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Bolsonaro ainda não tem votos no Senado para colocar de pé Auxílio Brasil

Levantamento aponta que há, neste momento, ao menos 39 senadores contrários à PEC dos Precatórios

Afonso Benites / El País

Governo Jair Bolsonaro corre contra o tempo para conseguir a aprovação da PEC dos Precatórios no Senado, onde tem se deparado com frequentes perdas de apoio. O líder do Governo, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), foi escolhido como o relator da proposta para tentar costurar um acordo com seus colegas, na tentativa de amenizar o projeto aprovado pela Câmara dos Deputados. Apelidada de PEC do Calote, a proposta prevê o não pagamento imediato de parte das dívidas judiciais do Executivo e a destinação de parte desses recursos para o Auxílio Brasil, o programa assistencialista eleitoreiro criado para substituir o Bolsa Família e dar sobrevida a Bolsonaro nas urnas em 2022.

Para ser aprovado, o projeto precisa do apoio de três quintos dos senadores —49 entre 81. Hoje, já há ao menos 39 que se declaram contrários à proposição e 42 ou não se manifestaram ou são favoráveis, conforme levantamento feito pela reportagem junto às bancadas. Oficialmente, contudo, o Planalto calcula que tem entre 50 e 52 apoiadores. De qualquer maneira, a margem é reduzidíssima.

Cálculos da Instituição Fiscal Independente, um órgão do Senado, mostram que a PEC abriria um espaço fiscal de 92,9 bilhões de reais no Orçamento do próximo ano. Esse valor seria dividido da seguinte maneira: 46,9 bilhões de reais seriam gastos com o Auxílio Brasil, 21,5 bilhões de reais com despesas já previstas nos gastos e mais 24,5 bilhões de reais no outras despesas não planejadas até o momento, como reajuste para o funcionalismo público —anunciado por Bolsonaro há dois dias— ou o pagamento de emendas parlamentares. É um falso espaço fiscal, já que os precatórios deixariam de ser pagos em 2022, mas teriam de ser pagos nos anos seguintes. É uma bomba que Bolsonaro, com o possível aval do Congresso, deixará para os próximos Governos.

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Há dois pontos principais que dificultam a votação. Um deles é o fato de que o Auxílio Brasil é um programa temporário, enquanto seu antecessor, Bolsa Família, era permanente. Além disso, falta clareza na destinação dos recursos que serão obtidos com o calote aos precatórios. “Estamos construindo um entendimento e estou otimista quanto a ele”, diz o relator Coelho.

“Da maneira como está, não tem votos para aprovar no Senado”, alerta a líder da bancada feminina, Simone Tebet (MDB-MS). Pela previsão governista, o projeto será levado à comissão de Constituição e Justiça no Senado no próximo dia 23, e ao Plenário no dia 30 de novembro. O projeto tem de ser aprovado antes do Orçamento Geral da União, que deve ser votado antes do início do recesso parlamentar, marcado para 22 de dezembro. Se houver qualquer modificação na peça aprovada pela Câmara, ela precisa retornar para análise dos deputados. Há a perspectiva de um esforço concentrado na primeira semana de dezembro para votar propostas emperradas no Congresso.

Quando aprovou a proposta na Câmara, o Governo Bolsonaro abriu os cofres das emendas do relator —apelidadas de orçamento secreto— para convencer os deputados. Agora, com a proibição pelo Supremo Tribunal Federal do dispositivo, tecnicamente denominado RP9, a Administração terá de ceder em partes do texto. É nesse sentido que o emedebista Coelho negocia com três senadores que apresentaram PECs paralelas: Alessandro Vieira (Cidadania-SE), José Aníbal (PSDB-SP) e Oriovisto Guimarães (Podemos-PR).

O trio, que oscila entre o apoio e a oposição a Bolsonaro em questões fiscais, tributárias e administrativas, costurou nesta quarta-feira uma proposta conjunta de alteração da PEC. Nela, preveem que o Auxílio Brasil se tornaria um programa permanente, além de extinguir dois tipos de emendas, a do relator (RP9) e a de comissão (RP8). “É preciso pensar em alternativas que encerrem de vez com o absurdo aprovado pela Câmara dos Deputados, focando nos problemas que o Brasil enfrenta, de verdade, no Orçamento”, diz Vieira.

A proposta também mantém o teto de gastos intacto e prevê destinar 99 bilhões de reais para auxílios assistenciais de 400 reais que beneficiariam até 21 milhões de cidadãos. “Podemos ter responsabilidade social sem cometer nenhuma irresponsabilidade fiscal”, declarou Guimarães.

Mapa da exclusão

Com o fim do Bolsa Família, o PT, principal partido de oposição ao Governo, apresentou nesta quarta-feira um levantamento em que demonstra quantas pessoas deixaram de receber ajuda do Governo. A comparação é entre o auxílio emergencial, pago até o mês passado, e o Auxílio Brasil, que passou a ser pago nesta semana graças a um remanejamento orçamentário.

Segundo dados levantados pelas bancadas do PT no Senado e na Câmara junto ao Ministério do Desenvolvimento Social, 24,8 milhões de brasileiros deixaram de receber os 400 reais referentes ao Auxílio Brasil. Em 2021, ao menos 39,3 milhões de brasileiros receberam o auxílio emergencial. A redução foi de 63%. O Estado mais impactado pelo corte no benefício foi São Paulo, onde 77% dos que recebiam o auxílio emergencial deixaram de receber o Auxílio Brasil.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-11-18/bolsonaro-ainda-nao-tem-votos-no-senado-para-colocar-de-pe-auxilio-brasil.html


Terras indígenas não comprometem áreas disponíveis e produção agropecuária

Tese do marco temporal pode significar um retrocesso na demarcação de terras dos povos originários

Sonia Guajajara, coordenação-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) / Luís Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib / Instituto Socioambiental / El País

Nesta quinta (26), o Supremo Tribunal Federal (STF)iniciou a discussão sobre o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs), no mais importante julgamento da história do Brasil sobre o assunto.

A corte vai apreciar o “marco temporal”, interpretação defendida por alguns políticos ruralistas que restringe os direitos indígenas. De acordo com ela, os povos indígenas só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, precisariam estar em disputa judicial ou conflito comprovado pela área na mesma data. A tese é perversa porque desconsidera expulsões e outras violências sofridas por essas populações. Além disso, ignora o fato de que eram tuteladas pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente até 1988.

Os defensores do “marco temporal” dizem que há “muita terra para pouco índio”, que as demarcações comprometem a produção agropecuária e que, para atender a demanda por territórios, no limite, teríamos de devolver até Copacabana aos povos originários, porque todo o país um dia foi deles. Nada disso é verdade.

Hoje, 13,8% do território brasileiro é ocupado por TIs, considerando os procedimentos demarcatórios já abertos e dados publicados no Diário Oficial da União (DOU). Parece muito, mas a média mundial é maior: 15%, segundo estudo publicado por 20 pesquisadores de várias nacionalidades, na revista Nature Sustainability, em 2018.

As áreas privadas somam três vezes mais ou 41% do Brasil, segundo o IBGE. Cerca 22% do território nacional é ocupado com pasto - mas metade disso tem algum grau de degradação - e 8% com agricultura, conforme o projeto MapBiomas. Ou seja, parte das terras pode ser priorizada para recuperação, reduzindo ainda mais a demanda por novas ocupações.

Quem ataca os direitos indígenas também omite que somos campeões de concentração fundiária. Cerca de 1/5 do país é abarcado por 51,2 mil propriedades ou 1% do total de estabelecimentos rurais, ainda de acordo com o IBGE. Na verdade, o número de superlatifundiários é menor, porque muitas áreas estão em nome de parentes ou prepostos.

Disparidades e contradições

Disparidades e contradições não param aí. Mais de 98% da extensão das TIs fica na Amazônia Legal, muitas vezes em locais remotos e sem aptidão para a agropecuária extensiva. E apenas 0,6% do resto do Brasil é ocupado por indígenas. A principal demanda por demarcações está fora da região amazônica.

Enquanto cerca de 62% dos 517,3 mil moradores de TIs estavam na Amazônia em 2010 (último dado disponível do IBGE), o restante tem de se espremer em áreas minúsculas fora de lá. Por exemplo, há 225 mil hectares em reconhecimento para os Guarani em Mato Grosso do Sul. A densidade populacional dessas áreas é de 27 habitantes/km2, quatro vezes maior que a do estado (6 habitantes/km2).

Onde há mais conflitos com TIs, o percentual do território ocupado por elas também é ínfimo, ainda considerando procedimentos demarcatórios já iniciados. No Rio Grande do Sul, é de 0,4%, enquanto as propriedades rurais ocupam 77%; e assim por diante: BA (0,5% e 49%, respectivamente); PR (0,6% e 74%); SC (0,8% e 67%); MS (2,4% e 85%). A situação não é diferente em GO (0,1% e 77%), MG (0,2% e 65%) e SP (0,3% e 66%). Portanto entre os nove principais estados do agronegócio, em sete as TIs não passam de 1% do território (em MS, o índice é maior, mas ainda baixíssimo).

Em Mato Grosso, maior produtor agropecuário nacional, o percentual de território indígena atinge 16%, mas a demanda por demarcações é igualmente pequena. Por outro lado, como no resto do Brasil, os agricultores vêm ampliando a produtividade, ano após ano, independente dos conflitos fundiários.

Não é necessário ocupar ou desmatar mais, como repetem líderes como Blairo Maggi e Kátia Abreu. Mesmo se não fosse o caso, ainda restariam, pelo menos, 510 mil km2 de terras não destinadas no país - duas vezes o território do estado de São Paulo. Não há “muita terra para pouco índío” no Brasil! E ainda temos muito espaço para produzir, conservar e garantir justiça!

