caso confirmado, ali era segunda ou terça-feira de Carnaval― o Ocidente se depara e vai caindo em dominó, um atrás do outro. Cai Itália, cai Espanha, cai Inglaterra.
O nosso SUS se prepara, até esse caso da Itália, para um vírus lento. Quando a gente vê que ele é um vírus extremamente competente, com velocidade de transmissão muito grande, a gente tem de redimensionar todo o nosso sistema. Pede a colaboração da população para que ela fique em casa, poupe o sistema. [Enquanto isso], a China fechou a exportação de suas máscaras, de seus respiradores, ventiladores. A gente chega perigosamente a um nível tão baixo, que quase falta para a rotina, para um parto, para apendicite. O mundo cometeu um erro de concentrar suas compras e de desindustrializar a área de saúde.
Vejo a primeira fase, os primeiros 30 ou 40 dias, com um raciocínio voltado para um vírus de transmissão lenta. Questionei a [Organização Mundial de Saúde] OMS: isso é uma pandemia? Porque ele [o vírus] está saindo muito rápido. Eles brigaram, falaram que não era uma pandemia. Para depois de 20 dias dizerem que era. Aquele início foi com muitas informações desencontradas. A reação à doença é quase que para duas doenças distintas. [Uma] que ocorreu na China — Pequim não teve epidemia, uma cidade totalmente aglomerada. Alguma coisa nessa doença ocorreu de maneira diferente. Ou é outra doença ou as informações, os números, não foram claros. O fato é que o mundo ocidental se deparou com a face mais dura. Todo mundo teve de rever e refazer a sua estratégia.
O negacionismo de Bolsonaro
Tem pessoas que quando recebem uma notícia dura, quando o médico diz que ele está com leucemia, ele diz: ‘Eu não acredito nisso. Vou pedir outro exame'. É a fase da negação. ‘Isso não é leucemia, dever ser só uma anemia, devo ter comido alguma coisa, foi um sol que tomei errado'. A pessoa nega, é natural do ser humano. Na fase seguinte, passa a ter raiva. Eu vi o presidente oscilar entre a fase da negação, que foram essas frases infelizes ―“isso é uma gripezinha”― e vi ele passar para a fase da ira. Vi que no seu entorno se aconselhava muito pouco com os ministros. Tinha um aconselhamento paralelo. E, quando você tem pessoas que te aconselham falando o que você quer ouvir, dizendo que você está certo e que isso vai acabar, não escuta a ciência. Tentei falar, tentei explicar, entreguei por escrito.
Tentativas de alertar o presidente
Lembro que na época tinha teorias das mais absurdas. Uma dizia que o vírus não se multiplicaria em lugares quentes. Portanto, Manaus não tinha de se preocupar com nada. O superintendente da Zona Franca de Manaus passava na cidade e falava: “Todas as empresas aqui vão ficar abertas”. Pois lá em Manaus a doença entrou exatamente pela Vila Operária. E eles estavam totalmente desorganizados. Foi uma situação de desassistência até funerária. Até valas coletivas tiveram de abrir com trator. Depois, a doença se replicou em Belém do Pará, agora, em Cuiabá [outras cidades em que os termômetros costumam superar os 30ºC]. O calor, o clima, não havia nada.
“Isolamento vertical seria uma carnificina”
Vi pessoas falarem do isolamento vertical. ‘Quem for abaixo dos 60 anos vai trabalhar, vamos viver a vida e vamos deixar quem tem de 60 anos para cima em casa'. Como se a casa não fosse o ponto de encontro de quem sai e se expõe. Eu resisti muito àquela teoria porque ela teria sido uma carnificina, seria tenebroso. Levei da maneira técnica e medindo sempre as palavras. Mas era claro aquele descompasso. Quando o presidente começou a dar demonstrações públicas, passou não só a não apoiar [o isolamento social] como começou a desautorizar governadores e prefeitos que estavam tentando. Começou a chamar as pessoas para virem para rua, irem às manifestações contra o Congresso Nacional, a favor do regime militar. Ele ia para frente, abraçava pessoas. A gente dizia: “Presidente, não faça isso. Não vai ficar bem”. [Mas ele fazia] pronunciamentos à nação, falava: “Isso é uma gripezinha, vamos passar por isso e não façam nada que as pessoas da Saúde estão falando”.
“Pauta presidencial era a econômica”
Ele [Bolsonaro] queria que o Ministério da Saúde saísse dessa doença, ficasse calado, fora dessa doença, ficasse crítico aos prefeitos e governadores, porque na eleição municipal o ponto principal é saúde. E esse tema ficaria restrito à eleição municipal, e na hora que viesse a fase econômica, ele poderia dizer que estaria lutando pela recuperação econômica porque economia é a pauta presidencial.
Cloroquina, um atalho para acabar com distanciamento
Acho que ele raciocinou só politicamente e esqueceu a técnica. Até na famosa história da cloroquina ele repetiu o Trump. O Trump pegou uma caixa de cloroquina, ele viu que o remédio tinha aqui e resolveu pegar também. (...) As pessoas tinham que ter uma saída, o Governo tinha de oferecer alguma coisa. Uma doença que você fala: ‘não temos uma vacina, não temos um medicamento, não temos condição de evitar essa doença a não ser higiene e o máximo de distanciamento das pessoas.’ As fábricas parando, o comércio parando, a economia sofrendo, vejo hoje que ele raciocinava muito por esse lado. Como fazer com que as pessoas tenham o mínimo de entendimento de que elas deveriam arriscar as suas vidas? Como dizer para as pessoas: “olha, saiam de casa e toquem as suas vidas”? Precisava de alguma coisa. E a cloroquina cumpriu bem esse papel. Porque ela veio embrulhada por alguns médicos. (...) O político tem muita dificuldade em entender o tempo das coisas. Em entender o tempo da ciência e lhe dar apoio p. Para eles é sempre muito duro. Então, se tiver qualquer atalho que politicamente seja justificável, eles aderem. E o dele foi a cloroquina.
O deboche e a busca pela vacina
A mesma ciência que eles debocharam (...) Agora batem à porta da Fiocruz e pedem, pelo amor de Deus, pela vacina e trazem o seu saco de dinheiro. É a narrativa política tradicional. Não tem nada de novo nisso. Ele simplesmente repete os erros de várias epidemias, com esse falso dilema de saúde e economia que já se repetiu na história da humanidade centenas de vezes.
“Acho que em agosto as mortes começam a cair”
Há três maneiras de tocar essa doença. Uma, naquela ideia absurda deles no começo de achar que era uma gripezinha e todo mundo deveria tocar a vida. Se aquilo tivesse prevalecido, a gente não ia estar falando de 100.000 óbitos, íamos estar falando de 400.000 óbitos ou sei lá quantos porque o sistema não estava preparado. O quadro teria sido tenebroso. Outra maneira é com o enfrentamento duro: isolar, ficar em casa, melhorar o sistema. Assim que tivéssemos os testes em massa, poderíamos fazer o teste, fazer o isolamento. Vamos tendo casos, mas em números baixos e vamos isolando, brigando com esse vírus caso a caso. E um terceiro, que foi o que acabou desaguando por vias tortas: nem sou totalmente permissivo e não deixo o vírus totalmente à vontade, mas também não faço o enfrentamento. Abre um pouquinho, volta. Essa terceira maneira faz uma epidemia de base mais larga, leva mais tempo. Dia 10 de maio fizemos 10.000 óbitos. Estamos em agosto com 100.000. Então estamos fazendo mil mortes por dia há 90 dias, ininterruptos. E nada me diz que essa semana nós vamos cair. Eu acho que em agosto [a curva de novos óbitos] começa a cair. Vai sair do milhar e ir para centena alta, depois para centena média, depois centena baixa. Mas não precisava ter sido assim.
A omissão presidencial e os pedidos de impeachment
Não vejo como genocídio [do presidente]. Acho que é muito mais uma negligência. É uma espécie de omissão de socorro. O povo precisava nesse momento de cuidado, de socorro. Não tem nenhum clima para nenhum tipo de impeachment. Essa parte aí com centrão, com composição política, com cargos, isso se resolve de uma maneira muito simples politicamente. Também não acredito nada com as representações nas cortes internacionais. Acho que são atos políticos.
Os cenários desenhados em abril
O presidente e os ministros tiveram os cenários. Eu nunca trabalhei em público com os números porque isso só causaria mais estresse coletivo. E era contra isso que a gente tinha de lutar. O que a gente propunha era o enfrentamento muito duro dessa doença para diminuir o número de óbitos. Os cenários estavam todos lá. O cenário que eu trabalhava era o mais duro, e acabou que é o que está se materializando, infelizmente.
Resposta às críticas de Pazuello
Mudaram e fizeram um protocolo para a cloroquina. Está lá na página do Ministério da Saúde, é um dos únicos países do mundo que têm isso como proposta oficial. Uma crítica vinda dele [Pazuello], eu escuto. Não posso criticá-lo porque eu não entendo nada de militarismo, de paraquedas, de armadilha, de AR15. Se eu fosse fazer uma crítica de que ele não dobra bem um paraquedas, ele ia olhar para mim e ia dizer: “Mas vem cá, você já dobrou algum na sua vida? Eu ia dizer, não. Na Saúde é mais ou menos a mesma coisa. A gente estava com todas as sociedades de especialidades, com todas da América Latina, com as europeias. Estávamos com a USP, com o Instituto de Medicina Tropical de Manaus, com a UFRJ, com a UFRS.
Ele está lá, deve estar tendo muita agonia, muita pressão. Agora vem a fase deles terem raiva e apontarem o dedo a culpados. Outro dia fizeram uma lista com o nome do governador e do prefeito do lado [circulou uma lista de governadores e prefeitos no whatsapp que foram contra a postura do presidente e hoje têm número alto de casos] para ficar: “Olha, tá vendo? São eles”. É bem pequeno, raso e superficial. Esta é uma luta da nossa sociedade como um todo para tentar melhorar. Se a gente conseguir melhorar depois dessa, vai ter valido a pena passar. Se for para continuar criando desculpa, é mais um incentivo a não olhar para as suas práticas e consertá-las.
A falta de um ministro titular durante a crise
Trocar o ministro pode não ser o ideal, mas não deveria ter trocado a equipe técnica. Os técnicos do Ministério da Saúde tinham todo o contexto em suas mãos. Quando saiu o Wanderson [de Oliveira, ex-secretário da Vigilância], tirou todo mundo abaixo dele. Eles perderam completamente qualquer ponto de referência. Nosso sistema de saúde é como se fosse um bicho de três pernas. Você tem o municipal, o estadual e o federal. A ordem que veio foi para o federal sair da epidemia. Não dê mais entrevistas, não fale, se possível não mostre os dados. Tentaram deixar de mostrar até os números. Faz de conta que nós não temos nada a ver com isso. Jogaram isso, e o SUS está tentando lutar somente com duas pernas, a estadual e a municipal. (...) Então, você minou o SUS. Tirou o ente federativo que era para fazer a coordenação e que dava o respaldo técnico, o empoderamento, e chamava a atenção do eventual prefeito que estivesse fazendo algo fora da curva. Como eles saíram, começou a ser uma terra de ninguém.
Você colocar um interino que não é do ramo ―e não é por ser militar, poderia ser um físico nuclear― é como ter uma guerra e colocar um pediatra para comandá-la. Então esta foi uma escolha dura para o sistema de saúde, com um diálogo dificílimo.
“Nós deixamos de fazer o preventivo”
Se você olhar o número de mamografias que fizemos na média no ano passado e neste primeiro semestre, o número caiu lá para baixo. O que significa isso? Quando voltarmos a fazer as mamografias, vamos encontrar muito câncer de mama já com metástase, no estágio quatro. Nós deixamos de fazer o preventivo, a avaliação cardíaca, uma parte grande e o sistema está desorganizado. Planejar esse sistema e ter equipe para voltar a enfrentar isso exigiria hoje o melhor que tivéssemos dentro da saúde pública para planejar uma retomada e um recálculo. O que vem pela frente é mais complicado do que o que já ficou para trás. Vem pela frente um sistema todo para reorganizar, precisa de gente técnica. O Brasil tem técnicos maravilhosos, não precisa ser ligado nem a quem já passou lá.
Disputa presidencial
Em 2022, vai ter eleição para presidente, vice, governador, senador, deputado federal e estadual. A única coisa que eu sei é que para deputado federal eu não vou ser candidato. Já cumpri uma agenda, fui um deputado federal que estudava todos os projetos, ia a todas as sessões da seguridade social (...) As outras opções vão acontecer. E o resto… 2022 está lá. Eu posso não ser candidato a nada. O que eu quero é que deixe de haver essa polarização absurda que só interessa aos dois. É o PT falando “vote em mim se não o Bolsonaro fica”, e Bolsonaro olha e fala: “vote em mim se não o PT volta”. A gente fica espremido, e eles vão levando com essa polarização, vão ocupando esse espaço e fazem com que a gente entre naquela cabine e diga: “E agora? faço o quê?”.
Voto em Bolsonaro
Eu votei no Bolsonaro em 2018 porque era impraticável naquele momento fazer um voto ao PT. Seria absorver toda a lambança não só da parte de corrupção, mas a lambança administrativa. As pessoas esquecem, mas nós perdemos… perdemos não, nós incineramos essa década de 2010-2020 começando por aquela política de maquiar preço de gasolina, subsídio, capitalismo de Estado, BNDES, Odebrecht… Depois uma crise política provocada pelo PT. O PT é quem faz o impeachment da Dilma [Rousseff]. Depois aquele arremedo do presidente [Michel] Temer, de fazer um presidencialismo de coalizão absoluto. É isso que leva a ir numa votação e dizer que aquilo não quero que se repita. Acho que muitos brasileiros chegaram na hora e falaram assim: “Esse modelo não dá”. Eu espero que a gente não tenha que chegar numa eleição com esse tipo de escolha, por exclusão. Espero que surjam os nomes. Vou estar de qualquer maneira participando. Se for como cidadão, expressando a minha opinião e entregando santinho. Se for como candidato, sendo verdadeiramente candidato.
“Bolsonaro jogou a favor da morte”
Enganado [por Bolsonaro] não me sinto porque votei nele sabendo que eu não queria o outro partido. Não me sinto nem um pouco enganado, não. Acho até o corpo de ministros muito bom. Vários que estavam ali dentro é um pessoal muito querido e trabalhador, tudo querendo acertar, reconstruir o país. O presidente é um ser político e tomou um caminho político contra a Saúde, a política da vida. O meu juramento e a minha vida é pra combater a morte. Eu não me conformo com a morte, ela é minha inimiga número um. (...) E o presidente jogou do outro lado. Então é impossível para mim hoje ter essa sensação de quero mais com ele [Bolsonaro], porque ele jogou a favor de quem eu mais combato na vida, que é a morte.