A imensa maioria dos mais de 5 milhões de produtores rurais brasileiros nunca viu um indígena, não está em conflito fundiário nem interessada em mais desmatamento ou em ocupar mais terra. É possível seguirmos como potência na produção de alimentos e atender a demanda por demarcações, respeitando os direitos indígenas previstos na Constituição.

Fonte: Instituto Socioambiental / Texto publicado originalmente no site do El País, em 25/8/2021
https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa/terras-indigenas-nao-comprometem-areas-disponiveis-e-producao-agropecuaria


Bruno Paes Manso: 'Os Bolsonaro sempre foram os representantes ideológicos dos grupos milicianos'

Autor do livro ‘A República das milícias’, Bruno Paes Manso traça as origens dos esquadrões da morte até a reverberação no Palácio do Planalto. Obra traça importância de Fabrício Queiroz para consolidar votações de clã presidencial em bairros cariocas

Gil Alessi, El País

Um terremoto silencioso começou no bairro de Rio das Pedras, localizado nas franjas da floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, na virada para os anos 2000. Aos poucos, suas ondas sísmicas se espalharam por comunidades da baixada fluminense, da zona oeste, chegando até mesmo à Assembleia Legislativa e ao Tribunal de Contas do Estado. Os tremores tiveram reflexos também em Brasília. Foi naquela comunidade pobre de ruas estreitas e trânsito caótico —onde posteriormente Fabrício Queiroz, pivô do escândalos dos Bolsonaro, iria se refugiar das autoridades— que nasceu uma das primeiras milícias do Rio. “Policiais que moravam na região criaram a milícia de Rio das Pedras, e estabeleceram as regras da economia informal dessas áreas”, escreve o jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso em seu livro mais recente, A República das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (Editora Todavia).

O que se seguiu foi uma expansão vertiginosa deste modelo de governança local, cujas marcas registradas são a cobrança de taxas dos moradores, venda de botijões com sobrepreço, controle sobre o transporte clandestino, loteamento irregular de terrenos e uma forte dose de violência contra quem viola as regras. Manso mostra como o medo da entrada do tráfico de drogas nas comunidades, aliado a uma polícia historicamente violenta, herança do tempo dos esquadrões da morte surgidos nos anos de 1960 e 1970, cimentou o terreno para a expansão das milícias em territórios onde o poder público era inexistente. Afinal, vale o bordão: “O poder não deixa vácuo”. Em momentos de crise política, como agora, as milícias se fortalecem: “Quanto mais desacreditadas as instituições, mais força ganham estes grupos, pois passam a ser fiadores da ordem nos territórios. Se você não tem para onde correr, estes grupos oferecem alguma proteção. E claro, impõe um domínio tirânico.”PUBLICIDADE

O autor também aborda a relação da família Bolsonaro com os grupos milicianos, encabeçada por Fabrício Queiroz, que abriu portas para os jovens candidatos da família nos batalhões de polícia e bairros controlados por milícias. Em comum, a crença na “violência redentora” como salvação para o Rio (e agora para o Brasil). “Os Bolsonaro sempre foram os representantes ideológicos dos grupos milicianos. Eles podem não ter uma ligação direta com os grupos que fazem negócios nestas comunidades, mas sempre fizeram discursos favoráveis a eles”, afirma Manso em entrevista ao EL PAÍS. “Seja o Flávio, que já falou em legalizar as milícias, ou o Jair, dizendo que elas trazem ordem. Então existem afinidades ideológicas, principalmente quanto ao uso da violência como ferramenta para estabelecer ordem nesses lugares”, diz o autor.

No livro fica claro o papel central que Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar de Flávio, teve para fortalecer o clã Bolsonaro junto a policiais e milicianos. “A articulação do Queiroz facilitou muito a vida dos Bolsonaro que se elegem pelo Rio [Eduardo disputa por São Paulo], principalmente nos primórdios”, explica Manso. Durante um bom tempo, “ele era a pessoa que fazia a ponte da família com a base eleitoral da Polícia Militar, da Polícia Civil, com policiais da zona oeste, e com os familiares dessas pessoas”. O batalhão onde Queiroz atuou, em Jacarepaguá, sempre foi muito ligado aos grupos milicianos, e o assessor circulava com desenvoltura nesse meio, entre paramilitares e militares.

A partir de 2014 Queiroz passa a desempenhar outro papel para a família Bolsonaro. “Quando começa a crise política pós-junho de 2013, com a Operação Lava Jato e tudo o mais, o discurso do Bolsonaro de guerra à corrupção e uso de violência começa a fazer sentido para um grupo maior de pessoas, não mais apenas para o nicho representado por Queiroz”, diz o autor. Neste momento o assessor passa a ser uma “peça burocrática no gabinete, responsável por organizar a rachadinha [o confisco de parte do salário dos funcionários. Flávio e Queiroz foram denunciados pelo crime, que negam ter cometido, e ambos conseguiram importantes vitórias no processo]”. “Mas o grande apelo eleitoral dos Bolsonaro deixa de depender dele”, afirma.

A aliança das milícias com grupos de traficantes evangélicos do Terceiro Comando Puro, que comandam o Complexo de Israel (onde religiões de matriz africana são proibidas), também é abordada no livro, traçando um panorama sombrio para o futuro do Rio de Janeiro, com uma espécie de milícia 2.0. “As milícias estão tentando fazer estas alianças, e a ligação com o tráfico me parece inevitável. É uma fonte de receitas das quais eles não parecem querer abrir mão”, diz Manso. O objetivo final seria alcançar uma hegemonia semelhante à que o Primeiro Comando da Capital tem em São Paulo, onde o grupo criminoso “conseguiu se tornar o governo do mundo do crime, com regras, protocolos e prazos de pagamento determinados pela organização. Eles profissionalizaram essa cena criminosa e se tornaram o Governo onde o Governo não chega”. É cedo para dizer, no entanto, que esta parceria irá se tornar a maior força do crime organizado do Rio: “O Comando Vermelho continua uma força enorme do Rio, com centenas de fuzis e um potencial de violência imenso. Então há um equilíbrio de forças por enquanto”.

No outro front da batalha das milícias pelo poder está a sempre presente necessidade de se infiltrar no Estado —e se tornar parte dele. Após uma primeira geração de líderes que se lançaram na política, como os irmãos Jerominho e Natalino Guimarães, acusados de fundar a milícia Liga da Justiça e que foram presos e destituídos de seus mandatos, agora os chefes paramilitares lançam mão de laranjas para disputar cargos públicos. “A influência destes grupos nas instituições do Estado é fundamental para que eles prosperem. O modelo de negócio das milícias depende disso: para que a milícia amplie seus negócios é preciso que existam pessoas nas estruturas do Estado que assumam esse cinismo, que façam vista grossa”. Ou seja, para que a milícia prospere, basta que o poder público não faça nada.

Para os grupos milicianos, existem oportunidades de ganho em quase todas as atividades comerciais, legais ou ilegais. “Eles se beneficiam de legislações que flexibilizam o monitoramento ambiental, para que possam lotear áreas de proteção, ou de fiscais corruptos, para erguer prédios sem os alvarás, como ocorreu em Muzema [em abril de 2019 dois prédios desabaram em Muzema, na zona oeste do Rio, deixando 24 mortos. As edificações foram erguidas por milicianos]. Sem falar do peso que a influência política exerce em um batalhão de polícia para que faça vista grossa diante de uma série de crimes cometidos”, aponta Manso.


El País: Biden reconhece como “genocídio” o massacre de armênios sob o Império Otomano

Com sua decisão, presidente dos EUA rompe com a linha de seus antecessores na Casa Branca, que evitaram falar em extermínio temendo prejudicar as relações com a Turquia

Antonia Laborde, El País

O presidente dos Estados UnidosJoe Biden, reconheceu neste sábado como “genocídio” o extermínio de mais de um milhão e meio de armênios nas mãos do Império Otomano. O anúncio foi feito no 106º aniversário do início do massacre. Com essa qualificação, o democrata rompe com seus antecessores da Casa Branca, que evitaram falar em genocídio temendo prejudicar as relações entre os Estados Unidos e Turquia. O anúncio de Biden aumenta a tensão entre os dois países, agravada depois da compra de equipamento militar russo por Ancara, dos casos de violações de direitos humanos e das intervenções militares na Síria e na Líbia.

“Todos os anos, neste dia, recordamos as vidas de todos que morreram no genocídio armênio da era otomana e reiteramos o compromisso de que essa atrocidade não volte a ocorrer”, afirmou em um comunicado Biden, tornando-se o primeiro presidente na história dos Estados Unidos a classificar de genocídio o massacre de armênios entre 1915 e 1923. Em 1981, durante um comunicado sobre o Holocausto, Ronald Reagan fez uma alusão ao genocídio armênio, mas se retratou sob pressão da Turquia, parceira de Washington na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Em 2019, o Congresso americano aprovou resoluções para reconhecer pela primeira vez o genocídio, mas Donald Trump —que mantinha boas relações com o presidente turco, Recep Tayyp Erdogan— não as levou em conta.

Segundo o comunicado da Casa Branca, Biden telefonou nesta sexta-feira para Erdogan, mas não mencionou o massacre do início do século XX. O presidente americano expressou seu interesse em uma “relação bilateral construtiva com áreas ampliadas de cooperação e uma gestão eficaz das divergências”. A transcrição turca da conversa telefônica indica que Erdogan manifestou suas objeções em relação ao apoio dos EUA às forças curdas na Síria, consideradas grupos terroristas por Ancara.