“Não sei se o Brasil está mais mal avaliado pela Saúde ou pelo Meio Ambiente”
O Brasil e os Estados Unidos estão de mãos dadas fazendo a crônica da sua doença. Isso ainda vai levar muito tempo. Eu não sei se o Brasil está mais mal avaliado internacionalmente pela Saúde ou pelo Meio Ambiente. Converso muito com veículos de comunicação internacional, e as perguntas principalmente quando feitas por jornalistas estrangeiros, são de abismados. Eles não entendem. Como é que o Brasil chegou nesse ponto? Estamos muito mal na fita. E acho que isso vai levar um bom tempo. Não se muda com bravata, com vídeo, com militância de internet, xingando as pessoas. Vai levar um bom tempo até o Brasil conseguir voltar a sentar à mesa. O Brasil falar que está considerando sair da OMS, você imagina? O Brasil é proponente, é um dos sócios fundadores. Na OMS, nós fazemos parte de fundos rotatórios. É ali que se discute o regulamento sanitário internacional, que é como as nações vão se relacionar do ponto de vista do ir e vir de pessoas, mercadorias. (...) Vai levar ainda um bom tempo para o Brasil se recompor internacionalmente e ganhar algum nível de participação não só na Saúde, mas em outros temas internacionais.
El País: O general-ministro que não contraria Bolsonaro
O militar Eduardo Pazuello é o terceiro titular da pasta da Saúde desde o início da pandemia
Quando o general de três-estrelas Eduardo Pazuello foi recrutado para se incorporar ao Ministério da Saúde no Governo Bolsonaro, ele mesmo imaginava que seria uma missão temporária. Seu plano era voltar logo à Amazônia, com sua tropa, como contou em uma das suas primeiras entrevistas. Chegava para coordenar a saída de um ministro destituído e a entrada do seguinte. Dificilmente alguém poderia prever naquele mês de abril que esse militar carioca nascido em 1963 se tornaria o terceiro ministro brasileiro da Saúde durante a pandemia, ainda que de forma interina ―e boa parte da população brasileira (precisamente 88%, de acordo com o Datafolha), nem sequer sabe que ele ocupa esse cargo.
O emprego de Pazuello é provavelmente um dos menos invejados do mundo atualmente: o Brasil acaba de ultrapassar o limite dos 100.000 mortos pelo coronavírus e já soma três milhões de contágios. Essas cifras ―as oficiais, que distam muito das reais― colocam-no em uma posição só pior que os EUA. Mas, como bom militar, o general cumpre a missão encomendada pelo presidente, notório negacionista da gravidade da pandemia. “O Exército está se associando a um genocídio”, chegou a alertar o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, sobre os riscos que isto acarreta para a reputação das Forças Armadas.
O primeiro ministro brasileiro da Saúde em tempos de coronavírus foi Luiz Henrique Mandetta, um ortopedista com experiência política como deputado, que chegou a competir em popularidade com Bolsonaro; o segundo foi Nelson Teich, um tímido oncologista que abandonou o navio em menos de um mês. A ala militar do Gabinete tinha colocado Pazuello como número dois de Teich por sua experiência em logística (e por tê-lo sob sua supervisão). Naquele momento, meados de maio, alguns países se comportavam como autênticos piratas na feroz batalha para conseguir suprimentos básicos, como exames para o diagnóstico da covid-19, respiradores e trajes de proteção.
Esse militar, que ao chegar ao Ministério admitiu não saber nada de saúde, costuma insistir que não é nem médico nem político. Seu negócio é a gestão, a logística, a intendência. Nisso se especializou na academia militar dos Agulhas Negras, a mesma onde antes se formara Bolsonaro, que só chegou a capitão e que, depois de uma insubordinação, foi convidado a passar à reserva. Pazuello, por sua vez, não é dos que contrariam o chefe. Dias depois de assumir a pasta, acatou uma polêmica portaria ―a qual seus dois antecessores, médicos, se recusaram a assinar― que autoriza os médicos a oferecerem cloroquina aos pacientes de coronavírus. O eficaz medicamento contra a malária, que Bolsonaro ―e em certo momento também Donald Trump― apresenta como a panaceia, carece de aval científico contra este vírus.
O presidente conseguiu politizar a cloroquina, o confinamento, o distanciamento social e o uso de máscaras. Mas um terço dos brasileiros ainda o segue, diga o que disser, faça o que fizer, em sua calculada estratégia para que o custo político do coronavírus e a consequente hecatombe econômica sejam pagos por governadores e prefeitos. Sua postura não variou em nada depois que ele mesmo contraiu a doença, em julho, enquanto os coveiros fazem horas extras para abrir sepulturas suficientes para as vítimas do vírus.
Pouco depois de chegar, Pazuello tentou limitar os dados que o Governo divulga diariamente sobre a doença, mas causou tal escândalo que em dois dias desistiu ―em reunião com membros da Organização Mundial da Saúde em agosto, ele omitiu os números de infecções e mortes no Brasil, limitando-se a dizer que o Brasil está “entre os líderes mundiais em pacientes recuperados”. Agora, a primeira cifra divulgada nos boletins do Governo é a dos doentes que se recuperaram, não a de mortos.
O general já está há dois meses e meio à frente do Ministério da Saúde. Dá a impressão de que por enquanto não haverá um quarto ministro, embora ele inicialmente tenha sido nomeado apenas como interino, não como titular da pasta. E assim continua, para espanto dos milhões de brasileiros que consideram Bolsonaro culpado de ter contribuído para o avanço da pandemia. “Se me encherem muito o saco, te transformo em titular”, ameaçava o presidente na semana passada, no resumo da atividade governamental que transmite semanalmente via Facebook.
Com Pazuello ―um sujeito discreto, sempre à paisana, que usa máscara com a bandeira do Brasil e, como demonstrou naquela live, ri das piadas do chefe― se acabaram as entrevistas coletivas diárias sobre o coronavírus, entre outras mudanças substanciais. Quando a pandemia começou, a cúpula do ministério era dominada por profissionais da saúde; agora proliferam os fardados. Nomeou cerca de 20, fazendo sua parte na militarização do poder governamental empreendida por Bolsonaro. Quase metade dos ministros vem das Forças Armadas. Esta é a missão mais complexa já encomendada a Pazuello, que no entanto antes liderou outras bastante delicadas. Quando o chamaram para ir a Brasília, fazia três meses que assumira o cargo de comandante militar da Amazônia. Antes, dirigiu a operação para acolher os venezuelanos que chegam ao Brasil fugindo do desmoronamento do seu país e coordenou as tropas envolvidas na Olimpíada do Rio-2016.
As autoridades brasileiras há muito tempo já desistiram de empreender políticas de análise maciça que revele uma imagem nítida da evolução da pandemia. Mas seu tamanho, seus 210 milhões de habitantes e a velocidade com que o vírus se espalha fizeram do país um laboratório magnífico para os testes da vacina. O ministro interino aposta em que ela pode estar pronta em dezembro ou janeiro.
El País: Fabrício Queiroz vai voltar para a cadeia, decide STJ
Ministro Félix Fischer revoga benefício concedido por presidente do Superior Tribunal de Justiça e determina retorno de ex-assessor do clã presidencial à prisão. Ordem também para mulher do ex-PM
A história do policial aposentado Fabrício Queiroz e dos constrangimentos que traz à família Bolsonaro parece cada vez mais longe de acabar. Detido em junho no âmbito das investigações sobre a prática de rachadinha na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), Queiroz recebeu o benefício da prisão domiciliar no mês seguinte, quando o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, decidiu em liminar, durante o recesso judiciário, que a pandemia de coronavírus colocava em risco o aposentado. De quebra, estendeu o benefício também à sua mulher, Márcia Aguiar, então foragida. Nesta quinta-feira, contudo, o ex-assessor do clã presidencial ficou sabendo que deverá voltar para a cadeia, por determinação do ministro Félix Fischer ―a decisão também vale para Márcia Aguiar.
O inquérito sobre as suspeitas de que o hoje senador Flávio Bolsonaro recolhia parte do salário de funcionários fantasmas de seu gabinete na Alerj entre 2007 e 2018 corre em sigilo, mas os detalhes da trama protagonizada por Fabrício Queiroz não param de salpicar no noticiário. Na semana passada, a revista Crusoé revelou que uma conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu 27 cheques depositados pelo ex-assessor, num total de 89.000 reais. A informação contradiz versão apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro, segundo quem Queiroz havia feito apenas 10 depósitos de 4.000 reais cada para quitar uma dívida.PUBLICIDADE
Queiroz foi assessor do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, que aparece como “líder” de suposta organização criminosa no inquérito que leva o policial aposentado de volta para a cadeia. Nesta quinta-feira, o jornal O Globo trouxe mais detalhes sobre depoimento de Flávio ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), no qual o senador disse não se lembrar se fez pagamentos em espécie ao comprar dois apartamentos em Copacabana, em 2012. Para o MP-RJ, o dinheiro usado para as compras teria origem no esquema de rachadinha. O próprio O Globo já tinha revelado que usou 86.700 reais em dinheiro vivo na compra de 12 salas comerciais em 2008 ―quantia que ele diz ter pegado emprestado com seu pai e com um dos irmãos.
Desde a prisão do ex-assessor de seu filho, o presidente da República conteve sua atitude provocadora, que abastecia o noticiário diariamente com ofensas e ultrajes e mantinha o clima político do país em constante tensão. Bolsonaro tem evitado o assunto e, desde a primeira prisão de Queiroz, se limitou a dizer, durante uma de suas lives no Facebook, que a detenção do ex-assessor de seu filho foi “espetaculosa”, que “parecia que estavam prendendo o maior bandido da face da Terra”. O faz-tudo da família Bolsonaro foi detido em junho durante a Operação Anjo em um imóvel de Frederick Wassef, advogado dos Bolsonaro, em Atibaia, no interior de São Paulo.
Próximos passos
A defesa de Queiroz disse receber “com surpresa” a decisão de Fischer, “sobretudo diante da desnecessidade da prisão de seus constituintes”. Em nota, os advogados disseram que já têm “adotado todas as medidas legais para a urgente reforma da decisão, mormente diante do risco concreto e real de dano à saúde, por pertencerem ambos [Queiroz e sua mulher] a grupo de risco agravado diante da pandemia.” A defesa do ex-assessor dos Bolsonaro também tem um pedido de habeas corpus pendente no Supremo Tribunal Federal (STF), onde pede a anulação das ordens restritivas. Quem vai julgar o recurso será o ministro Gilmar Mendes.
A determinação de Fischer pressiona a família Queiroz, especialmente porque agora Márcia Aguiar deve ir também para a cadeia. Há semanas se especula que, à diferença do ex-PM, que repete lealdade à família Bolsonaro, a mulher ou a filha, Nathália, também implicada nos repasses, poderiam decidir colaborar com a Justiça ou conceder entrevistas sobre o tema. O caso da rachadinha se arrasta desde 2018. Queiroz ainda não foi denunciado pela promotoria fluminense e há um debate jurídico em curso para decidir quem deve julgar Flávio Bolsonaro, se a primeira instância ou o segunda, já que o senador argumentar ter direito a foro privilegiado.
El País: Brasil se apoia na muleta do auxílio emergencial para economia caminhar
Enquanto Governo fala em retomada em “V da Nike”, economistas são mais cautelosos e citam que desempenho mais favorável de indicadores foi anabolizado por transferência de renda
A economia brasileira começa a mostrar alguns sinais positivos após ter despencado nos meses de março e abril, em meio às medidas de isolamento social impostas pela pandemia do coronavírus. A produção industrial brasileira, por exemplo, avançou 8,9% em junho, na comparação com maio, segundo informou o IBGE. É a segunda alta seguida da indústria, mas ainda insuficiente para eliminar a perda de 26,6% acumulada nos dois primeiros meses de paralisia da quarentena. Um dos principais destaques foi a produção de veículos. Também contribuíram para o resultado do mês os segmentos de bebidas e de indústrias extrativas.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, avalia que os indicadores são sinais de que o Brasil está se recuperando em uma trajetória semelhante ao que chamou de “V da Nike”. O logotipo da marca esportiva tem a segunda perna mais deitada, sugerindo uma recuperação mais lenta do que a queda. “Não volta com a mesma velocidade que caiu, mas está subindo mês a mês”, disse Guedes em audiência pública da comissão mista da reforma tributária no último dia 5. “O ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] está 3% ou 4% abaixo do primeiro semestre do ano passado. Ou seja, a recuperação está vindo com relativa força”, completou.
O mercado financeiro projeta um recuo de 5,62% para o Produto Interno Bruto (PIB) neste ano, segundo o primeiro Boletim Focus, divulgado nesta segunda-feira, que reúne as previsões de mais de cem entidades financeiras compiladas pelo Banco Central. Para 2021, o relatório manteve pela 11ª semana consecutiva a projeção da economia brasileira em expansão de 3,50%. No mês passado, o Governo estimou um recuo de 4,7% para o PIB brasileiro este ano. Já o Fundo Monetário Internacional projeta um tombo maior, de 9,1%.
Economistas ouvidos pelo EL PAÍS afirmam, no entanto, que falar em recuperação da economia brasileira ainda é precipitado em um cenário de fortes incertezas em relação ao desenvolvimento da pandemia. Eles avaliam, ainda, que o desempenho mais favorável de alguns indicadores foi anabolizado em grande parte pelos programas de auxílio do Governo às empresas e também pela transferência de renda do programa de auxílio emergencial, que em junho, chegou a quase metade dos lares brasileiros.
“A verdadeira dimensão do choque causado pela pandemia na economia você perde, porque ele está sendo, de certa forma, amenizado”, diz a economista Silvia Matos, pesquisadora da área de Economia Aplicada do FGV Ibre, para quem há um termômetro um pouco nebuloso neste momento. “Não se pode ficar muito animado com um resultado melhor do terceiro trimestre, como está sendo projetado. É preciso ver o que vai acontecer no fim do ano quando os benefícios forem cortados ou pelo menos reduzidos, e a renda diminuir”, completa. O Itaú projeta alta de 8,5% para o PIB do terceiro trimestre e de 1,9% nos três meses seguintes.
O fim do auxílio emergencial pode gerar, por exemplo, uma escalada da taxa de desemprego, que fechou o segundo trimestre em 13,3%, atingindo 12,8 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Uma alta de 1,1 ponto percentual em relação ao trimestre encerrado em março, o que mostra um cenário relativamente estável. “Mas hoje essa taxa de desemprego é um dos indicadores menos reais, já que muitas pessoas não estão procurando emprego e não são consideradas oficialmente desempregadas. Muitas foram demitidas durante a pandemia e, como estão recebendo os 600 reais, estão esperando a pandemia passar para buscar uma nova recolocação”, diz Mattos.
Para se ter uma radiografia melhor do atual momento do mercado de trabalho é preciso analisar o número de pessoas ocupadas no país. Sob essa perspectiva, há uma queda histórica no segundo trimestre, uma redução de 9,6% em relação ao período anterior. Em três meses, quase 9 milhões de brasileiros ficaram sem trabalho no país, a maioria eram trabalhadores informais.
O economista Eduardo Correia, do Insper, também concorda que é preciso cautela na hora de olhar os dados da recuperação. Como, por exemplo, as vendas no varejo, que começaram a subir em maio após os meses de paralisia. “Houve uma demanda represada. Quando veio a pandemia, ninguém saía de casa e segurou o consumo com medo de perder o emprego. Mas quando a quarentena se alongou, algumas pessoas voltaram a realizar compras que já estavam programadas”, diz Correia. “Ao mesmo tempo, a chegada do auxílio emergencial aos mais vulneráveis aumentou a renda dessas famílias, que começaram a consumir. Mas e quando essa renda acabar? ”, questiona.
Há ainda uma forte incerteza sobre o quanto irá durar esse movimento de abertura comercial durante a pandemia, segundo Correia. “A dúvida é se os casos da covid-19 não irão avançar rapidamente com o retorno das atividades. O uso de máscaras e de certas regras de distanciamento serão suficientes? Se sim, podemos começar a falar em retomada econômica antes da existência de uma vacina para o coronavírus ”, diz. Caso contrário, alerta, podem se tornar comuns novos fechamentos das atividades e, nesse caso, o fundo do vale vai perdurar.
Para Sergio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados, nunca houve uma possibilidade de uma recuperação em V ― ou seja, de forma rápida ― para a economia brasileira, que já caminhava de lado mesmo antes da crise sanitária e registrou recuo no primeiro trimestre. “As pessoas ainda estão com muito receio, muitos negócios que geram aglomeração ― como os de entretenimento, transporte e turismo― estão abrindo parcialmente e alguns nem vão conseguir abrir. Era impensável uma recuperação rápida”, diz Vale.
Ônus fiscal da pandemia
Ainda que a expectativa seja de que a recessão mais profunda tenha se concentrado no primeiro semestre deste ano, o ônus das medidas de combate aos efeitos gerados pela pandemia será carregado ainda por muito tempo. “A situação das contas públicas do país que já era ruim ficou pior ainda com o tamanho da nova dívida. Novamente será preciso um ajuste fiscal muito grande. Sem falar que ainda não estávamos recuperados da recessão monumental de 2015 e 2016. Desde 2013, os investimentos começaram a desacelerar e a economia tem passado por tempestades contínuas, o que é ruim para a estabilidade de qualquer negócio no país”, diz.
O economista considera que já de olho na reeleição, o Governo de Jair Bolsonaro tenta aumentar sua popularidade com a criação de um novo programa de transferência de renda — o Renda Brasil ― e já não se preocupa como deveria com a dificuldade fiscal que o país enfrenta. “O Governo não está olhando isso de forma adequada” diz. Vale ressalta que essa conduta pode, inclusive, gerar mais estresse do mercado financeiro com a gestão de Bolsonaro nos próximos meses. “O que gera consequências, taxa de câmbio mais depreciada, risco Brasil mais alto. Entra em um cenário mais difícil”.
A própria perspectiva para o curto prazo não é alentadora, segundo Vale. “Mesmo saindo da atual crise, voltaremos provavelmente para uma economia com muito baixo crescimento. Se de um lado houve um avanço com a reforma da Previdência no ano passado, o que se ganha é destruído com os novos gastos. A reforma tributária ainda levará um tempo e com toda a instabilidade, como os investimentos voltarão?”, questiona. Matos, do Ibre, concorda que enquanto o investimento não reagir não há como falar em uma retomada forte. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os investimentos recuaram 1,3% em junho, frente a maio, e 15,6% em comparação ao ano passado. Com isso, o segundo trimestre apresentou recuo de 24,5% sobre o período anterior e de 23,1% sobre o mesmo período de 2019. “O investidor vai continuar em compasso de espera se não enxergar um horizonte. A economia precisa de estabilidade de regras, de baixa fricção política e alguma solidez fiscal. Sem isso, continuarmos a assistir voos de galinha”, diz a economista.
Vladimir Safatle: não falar
Diante de 100.000 mortos, ocupar os espaços públicos para falar à classe média como suportar a pandemia é só outra forma de puxar o gatilho
A ideia inicial era escrever outro artigo. Depois de meses envolto em questões sobre pandemia e escalada autoritária, a ideia era falar de algo outro., qualquer coisa de outro. Mas é possível que em situações parecidas o dito de Adorno “Não é possível fazer poesia após Auschwitz” ganhe certa atualidade e se imponha em sua força. Um dito arquiconhecido, é verdade, mas que talvez queira dizer algo muito preciso e por vezes esquecido. Claro que não significava que a poesia era agora coisa do passado. A poesia não tem passado, nem presente e muito menos futuro. Só que Adorno procurava dizer que, para escrevê-la a partir de então, haveria de se sentir o impossível de uma língua que não quer mais voltar ao normal, que não quer voltar às formas de lírica depois que descobrimos não exatamente a morte industrial, mas a indiferença à morte industrial como funcionamento social normal.
Cada palavra, para ter algum conteúdo de verdade, deveria saber como ressoar esse “não é possível”, deveria deixar claro sua vontade de explodir uma gramática que parecia profundamente cúmplice da violência do que não se pode tolerar. Sorrir, dizer “cuide de si”, tocar um acorde perfeito, falar “eu te amo” era apenas outra forma de puxar o gatilho mais uma vez. Diante de 100.000 mortos, ocupar os espaços públicos para falar à classe média como suportar a pandemia é só outra forma de puxar o gatilho.
Por isto, o dito de Adorno talvez devesse ser lido conjuntamente com outra frase, esta vinda de Vladimir Maiakovsky: “Dai-nos uma arte revolucionário que livre a república dessa escória”. Essa escória que a República se tornou, essa mistura de ritmo de matadouro com lives sobre os desafios da paternidade e ensinamentos sobre “como viver sozinho e permanecer feliz”, que ela se arruíne para sempre. Mas ela só começará a ruir quando nos confrontarmos a uma língua que não queira mais falar como até agora se falou, que se recuse a pactos em todos seus níveis. Que não terá mais o tom dos conselhos psicológicos que damos a deprimidos ou a pessoas que esperam de terceiros alguma descrição sobre o caminho da felicidade, que não confundirá mercadorias da indústria cultural e suas linguagem reificadas como a forma máxima da emancipação racial. Como essa linguagem, com essas falas, com essa naturalização da degradação da língua, não há política alguma.
Diante da catástrofe (e o que temos diante de nós é a descrição mais clara de catástrofe ―não apenas a catástrofe do número impensável de mortos por negligência do estado, mas a catástrofe da “vida normal” que parece voltar em uma letargia muda), seria o caso de dizer que este é um país não-viável, sentir até o mais profundo de nossos ossos sua inviabilidade para que esse sentimento queime todo e qualquer desejo de retorno em direção ao que quer que seja.
Ao menos, esse desejo de não-retorno nos pouparia do último de nossos “desejos responsáveis” que só serviram para cavar mais fundo o impasse, a saber, os chamados para grandes “frentes amplas” contra o fascismo (e se me permitirem, vai aqui uma autocrítica pois até eu assinei um desses chamados, o que definitivamente não faria novamente). Pois esse é o país das frente amplas inúteis, dos bons sentimentos de responsabilidade civil que produzem monstros. Esse é o país dessa linguagem do “diálogo” entre “diferentes”. Do eterno diálogo de cúmplices. O mesmo argumento estava lá a selar o aperto de mão entre Luis Carlos Prestes e Getúlio Vargas no final da Segunda Guerra. Uma frente ampla com comunistas, trabalhistas e os bons e velhos representantes das oligarquias locais. O resultado não foi brilhante. Ele voltou mais outra vez como certidão de nascimento da Nova República quando uma outra frente ampla subiu aos palanques para dizer um “eu quero votar para presidente” que apenas serviu para dar alguma forma de legitimidade ao pacto de paralisia que nos marcará durante os trinta anos por vir, pacto selado entre oposicionistas moderados e governistas sagazes. Se as palavras de ordem fossem para valer, a primeira coisa que Tancredo Neves-José Sarney teriam feito seria renunciar para a convocação de eleições gerais imediatas. Mas, não. Era o mesmo discurso “contra o ódio” (que, na época, atendia por outro nome. Seu alcunha era “revanchismo”).
Agora, foi necessário apenas duas semanas para entender qual era a real função da “frente ampla”. O Brasil conhece atualmente forte tensão entre uma extrema-direita popular de claros traços fascistas, que controla o executivo, e uma direta tradicional e oligárquica, que controla o judiciário e o legislativo. Novos atores fora do horizonte tradicional da política, vindos do lumpem-proletariado, e a casta política tradicional. Os dois lados do embate representam os mesmo interesses econômicos, comungam do mesmo projeto, mas não obedecem a mesma cadeia de comando. Era necessário um certo equilíbrio temporário que não dizia em nada a respeito de políticas de proteção da população contra a pandemia, mas apenas a uma geometria mais “estável” de partilha do poder. Geometria esta conquistada através da pressão da chamada “frente ampla”.
Esta era apenas uma forma de pressão que em momento algum levou efetivamente em conta a possibilidade de lutar para afastar o Governo. Assim, o país pode continuar a assassinar sua população vulnerável enquanto preserva a ilusão própria a esta “democracia geograficamente sitiada” que construímos. Democracia que funciona em um espaço geográfico definido nas regiões centrais das grandes cidades enquanto inexiste em suas periferias e nas relações no campo. Foi para preservar essa democracia geograficamente sitiada que ameaçava ruir que tais “frentes amplas” foram convocadas.
Ou seja, na hora de tomar ciência do intolerável, de mobilizar o entusiasmo para a tarefa dura e necessária de parar de falar como sempre falamos e começar a falar de outra forma, um falar de outra forma que produz necessariamente um agir de outra forma (já que vale aqui o dito de Austin, “dizer é fazer”), eis que reencarnam os mesmo enunciados, com seus mesmos tons e exortações, com suas mesmas falas de duplo sentido, que devem ser sempre lidas nas entrelinhas.
Esse país deveria aprender a recusar as falas que lhe são impostas, recusar a crença de que nossa emancipação se dará com as formas produzidas pelos setores mais fetichizados da indústria cultural, recusar os que nos aconselham o que fazer com nossos conflitos insolúveis, sejam eles individuais ou sociais. Parecem tipos de problemas diferentes colocados, de forma indevida, em um mesmo nível. Mas quando a imaginação social de um país se paralisa, todos os níveis da vida parecem girar em torno da mesma cantilena. Melhor seria lembrar, como dizia Wittgenstein, que: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Essa deveria ser a primeira lição para todos os que querem realmente entender política: explodir os limites da linguagem para que o mundo vá junto.
Luiz Eduardo Soares: 'Recriar o SNI da ditadura deixou de ser o sonho de Bolsonaro para se tornar um pesadelo da sociedade'
Antropólogo alvo de dossiê feito pelo Ministério da Justiça diz que monitoramento "é apenas mais um elo na corrente que nos arrasta para o abismo"
Afonso Benites, El País
Um dos 579 alvos de um dossiê elaborado pelo Ministério da Justiça a partir do monitoramento secreto de um grupo descrito como “militantes antifascistas”, o renomado antropólogo brasileiro Luiz Eduardo Soares afirma que, com ações do tipo, o presidente Jair Bolsonaro “recria” um dos braços da polícia política brasileira durante a ditadura militar, o Serviço Nacional de Informações (SNI). “A recriação do velho SNI deixou de ser o sonho de Bolsonaro para se tornar o pesadelo da sociedade brasileira”, declarou ao EL PAÍS. O dossiê, revelado pelo portal UOL, foi elaborado pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi) da pasta e acendeu os alarmes dos que temem o uso de aparato do Estado para a vigilância ou investigação de opositores políticos do Planalto.
“A investigação clandestina contra cidadãos contrários ao fascismo é apenas mais um elo na corrente que nos arrasta para o abismo”, diz Soares, para quem as ameaças à democracia têm sido cometidas pelo Governo Bolsonaro rotineiramente. “A infiltração do fascismo se dá por toda parte, corroendo os pilares da democracia.”
O antropólogo, que foi secretário nacional de Segurança Pública durante o início do Governo Lula da Silva (PT) e é um dos fundadores do partido Rede Sustentabilidade —do qual se desfiliou, diz que já adotou os trâmites judiciais para questionar o Planalto sobre a investigação informal, conduzida pela Seopi, uma das cinco secretarias subordinadas ao ministro da Justiça, André Mendonça. As atividades não têm acompanhamento judicial.
Além de Soares, também foram monitorados os professores universitários Paulo Sérgio Pinheiro (relator da ONU e ex-secretário Nacional de Direitos Humanos), Ricardo Balestreri (secretário de Segurança Pública no Pará) e Alex Agra Ramos, que leciona na Bahia. Entre os policiais monitorados, estão os que participam do movimento autodenominado Policiais Antifascismo. Por causa das revelações, partidos de oposição ao Governo Bolsonaro também recorreram ao Judiciário para questionar as atividades. Também apresentaram requerimentos de convocação do ministro da Justiça para que ele explicasse o caso no Congresso Nacional. O Ministério Público Federal também solicitou protestaram.
Em notas emitidas desde que o caso veio à tona, no dia 24 de julho, o ministério não negou a existência do dossiê. Disse que a atividade da Seopi integra o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e que as “ações especializadas” desenvolvidas pelo órgão tem o objetivo de “subsidiar decisões que visem ações de prevenção, neutralização e repressão de atos criminosos de qualquer natureza que atentem contra a ordem pública, a incolumidade das pessoas e o patrimônio”. Não detalhou, contudo, quais são os supostos atos criminosos cometidos por esse grupo. Neste domingo, em entrevista ao canal Globonews, o ministro André Mendonça foi questionado sobre o tema e disse que não poderia confirmar nem negar a existência do dossiê. “A lei prevê que relatórios, dados e informações de inteligência sejam divulgados de forma distinta. Não posso confirmar, nem negar, a existência de um relatório de inteligência”, disse o ministro, que afirmou ainda ter ordenado uma sindicância para apurar “eventuais faltas ou fatos na produção de qualquer relatório”.
Leia a seguir, a entrevista por Luiz Eduardo Soares, por email. O antropólogo é autor de dezenas de livros, entre eles Elite da Tropa, que deu origem ao filme Tropa de Elite, e Desmilitarizar - direitos humanos e segurança pública, lançado em 2019.
P. Como recebeu a notícia de que o senhor e outras centenas de pessoas estavam sendo monitoradas por uma secretaria do Ministério da Justiça?
R. Recebi com perplexidade e revolta, embora nada mais devesse nos surpreender, vindo do atual Governo. A recriação do velho SNI deixou de ser o sonho de Bolsonaro para se tornar o pesadelo da sociedade brasileira.
P. O senhor suspeitava que vinha sendo monitorado? Se sim, em que momento desconfiou que isso passou a acontecer? Por que acha que é um dos alvos?
R. Não suspeitava, mas a suspeita não mudaria meu comportamento. Como os alvos são políticos, qualquer adversário do Governo corre o risco de ser tratado como inimigo do Estado. Talvez haja interesse especial em me atingir porque dialogo com policiais e escrevo sobre segurança pública, terreno prioritário para o bolsonarismo, como sabemos. Ajudei a elaborar a PEC-51, principal bandeira dos policiais antifascismo, e publiquei, ano passado, o livro Desmilitarizar; direitos humanos e segurança pública, em que defendo a legalização das drogas e analiso criticamente as milícias, a violência policial e a política armamentista do presidente.
P. O presidente disse em algumas ocasiões que antifascistas são terroristas. Primeiro, o senhor é antifascista? Considera esse grupo terrorista?Alguém conhece algum país do mundo em que a maioria seja terrorista?