A Turquia, o Estado herdeiro do Império Otomano, reconheceu que muitos armênios morreram em combates com as forças turcas, mas se recusa a qualificar essas mortes como um genocídio e questiona o elevado número de vítimas. Ancara diz que eram tempos de guerra, que houve mortos dos dois lados e que os armênios mortos ficaram em torno de 300.000, mas os historiadores estimam que o total passou de um milhão e meio.

Grupos armênio-americanos, que pressionaram durante anos para que Washington qualificasse o massacre como “genocídio”, comemoraram a medida neste sábado. “A declaração do presidente Biden sobre o genocídio armênio marca um momento de importância crítica no arco da história em defesa dos direitos humanos”, afirmou Bryan Ardouny, diretor-executivo da Assembleia Armênia da América. “Ao se opor com firmeza a um século de negação, o presidente Biden traçou um novo rumo”, acrescentou em um comunicado.


El País: Heróis negros esquecidos pela História do Brasil

Enciclopédia reúne biografias de 550 intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... que foram escravos ou descendentes

Naiara Galarrafa Gortázar, El País

A cor da pele é provavelmente a única coisa que a vereadora de esquerda Marielle Franco, assassinada há três anos no Rio de Janeiro, e Chico Rei, um membro da família real do Congo que foi sequestrado com a família e alguns súditos para serem escravizados nas minas de ouro brasileiras no século XVIII, têm em comum. Graças à sua perícia no ofício, conseguiu comprar sua liberdade, a de outros e voltar a ser reconhecido como alguém importante. Ambos estão entre os 550 protagonistas da Enciclopédia Negra (Companhia das Letras), recentemente publicada no Brasil, que resgata histórias de mulheres e homens negros e mestiços esquecidos no relato sobre a construção nacional.

Mais da metade dos 210 milhões de brasileiros é composta atualmente por negros ou mestiços. Graças às cotas, no ano passado superaram os brancos nas universidades. Sempre viveram pior do que seus compatriotas brancos, apesar de a igualdade estar consagrada na lei e ao fato de que não houve segregação legal em tempos recentes como nos Estados Unidos. E agora o coronavírus vitima especialmente os afro-brasileiros. Sem o trabalho forçado de seus antepassados, as imensas riquezas geradas pelo açúcar, o ouro e o café nunca teriam existido.PUBLICIDADE  

A historiadora Lilia Schwarcz, uma das coautoras, explica por telefone: “Queremos dar alma e rosto a esses heróis cotidianos que foram silenciados e apagados pela história”. A obra “é parte do ativismo negro para recontar de maneira mais plural a chamada história universal, que é muito colonial, muito branca e muito masculina”, acrescenta Schwarcz, considerada uma referência no Brasil.

A enciclopédia começa com Abdias do Nascimento (1914-2011) e termina com Zumbi (1655-1695) em um percurso que vai do século XVI ao XXI. Ou seja, de um intelectual, artista e deputado que criou o Teatro Experimental do Negro e deu aulas nas Universidades de Yale e Ifé (Nigéria) até um ex-escravizado do Brasil colonial que liderou uma república de libertos que foi convertido séculos depois no grande símbolo da resistência negra aos portugueses e holandeses. Todo dia 20 de novembro, data da execução de Zumbi, o Brasil comemora o Dia da Consciência Negra.

Junto com personalidades conhecidas que entraram nos livros escolares nos últimos anos, os autores incluíram um rico mosaico de pessoas desconhecidas representando os milhões de pessoas escravizadas e seus descendentes. A ideia dos autores é contar “a potência de tudo o que fizeram, que foi muito mais do que sobreviver”. Alertam que em alguns casos os fatos se confundem com a lenda.

Os protagonistas, apresentados em ordem alfabética, são intelectuais, ativistas, líderes religiosos, músicos, esportistas, políticos, cientistas, amas de leite... As conquistas, façanhas e vitórias descritas compõem uma avassaladora diversidade de trajetórias e origens, coisa pouco frequente neste país continental muitas vezes ensimesmando no eixo São Paulo-Rio de Janeiro.

Afra Joaquina Vieira Muniz, que está na capa do grosso volume, ilustra como era complexa a rede da escravidão no último dos países das Américas a aboli-la, em 1888. Nascida em Salvador, era uma pessoa escravizada cuja liberdade lhe foi dada por um antigo senhor ao casar-se com ela. Quando este morreu, por volta de 1870, legou-lhe todos os bens e duas mulheres que ficavam livres com a condição de cuidar da viúva até sua morte. As duas denunciaram Afra Joaquina à Justiça por maus-tratos, mas perderam a ação e tiveram de ficar com ela.

Pretextato dos Passos abriu em 1885 a primeira escola para crianças negras, que não eram aceitas nas escolas de brancos; Benjamim de Oliveira foi o primeiro palhaço negro; a professora Antonieta Barros, deputada pioneira em 1935 na muito branca Santa Catarina. Luiz Gama, que o próprio pai vendeu como pessoa escravizada, foi revendido, conseguiu fugir para se tornar funcionário público e depois advogado. Obteve nos tribunais a liberdade de outras pessoas antes de morrer em 1882 aos 52 anos.

Claudia Silva Ferreira, uma faxineira que tinha quatro filhos, se tornou uma das milhares de vítimas de balas perdidas em tiroteios durante operações policiais em 2014. Ferida, foi colocada por alguns policiais no porta-malas do carro patrulha dizendo que a levariam ao hospital. Mas a tampa se abriu e ela caiu. Foi arrastada por 400 metros até que os policiais perceberam. Morreu antes de chegar ao hospital e estava prestes a se tornar mais um número de uma volumosa estatística. Mas, como aconteceu agora com George Floyd, alguém filmou a cena macabra e essa morte adquiriu importância social.

Alguns dos resenhados são personalidades destacadas que durante décadas foram brancas aos olhos de seus compatriotas. O caso mais marcante é o de Joaquim Machado de Assis (1839-1908), o grande romancista, fundador e presidente da Academia Brasileira de Letras, que em sua imagem mais conhecida foi imortalizado como um branco. Enorme foi a surpresa de muitos quando descobriram a verdade graças à campanha de uma universidade.

A historiadora destaca que queriam publicar a Enciclopédia Negra exatamente agora porque 2022 é um ano importante. O Congresso tem previsto avaliar as cotas universitárias, que nos últimos anos engendraram uma geração de graduados negros e pobres, o que representa uma profunda mudança nesta sociedade racista e classista. Também se comemora o bicentenário da independência do Brasil. E o centenário da Semana de Arte Moderna, que deu personalidade própria à arte moderna brasileira, mas excluiu o escritor Afonso Lima Barreto pela cor da pele.

As biografias são resultado da pesquisa de Schwarcz e de seus coautores —o historiador Flávio dos Santos Gomes e o artista plástico Jaime Lauriano— e, sobretudo, de centenas de teses de doutorado inéditas. O livro foi publicado por uma das principais editoras do Brasil, a Companhia das Letras, cofundada pela historiadora.

As mulheres são maioria e todas as 550 têm nome, mas em alguns casos foi impossível saber seus sobrenomes. E como não havia imagem alguma de muitos, encarregaram a 36 “artistas, negras, negros e negres”, nas palavras dos autores, que lhes dessem um rosto. Esses retratos de protagonistas que abrangem profissões, origens, gêneros e orientações sexuais diversas serão apresentados em uma exposição na Pinacoteca de São Paulo assim que a pandemia permitir.


Monica de Bolle: Pensar o Brasil é largar os corrimões

Visto de longe e de perto, o Brasil dos economistas e da imprensa tradicional permanece preso a dogmas

O título desse artigo serve para o mundo: para dar conta do mundo, é preciso soltar os corrimões. Pensar sem corrimões é das imagens de Hannah Arendt que mais gosto, embora, como outras metáforas e conceitos da autora, tenha se tornado um pouco banal nos nossos tempos. O ato de pensar, isto é, de refletir com distanciamento, mas também com sensibilidade, precisa ser livre. Se não for livre, caso precise de muletas ou de limites pré-estabelecidos, não será pensamento. O pensamento precisa da liberdade porque, ao pensar, nós nos movemos. Há muito me debato com os limites do pensamento no Brasil. O livre pensar não parece ser do gosto nacional. As pessoas exercitam algo que não é bem pensamento, mas reflexões circunscritas, que têm lugar dentro de espaços convenientes e coniventes. Vozes são uníssonas e debate não há.

Deixei o Brasil em 2014. Naquela época, já escrevia e participava do debate público havia alguns anos. Também já havia ficado claro para mim que vozes dissonantes incomodavam mais do que deveriam, se os discordantes as quisessem ouvir. Nessa época, eu não era uma voz dissonante. Não viria a sê-lo até 2016, quando passei a criticar a política econômica de Temer. Até então, havia criticado a política econômica de Dilma, algo que se encaixava perfeitamente nos limites aceitos pela economia tradicional, tal qual praticada no Brasil. Dessas críticas resultou um livro, Como matar a borboleta azul: uma crônica da era Dilma. Por ter sido publicado em 2016, ano do impeachment, muitos o interpretam equivocadamente até hoje. Não tratei de escrever um livro sobre por que Dilma deveria sofrer impeachment, que considero um dos maiores erros que cometemos. O livro trata das políticas econômicas de seu governo e afirma desde o início que, apesar de bem-intencionadas, elas foram mal pensadas e mal elaboradas. Penso do mesmo modo até hoje e vejo no impeachment algo que tem nos custado muito. A reflexão sobre as políticas econômicas não é incompatível com minha visão sobre a remoção forçada de Dilma, o que na época chamei de “impeachment de coalizão”.