R. Segundo recente pesquisa Datafolha, a maioria da população brasileira defende a democracia. Como quem defende a democracia, por definição, não pode ser a favor do fascismo, podemos afirmar que a maioria é contra o fascismo. Alguém conhece algum país do mundo em que a maioria seja terrorista? Isso faz algum sentido?
P. Em sua avaliação, esse monitoramento de cidadãos comuns é um crime? Qual é a gravidade do caso? Acha que ele seria mais grave do que qualquer outra investigação que corre contra o Governo ou seus militantes, como o inquérito das fake news e dos atos antidemocráticos ou a apuração sobre a interferência do presidente na Polícia Federal?
R. A abertura de um inquérito é procedimento previsto, legalmente, supervisionado pelo Ministério Público, o qual, considerando-o suficientemente instruído, tem a prerrogativa de converter a acusação em denúncia, instaurando um processo judicial. Nada disso aconteceu. Não há inquérito policial aberto, não há acusação formal, não há crime, o Ministério Público não teve qualquer participação, menos ainda o Judiciário. Trata-se de operação clandestina, absolutamente extemporânea, conduzida à margem da Lei e do Estado de Direito.
P. O senhor pretende adotar alguma medida judicial?
R. Já está em curso.
P. Há analistas que entendem que o Governo reduziu o poder das instituições de controle, como PF e Ministério Público. Como avalia a atuação da gestão Bolsonaro nesta área? Por que o presidente está enfraquecendo essas organizações?A infiltração do fascismo se dá por toda parte, corroendo os pilares da democracia.
R. O Governo Bolsonaro é um desastre, não só na segurança pública. Pelo que fez, pelo que deixou de fazer e pelas sinalizações, às quais se pode atribuir, por exemplo, o aumento da brutalidade policial letal, no Rio, em São Paulo, no país afora. A flexibilização do acesso às armas bastaria para demonstrar a magnitude do retrocesso. Quanto a reduzir o poder das instituições de controle, não creio que se possa afirmá-lo, uma vez que a Polícia Federal e o Ministério Público são instituições independentes, a despeito das pressões. Claro que as pressões provocam efeitos negativos, sobretudo em se considerando que os conflitos internos são permanentes. A infiltração do fascismo se dá por toda parte, corroendo os pilares da democracia.
P. Levantamento recente do TCU mostra que há ao menos 6.000 militares em cargos de confiança na gestão federal. Qual é o impacto dessa militarização do Executivo?
R. Esse tipo de aparelhamento faz tão mal à sociedade quanto às próprias Forças Armadas, que recuperaram imagem positiva ao longo de todo o período democrático, mantendo-se distante das disputas políticas e respeitando a Constituição. O risco de que a imagem das Forças Armadas se confunda com o Governo é gigantesco, porque a história julgará com severidade os crimes contra a humanidade acumulados pela gestão federal.
P. Acredita que a democracia está em risco? Por que?
R. Não se trata de acreditar ou não. As ameaças têm sido feitas à luz do dia, em praça pública, nas redes sociais, em atos e omissões governamentais. A investigação clandestina contra cidadãos contrários ao fascismo é apenas mais um elo na corrente que nos arrasta para o abismo.
El País: Queda dos PIBs de EUA e Alemanha prenunciam tombo da economia brasileira
Pessimismo tomou conta das principais bolsas globais nesta quinta. Mercado financeiro estima um recuo de 5,77% da atividade no Brasil neste ano. FMI calcula recuo de mais de 9%
Heloísa Mendonça, do El País
O tamanho do impacto econômico inicial causado pela pandemia do coronavírus começa pouco a pouco a emergir, e os números não são alentadores. A economia dos Estados Unidos, a maior do mundo, encolheu a uma taxa anualizada de 32,9% entre abril e junho, a maior contração desde a Grande Depressão, na década de 1930, segundo dados divulgados pelo Departamento de Comércio na manhã desta quinta-feira. Um colapso da economia sem precedentes. Os efeitos da paralisia da atividade também são sentidos em outros indicadores. A onda de demissões causada pela crise sanitária continuou a avançar nos EUA, onde novos pedidos de seguro-desemprego aumentaram pela segunda semana consecutiva.
Na Alemanha, a maior potência econômica da Europa, o tombo da economia também foi histórico. O Produto Interno Bruto (PIB) alemão de abril a junho recuou 10,1% em relação ao trimestre anterior, de acordo com a agência de estatística do governo federal. É a queda trimestral mais acentuada desde 1970, quando os registros começaram. Se comparado ao mesmo período do ano passado, o recuo foi de 11,7%. Diante dos números divulgados, o pessimismo tomou conta das principais bolsas globais que operaram com perdas. O dia também foi de resultados negativos de balanços de empresas importantes, como o banco Lloyds, a AirBus e a Volkswagen. No Brasil, chamou a atenção a queda de 40% do lucro do banco Bradesco no segundo trimestre.
Os dados do PIB brasileiro de abril a junho ― período em que grande parte das atividades foi paralisada para conter a disseminação do coronavírus ― só serão divulgados no início do setembro, quando a extensão da crise gerada pela pandemia no país começará a se materializar em números. Mostrará um retrovisor do provável pior trimestre de 2020, segundo analistas. Por enquanto, as previsões sobre o tamanho do tombo da economia variam. A projeção do boletim Focus, desta semana, fala em um recuo de 5,77% no fim de 2020, enquanto o Fundo Monetário Internacional (FMI) calcula que o PIB brasileiro irá despencar mais de 9%.
“Há ainda muita divergência sobre o que acontecerá até o fim do ano, porque não há certezas sobre como será de fato a retomada econômica e como irá evoluir o enfrentamento ao coronavírus no país. O que temos de fato agora é uma quebradeira muito grande das empresas no Brasil”, afirma o economista Mauro Rochlin, da FGV. Desde que a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil, 716.000 empresas fecharam as portas, de acordo com a Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas, realizada pelo IBGE e publicada neste mês.
“Nos Estados Unidos, vimos uma leve melhora com a abertura das atividades, mas alguns Estados americanos começaram a ter que fechar parte das atividades e as empresas outra vez com o avanço de novos casos”, diz Rochlin. Os EUA registravam nesta quinta-feira 4,4 milhões de casos de coronavírus e mais de 151.000 mortes pela doença. Embora as piores perdas econômicas tenham se concentrado em abril, a ameaça de pausas na reabertura reduz as esperanças de uma recuperação mais robusta da maior economia do mundo. “Como os EUA são o segundo parceiro comercial do Brasil, essa retomada mais lenta da economia americana pode chegar a comprometer as nossas exportações e ainda mais o PIB brasileiro”, diz o professor.
Na avaliação do economista André Perfeito, da corretora Necton, a ação de enfrentamento à covid-19 por parte do presidente Jair Bolsonaro e governadores não foi suficiente para frear o coronavírus e fez com que as próprias reaberturas das atividades econômicas também fossem menos eficientes. “Não basta liberar a abertura da economia, porque as pessoas estão constrangidas e inseguras. Em vários locais os casos estão aumentando. Países que foram mais duros na quarentena, estão colhendo mais louros, com famílias mais confiantes em sair e consumir”, diz. Para Perfeito, nem a política liberal do ministro Paulo Guedes, que aposta no investimento privado para a retomada da economia, nem reformas, como a tributária que começa a tomar forma, serão capazes de gerar um efeito no curto prazo. “Infelizmente não temos uma evidência de melhora, por isso ainda projeto uma queda de cerca de 7%, 7,5%”.PUBLICIDADE
Também pessimista é a projeção da Comissão Econômica da Organização das Nações Unidas para América Latina e Caribe (Cepal) para a economia da região: um tombo de 9,1% com desemprego e pobreza aumentando. A expectativa da Cepal é de que o número de pessoas desempregadas aumente de 18 milhões para 44 milhões em toda a região, enquanto a pobreza deve subir 7 pontos percentuais, alcançando mais 45 milhões de pessoas.
Eliane Brum: 'Há indícios para que autoridades brasileiras sejam investigadas por genocídio'
A jurista Deisy Ventura, especialista na relação entre pandemias e direito internacional, afirma que há todos os elementos necessários à tipificação de crimes contra a humanidade na resposta do Governo brasileiro à covid-19: intenção, plano e ataque sistemático
Desde que Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), relacionou a palavra “genocídio” à atuação do Governo de Jair Bolsonaro diante da covid-19, o debate entrou na pauta pelo andar de cima. Não só no Brasil, mas no mundo. As denúncias de genocídio, tanto dos povos indígenas quanto da população negra, pelo atual Governo, não são novas. Em geral, são tratadas como evocações subalternas, da mesma forma subalterna que essas populações são tratadas historicamente pelas elites brasileiras. Ao desembarcar da boca togada de um ministro do STF, a palavra ganhou outra densidade. E, principalmente, se instalou. Já não é mais uma palavra fantasma, que ao ser dita nada move. Genocídio, pela boca de Gilmar Mendes, deixou de ser uma carta deliberadamente extraviada e chegou ao seu destino.
Em 11 de julho, o ministro afirmou em um debate online: “Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Não é aceitável que se tenha esse vazio. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do Governo federal, é atribuir a responsabilidade a Estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”.
Generais como o vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, que não só pertencem e representam o Governo Bolsonaro, mas também o sustentam e o legitimam, se alvoroçaram porque sentiram o risco real de, em algum momento do futuro próximo, responderem por crimes contra a humanidade. Mesmo entre os que não apoiam Bolsonaro, termos como “hipérbole”, “exagero” e “banalização” foram usados para reduzir a potência da declaração do ministro. A palavra, porém, finalmente encarnada, permanece ativa.
Exatamente porque o genocídio, assim como os demais crimes contra a humanidade, são da maior gravidade é que se torna preciso debater o tema com a máxima seriedade, impedindo que ele seja capturado pela polarização ou pelas conveniências políticas de ocasião. Exatamente porque se trata da morte de pessoas que, num país que já ultrapassa as 80.000 vítimas por covid-19, mesmo com a reconhecida subnotificação, é urgente debater com responsabilidade: há ou não evidências de que o presidente da República e outras autoridades brasileiras possam ter cometido genocídio na resposta à covid-19?
Para responder a essa pergunta crucial, entrevistei a jurista Deisy Ventura, coordenadora do doutorado em saúde global e sustentabilidade da Universidade de São Paulo (USP). Autora do livro Direito e saúde global – o caso da pandemia de gripe A - H1N1 (Editora Outras Expressões), Ventura é uma das mais respeitadas autoridades no estudo da relação entre pandemias e direito internacional. É também mestre em direito europeu, doutora em direito internacional pela Universidade Paris 1 e foi professora convidada do Instituto de Estudos Políticos de Paris, o prestigiado Sciences-Po.
Desde que iniciou a pandemia, é uma das articuladores do Projeto Direitos na Pandemia, realizado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direitos Sanitários da USP e a organização Conectas Direitos Humanos. Todos os atos e a legislação brasileiras sobre a covid-19 são coletados e classificados em seu impacto sobre os direitos humanos. Isso impõe à jurista um acompanhamento cotidiano e permanente do Diário Oficial da União, onde muito se passa sem que a maioria dos brasileiros perceba.
Já não estamos no século 20, quando o conceito de genocídio foi criado a partir da necessidade de nomear o crime perpetrado pelo nazismo contra os judeus. O século 21 não é apenas uma convenção temporal, ele trouxe desafios novos, como o enfrentamento das pandemias e da emergência climática. Apenas há alguns anos, Ventura, então professora de direito internacional no Instituto de Relações Internacionais da USP, precisava constantemente explicar por que havia escolhido estudar uma pandemia no contexto do direito internacional. Hoje, já não é mais preciso explicar. O entendimento é imediato.
Nesta entrevista, feita por telefone ao longo de duas horas na última segunda-feira (20/7), Deisy Ventura explica por que há elementos suficientes para investigar o presidente Jair Bolsonaro, assim como outras autoridades do Governo, por crimes contra a humanidade, tanto no Tribunal Penal Internacional como na Justiça brasileira. Ela explica também por que é essencial para o futuro do Brasil que esse debate aconteça.
Pergunta. A declaração do ministro do STF Gilmar Mendes, alertando que os militares poderiam estar se associando a um genocídio, referindo-se à forma como a pandemia de covid-19 estava sendo tratada pelo Governo brasileiro, produziu várias reações. Alguns juristas e intelectuais foram rápidos em classificar a declaração como uma “banalização” do conceito de genocídio. Houve banalização?
Resposta. Existe uma banalização da palavra genocídio, mas não é o caso agora. O ministro Gilmar Mendes disse que o Exército estava se associando a um genocídio, referindo-se à resposta brasileira à pandemia. Naquele momento, o número de mortes já estava em 70.000 pessoas. É muito importante que um membro do Supremo Tribunal Federal, que é conhecido como alguém politicamente conservador, utilize essa palavra, porque ele certamente não usou essa palavra por acaso. É alguém que conhece o conceito de genocídio, conhece o direito e não é novato nem no mundo jurídico nem no mundo político. É importante não só por ser ministro, mas também pela percepção internacional dessa fala. A diplomacia brasileira teria recebido desde o ano passado uma orientação clara para frear o uso deste termo. Existe um alerta para não deixar que se difunda no Exterior a ideia de que está ocorrendo um genocídio no Brasil. Assim, cada vez que a palavra é pronunciada em relação ao Brasil, a diplomacia reage. Infelizmente, em geral desqualificando quem fez a declaração e caracterizando-a como banalização. Até então o genocídio era associado à população indígena e não relacionado à pandemia. Agora, com a fala do ministro, chegamos a outro patamar e precisamos discutir com muita serenidade essa questão. Não podemos falar sobre genocídio de uma forma polarizada e vulgar. É chegado o momento de falar do genocídio fora da clivagem da banalização. Não é apenas um grito dos mais fracos para chamar a atenção. Estamos agora diante de indícios muito significativos de que existe um genocídio em curso no Brasil.
P. E quais são esses indícios?
R. Primeiro, preciso dizer que, no que se refere à população em geral, acredito que há o crime de extermínio, artigo sétimo, letra b, do Estatuto de Roma. É também um crime contra a humanidade. E, no caso específico dos povos indígenas, minha opinião é de que pode ser tipificado como genocídio, o mais grave entre os crimes contra a humanidade. O crime de extermínio é a sujeição intencional a condições de vida que podem causar a destruição de uma parte da população. O que chama a atenção, neste caso, é que o exemplo usado no texto do Estatuto de Roma é justamente o da privação ao acesso a alimentos e ao acesso a medicamentos. Desde o início da pandemia, o Governo federal assumiu o comportamento que tem até hoje: de um lado o negacionismo em relação à doença e, de outro, uma ação objetiva contra os governos locais que tentam dar uma resposta efetiva à doença, contra aqueles que tentam controlar a propagação e o avanço da covid-19. E desde o início tenho dito que se trata de uma política de extermínio. Por quê? Porque os estudos têm nos mostrado que as populações mais atingidas são as populações negras, são as populações mais pobres, são os mais vulneráveis, entre eles também os idosos e os que têm comorbidades. E, infelizmente, o que prevíamos aconteceu. Apesar da subnotificação, que é consensual, já que todos estão de acordo que há mais casos no Brasil do que são reconhecidos, ainda assim há um volume impressionante e existe um perfil claríssimo das pessoas que são mais atingidos pela doença. Tanto no genocídio da população indígena quanto no que, na minha opinião, é uma política de extermínio com relação à resposta geral da pandemia, eu vejo claramente uma intencionalidade.