Quando Temer assumiu e apresentou de afogadilho reformas que precisavam de maior aprofundamento para não criar enormes problemas para o país, eu o critiquei. O maior erro cometido no governo Temer – e escrevi vários artigos sobre o assunto em 2016 – foi a criação do teto de gastos. O erro não é pela ideia de teto de gastos. O teto é uma regra fiscal como qualquer outra e há vasta documentação sobre seu uso em diversos países na literatura. O problema do teto aprovado naquele ano é que a medida foi mal desenhada de princípio: jogou o ônus do ajuste para além do governo Temer e instituiu uma regra excessivamente rígida, que ia de encontro às garantias constitucionais das despesas com a saúde e a educação. Nessa época o teto virou fetiche dos economistas de linha tradicional à brasileira, e, como voz dissonante, comecei a ser criticada. Mas eu não tinha muita visibilidade, de modo que ainda há quem acredite que eu tenha sido árdua defensora do teto roto. Paciência.

Em 2017, mantive minhas colunas no Brasil, mas passei a escrever mais sobre o meu trabalho no Peterson Institute for International Economics. Não havia muito o que dizer sobre o Brasil e eu estava mais interessada no que se passava aqui nos Estados Unidos, com a vitória de Donald Trump e as tratativas para o Brexit. Voltei ao debate nacional em 2018 por ocasião da eleição que deu a Presidência a Jair Bolsonaro, uma catástrofe previsível que tantos insistem em negar, talvez por vergonha, talvez por falta dela. Contudo, só fui me envolver mesmo com o Brasil no último ano.

Logo após os primeiros sinais da pandemia comecei a pensar como o Brasil seria afetado e quais seriam as medidas para enfrentar a inevitável crise econômica que sobreviria da crise de saúde pública. Ativei um canal que tinha no YouTube, mas que não usava, para falar sobre economia e saúde e ajudar a orientar as pessoas. Os brasileiros se mostravam bastante perdidos em relação ao que estava acontecendo e desorientados quanto ao que fazer. A partir do conteúdo desenvolvido no canal publiquei um livro chamado Ruptura (Rio de Janeiro: Intrínseca), em meados de 2020.

O livro reúne reflexões variadas e recomendações de política pública. Em sua página 71 algumas recomendações foram resumidas assim: “(a) um suplemento emergencial imediato do benefício do Bolsa Família em pelo menos 50%; (b) a instituição de uma renda básica mensal no valor de R$ 500 para todos os registrados no Cadastro Único que não recebem o Bolsa Família; (c) a abertura de R$ 50 bilhões em créditos extraordinários para a saúde, com a possibilidade de se aumentar esse montante; (d) aprovação do seguro-desemprego com maior flexibilidade e celeridade; (e) recursos emergenciais para os setores mais afetados pela crise no valor de pelo menos R$ 30 bilhões; (f) a abertura de linhas de crédito do BNDES para micro, pequenas, e médias empresas pois são elas as que mais empregam; (g) um programa de infraestrutura para sustentar a economia no médio/longo prazo com a utilização de recursos do BNDES”.

Nos meses subsequentes, em artigos, transmissões no canal, webinários e entrevistas, falei exaustivamente sobre essas medidas, sobre o papel de uma renda básica para complementar os programas de proteção social e sobre o uso dos bancos públicos no combate à crise. Expliquei conceitos básicos de economia, e outros nem tão básicos, entrando em temas áridos como o famoso quantitative easing, a política de compra de títulos do governo pelos bancos centrais. Discorri sobre inflação e deflação, alertei para o fato de que o mundo inevitavelmente passaria por quarentenas intemitentes e que o Brasil teria de aprender a lidar com isso. Nada disso foi dito à toa. Tudo foi pensado e refletido à exaustão depois de muita leitura, mas sem que pudesse me escorar em conhecimentos estabelecidos. Simplesmente não havia respostas à mão.

Aliás, ficou claro para mim desde o início que o conhecimento da minha área de formação, a economia, era um empecilho para pensar o Brasil da pandemia. Houve críticas, houve elogios, mas isso é o de menos. Sinto-me satisfeita por ter me apresentado em hora difícil e cumprido meu papel o melhor que pude. Ao longo do tempo, como estava estudando temas de biomédicas, meus interesses foram migrando cada vez mais para a saúde. Falei de imunologia, virologia, genética, vacinas, e esses são os assuntos que hoje me fascinam. Tomei distância da economia.

Ao tomar distância da economia, também fui tomando distância do Brasil. Visto de longe e de perto, o Brasil dos economistas e da imprensa tradicional permanece preso a seus dogmas – o do teto, o da responsabilidade fiscal, o do medo inflacionário, e tantos outros – e me parece tornar cativa a sociedade. Esse país dogmático não me interessa, pois não há mais nada a pensar. A minha prática sempre foi a de deixar para trás o que já não serve. Já não serve falar de economia no Brasil e já não serve ter canal no YouTube, com tantas coisas que quero ler e estudar. Essa coluna passará a tratar desses temas, assuntos de natureza global e da saúde pública. Aos que me leem, aos que me acompanharam no último ano, desejo que aprendam a pensar sem corrimões.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.


El País: É o fim das cidades?

Longe de tornar as urbes algo obsoleto, como alguns previram inicialmente, a pandemia abriu um vasto potencial para seu renascimento. As recompensas são enormes, mas também os riscos

Carlo Ratti Richard, El País

A Rue de Rivoli, um bulevar que atravessa o coração de Paris, foi aberta aos trancos e barrancos. Napoleão Bonaparte começou a construção em 1802, depois de anos de planejamento e debate, mas os trabalhos ficaram em ponto-morto quando o imperador abdicou em 1814. O bulevar permaneceu no limbo até que outro homem forte militar, Napoleão III, concluiu o projeto na década de 1850. A construção voltou no século seguinte, desta vez para adequá-la aos automóveis, mas na primavera passada a Rue de Rivoli passou por sua mais rápida transformação até hoje.PUBLICIDADE

Com o tráfego em Paris reduzido pelo confinamento devido à covid-19, a prefeita Anne Hidalgo decidiu no dia 30 de abril fechar a rua ―de quase três quilômetros de extensão― aos carros para criar mais espaço para pedestres e ciclistas. Os trabalhadores repintaram o asfalto e transformaram uma das principais artérias do centro de Paris, que abriga o famoso museu do Louvre, praticamente da noite para o dia.

E não foi só a Rue de Rivoli: apenas com tinta e placas para aparafusar, quase 150 quilômetros de ruas parisienses foram temporariamente realocadas para ciclistas nos primeiros meses da pandemia ―uma revolução na reprogramação urbana. Posteriormente, foi anunciado que as mudanças seriam permanentes.

O exemplo parisiense destaca o grau em que a pandemia acelerou o ritmo da inovação urbana, comprimindo em meses, ou mesmo em semanas, o que teria levado anos. Para além de tornar visíveis as carências dos sistemas urbanos pré-pandêmicos ―como os elevados níveis de poluição―, permitiu que os líderes das cidades evitassem pesadas burocracias e respondessem com muito mais eficiência às necessidades das pessoas e das empresas.

Essas necessidades estão se alterando rapidamente. Uma das mudanças mais discutidas diz respeito à separação entre casa e trabalho: nas primeiras épocas da urbanização, as pessoas caminhavam até o trabalho, depois passaram a usar o transporte público. Foi somente depois da Segunda Guerra Mundial, com o auge da criação de subúrbios, que começaram a dirigir de suas casas até gigantescos complexos industriais e torres de escritórios.

Durante a pandemia, o trabalho remoto tornou-se norma em muitos setores e muitas empresas pensam continuar assim, pelo menos em grande medida. Essa reintegração do trabalho e da casa ameaça um dos últimos vestígios remanescentes da era industrial: os distritos centrais de negócios, que agrupam e comprimem os trabalhadores de escritório em arranha-céus.

Agora que é improvável que muitos trabalhadores voltem para seus cubículos, depois da pandemia as velhas torres de escritórios podem ser transformadas em moradias acessíveis muito necessárias. Os distritos comerciais unidimensionais poderiam se tornar bairros vibrantes.

As atividades não relacionadas com o trabalho também se transformaram: a gastronomia, o entretenimento e as atividades esportivas acontecem cada vez mais ao ar livre e ocupando espaços antes destinados aos automóveis. Assim como aconteceu com as ciclovias em Paris, a pandemia está criando protótipos de cidades que respondem a um modelo permanente pós-automóvel e centrado nas pessoas. De fato, as mudanças em Paris fazem parte de um plano mais amplo para criar uma “cidade de 15 minutos” (ville du quart d’heure), onde as atividades diárias centrais ―como o trabalho, o estudo e as compras― podem ser realizadas com uma curta caminhada ou de bicicleta desde a residência.

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Então, longe de tornar as cidades obsoletas, como alguns previram inicialmente, a pandemia liberou um potencial cada vez maior de renascimento ―a famosa “destruição criativa”, segundo o economista Joseph Schumpeter― em escala urbana. A crise não deu muita escolha aos governos, que tiveram de adotar uma abordagem acelerada de tentativa e erro. As extraordinárias inovações em matéria de espaços para pedestres, moradias acessíveis e zoneamento dinâmico que surgiram destacam o poder dos sistemas de retroalimentação positiva.

De qualquer forma, a abordagem shumpeteriana é fundamentalmente experimental e até as experiências mais bem desenhadas às vezes fracassam. Por outro lado, os custos de seus fracassos não são distribuídos de maneira equitativa: as pessoas menos influentes são as que mais tendem a sofrer. A pandemia de covid-19, por exemplo, afetou desproporcionalmente os pobres e os mais vulneráveis.