P. A intencionalidade é fundamental para tipificar a autoria tanto do genocídio quanto do extermínio. Mas há juristas experientes defendendo que seria difícil provar a intencionalidade no caso da resposta do Governo brasileiro à pandemia...
R. Existem pessoas por quem tenho o maior respeito e que conhecem o sistema penal internacional e que pensam que não é o caso de um crime de genocídio ou outro crime contra a humanidade porque se trataria de uma política fracassada do Estado brasileiro. Nesta interpretação, o que estaria acontecendo no Brasil é que o Governo fracassou na resposta à pandemia. Seria apenas uma resposta ineficiente. E os tribunais internacionais não julgam políticas, julgam pessoas que cometem crimes. Assim, só poderíamos reclamar junto ao sistema interamericano de direitos humanos ou outras instâncias de controle do respeito aos tratados de direitos humanos. Eu não penso assim. Vejo uma intenção clara.
P. Como essa intenção se expressa, em sua opinião?
R. Faz parte da definição dos crimes contra a humanidade a existência de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil. Estes dois elementos são muito importantes. Algumas pessoas dizem também que o Tribunal Penal Internacional seria para conflitos armados. Isso também não é verdade. O estatuto é claríssimo. Não é preciso haver uma guerra ou conflito armado para que se pratique um crime contra a humanidade. E, mais do que isso, até a tentativa de genocídio é punível pelo estatuto. Sequer é necessário que ele tenha sido consumado. Da mesma forma, se pune também a incitação ao genocídio. A incitação é punida, a tentativa é punida. Precisamos analisar com muita serenidade o que tem acontecido no Brasil. Afirmo que nem de longe se trata de uma política fracassada de resposta à covid-19. Nem de longe. O Governo age de uma maneira claríssima em combate à saúde pública. Ele não só dissemina falsas informações sobre a doença e, portanto, age no plano da comunicação para disseminar o negacionismo, como ele também construiu um conjunto de ações, inclusive por via legislativa, para obstaculizar as medidas de combate e prevenção à covid-19 de iniciativa de outros poderes. Vejo aqui todos os elementos configurados: ataques sistemáticos e a intenção de sujeitar uma parte importante da população brasileira a condições de vida que podem implicar a sua destruição.
R. Por que, então, juristas respeitáveis estão sendo, digamos, tão cautelosos?
P. É evidente que o Tribunal Penal Internacional nunca foi confrontado a uma situação como a que estamos vivendo no Brasil. Então é natural que alguns juristas, por maior que seja a sua experiência e o seu valor, digam que nunca cuidaram de uma questão como esta. Nunca vivemos uma pandemia com esse alcance na contemporaneidade, com a existência de um sistema de saúde pública universal, na qual temos os meios para uma resposta eficiente, e o Governo federal optou por não oferecer essa resposta. Muitas pessoas são grandes estudiosas do direito penal internacional, mas talvez não tenham estudado de forma mais detida o que o Governo brasileiro tem feito com relação à covid-19. Uma coisa é acompanhar as falsas polêmicas, e também as verdadeiras, nesta forma de fazer política do Brasil atual, onde o falso se mistura com o verdadeiro. O presidente da República é um agitador de extrema direita e o movimento que o levou ao poder busca de forma ostensiva aparelhar o Estado brasileiro. Órgãos do Estado, como a própria Secretaria de Comunicação, segundo o Poder Judiciário, tentaram veicular campanhas que insuflam a população contra as autoridades. O presidente da República chegou a sugerir a invasão de hospitais para que seus seguidores os fotografassem, para assim “comprovar” a tese complotista de que a covid-19 não seria tão grave nem teria se propagado nessa dimensão. Nós temos configurada aqui muito mais do que uma omissão. Nós temos uma ação intencional clara e também um caráter sistemático. Mas uma coisa é acompanhar as declarações do Governo por lives e pela imprensa, acompanhar essas ofensas, assim como o descaso com a dor das famílias que perderam pessoas queridas por covid-19. Além desse circo de mentiras e distorções, precisamos também ir lá olhar o Diário Oficial, para entender o que acontece atrás da cortina de fumaça. Quando a gente vai lá ver, vai somando evidências claríssimas dessa intencionalidade. Não são apenas as falas do presidente, mas uma sucessão de atos que demonstram uma intenção clara e uma ataque sistemático às tentativas de controle da propagação da doença. Por isso, em minha opinião, existe uma política de extermínio em curso.
P. Para provar que há genocídio e outros crimes contra a humanidade é necessário também mostrar que há um plano. É possível estabelecer a existência de um plano, no caso da resposta do Governo brasileiro à covid-19?
R. Sim. E também o plano é muito claro para quem acompanha e pesquisa diariamente o que está acontecendo com a covid-19. Aquilo que o presidente da República chamou de “guerra” e de “jogar pesado” contra os governadores constitui claramente um plano para obstruir uma resposta eficiente dos Estados à pandemia, com etapas como o pedido a empresários para que deixassem de financiar campanhas eleitorais de governadores não alinhados, ameaças constantes em declarações públicas e incitação à desobediência civil, entre muitas outras medidas legislativas ou administrativas. O presidente chegou a demitir dois ministros da Saúde que não concordavam com seus planos para a pandemia.
P. Qual é a importância de um debate como este, num momento tão grave como o que o Brasil está vivendo?
R. Quando a gente atribui um crime a alguém é preciso uma investigação, é preciso um processo e é preciso um julgamento. Eu vejo todas estas etapas como extremamente importantes para que possamos entender o que acontece no Brasil em um outro patamar. Seria muito ruim se, ao final desse acontecimento terrível, a versão sobre o que aconteceu fosse a de que esse Governo foi simplesmente incompetente. E seria muito ruim porque isso não é verdade. A discussão sobre a tipificação dos crimes contra a humanidade me parece fundamental, mas ela precisa ser feita de uma forma muito tranquila, porque não se trata de agitação, nem se trata de insuflar pessoas. Se trata, sim, de uma tese muito séria, que tem condições de prosperar na esfera internacional. E não só isso. Tem condições de prosperar também na esfera interna, porque genocídio é um crime tipificado na legislação brasileira. Temos toda uma base também no direito brasileiro para discutir se o que está acontecendo aqui é um genocídio ou não ―e também temos a discussão internacional. Nada disso me parece uma questão sobre políticas públicas, mas sim uma questão sobre responsabilização individual. Precisamos responsabilizar criminalmente as pessoas que estão promovendo genocídio ou outros crimes contra a humanidade, como o de extermínio.
P. O que você está dizendo é que, no que se refere à resposta do Governo brasileiro à covid-19, não se trata de incompetência, como alguns querem fazer crer. Você está afirmando que há dolo, há intenção. Além das declarações bem conhecidas do presidente Jair Bolsonaro, quais são os atos, publicados no Diário Oficial, que provam isso?
R. Mesmo naquela famosa declaração de 24 de março, em que o presidente usa a expressão “gripezinha” para se referir à covid-19, há muito mais do ponto de vista jurídico. No mesmo pronunciamento o presidente critica, por exemplo, o fechamento das escolas. Existe o que aparece mais, o mais comentado, mas também existem outros elementos que configuram que não se trata apenas de uma expressão infeliz. Imagine, numa corte internacional, um juiz que se defronta com uma fala de um presidente da República que, em plena pandemia, se pronuncia contra o fechamento das escolas...
P. E quanto aos atos, você poderia citar alguns?
R. Há muitos. Existe um enorme exemplo com relação à população em geral que é a lei 14.019, de 2 de julho, que trata do uso das máscaras. O presidente vetou a obrigação dos estabelecimentos comerciais de informar em cartazes a forma correta de usar as máscaras e vetou a obrigação dos estabelecimentos comerciais de afixar o número máximo de pessoas que deveriam estar lá dentro. Se construiu uma lei sobre o uso de máscaras para conter o avanço da pandemia, e perceba que esta lei é de 2 de julho, quando já estamos com dezenas de milhares de mortos e com a interiorização da doença. O presidente então veta essas obrigações. Entre outros vetos, veta a obrigação do uso da máscara no sistema carcerário, veta nos estabelecimentos de ensino e veta nos templos. Isso sim é banalização do veto. E são vetos contra a saúde pública. Outro exemplo é o atraso na sanção da norma que liberava recursos financeiros para os Estados. Este é um debate que chega a me causar arrepios. Muitos Estados estavam já sem recursos para comprar insumos, como respiradores e até sedativos. Os Estados então pedem essa ajuda, o Congresso aprova a ajuda e o presidente retarda ao máximo a sanção à lei que provê socorro financeiro aos Estados que estão na linha de frente da resposta. O que é isso senão obstaculizar a contenção da propagação da doença? Outra questão evidente. Quando o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), depois de pedir muitas vezes ajuda ao Governo Federal e de tentar muito conseguir insumos, especialmente respiradores, organiza uma compra, é ameaçado e a Receita Federal declara que haveria processo contra ele e todas as pessoas envolvidas. Mais. As ameaças de operações policiais contra os governadores, na tentativa de caracterizar a resposta à pandemia, a compra de insumos, como corrupção, como se gastos com hospitais de campanha e respiradores fossem necessariamente uma forma de enriquecimento ilícito. Há a substituição de quadros experientes do Ministério da Saúde, com grande conhecimento sobre a resposta a doenças infectocontagiosas, por pessoas sem nenhuma experiência. Segue. A tentativa de manipulação de dados da covid-19... Há ainda o uso de cloroquina, inclusive em comunidades indígenas. No começo a própria Organização Mundial da Saúde estava investigando a eficácia ou não. Mas, hoje, não há a menor dúvida. Além de tudo o que significa o uso da cloroquina, ainda se configura a intenção de iludir as pessoas de que existe uma forma de tratar a doença. Você quer mais exemplos? Posso continuar por algumas horas.
P. Acho que está claro.
R. É necessário entender que existem duas grandes vertentes para dizer da pertinência dos crimes contra a humanidade, inclusive o de genocídio. Uma é a vertente da comunicação e a outra é o ataque contra os Governos dos Estados. A comunicação é absolutamente criminosa, porque incita as pessoas a pensarem que a doença não é tão grave, incita a não se protegerem, e existe a obstrução constante por atos, constrangimentos e ameaças aos Governos locais que conduzem a resposta à pandemia.
P. E quanto aos povos indígenas, especificamente?
R. Com relação aos indígenas, duas questões são especialmente relevantes entre muitas. Sem hesitar, eu daria dois exemplos. O primeiro é o debate sobre o contato com os povos isolados. Uma portaria da Fundação Nacional do Índio, a portaria 419, se apresenta como uma portaria que vai coibir o contato com as comunidades isoladas. Só que, no meio, olhando com lupa, essa portaria abre uma exceção: a de que poderia haver o contato com as populações isoladas com autorização da Funai. O Governo tenta, sempre. A intenção é clara. Há então uma resposta muito forte da sociedade civil. Há uma recomendação do Ministério Público Federal, ainda em março, e então essa portaria é modificada. Mas a tentativa está lá. Em fevereiro deste ano, a Victoria Tauli-Corpuz, relatora da ONU para os povos indígenas, ao saber que um líder evangélico poderia chefiar a coordenação de povos isolados da Funai, já tinha apontado o potencial de produzir um genocídio. O genocídio está muito longe, portanto, da banalização. Estamos falando de uma relatora das Nações Unidas para os direitos dos povos indígenas. O segundo ponto ―e é até difícil falar tranquilamente sobre isso― é a lei do plano emergencial de enfrentamento da covid-19 nos territórios indígenas. Para começar a conversa: o plano emergencial é uma lei de 7 de julho ―7 de julho! Ou seja. Em julho nós vamos aprovar o plano emergencial para enfrentar uma emergência que foi declarada pela Organização Mundial da Saúde em 30 de janeiro e, pelo Brasil, em 3 de fevereiro. Aqui mesmo, no Brasil, já se reconhecia a emergência nacional desde fevereiro! E só em julho vão fazer o plano para combater a pandemia nos territórios indígenas. Bem, neste plano, a União precisa garantir um conjunto de medidas para enfrentar o vírus...
P. E Bolsonaro vetou a garantia de acesso à água potável aos povos indígenas...
R. Muita gente ficou chocada com o fato de o presidente da República vetar a garantia de acesso à água potável. Mas, se nós formos ler o conjunto dos vetos, vamos ver que vai muito além de uma suposta crueldade com relação à água. Foi vetada a obrigação de organizar o atendimento de média e alta complexidade nos centros urbanos, foi vetado o acompanhamento diferenciado dos casos que envolvam os indígenas, inclusive foi vetada a oferta emergencial de leitos hospitalares e de UTI. Foi vetada a obrigação de aquisição ou disponibilização de ventiladores de máquinas de oxigenação sanguínea, foi vetada a inclusão dos povos indígenas nos planos emergenciais de atendimento dos pacientes graves das secretarias municipais e estaduais, que inclusive obrigava o SUS a fazer o registro e a notificação da declaração de raça e de cor. Com este veto, se tenta dificultar a identificação dos indígenas atendidos no SUS. Veja como a comunicação é importante... Foi vetada a parte da obrigação de elaboração de materiais informativos sobre os sintomas da covid-19 em formatos diversos e por meios de rádios comunitárias e de redes sociais com tradução e linguagem acessível. Isso foi vetado. Foi vetada a obrigação de explicar para os indígenas a gravidade da doença! Foi vetada a obrigação de oferecer pontos de internet nas aldeia para não ser preciso se deslocar aos centros urbanos. Foi vetada a distribuição de cestas básicas, de sementes e ferramentas agrícolas a famílias indígenas. Por isso, eu afirmo: a questão vai muito além das frases de efeito, vai muito além de tudo aquilo que é promovido pelo Governo Federal para insuflar a sua base de apoio a odiar as instituições, a odiar os partidos de oposição, a odiar a população que é considerada por eles inferior e subalterna, como indígenas e negros, aqueles que atrapalham seus interesses e são considerados por eles um obstáculo do ponto de vista da racionalidade econômica que eles defendem.
P. Que racionalidade econômica é esta?
R. A racionalidade econômica que eles defendem é a do lucro imediato, a dos privilégios para os amigos do rei. E esta é uma racionalidade que sequer é uma preocupação com a economia do país. Não é. É uma preocupação com interesses de determinadas pessoas. A questão econômica é da maior importância na resposta à pandemia. Eu gosto muito do trabalho da (economista) Laura Carvalho, não só pela sua linguagem acessível, mas porque ela diz claramente que o problema da pandemia não são as medidas de contenção, é a pandemia em si. Morrer é muito ruim também para a economia de uma família. Sofrer por uma doença evitável é muito ruim também para a economia. Uma resposta séria para efetivamente conter a propagação da doença seria mais efetiva para a economia do que o negacionismo. O prefeito de Itabuna, na Bahia, falou muito claramente sobre o significado dessa posição, ao anunciar no início de julho que reabriria o comércio. Ele disse: “Morra quem morrer”. E se sabe exatamente quem vai morrer mais. Na elite brasileira vai haver algo que eles provavelmente vão chamar de dano colateral. Mas a regra, quando se observa o que tem acontecido no Brasil desde fevereiro, é que as pessoas que têm acesso principalmente à terapia intensiva têm muito mais chance de sobreviver, mesmo sendo idosas e mesmo tendo comorbidades. Não é possível dizer que os brasileiros, em geral, não têm acesso, porque nós temos o SUS, e em alguns locais o SUS conseguiu oferecer um tratamento de excelência, apesar das dificuldades. Mas o SUS não consegue atuar de forma igual em todos os lugares. Então, se sabe exatamente quem vai morrer mais.
P. No que se refere aos povos indígenas, que outros elementos mostram que pode ter acontecido o crime de genocídio contra eles?
R. A diferença essencial, que facilita a identificação do genocídio nas populações indígenas, é o interesse claro que existe em utilizar as terras, as riquezas naturais, em eliminar o “obstáculo” que estas figuras representam, na medida em que são os grandes guardiões da floresta, do meio ambiente, do patrimônio natural brasileiro. Eliminar esses guardiões facilitaria muito a apropriação de suas terras, basta ver o ritmo de desmatamento e de ocupação ilegal de terras protegidas que está ocorrendo no Brasil. O motivo do crime é evidente. A velha pergunta dos filmes de mistério ―quem ganha com o crime?― tem aqui uma resposta muito evidente.
P. Qual é a história do conceito de genocídio, para podermos entender melhor o que está em disputa nesse debate?
R. Começa com (Winston) Churchill, em outubro de 1943, quando vêm a público as atrocidades cometidas pelos nazistas. Ele diz: “Nós estamos diante de um crime sem nome”. E então um jurista polonês, Raphael Lemkin, publica um artigo, em novembro de 1943, afirmando: “Por genocídio nós entendemos a destruição de uma nação ou grupo étnico”. É ele que usa pela primeira vez essa palavra, combinando “genos”, do grego, que é raça ou tribo, com a palavra latina “cídio”, que significa matar. Nunca deixou de ser um conceito polêmico, em função do negacionismo e, principalmente, por causa do dilema de alguns países, que queriam punir o genocídio praticado por Hitler contra os judeus, mas que estavam fazendo seus genocídios alhures, como os próprios ingleses, os americanos, os franceses, que tinham o genocídio nas suas histórias, algumas até bem recentes. Então, como constituir o conceito de um crime que não fosse depois se voltar contra eles? O debate, portanto, sempre existiu. E o Lemkin já dizia neste artigo: “o genocídio não significa necessariamente a destruição imediata de uma nação, ele significa muito mais um plano coordenado de diferentes ações que visam à destruição dos fundamentos essenciais à vida de grupos, com objetivo de, mais adiante, exterminá-los”.
P. O fato de a palavra se originar com o holocausto judeu perpetrado por Hitler e pelos nazistas, na Segunda Guerra, não é também o que dificulta hoje, mesmo para juristas experientes, entenderem que estamos num outro momento da história? Assim como para alguns é difícil compreender que os golpes hoje nem sempre são com tanques na rua, como foram no séculos 20, não estaria sendo difícil compreender que, no tempo das pandemias e da emergência climática, a interpretação também precisa se atualizar porque os desafios e as ameaças são também outros?
R. Genocídio não é só colocar pessoas num paredão (ou numa câmara de gás) e fuzilar as pessoas. O genocídio se dá também ao suprimir as condições necessárias à vida e às condições à saúde. Eu trabalho há mais de 10 anos no estudo e pesquisa de pandemias e da Organização Mundial da Saúde. As pessoas achavam curioso que alguém do direito internacional se interessasse por esses assuntos. Agora já não precisa mais explicar por que fiz minha livre docência sobre a gripe H1N1. Há algo novo que os sistemas internacionais vão ter que levar em conta. O fato de não haver um precedente significa apenas que, na contemporaneidade, a humanidade não tinha chegado a essa fase da história. Com toda a tecnologia e ciência, é a primeira vez que nos confrontamos com um fenômeno dessa magnitude. A grande maioria dos Estados fez o máximo possível com as condições que tinha para enfrentar essa situação. Não foi esta a decisão do Estado brasileiro.
P. Algumas pessoas confundem o negacionismo como algo equivocado, porém honesto, no sentido de que os negacionistas realmente acreditariam na não existência de algo. Claramente, porém, o negacionismo é uma manipulação e uma estratégia...
R. O negacionismo surge, historicamente, justamente com relação ao holocausto. Essa palavra vai surgir nos ambientes universitários dos anos 70, dos anos 80, para se referir a algumas teses acadêmicas e discursos políticos que diziam que o holocausto judeu ou não foi tão grave assim ou não ocorreu. É muito interessante isso. As extremas direitas europeias, e principalmente a francesa, não tinham condições de se apresentar politicamente com suas ideias diante da monstruosidade do que aconteceu com o povo judeu. Então, como estava claro que essas ideias fascistas necessariamente levam ao extermínio e ao genocídio, para que se tornassem palatáveis de novo era preciso negar o que aconteceu. Do contrário, não haveria como se apresentar de novo no espaço público. Universidades francesas importantes acabaram envolvidas nesse escândalo por permitirem a existência de teses que afirmavam que ou não foi tão grande assim ―a banalização― ou não aconteceu. A coerência não é algo importante para a extrema direita, nunca foi. É aí que surge essa expressão ―negacionismo. Os judeus são obrigados a, periodicamente, provar que o holocausto aconteceu porque os negacionistas jogam com o que se chama ônus da prova. Eles não provam que não aconteceu, mas te obrigam a cada momento a provar que aconteceu.
P. Como acontece, especialmente nesse Governo, com a memória da ditadura militar (1964-1985) no Brasil....
R. Sim. E aí eu quero dizer, muito enfaticamente, que isso vai acontecer conosco com relação à pandemia de covid-19 no Brasil. Periodicamente, nós vamos ter que provar essas dezenas de milhares de mortes. Periodicamente, nós vamos ter que voltar a explicar como aconteceu. Tenho certeza absoluta que essa disputa vai acontecer. Será preciso fazer um memorial para esses mortos. A história terá que ser contada de forma incessante. Da mesma forma que acontece com as vítimas da ditadura militar, haverá desmentidos. Entendo a preocupação de preservar o termo genocídio, mas o fulcro do que estou dizendo desde que começamos a conversar é que não há exagero em falar de crimes contra a humanidade com relação ao que está acontecendo hoje no Brasil referente à covid-19. Por tudo o que já falei e porque essas mortes eram evitáveis.
P. Como fica claro que essas mortes seriam evitáveis?
R. O Brasil não é um país miserável, que não tem sistema de saúde e estava fadado a ter uma evolução trágica da doença. O Brasil é referência internacional de cobertura universal de saúde. Nos países em desenvolvimento, não há nada como o nosso Sistema Único de Saúde. O Brasil tem profissionais de saúde de altíssimo nível, sanitaristas de altíssimo nível, todos ejetados do Ministério da Saúde. O Brasil tinha todos os quesitos para ter uma das melhores respostas do mundo à covid-19. Muitos brasileiros pensavam que o Brasil não tinha dinheiro. E nós descobrimos que o Brasil tem muito dinheiro, que uma parte muito significativa do PIB foi destinada à resposta à covid-19, mas ela não tem chegado onde precisa chegar, por uma série de razões, entre elas as que eu já mencionei. Então, como é possível? Poderíamos ter tido uma realidade em que todas as autoridades alertassem para a doença, pedissem para a população ficar em casa apoiando as medidas e, por alguma razão, o sistema tivesse uma disfunção. Mas não é nem de longe o que estamos vivendo no Brasil. Nós não temos um governo federal que aja no sentido de conter a pandemia mas não tem êxito. Ao contrário. Existe uma obstrução reiterada, com a justificativa de proteger a economia brasileira, uma justificativa pífia, que quem entende de economia diz que não é sequer a melhor forma de proteger a economia. E quero chamar muito enfaticamente a atenção para a comunicação. A comunicação de risco durante a emergência é um dos principais pilares do enfrentamento em todos os manuais. O primeiro ponto é a confiança nas autoridades sanitárias, o segundo ponto é a comunicação clara, inclusive de incertezas científicas sobre o que está ocorrendo. Em nenhum momento podemos subestimar a comunicação como elemento de resposta. Na comunicação, assim como em tantos pontos, a intencionalidade de não deixar a população se proteger como deveria é claríssima.
P. O que diz exatamente a legislação?
R. O conceito de genocídio, na legislação brasileira (Lei 2.889, de 1º de Outubro de 1956), é límpido. Começa referindo-se à intenção de destruir no todo ou em parte um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Refere-se a matar membros do grupo, causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo, submeter o grupo ou membros do grupo a condições de existência capaz de ocasionar a destruição física total ou parcial, assim como adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo e efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. Também menciona a incitação direta ou indireta e diz ainda que a pena será agravada em um terço quando o crime for cometido por governante ou funcionário público.
P. Em quais destes casos o Governo brasileiro se enquadraria, no que diz respeito à resposta à covid-19?
R. Causar lesão grave física ou mental a membros do grupo, isso me parece evidente nos argumentos que já mencionei. Submeter o grupo a condições de existência capazes de ocasionar a destruição física parcial ou total, está mais do que claro. Imagina, o Governo vetou até mesmo a obrigação de realizar uma campanha para os indígenas traduzida nos seus idiomas, explicando a gravidade da doença. No Tribunal Penal Internacional, o conceito é semelhante. Me parece que, em relação aos indígenas, existe uma circunscrição geográfica que facilita a configuração da prova da prática desse crime num eventual processo. Essa tipificação do crime entre os indígenas me parece ter um amplo leque de evidências. Ninguém pode, porém, ser condenado previamente. O que estamos dizendo é que é possível que esse crime esteja acontecendo e que isso precisa ser investigado nessa clivagem, como crime de genocídio. O que é muito importante é que não exista mais lugar para o argumento da banalização da palavra genocídio. Que deixe de ser considerado algo distante, denuncista ou absurdo e passe a ser investigado.
P. E quanto aos negros que, segundo pesquisas, são a maioria dos que morrem por covid-19?
R. Na população negra, eu vejo muito mais do que matar ou deixar morrer, o que também é um crime contra humanidade. Quando o Governo faz essa série de ações que obstaculizam a prevenção e o combate à covid-19, ele joga com a evolução natural da doença: se deixar a evolução natural da doença rolar sem intervenções mais efetivas, a tendência é que ela atinja mais as populações vulneráveis e extermine esses atores, cujas vidas consideraria que não importam. Na população em geral, os caminhos do crime contra a humanidade são mais velados do que os crimes contra as populações indígenas.
P. Já ouvi pessoas dizendo que até agora morreram “poucos” indígenas, para se considerar genocídio (cerca de 500, segundo organizações indígenas). É uma afirmação bastante terrível, para dizer o mínimo, mas é importante perguntar, para que todos possam compreender um debate que diz respeito não só aos brasileiros, mas à população global: para ser considerado genocídio ou extermínio é necessário um número elevado de mortes?
R. Do ponto de vista da tipificação do crime, do ponto de vista técnico, é irrelevante o número de pessoas que morreram. Nem na lei brasileira nem na lei internacional existe um número mínimo de pessoas para configurar genocídio. Para a tipificação do crime, a essência é a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo. Uma intenção que não necessariamente vai resultar em mortes. É claro que, do ponto de vista ético, o número de mortes é totalmente relevante. Mas, como disse antes, mesmo a tentativa de genocídio é punível.
P. Uma outra pergunta bem óbvia, mas importante. No caso de uma ação de genocídio no Tribunal Penal Internacional, quem é responsabilizado é a pessoa, não o governo, certo? Poderia, por exemplo, no caso brasileiro, serem responsabilizados o presidente Jair Bolsonaro e os generais, assim como outros funcionários com poder de decisão?
R. Sim. O TPI é uma grande conquista da humanidade também porque ele permite responsabilizar pessoas por crime contra a humanidade. Alguém chega ao poder em determinado Estado, mas há limites do que pode fazer ao exercer seu poder contra o próprio povo. Existem gestos que agora têm nome e são tipificados, e o mais grave deles é o genocídio. Há possibilidade de processar chefes de Estado, generais, grandes empresários, grileiros, funcionários públicos com cargos de responsabilidade, pessoas que participaram do crime.
P. Você defende que esse debate precisa ser feito e que precisa ser feito com serenidade, porque é importante para o Brasil. Por que é importante?
R. Só o fato de debater já é importante. Pode levar anos para o TPI decidir se abre a investigação ou não. Mas a construção de denúncias bem fundamentadas tecnicamente é um processo no qual todos ganham. O Brasil ganha, e as instituições brasileiras ganham.
P. Por quê?
R. Processos que são movidos em busca da justiça, para responsabilizar pessoas que atentam contra a vida de populações vulneráveis ou contra grupos específicos, como os indígenas, são processos que fazem emergir a verdade. O processo vai dando voz às vítimas, oportunizando que sejam escutadas nas mais diversas instâncias. A construção, organização e sistematização dessas provas vão despertando a consciência das pessoas. No Brasil, o mais importante é mostrar que o que está acontecendo vai muito além de um debate vulgar sobre questões da maior gravidade, vai muito além da suposta incompetência do Governo federal na resposta à covid-19. Um processo faz com que a verdade apareça na voz das vítimas ou de seus familiares. Vai mostrando que não é só uma forma infeliz de se manifestar, não é só ignorância, não é só incompetência. Existe uma intencionalidade. No caso de uma ação por genocídio ou por outro crime contra a humanidade, como o extermínio, o caminho é mais importante do que o destino.
P. Por que então uma reação tão forte à declaração do ministro Gilmar Mendes, mesmo entre pessoas que se opõem ao Governo Bolsonaro?
R. Acredito que a reação à fala de Gilmar Mendes tem duas causas. Uma delas é de que o presidente estaria supostamente mais calmo. Em função da prisão do (Fabricio) Queiroz, ele modificou suas estratégias de ataque às instituições. Neste momento, em que a tensão supostamente está diminuindo, um ministro do STF usa uma expressão referente ao pior tipo de crime que pode existir. E utiliza uma expressão que tem transcendência internacional imediata, porque o mundo inteiro sabe o que é um genocídio. Fica parecendo então que é um gesto que gera tensão num momento em que supostamente as tensões estariam sendo aliviadas. E eu digo supostamente porque, neste momento de pandemia, temos acompanhado o Diário Oficial todos os dias. Quando a gente vê atos como os vetos ao plano emergencial para os indígenas, a gente vê que a tensão não está baixando de forma alguma. O segundo elemento é a dificuldade de identificar essa sistematicidade no ataque às tentativas de controle da pandemia. No dia a dia, esses elementos vão sendo interpretados como vulgaridade, leviandade, incompetência. Mas esse fio do tempo, com ações concretas, este que demonstra o ataque sistemático à saúde pública, fica menos visível. Acredito que muitas pessoas, com a melhor das intenções, dizem que não vai levar a nada discutir a tipificação como crimes contra a humanidade porque é uma questão política, porque seria um caso para o sistema de controle dos direitos humanos, onde o Estado pode ser responsabilizado. Eu não concordo com isso. Acredito que existem pessoas agindo de uma forma sistemática contra a saúde pública e a vida dos brasileiros. Eu teria muita dificuldade de dizer que relacionar a morte de mais de 80.000 pessoas como crime contra a humanidade seja banalizar a palavra genocídio. E não apenas pelo número de pessoas, mas principalmente, é importante repetir, porque essas mortes seriam evitáveis.