Nesta nova era de inovação urbana, os líderes devem se esforçar muito para minimizar os riscos para os grupos desfavorecidos e vulneráveis, e redistribuir as vantagens para eles. Isso implica, em primeiro lugar, ouvi-los. O movimento norte-americano Black Lives Matter é um poderoso exemplo de um grupo de pessoas desfavorecidas que exige ser ouvido. Em todos os lugares os líderes devem prestar atenção nas divisões raciais e de classe e tratar delas de maneira direta. O desenho urbano é um aspecto central em qualquer estratégia desse tipo.

Para apoiar esse processo ―e ajudar a manter a flexibilidade e a velocidade da inovação urbana depois da pandemia― os líderes devem considerar a criação de plataformas digitais participativas para permitir que os residentes comuniquem suas necessidades. Isso poderia fomentar políticas que melhorem a qualidade de vida nas cidades ―especialmente nos bairros desfavorecidos―, entre outras coisas, limitando tendências problemáticas como o aumento da poluição e a gentrificação. Somente com uma abordagem ágil e inclusiva poderemos aproveitar esse tipo de oportunidades tão pouco frequentes –ou, na verdade, fazer frente a essa obrigação urgente ―para “reconstruir melhor”.

Hoje, um passeio pela Rue de Rivoli de forma alguma revela a desolação e o tédio que muitas vezes esperamos nas ruas urbanas durante a pandemia. Pelo contrário, o bulevar oferece a agitação dos parisienses que passam como bólidos, com suas máscaras, de bicicleta, skate, bicicleta elétrica e patins, ou fazem uma pausa para tomar um café nas cafeterias e restaurantes. Reviveu uma rua atingida pela pandemia. Com planejamento cuidadoso, experimentação ousada e sorte, essas transformações podem ser apenas o ponto de partida para as cidades em todos os lugares.

Carlo Ratti é cofundador do Escritório Internacional de Design e Inovação Carlo Ratti Associati e diretor do Senseable City Lab do MIT. Richard Florida é professor da Escola de Cidades e da Escola Rotman de Administração da Universidade de Toronto.

Copyright: Project Syndicate, 2021.


El País: Raúl Castro, uma revolução diferente da comandada por Fidel

Consciente de que o carisma do irmão e sua forma de exercer o poder eram inimitáveis, ele promoveu uma forma de governar colegiada

Mauricio Vicent, El País

Quando em 31 de julho de 2006 Fidel Castro delegou provisoriamente a presidência a seu irmão Raúl, por causa de uma doença grave, os cubanos não podiam entrar nos hotéis de seu país nem alugar uma linha de celular, vender ou comprar casas, nem adquirir computadores nas lojas do Estado, nem viajar para o exterior sem pedir permissão das autoridades. Em Cuba só era possível acessar a internet no local de trabalho, e não havia nenhuma lei ou norma que impedisse Fidel de continuar a ser chefe de Estado e do Partido Comunista por muitos anos mais, embora estivesse dirigindo a ilha desde 1959.

Na época, George W. Bush era quem mandava na Casa Branca e as relações cubano-americanas viviam momentos de grande tensão. Os Estados Unidos eram o inimigo imperialista e ninguém teria dito então que Washington e Havana poderiam restabelecer relações se o bloqueio dos Estados Unidos não fosse levantado primeiro.PUBLICIDADE

A primeira missão de Raúl Castro ao substituir o irmão foi garantir uma sucessão ordeira e sem traumas e, mais ainda, demonstrar que a revolução poderia sobreviver sem Fidel no comando. Em 2006, muitas chancelarias estrangeiras acreditavam que o fidelismo sem Fidel era impossível, e até faziam apostas sobre quanto tempo levaria para a ilha se tornar um país “normal”. Mas Fidel morreu dez anos depois sem nunca ter voltado à frente da política em razão de seu delicado estado de saúde, e nada aconteceu.

Raúl, o eterno número dois e ministro das Forças Armadas por quase meio século, foi formalmente nomeado presidente em 2008 e, três anos depois, eleito primeiro secretário do Partido Comunista. Ciente de que o carisma do irmão e sua forma de exercer o poder eram inimitáveis, desde que chegou ao Palácio da Revolução Raúl designou o Partido Comunista como “o único herdeiro digno de Fidel” e promoveu uma forma colegiada de governar, acabando com o personalismo e reforçando a institucionalidade.

De início Raúl Castro dedicou tempo considerável a fazer com que os Conselhos de Estado e de Ministros recuperassem o protagonismo perdido, já que na época de Fidel muitas decisões importantes eram tomadas no gabinete do líder com um pequeno grupo de colaboradores. Simultaneamente a esse esforço de institucionalização, Raúl Castro empreendeu uma ofensiva singular para acabar com o que chamou de “proibições absurdas” e “gratuidades indevidas”.

Os cubanos finalmente puderam se hospedar nos mesmos hotéis que os turistas estrangeiros, ter celular, vender suas casas e carros. Pouco a pouco o uso da internet foi sendo ampliado e o Governo eliminou o humilhante ‘cartão branco’, a autorização de saída, obrigatório para qualquer cubano que viajasse. Discretamente, o novo presidente cubano também começou a desmontar todos os andaimes de subsídios, folhas de pagamento infladas e ajuda econômica a empresas não rentáveis que durante décadas sustentaram o sonho de Fidel de uma sociedade igualitária e, assim, numa bela manhã saiu a notícia de que no setor estatal havia um milhão de postos de trabalho a mais do que o necessário.PUBLICIDADE

Raúl optou pelo desenvolvimento do setor privado como forma de ajudar o país a sair da crise e reabsorver toda a força de trabalho excedente, depois de ter experimentado com sucesso o chamado “sistema de autogestão empresarial” nas corporações e indústrias das Forças Armadas, fórmula que dava maiores incentivos aos trabalhadores e mais autonomia à direção das empresas, visando maior eficiência econômica.

Ao contrário de Fidel, que durante a crise dos anos 1990 autorizou o trabalho autônomo, mas sempre o considerou um “mal necessário” e o asfixiou quanto pôde, Raúl deu estímulos com mais ousadia —em 2008 havia cerca de 150.000 autônomos em Cuba, hoje são mais de 600.000, ou seja, 13% da força de trabalho. Há quase uma década está sobre a mesa a constituição de pequenas e médias empresas e cooperativas não agrícolas, mas essa medida reformista de longo alcance, que tem sido defendida em inúmeras ocasiões por economistas para reativar o sistema produtivo, ainda não se concretizou. É uma das muitas tarefas pendentes que deixa aos seus herdeiros políticos na esfera econômica, onde a ilha enfrenta os desafios mais prementes no futuro imediato.

Em seus dez anos à frente do Governo (2008-2018), nada mudou substancialmente no campo político. Cuba continuou a ser um país de partido único, com um sistema estatal e planejamento central, mas as coisas mudaram no econômico, embora muito lentamente. Em mais de uma ocasião, Raúl Castro clamou contra a “velha mentalidade” instalada na parte mais obscura do partido e da burocracia do Estado, pedindo que não continuassem a impor empecilhos à roda das mudanças e que “as forças produtivas fossem destravadas”.

Ou não pôde ou não conseguiu, mas a verdade é que Raúl deixou aberto o caminho da reforma econômica, que é crucial para a sobrevivência da revolução cubana e um dos principais temas do VIII Congresso. Resta saber até onde seus sucessores estão dispostos a ir.

Outro momento importante de sua presidência foi a negociação da normalização das relações entre Cuba e os Estados Unidos. Em 2016, Raúl Castro recebeu uma visita à ilha que parecia impossível, a de Barack Obama —que, veladamente, foi depois criticado por Fidel em um comentário à imprensa. Mas logo em seguida Donald Trump chegou à Casa Branca e a reaproximação voou pelos ares. Antes de partir, também teve a iniciativa de estabelecer o limite máximo de dois mandatos de cinco anos para os altos cargos, o que, no seu caso, agora se cumpre. Se não houver surpresas, durante o VIII Congresso do PCC, que se realiza nestes dias em Havana, Raúl entregará a direção do Partido Comunista ao atual presidente do país, Miguel Díaz-Canel, que ele elevou a essa posição em 2018. É sua aposta pessoal para que a revolução sobreviva e continue sem o sobrenome Castro, sem dúvida o maior de todos os desafios.


Juan Arias: Por que Lula prefere que Bolsonaro chegue politicamente vivo às eleições?

Para entender esta estranha postura do petista, é preciso levar em conta que se trata de um estrategista que sabe observar a situação política em longo prazo

Muita gente acha estranho que Lula veja com desagrado a abertura da CPI da covid-19, que poderia acabar com uma condenação de Bolsonaro, e a abertura de um processo de impeachment presidencial no Congresso.

Lula não diz isso abertamente, mas é o que dá a entender através de seus assessores mais íntimos. Jacques Wagner, por exemplo, um dos caciques do PT a quem Lula mais escuta, causou surpresa ao se manifestar no Senado contra a abertura da CPI da Covid. Da mesma forma, Lula não demonstra nenhum interesse em que o Congresso abra um processo que possa resultar na destituição do capitão.

Para entender esta estranha postura de Lula, é preciso levar em conta que se trata de um estrategista que sabe observar a situação política em longo prazo. Nisso poucos ganham.

Assim, de olho na candidatura presidencial em 2022, ele considera, conforme confidenciou a alguns amigos que mais o frequentam, que definitivamente o melhor adversário para um duelo político tão crucial para ele seria Bolsonaro, mais do que qualquer outro.

Por isso prefere que o presidente não caia antes das eleições. Lula sabe que sua maior vitória, inclusive em nível internacional, seria destronar o genocida que arrastou o Brasil para o inferno. Para Lula, ganhar de qualquer outro candidato não teria a mesma força simbólica que derrotar o psicopata que está transformando o país um cemitério com seu negacionismo e com seu hábito de inclusive zombar da pandemia.

Lula sabe que, se Bolsonaro for impedido de disputar as eleições, a única alternativa à disposição do bolsonarismo seria seu vice, o general Hamilton Mourão, um militar duro, mas que tem um maior gabarito intelectual e uma maior capacidade de diálogo político.

Lula sabe que muitos direitistas que não votariam mais em Bolsonaro poderiam fechar com seu vice. Isso incluiria muita gente no mercado e no mundo das finanças que está desiludida com Bolsonaro e, embora em condições normais nunca votasse na esquerda, poderia optar por Lula se ele tiver um vice oriundo do mundo que domina a economia, como foi o caso do empresário José Alencar em seus mandatos anteriores (2003-2011).

Ao mesmo tempo, até os militares hoje em dia estão no mínimo perplexos com o capitão, que acabou desprestigiando a instituição com suas loucuras e seu afã de apresentar as forças armadas como “seu Exército”. Com Mourão, os militares poderiam ter um candidato mais confiável.

Lula sabe disso e por esse motivo prefere enfrentar Bolsonaro, que certamente, se não cair antes disso, chegará muito debilitado às eleições. Quanto aos militares, Lula já está tateando para abrir um diálogo com os quartéis. Pensou inclusive na hipótese de escolher um militar como vice.

Para Lula, seria paradoxalmente mais fácil derrotar Bolsonaro do que um candidato conservador que tivesse o apoio das elites econômicas, que começam a abandonar o presidente, mas ao mesmo tempo estão contra a bipolaridade entre esquerda e direita.

Para muitos, continua valendo o lema “nem Lula nem Bolsonaro”, mas, tendo que escolher entre um deles, afinal poderiam acabar apostando em um Lula que se apresente mais como centrista do que como representante da velha esquerda. Foi o que confirmou pessoalmente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao admitir que, se tivesse hoje que decidir entre Bolsonaro e Lula, votaria no petista, seu histórico adversário.

Na situação do ex-presidente FHC estão muitos que também hoje prefeririam votar em Lula a não no capitão, cada dia mais desprestigiado. Lula sabe que, hoje, quem desperta maior rejeição da direita democrática é Bolsonaro. Por isso seu instinto o leva a preferir desafiar o capitão ferido politicamente a qualquer outro candidato.

Para Lula na verdade seria melhor duelar com um Bolsonaro desmoralizado dentro e fora do país do que com um candidato do centro, que poderia ser o preferido daqueles que hoje rejeitam tanto as cavernas direitistas do bolsonarismo-raiz como a velha e desgastada esquerda. Por isso Lula já está flertando com o centro e até com a direita com a qual já governou.

Lula tem um olfato político que acaba desorientando até seus colaboradores mais próximos. 2022 já está às portas, e poderemos ver se ele tem ou razão em querer que Bolsonaro chegue ferido às eleições, mas politicamente vivo.


Eliane Brum: Biden ameaça sujar as mãos com Bolsonaro

Ao negociar com o extremista de direita que governa o Brasil, o presidente democrata se arrisca a cometer a maior interferência no destino do Brasil desde a ditadura

O apoio decisivo dos Estados Unidos às ditaduras da América Latina na segunda metade do século 20 é conhecido e bem documentado. O que não se esperava é que, justamente neste momento da história, em que os Estados Unidos acabaram de enfrentar o maior e mais traumático ataque à sua própria democracia, Joe Biden possa decidir fortalecer o autoritário Jair Bolsonaro. Os governos de Bolsonaro e de Biden conversam a portas fechadas sobre um bilionário investimento na Amazônia que poderá ser anunciado na Cúpula de Líderes sobre o Clima promovida na próxima semana, em 22 e 23 de abril, pelos Estados Unidos.

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Amplos setores da sociedade brasileira veem na negociação um movimento inaceitável para legitimar Bolsonaro no momento em que ele é tratado pelo mundo democrático como “ameaça global” e amarga uma queda na sua popularidade devido à media de mais de 3 mil mortes diárias por covid-19. Quem conhece Bolsonaro também tem certeza de que, se Biden botar dólares na conta do Governo brasileiro, o presidente e sua quadrilha encontrarão um jeito de abastecer os bolsos dos depredadores da Amazônia, uma importante base eleitoral para catapultar as chances de uma reeleição em 2022.

O impasse não é confortável para o Governo do democrata Joe Biden. Em seu discurso de posse, ele anunciou o combate à emergência climática como uma de suas maiores prioridades. Ainda na campanha eleitoral, já havia anunciado a intenção de investir 20 bilhões de dólares na proteção da Amazônia. Não há possibilidade de controlar o superaquecimento global, bandeira cara à ala mais progressista do Partido Democrata, sem a maior floresta tropical do mundo. Por outro lado, a deliberada inação do Congresso brasileiro, sentado sobre mais de 100 pedidos de impeachment de Bolsonaro, torna difícil qualquer ação por parte do líder americano: por um lado, a proteção da Amazônia já se tornou emergencial, dada a crescente savanização da floresta; por outro, a premência obriga o Governo americano a negociar com o principal responsável pela aceleração da destruição.

O que fazer, então? Certamente não negociar a portas fechadas com um Governo que, apenas entre agosto de 2019 e julho de 2020, desmatou mais de 11 mil quilômetros quadrados, o equivalente a riscar do mapa uma área de floresta do tamanho de sete cidades de São Paulo. Os índices de desmatamento de março de 2021, o último mês fechado, já são os maiores dos últimos seis anos, com a extinção de 367 quilômetros quadrados de mata. E, também, não negociar com um extremista de direita denunciado por povos indígenas e outros setores da sociedade brasileira e internacional como “genocida”, em comunicações ao Tribunal Penal Internacional. E, ainda, não negociar com um governante apontado por pesquisas internacionais como o pior gestor da pandemia, cujas ações para disseminar o novo coronavírus com o objetivo de atingir imunidade por contágio ameaçam hoje o controle global da covid-19, ao converter o Brasil num criadouro de novas variantes.

O primeiro a propagandear a surpreendente amizade com o Governo de Biden foi justamente o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, um fraudador ambiental condenado. Salles, que anunciou com orgulho num programa de TV que assumiu a pasta sem nunca ter visitado a Amazônia nem saber quem era Chico Mendes, tem entre suas credenciais uma condenação por fraudar documentos e mapas para beneficiar mineradoras quando era secretário do meio ambiente do Estado de São Paulo. Quando a covid-19 atingiu o Brasil, defendeu numa reunião do governo que deveriam aproveitar que a imprensa estava distraída com a pandemia “para passar a boiada”, o que significava afrouxar ainda mais a legislação ambiental sem se arriscar à reação da sociedade. Em sua gestão, o marco legal de proteção, assim como os órgãos de fiscalização, foram enfraquecidos.

Chamado no Brasil e em parte do mundo de antiministro do meio ambiente ou ministro contra o meio ambiente, Salles estava tão afoito para divulgar as negociações com os americanos que deu uma entrevista à jornalista Giovana Girardi, repórter do jornal O Estado de S. Paulo, na casa da sua mãe. Fez questão de alardear que estava pedindo aos americanos 1 bilhão de dólares a cada 12 meses para reduzir o desmatamento da Amazônia em 40%. A trucagem de Salles não agradou aos negociadores americanos, que foram propositalmente expostos, e moveu uma forte reação contrária de amplos setores da sociedade brasileira.

Na semana passada, 199 organizações, de indígenas a cientistas, de ambientalistas a jornalistas, assinaram uma carta na qual afirmam: “O presidente americano precisa escolher entre cumprir seu discurso de posse e dar recursos e prestígio político a Bolsonaro. Impossível ter ambos”. Entre as várias surpresas da negociação entre os governos Biden e Bolsonaro está o fato de que nenhum dos protagonistas da sociedade civil, os que vêm lutando e morrendo pela Amazônia há décadas, foram chamados para participar.

Na segunda-feira, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou um vídeo em inglês direcionado ao presidente estadunidense: “Caro Joe, nós sabemos que a Casa Branca está fazendo um acordo climático secreto com Bolsonaro. Nós, brasileiros, precisamos te alertar: não confie em Bolsonaro. Não deixe esse homem negociar o futuro da Amazônia. Ele declarou guerra contra nós. Contra os povos indígenas. Contra a democracia. Ele está espalhando covid-19, mentiras e ódio”. E finaliza: “É a Amazônia ou Bolsonaro. Não dá para conciliar os dois. De que lado você está?”.

Diante da reação crítica, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, o texano Todd Chapman, se apressou a tentar virar a maré de constrangimento, afirmando, durante uma reunião virtual privada no domingo, da qual participaram políticos, diplomatas e empresários brasileiros convidados, que o Governo Bolsonaro vai precisar “mostrar preocupação ambiental para recuperar a confiança dos americanos e ampliar as relações com a Casa Branca”. Segundo a Folha de S. Paulo, o embaixador estadunidense classificou a cúpula do clima como “uma oportunidade” para o Brasil virar o jogo e resgatar a preocupação ambiental diante dos olhos do mundo. E aí vem a parte mais interessante. O embaixador afirmou que o país vai “se tornar herói” se fizer uma “declaração contundente”, retomando seu papel de protagonista no debate sobre o meio ambiente.