P. Você afirmaria que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, é um genocida?
R. Eu afirmo que é preciso investigar a acusação de genocídio com relação ao presidente do Brasil. Se queremos dar densidade técnica a esse debate, não podemos condenar antes do julgamento. Devemos denunciar e esperar a decisão. Tanto que, no jornalismo, quando alguém é acusado de um crime, vocês se referem a ele como suspeito. Acho que esse é um valor a se preservar. Acredito que o presidente do Brasil é suspeito de crimes contra a humanidade, entre eles o genocídio. E o caminho pelo qual formulamos essa acusação é um caminho importante para a sociedade brasileira, porque é mais um indicativo da gravidade do que está acontecendo e que algumas pessoas estão encarando de uma forma bastante irresponsável. Permitir que esses comportamentos existam e se repitam é muito grave. Nós precisamos discutir com a tranquilidade e com a seriedade que assuntos desse tipo exigem. E faz parte disso não prejulgar. Não se referir a alguém que ainda não foi condenado como se já o tivesse sido. Mas não tenho nenhum problema em dizer que diversas autoridades brasileiras, entre elas o presidente da República, me parecem suspeitas de crimes contra a humanidade e precisam ser investigadas.
Bruno Patino: 'Estar conectado o tempo todo será tão absurdo quanto fumar num avião'
Em seu novo livro, o ensaísta retoma o tema da transição digital alertando para os riscos de viver com uma capacidade de atenção cada vez mais reduzida
Nove segundos: a isso ficou reduzida nossa capacidade de atenção. É o que sugere a tese desenvolvida por Bruno Patino (Courbevoie, França, 55 anos) em seu novo ensaio, La Civilisation du Poisson Rouge (“a civilização do peixe-vermelho”, inédito no Brasil), em que adverte para os perigos desse alarmante déficit de concentração, praga da sociedade moderna provocada pelos gigantes da Internet com sua perpétua difusão de links, imagens, likes, retuítes e outros estímulos para nosso sistema nervoso. “O modelo de negócio das plataformas se baseia na publicidade, e sua eficácia depende do tempo que o usuário passe nelas. As redes se tornaram predadoras do nosso tempo”, afirma Patino em uma entrevista por telefone. Os peixes vermelhos a que o título alude têm uma memória limitada a oito segundos. Os nativos digitais, segundo Patino, já ganham por apenas um segundo: a partir do décimo, seu cérebro se desconecta e começa a procurar “um novo sinal, um novo alerta, outra recomendação”.
Patino, filho de pai boliviano e mãe francesa, cresceu num lar bilíngue onde não havia televisão. Isso não impediu que esse reconhecido gestor, que em junho foi nomeado presidente do canal de TV franco-alemão Arte, tenha um dos currículos mais destacados na paisagem midiática do seu país. Diretor editorial do Arte desde 2015, Patino se encarregou da transição digital do Le Monde na década passada, antes de dirigir a rádio France Culture e de ser nomeado chefe de programação e desenvolvimento digital dos canais da televisão pública francesa. Tendo vivido de perto os efeitos dessa transformação, Patino examina as consequências de uma perda de atenção que, em escala individual, considera “patológica”. “Milhões de pessoas, entre as quais me incluo, já são incapazes de se desconectarem, de deixar de lado a tela 24 horas. Nós nos tornamos dependentes e inclusive viciados”, afirma.
Em um nível coletivo, lhe parece ainda pior: provocou “uma polarização do debate social e um espaço público totalmente dominado pelas emoções”. Longe ficou aquela rede igualitária a que muitos aspiraram nos anos noventa, aquela “anarquia positiva” em que o próprio Patino acreditou com convicção. “Chegou o tempo das lamentações”, admite no começo do livro. Quando aquela utopia digital começou a dar errado? “No momento em que a economia se convidou para a festa. Simples assim…”, responde o autor, que cita o surrado adágio de Bill Clinton ―“É a economia, estúpido”― na epígrafe do seu ensaio. “Somos corresponsáveis pelo que está nos acontecendo, porque nos colocamos voluntariamente neste aquário. Mas a responsabilidade do Facebook e dos outros gigantes é ainda maior, por utilizar ferramentas que manipulam nossas emoções”, pontua Patino.
Mesmo assim, o ensaísta considera que há margem para esperança. “A resistência continua sendo possível, embora já não baste a autorregulação e a autodisciplina. É preciso criar momentos e lugares livres de conexão”, adverte o autor, propondo “uma mobilização social e política” que termine originando uma legislação específica. “No futuro, deixará de ser aceito consultar o celular numa reunião profissional, em uma refeição familiar ou no cinema. Estar conectado o tempo todo nos parecerá tão absurdo quanto fumar num avião”, prognostica Patino. O autor observa que toda inovação tecnológica sempre é sucedida por uma regulação mais ou menos rigorosa. “Depois da invenção da imprensa, levou-se entre 50 e 60 anos até surgir a noção de responsabilidade editorial e deixarem de serem publicados panfletos difamatórios, um precedente das atuais fake news. Regular a rádio levou 25 anos, e a televisão, 15”, recorda. No caso da Internet, prognostica que o problema será resolvido “em uns dez anos, cinco para tomar consciência do problema, e outros cinco para agir”.
Patino assume a liderança do Arte em plena fase de expansão. Entre 2011 e 2019, a audiência do canal, até recentemente visto como elitista e ultraminoritária, passou de 1,5 para 2,6 milhões de espectadores. Há noites em que beira ou supera 10% de share graças a uma combinação de documentários de produção própria, estreias cinematográficas e séries de qualidade, como Borgen e Top of The Lake, que representam uma alternativa ao modelo imposto pela Netflix. Em 2021, o Arte lançará a estreia televisiva do dueto formado por Éric Toledano e Olivier Nakache (Intocável), que leva a série Sessão de Terapia para o contexto das sequelas psicológicas pelos atentados terroristas de 2015 em Paris. “Há uma demanda latente por qualidade acessível, por meios de comunicação que apostem na inteligência do espectador sem renunciar a alcançar um público maciço”, opina Patino.
Outra chave será a expansão digital, que no caso do Arte é considerável. Entre 2018 e 2019, o tráfego no seu site, onde muitos conteúdos podem ser vistos uma semana antes de entrarem na grade, e até várias semanas depois, aumentou mais de 70%, especialmente entre os usuários de 15 a 34 anos. “O posicionamento editorial tem que continuar sendo o mesmo, mas deve se tornar cada vez mais europeu quanto à identidade e distribuição”, disse o novo presidente de um canal que, além de transmitir em francês e alemão, já propõe uma pequena parte de sua programação on-line em inglês, italiano, polonês e espanhol. A ideia de Patino é que seja cada vez menos minoritária.
El País: 'Para julgar Bolsonaro em Haia é preciso mostrar a intenção de crime contra a humanidade', diz Ocampo
Responsável por pedir a prisão de Kadafi quando comandou Haia, Luís Moreno Ocampo diz que para abrir investigação por genocídio é preciso provar “intenção” de destruir grupo ou população
Daniel Haidar, El País
O advogado argentino Luís Moreno Ocampo, primeiro promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, Holanda, avalia que seria preciso demonstrar que houve um plano de usar o coronavírus como ferramenta para exterminar toda ou parte da população para que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, seja investigado e julgado pela corte internacional que pune tiranos por crimes contra a humanidade. Bolsonaro já foi denunciado ao TPI em três queixas, por sua conduta no enfrentamento da pandemia do coronavírus. “A lei diz que crimes contra a humanidade pressupõem que tenha ocorrido uma política para cometer um ataque de larga escala ou sistemático. Precisa ter tido um plano”, explicou.
Ele evitou avaliar ações específicas de Bolsonaro, como o veto da lei que tornava obrigatório o uso de máscaras em locais públicos. De 2003, quando a corte entrou em funcionamento, a 2012, último ano de seu mandato, Ocampo conduziu investigações do TPI em sete países e pediu ordens de prisão, decretadas pela corte, contra Muamar al Kadafi, o ditador da Líbia morto em 2011, e Omar al-Bashir, o ditador do Sudão deposto e preso em 2019. De Malibu, na Califórnia, onde escreve um livro sobre sua atuação em Haia, ele conversou com o EL PAÍS.
Pergunta. Como o senhor observou o alerta feito pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, a Bolsonaro de que ele pode ser julgado por genocídio em Haia devido a sua conduta na pandemia do coronavírus?
Resposta. Não estamos prontos para entender exatamente como o mundo está reagindo e por que alguns países vão bem enquanto outros vão mal. Estamos aprendendo isso enquanto acontece. Sobre recorrer ao Tribunal Penal Internacional, a Corte exige que seja provada a intenção de cometer um crime contra a humanidade. Para ter um crime julgado em Haia, precisa ter sido demonstrada a intenção. Genocídio é provado pela intenção de destruir um grupo. Crimes contra a humanidade pressupõem uma política para conduzir um ataque contra a população. É preciso provar a intenção. A pandemia é uma oportunidade de pensar como devemos ajustar a arquitetura legal e de pensar como devemos usar a tecnologia para resolver esses problemas.
P. Como ficaria demonstrada a intenção de cometer um crime contra a humanidade?
R. A lei diz que crimes contra a humanidade pressupõem que tenha ocorrido uma política para cometer um ataque de larga escala ou sistemático. Precisa ter tido um plano. Isso precisa ser provado. É uma situação muito excepcional. Nem tudo pode ser resolvido pelo direito penal. Por isso pessoas votam. O Congresso pode remover líderes do poder. O controle pela lei penal é o último. Se tiver um plano de usar o coronavírus para exterminar populações, é diferente. É preciso provar um plano de exterminar a população. Não é suficiente negligência ou opinião pública divergente.
P. De que maneira esses planos foram provados em outros casos?
R. No caso de [Adolf] Eichmann[líder nazista julgado em Jerusalém pelo holocausto], foi necessário provar que houve uma reunião secreta para adotar a solução final [plano nazista de extermínio de judeus]. Na Argentina, quando condenamos os generais, revelamos os planos secretos deles. No caso de [Omar] al-Bashir, ele deu instruções oficiais para as Forças Armadas e protegeu os executores. Para abrir um processo criminal por genocídio dizendo que a pandemia foi usada como arma ou ferramenta, é preciso demonstrar que houve um plano nisso.
P. Isso precisa ser demonstrado mesmo para a abertura de uma investigação em Haia?
R. Os promotores do TPI precisam ter base razoável para acreditar que o genocídio ocorreu para começar uma investigação.
P. O que você achou dessa possibilidade de julgamento em Haia ter sido mencionada por um ministro da mais alta corte do Brasil?
R. O ministro soube atrair atenção para o problema. Marcou sua posição.
P. Como você avalia a ação de líderes que se igualam a Bolsonaro no trato da pandemia, como os do México, Nicaraguá, Bielo-Rússia e Turcomenistão?
R. Como promotor do TPI, monitorei líderes que cometeram crimes para ficar no poder, como Omar al-Bashir, e outros que não cometeram. Há diferenças. Desde o século XVIII aprendemos a preservar direitos em nível de Estados nacionais, mas agora no século XXI precisamos preservar os direitos de uma maneira que não estamos preparados. Celebramos inovações tecnológicas, mas faltam inovações em arquiteturas institucionais. A pandemia mostrou que precisamos dessas inovações. Não precisamos ser um Estado global, mas temos que aprender a usar tecnologias para melhorar o modo como cada pessoa se protege e como cada nível de autoridade possa fazer algo. Isso é novo. Não sabemos fazer isso. Pessoas acham que um líder vai resolver isso. Por isso, populistas ascendem ao poder.
P. Por que você acha que temos um arcabouço institucional tão fraco?
R. O voto não é suficiente para garantir direitos para todo mundo. Temos que continuar criando ferramentas para proteger pessoas. Ainda estamos vivendo no século 18. Temos que ajustar e melhorar instituições. Do contrário, pessoas vão recorrer a líderes autoritários. Os iPhones mudam a cada ano. Mas leva séculos para instituições mudarem. Em 1873, foi a primeira vez que propuseram a criação de uma corte penal internacional e isso levou 130 anos pra implementar. Há um desafio de como colocar novas tecnologias a serviço das pessoas e não dos governos. As tecnologias estão matando melhor e interferindo em eleições. Podemos colocar tecnologias a serviço das pessoas, incluindo dos mais pobres? Esse é o desafio.
El País: 'Nunca traí nem Dilma, nem ninguém. Especialmente não traí a mim mesmo', diz Temer
Ex-presidente diz que não pretende seguir movimentos de oposição a Jair Bolsonaro e refuta a ideia de que tenha dado início à militarização da Esplanada dos Ministérios
Afonso Benites, Carla Jiménez e Rodolfo Borges, do El País
Quando Michel Temer (Tietê, São Paulo, 1940) deixou a presidência do Brasil em 2018, parte da população o via como um golpista, um traidor da presidenta Dilma Rousseff (PT), de quem era vice até 2016. Uma elite econômica cansada do PT e protestos da centro direita culminaram com o impeachment de Rousseff e alçaram Temer à presidência. Teve apoio dessa mesma elite e do Congresso, mas sempre teve a popularidade baixa. Deixou o Governo com 7% de aprovação.
Sucedido por Jair Bolsonaro, um radical de direita, o político do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) passou a despertar nostalgia. Com gestos suaves , aos 79 anos volta ao debate público na onda das entrevistas por videoconferências que se multiplicaram na pandemia. Diz ter participado de mais de 60 entrevistas online nos últimos meses. Em todas, evita criticar seu sucessor diretamente. Sobre seu passado, nega que tenha traído a mulher que o fez vice-presidente, ou que tenha atuado a favor de sua destituição. “Eu fiz o que pude pelo Governo”. Temer é alvo de vários processos na Justiça por suspeita de corrupção, alguns derivados de investigações da Lava Jato. Leia os principais trechos da entrevista.
Repercussão mundial da covid-19 do presidente
Houve repercussão nacional e internacional, forte popularidade do seu nome — não quero dizer se é positiva ou negativa — dele e do Brasil. Não escondeu o fato. Esperamos que ele logo melhore, adote métodos científicos para se curar, importante para ele e para o país. O país precisa saber que o presidente adotou critérios médicos. [Bolsonaro falou publicamente que toma cloroquina, medicamento sem comprovação de que funciona no combate à doença].