Como o Brasil hoje é governado e representado por Jair Bolsonaro, Chapman, uma escolha de Donald Trump para a embaixada brasileira, está acenando com um Bolsonaro herói da Amazônia. O problema é que nem na cabeça dos roteiristas mais imaginativos da HBO ou da Amazon essa transmutação soaria remotamente verossímil. O que está se desenhando, ao contrário, é mais um enredo no estilo de Al Capone. Bolsonaro e seu fiel lobista Salles desmontam a legislação ambiental e enfraquecem os órgãos de proteção, estimulam grileiros, madeireiros e garimpeiros a invadir as áreas públicas da floresta, deixam a covid-19 se alastrar pelos territórios indígenas e, quando a pressão internacional aperta, fazem um show pirotécnico com Exército e/ou Força Nacional, escanteando mais uma vez os fiscais do Ibama.

Os resultados estão aí para qualquer americano ver. Com a decisiva colaboração de Bolsonaro e de Salles, as pesquisas mais recentes mostram que áreas da floresta amazônica já começam a emitir mais carbono do que absorvem. Se a destruição da floresta que ainda está em pé continuar e se a floresta degradada não for recuperada, isso significa que em breve a Amazônia vai se tornar parte do problema e não mais parte da solução.

Bolsonaro e Salles destroem a Amazônia e atacam os povos da floresta em proporções só vistas na ditadura civil-militar (1964-1965) e depois pedem dinheiro para parar. Há ainda mais uma malandragem na proposta do também chamado “sinistro do meio ambiente”: apenas um terço dos recursos iriam diretamente para a proteção da floresta. Os outros dois terços seriam investidos em “desenvolvimento econômico” da região. Alguém já viu esse modus operandi em algum lugar? Pois é. Não para por aí o comportamento de gângster. Para alguns negociadores experientes, os Estados Unidos podem estar pagando também para que Bolsonaro não destrua qualquer possibilidade de acordo nas próximas cúpulas do clima.

Ricardo Salles, como alfineta um ambientalista, não levanta da cama pela manhã se não for para botar a mão em dinheiro que possa controlar. Esse foi justamente o problema dele com o Fundo Amazônia, que garantia ao Brasil um volume de recursos na casa dos bilhões da Noruega e também da Alemanha e que acabou sendo congelado porque Salles tentava desvirtuá-lo. Salles queria o que ele mesmo definiu como “uma mudança no modelo de gestão de recursos”. Os europeus desviaram da casca de banana.

Pode ser um tanto inusitado negociar com tal personagem. A repórter Marina Dias, da Folha de S. Paulo, conta que num dos slides apresentados por Salles em uma reunião com integrantes da equipe de John Kerry, Enviado Especial para o Clima do Governo Biden, havia a imagem do que os brasileiros chamam popularmente de “TV de Cachorro”: um vira-lata esfomeado olhando os frangos assando e girando numa máquina. As aves de Salles tinham cifrões estampados no corpo. Acima, estava escrito: “Payment Expectation” (expectativa de pagamento). É fácil imaginar quem é o cachorro e quem é o franguinho.

Poderia se cogitar que Biden e sua equipe não tenham aprendido o suficiente sobre como funciona a corja de populistas de extrema direita que corroem a democracia mundial, da qual Bolsonaro, depois da derrota sofrida por Trump, é o exemplo mais vistoso. Mas ninguém é ingênuo o suficiente para acreditar na ingenuidade de negociadores americanos. Nessa mesa há ainda muitas cartas nebulosas: entre elas, o temor da China avançando várias casinhas sobre a Amazônia brasileira e outras partes do planeta, o que já está acontecendo, os impasses em torno da tecnologia 5G e também a pressão das grandes corporações, que querem seguir lucrando sem sofrer boicotes por usar matérias-primas originadas no desmatamento. Nesse jogo, o mais lento voa.

É compreensível, necessário e desejável que Biden queira investir na proteção da Amazônia também pelas mais corretas e louváveis razões. É, porém, inacreditável, inaceitável e abjeto que Biden faça isso dando dinheiro ao maior inimigo da Amazônia e de seus povos. Em sua defesa, negociadores americanos têm dito que Bolsonaro foi eleito democraticamente e que é urgente proteger a Amazônia.

Sim, como Donald Trump, Jair Bolsonaro foi eleito democraticamente. Bolsonaro, porém, assim como Trump, não é um democrata, em nenhum sentido que esse termo possa ter. Bolsonaro e sua quadrilha só permanecem no Governo depois de todas as atrocidades que cometeram porque o Congresso é dominado por um grupo de parlamentares de aluguel chamado de “Centrão”. Também porque a massa de pessoas que clama pelo impeachment não pode ir às ruas porque o país está tomado pela covid-19 e, graças à diligência de Bolsonaro, sem garantia de vacinas em número suficiente.

Os olhinhos ávidos de Bolsonaro sempre brilharam diante de Donald Trump. Junto com o ditador norte-coreano Kim Jong-un, o brasileiro foi um dos governantes do mundo que mais demorou para reconhecer a vitória de Joe Biden sobre seu ídolo do topete laranja. Também justificou a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro, sustentando a mentira trumpista de “fraude” na eleição. Trump, porém, sempre afagou a cabeça do seu garoto, mas jamais cogitou dar o que os americanos chamam de “serious money” ―uma quantia decisiva de dinheiro―ao seu Governo. O investimento na Amazônia pretendido por Biden, nos moldes em que está sendo negociado, poderá significar um apoio ao governo Bolsonaro que nem o próprio sonhou.

Se a urgência de proteger a Amazônia não pode esperar o fim do governo predatório de Bolsonaro, é necessário garantir a participação nas negociações de quem realmente protege a floresta ―contra as agressões de Bolsonaro. Como as lideranças indígenas e as organizações socioambientais, essas que Bolsonaro chama de “câncer”. É também obrigatório condicionar a liberação do dinheiro a ações reais e resultados concretos. Fundamentalmente, nos campos da ética, da decência e dos direitos humanos, pouco populares em negociações internacionais, o desafio de Biden é dar uma resposta coerente à pergunta para lá de espinhosa: é possível negociar com um extremista de direita chamado de “genocida” por grande parte do seu povo, responsável por milhares de mortes evitáveis e pela aceleração do desmatamento da Amazônia?

Se as negociações seguirem na toada atual, Biden poderá sujar as mãos logo na arrancada de sua pretensão a liderar o mundo democrático no enfrentamento da crise climática. E, com a justificativa de proteger a Amazônia, realizar a mais decisiva interferência no destino do Brasil por um governo americano desde a ditadura. A Amazônia, cada vez mais perto do ponto de não retorno, precisa ser protegida pela sociedade global com urgência. Mas não se fará isso dando bilhões de dólares para seu maior predador e sua quadrilha de destruidores ambientais.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


El País: França suspende voos com o Brasil para evitar variante brasileira do coronavírus

Com a medida, que não tem prazo para acabar, país busca impedir a entrada da cepa de Manaus no país. “Notamos que a situação está piorando”, afirmou o primeiro-ministro francês

França suspenderá “até novo aviso” todos os seus voos com o Brasil devido a preocupações geradas pela variante brasileira da covid-19, anunciou o primeiro-ministro Jean Castex nesta terça-feira. “Notamos que a situação está piorando e, portanto, decidimos suspender todos os voos entre o Brasil e a França até novo aviso”, disse. A medida vale tanto para voos que partem do Brasil como para os que saem do território francês e atende a pedidos de especialistas do país europeu, que alertavam para o perigo da entrada do vírus no país.

crise de saúde no Brasil não para de se agravar desde fevereiro, especialmente pelo aparecimento da variante de Manaus do vírus, conhecida como P1, considerada mais contagiosa e perigosa. O país tem batido seguidos recordes de mortes diárias e já acumula 354.617 óbitos e 13,5 milhões de casos confirmados desde o início da pandemia. Nesta terça, é possível que um novo recorde de mortes seja registrado, já que houve represamento de informações por parte de Estados nesta segunda.

A nova variante brasileira já se tornou fator de preocupação em outras partes do mundo, como o Canadá, que registra o maior número de casos da P1 fora do Brasil. Na França, ainda que a variante brasileira seja minoritária, os profissionais de saúde vêm alertando há alguns dias para a disseminação da cepa. A oposição chegou a exigir que o Governo interrompesse os voos com o Brasil.

De acordo com informações do jornal Le Monde, na segunda-feira o ministro dos Transportes, Jean-Baptiste Djebbari, afirmou que o Governo havia decidido manter algumas linhas com o Brasil por respeito à liberdade de ir e vir dos franceses. Os viajantes que chegavam ao país vindos do Brasil tinham que apresentar um teste PCR negativo e se isolar por dez dias.

A situação de descontrole da pandemia vivida no Brasil causa preocupação no mundo não apenas pela existência da variante de Manaus. Mas a grande replicação do vírus torna o terreno fértil para o aparecimento de novas variantes cada vez mais contagiosas e, possivelmente, resistentes à vacina —o que a P1 ainda não é.