Por que tirou o nome de um protesto pró-democracia
Não desisti da defesa da democracia. Toda vez que falo, saliento e enalteço o papel fundamental, é a derivação da própria Constituição. Me pediram um vídeo para o movimento Direitos Já. O condutor desse projeto, Fernando Guimarães, me telefonou para dizer que estava pegando declarações de umas 100 pessoas, que iam sustentar o conceito de democracia e vida, no confronto que houve entre vida e economia [debate aberto em função da pandemia]. Eu disse que faria. Mas depois eu vi que era um movimento de oposição a Bolsonaro. Um ex-presidente tem de ser muito discreto. Digo o que é importante ao país, mas eu não quero entrar numa campanha a favor deste ou aquele. Quando vi que era um movimento contra Bolsonaro, contra o presidente, eu decidi que não ia participar. Não porque eu seja a favor ou contra Bolsonaro, mas não quero participar de nenhum movimento a favor ou contra. O [ex-]presidente Sarney também não participou, nem o presidente do Supremo. Não tem lado. O lado é a favor da democracia. Mas quando vi que era movimento de natureza política eu confesso que não me senti à vontade.
Brasil e a democracia hoje
Falar da defesa da democracia é nada mais que cumprir a Constituição Federal. Veja que no Brasil não é apenas um Estado democrático ou um Estado de Direito. Na ciência política são expressões mais ou menos equivalentes. Como constituinte, queríamos tanto reforçar tanto a ideia da democracia que dizíamos Estado democrático de Direito. Quando me perguntam se a democracia corre risco, eu confesso que não acho que corre. Acho que as instituições estão funcionando adequadamente. Enquanto for assim, não há risco para a democracia. Em síntese, temos de defender a democracia, mas eu não entro em movimento político que vise derrubar a A ou B ou C.
Comportamento de Bolsonaro
Em entrevistas, e a interlocutores do presidente que me pediam alguns palpites, eu dizia com toda franqueza que ele não podia falar na saída do Palácio da Alvorada. Ele tem 50, 100 apoiadores, para um Brasil que tem 211 milhões de habitantes. A palavra do presidente no presidencialismo é muito forte. Ela faz a pauta do país. Você não pode fazer a pauta, a agenda do país às 8h30/9h00 da manhã. Entra muitas vezes num confronto. Não faz bem ao país. Ele tem de saber que é presidente da República, a palavra dele é fortíssima e repercute em todo o país. Eu sugeri o que fiz no meu Governo. Eu tinha um porta-voz que ao final do dia, começo da noite, dizia o que foi feito. E eu dava uma coletiva uma vez por semana. Mas não pode todo dia. Segundo ponto. Não tem sentido o presidente comparecer a eventos onde uns poucos defendem o fechamento do Supremo, do Congresso, porque contradiz a Constituição. Você pode até não dizer nada contra os poderes, mas um movimento em que há faixas negativas não pode ser prestigiado. Intervenção militar? Tire isso da frente. Não há a menor possibilidade.
Forças Armadas “não têm a menor intenção de tomar o poder”
Tive muito contato com as Forças Armadas durante a presidência da Câmara, a vice-presidência, e como presidente da República. Eles não têm a menor intenção de tomar o poder. Pelo contrário, sempre me diziam que eram servidores da Constituição Federal. Em 2016, houve no final do ano muitas rebeliões de presídio, eu chamei os comandantes das Forças Armadas, juntamente com o ministro da Defesa. Falei a eles que precisaria muito deles, para haver varredura nos presídios. O [comandante do Exército, Eduardo] Villas Boas me disse. “Presidente o senhor é o comandante das Forças Armadas. Diga o que devemos fazer”. A partir daí eu verifiquei que eles eram cumpridores rigorosos do texto constitucional. Não há a menor possibilidade [de intervenção]. De uns 20 dias para cá, o presidente acabou não fazendo mais esses gestos [participando de atos antidemocráticos] porque as palavras são comprometedoras, elas comprometem a sua ação.
Militarização em seu Governo
Eu não tive militares em um número imenso no meu Governo, ao ponto de dizer que eu inaugurei uma fórmula para trazer os militares ao Governo [Temer quebrou a prática, que existia desde o Governo FHC (1995-2002) de colocar um civil como ministro da Defesa] . Quero ressaltar o seguinte, eu nunca fiz e nem faço distinção entre militares e civis. São todos brasileiros. O militar quando vai ocupar uma função civil no ministério ele está desempenhando uma atividade civil. O risco, o perigo é que ele chegue lá como militar e se comporte como militar e daí queira dar golpe como militar. Isso é perigoso. Mas se você colocar um militar preparado, ajustado à democracia, numa função civil, ele passa a exercer uma atividade civil.
Calmaria depois da detenção de Fabrício Queiroz
Se essa detenção [do pivô do investigação de corrupção contra Flávio Bolsonaro] gerou isso no presidente, acho que foi um fato positivo. Se em função disso que ele parou, melhor para ele e melhor para o país. Não ajudava o país, nem o Governo e nem ele. Nesses 20 dias, ele percebendo que a coisas melhoram com mudança de atitude creio que, por sabedoria política, ele continua no mesmo diapasão. São palpites, mas sabedoria política revela que se deu certo, vamos continuar.
Aliança com o Congresso, que antes rejeitava
Executivo tem essa denominação porque executa a vontade popular. Quem vocaliza essa vontade? É a lei. Quem produz a Lei? O Legislativo. Essa coisa de achar que presidente pode tudo é fruto de nossa política institucional que vem do Brasil Colônia até hoje, achando que concentração de poder reside na figura do chefe do Estado e de Governo. Não é assim. A Constituição diz que quem governa é Executivo e Legislativo e se houver controvérsia, quem soluciona é o Judiciário. Necessariamente, acho que ele vai ter que trazer Congresso para governar com ele.
Entrega de cargos com o Centrão
Acho que isso é um preconceito que não deve existir. Veja, quando digo trazer Congresso para governar com ele, nada impede que congressistas indiquem nomes. Quando se assume a presidência, há 450, 500 cargos para preencher. Cargos de confiança, direções. O presidente não tem 500 nomes na cabeça para colocar no lugar. Nada impede que agentes públicos indiquem nomes. Cuidados a se ter são os critérios técnicos e éticos. Quem esta no Congresso não foi levado pela centelha divina. Foi levado por quem tem poder, que é o povo. O regime é republicano porque se ancora na ideia de temporalidade de mandato. Se não der certo, elimina e coloca outro. Sou contra rótulo. Centrão, direita, esquerda. Não existe mais. O que interessa ao povo é o resultado. Se for positivo, muito bem. É questão de coerência política também. Vamos dizer que tais partidos pertencem ao Centrão. Portanto, tomo liberdade de colocar entre aspas e dizer “é gente que não vale nada”. De “não vale nada” para indicar um nome também tem que coerentemente dizer “não quero o voto dessa gente, não”. Quando tiver projeto meu lá, quando tiver conversão de medida provisória, não quero esses votos. Você imaginou o que é perder 150, 160, 170 votos no Congresso Nacional?
Protesto contra reforma
Eu nunca tive povo na rua contra mim, né? Você vê as denúncias que houve, não havia um brasileiro na frente do Congresso Nacional. Houve, sim, na reforma da Previdência, que nós brigamos por ela. E tanto brigamos que conseguimos convencer o país e o Congresso de sua indispensabilidade, que no começo do Governo Bolsonaro nós conseguiram aprovar a reforma da Previdência. Ali, sim, houve movimentos o pretexto era o de que a reforma, falsamente se alardeou que nós íamos tirar direitos dos mais pobres, quando, na verdade, quem fez aquele movimento, foram os privilegiados do serviço público. Foram aqueles que ganhavam 30.000, 40.000, 50.000 [reais] e não queriam reforma da Previdência de jeito nenhum. Naquele período, sim, houve um movimento de rua. Mas não era contra o meu Governo, era contra a reforma da Previdência.
O movimento Fora Temer
O que era o Fora, Temer? Era um movimento político. Com muita legitimidade, até. Eu que sou um democrata, eu digo, é natural de quem perdeu o poder. Tem de combater mesmo que está no poder. Então, eu aceitava com maior naturalidade. Em uma das últimas entrevistas que eu dei antes de sair da Presidência, um colega de vocês me perguntou: “O que você vai mais sentir falta da Presidência?”. Eu vou sentir falta do Fora, Temer. Porque eu já estarei fora, mesmo. Quando eu estava aqui ainda tinha o fora, Temer.
O impeachment de Dilma
Às vezes querem insinuar que a ex-presidente Dilma é incorreta, eu faço questão de, nas entrevistas, dizer que a presidente Dilma no plano pessoal era extremamente honesta. Ela não tem uma desonestidade a macular a vida dela. Aqui no Brasil, a pessoa, quando está no outro lado, quer destruir o outro. Isso é muito ruim para a nossa cultura. Eu faço essa observação positiva em relação à senhora ex-presidente. É claro que ela teve problemas, as pedaladas [fiscais], as dificuldades com o Congresso, as milhões de pessoas [em protestos] nas avenidas. Porque quem derruba presidente não é o Congresso Nacional. Quem derruba é o povo nas ruas. O povo nas ruas sensibiliza o Congresso, e daí o Congresso derruba o presidente.
A atuação na destituição da presidenta
Ela [Dilma] vai se recordar que eu fui uma vez ao Palácio da Alvorada. O presidente da Câmara [Eduardo Cunha] tinha me procurado e dito: “O PT está me apoiando, portanto eu vou arquivar todos os pedidos de impeachment”. Eu fui a ela e disse: “Presidente, durma tranquila. O presidente da Câmara acabou de me dizer isto, etc., etc., etc.” Ela disse: “Ô, coisa boa, Temer. Excelente”. Até chamou um outro ministro para contar isso. Mas tempos depois o PT começou a fustigar o presidente da Câmara e o presidente que, tinha me dito que havia um dos pedidos que era quase impossível negar sequência, que ele achava que ia dar questão judicial, ele abriu o pedido de impeachment. Ou seja, com isto quero evidenciar que, evidentemente, não trabalhei pelo impedimento. Tem mais, quando começou o processo de procedência da acusação na Câmara dos Deputados, eu vim para São Paulo. Fiquei aqui um bom período. Só voltei uns três ou quatro dias antes da votação porque estava começando a pegar mal aquela história de eu não estar em Brasília. Em várias oportunidades eu era chamado exatamente para isso, e só para isso. Eu era chamado quando havia dificuldades junto ao MDB. Eu ia lá e acertava a situação toda. Portanto, apoiando o Governo. Eu fiz o que pude pelo Governo.
- Poderia ter feito algo mais?
Não sei o que poderia fazer. Vou dizer a vocês. Uma ocasião, o presidente Lula me ligou durante o processo [para falar] sobre o MDB. Eu disse: “Presidente, eu vou examinar”. Até encontrou-se comigo em Congonhas. E eu chamei o pessoal do MDB. Mas a coisa tinha tomado tal vulto que eu percebi que seria quase impossível segurar aquilo lá [o impeachment].
“Nunca traí nem a presidente, nem ninguém”
Essa palavra traição eu nunca ouvi no PT. Eu ouvi a palavra “golpe”. Eles até têm certa consideração por mim. Eles nunca individualizam demais. Quando falam em golpe, entendem que foi um golpe de vários partidos. Um golpe parlamentar, etc. Traíra, confesso que é a primeira vez que eu ouço a palavra. Eu nunca traí nem a presidente, nem ninguém. Especialmente não traí a mim mesmo, as minhas convicções.
Oposições aos presidentes
Qual foi o Governo que não teve um “fora presidente”? Eu não me lembro de nenhum, seja num governo autoritário, seja num governo democrático que não tenha tido um movimento fora fulano. Eu sei que essas coisas que eu digo as pessoas não levam a sério. Porque aqui no Brasil instalou-se muito essa coisa do punitivismo, do ódio contra ódio. Muitas coisas que eu digo, eu digo pensando o seguinte: quem está me ouvindo está achando que eu vivo em Marte.
Papel do Governo Bolsonaro
O papel do Governo Bolsonaro, e ele vinha fazendo, era dar sequência ao meu Governo. Você sabe que ele, em várias oportunidades até, ele critica os governos anteriores. Mas no meu Governo ele diz: se não fosse o Governo Temer ter feito isso, aquilo, etc., etc., etc. Ele deu sequência ao meu Governo. Ele levou para a Infraestrutura uma pessoa formidável, que me ajudou muito na Presidência, o Tarcísio de Freitas, que era o secretário-executivo do PPI (Programa de Parceria e Investimentos). Tempos atrás ele me disse: olha presidente, nós estamos fazendo as coisas que estavam pré-datadas no seu Governo. O meu Governo não foi de quatro anos, de oito anos. Foi um governo de dois anos e meio. Um Governo curto. Eu acho que ele estava dando sequência. E tanto é verdade que vocês viram que a inflação continuou estável, ficou em 3,75%, os juros continuaram a cair. O Governo ia caminhando. Aí, veio a pandemia. A pandemia, realmente, estragou tudo. Vai precisar começar do zero.
Centro não se une
Se formos nos ater a esses conceitos, de siglas, sabe o que acontece com o centro, ele é muito atomizado, ele não consegue se unir. Cada um quer tomar o seu caminho. Para voltar ao campo dos rótulos, a esquerda é muito unida. Quando ela consegue se unir, ela vai em frente. A extrema direita também consegue se unir. O centro, não. Pode pegar as figuras hoje detectáveis como “centráveis”. Pode verificar que cada um tem o seu projeto. Está difícil. Talvez, para ficar no campo dos rótulos, tivesse um de extrema esquerda, um de extrema direita e um de centro. Isso seria a razoabilidade eleitoral. Neste momento eu não vejo o centro capaz de ter essa unidade desejável, mas de difícil execução.
Justiça parcial ou imparcial a partir da Lava Jato
A Lava Jato é um vocábulo que se deu para uma coisa que a Constituição proíbe. A Constituição proíbe a improbidade administrativa. Resolveu-se rotular-se cinematograficamente, jornalisticamente aquele combate à impunidade como Lava Jato. Se for restringir-se à ação do pessoal que trabalhou na Lava Jato. De fato, a Justiça imparcial é uma coisa fundamental. Sabe para que existe o Judiciário? Para que não seja parte interessada no litígio. Isso é parte do sistema democrático. Você é um cidadão comum, você tem um problema qualquer, você sabe que pode bater às portas de um poder qualquer, o Judiciário, que é imparcial. O risco que eu corro aqui é dizer: Temer é contra a Lava Jato. Eu não sou contra a chamada Lava Jato. Tenho desprezo pelo vocábulo, mas não tenho desprezo pela ideia de combate à impunidade. Pelo contrário, acho que eles prestaram um papel. Eles despertaram bastante fortemente a ideia de combate à improbidade, à corrupção. Isso foi útil. Agora, quando começa a se tratar diferentemente pessoas da área pública, especialmente, é claro que fere esse princípio da imparcialidade.
Legado imediato do Governo Temer
Não é daqui a dez ou vinte anos, não. Eu estou sendo lembrado atualmente como um presidente que fez reformas no país, que recuperou a economia, ainda que palidamente. Eu espero que, mais adiante, realmente, as pessoas possam dizer que eu fiz as reformas indispensáveis ao país. Uma crítica que faço ao Governo Bolsonaro, não uma crítica, uma observação, é de ele ter juntado os ministérios da Justiça com o da Segurança Pública.