Vladimir Safatle: A segunda fase do regime militar

O Brasil acaba de apresentar ao mundo mais uma de suas invenções, a saber, um regime militar sem golpe. Mas devemos ainda falar em regime militar porque temos, inicialmente, a ocupação do Estado pelo aparelho militar e seu ideário

O Brasil tem certa vocação para a invenção. Fomos um país criado a partir de um experimento econômico: o latifúndio escravocrata primário exportador. Em nenhum outro lugar do globo tal experimento foi desenvolvido em tão larga escala. 35% de todos os sujeitos escravizados na África e direcionados às Américas aportaram aqui. Fomos também os responsáveis, no século XIX, pela junção singular entre escravismo e economia integrada ao “liberalismo concorrencial”. Mais próximo, conseguimos criar uma ditadura militar primorosa na arte de durar. A mais longa ditadura militar da América no ciclo que começa nos anos 60, capaz de entender que só duraria se preservasse algum nível de pantomima democrática. Tínhamos eleições, partido de oposição, Congresso em funcionamento na maior parte do tempo, tortura, livros de Marx vendidos nas bancas, corpos desaparecidos, estupros de opositoras, censura. Tudo ao mesmo tempo.

Há de se admirar essa engenharia brasileira do terror de Estado. Ela conseguiu preservar todas as peças do dispositivo empresarial-militar, mesmo durante trinta anos de período pós-ditadura. Ela conseguiu ainda preservar toda a força de terror administrada pelas polícias e suas milícias contra as populações vulneráveis em sua guerra civil cotidiana. Elementos fundamentais do aparato jurídico institucional criado sob ditadura continuaram vigentes. O Brasil mostra como nenhum outro país que desenvolvimento capitalista é outro nome para guerra de espoliação máxima, de medo e de depredação contra uma natureza que não se submete facilmente à condição de propriedade privada.

Dentro dessa tecnologia de poder, o Brasil acaba de apresentar ao mundo mais uma de suas invenção, a saber, um regime militar sem golpe militar. O que temos atualmente é algo muito próximo a um regime militar que não usou golpes militares clássicos para ser implementado. Entenda-se por “clássico” nesse contexto, ocupações de poder feitas através do deslocamento de tropas e uso explícito da violência.

Mas devemos ainda falar em regime militar porque temos, inicialmente, a ocupação do Estado pelo aparelho militar e seu ideário. Por mais que a narrativa vendida seja outra, Jair Bolsonaro é a encarnação direta do ideário militar nacional. Para além dos mais de 7.000 militares na gestão do Estado, desde o Ministério da Saúde, até as Comunicações e a Petrobrás, temos o deslocamento das Forças Armadas para o centro do poder com o intuito de garantir as condições para um processo brutalizado de acumulação primitiva, de espoliação de terras e concentração de renda.

O Brasil assiste a uma nova fase de concentração de renda, e a ameaça de sublevação popular que normalmente acompanha tais momentos, exige das Forças Armadas sua presença direta no Estado, a fim de intensificar a guerra civil contra populações vulneráveis. Essa concentração volta em seus moldes tradicionais, como o colonialismo interno que leva a predação da natureza, escondida sob a capa do desenvolvimento, para espaços cada vez mais amplos. Colonialismo que intensifica os incêndios contra povos originários e florestas.

Processo que, por sua vez, exige a mobilização contínua da perseguição e pressão de setores com potencial de sublevação, no que vemos a utilidade da eterna luta contra o comunismo (o único inimigo que, no século XX, efetivamente foi capaz de usar a guerra contra quem gerencia a guerra civil social). Por fim, as Forças Armadas ocupam o Estado tendo em vista a militarização da vida social, seja através da generalização extensiva de “formações militares” (segundo o projeto de paulatinamente transformar escolas públicas em escolas militares), seja através da organização armada e generalizada de grupos paramilitares de apoio.

Mas isso que nos anos sessenta obrigou a organização de um golpe clássico de Estado foi imposto agora através de uma lógica extremamente astuta de “custo menor”. São sucessões de operações relativamente regionais que, paulatinamente, deslocam o poder para o horizonte gerencial militar, fazendo com que ele avance mesmo que pareça não estar lá. Como já se disse mais de uma vez, uma das maiores astúcias do diabo é levar-nos a acreditar que ele não existe.

Primeiro, era necessário impedir que a eleição de 2018 ocorresse. O custo de uma simples suspensão de eleições presidenciais seria enorme, arcaico, desnecessário. Mas havia algo mais astuto: um tuíte, um simples tuíte das Forças Armadas ameaçando o Poder Judiciário caso o candidato indesejável pudesse concorrer. Além do tuíte, um processo jurídico “contra a corrupção” capaz até mesmo de anexar depoimentos de pessoas que nunca deram depoimento algum. Um processo incensado por setores hegemônicos da imprensa e seus interesses inconfessos pela radicalização do processo de acumulação primitiva da classe trabalhadora espoliada. Assim, a eleição estaria assegurada no bom e velho modelo da República Velha onde os embates já estavam decididos de antemão. Afinal, para que um golpe clássico se a possibilidade de preparar resultados favoráveis está à mão?

Mas a ocupação do Estado exigiria o abandono dos aliados que acreditavam que seriam convidados para sentar à mesa principal da gestão do poder. Como na ditadura militar, quando os civis descobriram que haviam se tornados atores secundários através do veto a Pedro Aleixo ocupar a presidência da República, todos aqueles que pavimentaram esse caminho foram enterrados sob o asfalto que eles mesmos esquentaram. De Eduardo Cunha aos degenerados da Lava Jato, da própria imprensa ao “centro democrático”: todos foram deixados para trás até que acordássemos em um regime militar em pleno século XXI.

Ainda na lógica do “custo menor” havia dois problemas a resolver. O primeiro era a censura. Mas “censura” é, mais uma vez, algo arcaico, custoso e, principalmente, desnecessário. O poder só procura censurar quando teme a força da palavra. Melhor seria operar através de uma “usura” da palavra. Tirar a força da palavra, criar paralisia em seu uso, ao invés de simplesmente censura-la. Uma paralisia criada pela inversão constante de seu significado. Usar “liberdade” para descrever a indiferença em relação ao genocídio de Estado diante da pior pandemia da história recente, usar “ditadura” para descrever exigências mínimas de solidariedade social diante da catástrofe, usar “coragem” quando se quer mostrar o descaso com quem não pode ter acesso ao sistema privado de saúde para sobreviver, usar “doutrinação” onde outros falam de pensamento crítico. Há de se lembrar que era George Orwell quem fazia os habitantes da Eurásia gritarem: “ignorância é força, liberdade é escravidão”.

Se 30% da população participasse dessas estratégias de usura da palavra o processo político estaria paralisado. E não seria difícil contar com esses 30%. Quem conhece a história brasileira sabe que eles nunca faltariam ao seu dever. Enquanto isto, o resto perderia seu tempo a espera de “frentes amplas” que nunca aconteceriam (basta ver quem foi apoiar o candidato do governo nas eleições para a presidência da Câmara) ou discutindo eliminações do BBB na semana em que o Banco Central ganharia sua “autonomia”, ou melhor, sua definitiva servidão aos interesses mais brutais da elite rentista, esses mesmos interesses que são a base da realidade material que sustenta o eixo das formas gerais de espoliação (imaginar que nossa emancipação viria sob formas administradas pela indústria cultural e sua estrutura monopolista articulada aos interesses maiores da elite empresarial ... isso talvez explique o que ocorre quando conceitos como “indústria cultural” são abandonados em prol de práticas que se recusam a problematizar os meios de enunciação).

Mas havia um segundo problema a resolver. Um regime militar não aceita ser deposto. E este ponto volta agora em sua tensão efetiva, principalmente depois da possibilidade de Lula concorrer à presidência novamente. O Brasil conhece atualmente um conflito entre o que poderíamos chamar de “direita oligárquica” (a saber, esse grupo dirigente que deriva das oligarquias locais e seus representantes, a começar pela oligarquia paulista) e uma “extrema-direita popular” (que vem da longa história do fascismo brasileiro). O horizonte convergente de interesses permite a esses dois grupos sentarem-se à mesma mesa quando necessário. Mas tomado o poder, eles também entram em choque, como se mostrou ao longo da história nacional.

deslocamento de Lula para o centro do jogo eleitoral não foi exatamente resultado de uma pressão popular irresistível, de um clamor irrefreável, mas de uma manobra arriscada de setores da direita oligárquica no poder para conter Bolsonaro em sua escalada fascista, como fizeram em junho quando Queiroz foi enfim “encontrado” em um sítio em Atibaia e o primeiro “enquadre” foi dado.

Com a vitória de Bolsonaro pelo controle da Câmara e do Senado e com sua liberdade absoluta de operação, era necessário um segundo enquadre, e ele foi dado através da ressurreição do único político com estatura eleitoral compatível com Bolsonaro e que parecia capaz de fazer, efetivamente, uma aliança de centro no Brasil com alguma estabilidade. Exatamente nesse momento, o poder Judiciário brasileiro “descobriu” que, afinal, o processo contra Lula era uma aberração jurídica e que ele nunca teve direito efetivo de defesa. Lula apareceu como o único capaz de fazer uma efetiva aliança de centro porque os outros fazem apenas acordos entre oligarcas sem muita densidade popular. Já ele opera por uma versão do “sindicalismo de resultados” que parecia poder funcionar no começo desse século. Por isso, falar em “polarização” chega a ser um desrespeito à inteligência nacional. Lula é a última figura capaz de tentar operar políticas de grande aliança no Brasil. Ele é exatamente o contrário de toda e qualquer “polarização”. Seu governo não nos deixa mentir.

No entanto, como foi dito anteriormente, um regime militar não aceita ser deposto. Em manifestações inéditas na vida política nacional, o dia seguinte ao anúncio de possibilidade de Lula concorrer foi marcado por declarações de militares dizendo ver a volta do ex-presidente como algo inaceitável. O que demonstra como caminhamos para um cenário de confronto e tensão. Quando a ditadura militar foi implementada em 1964, o “centro democrático” (sempre ele) se preparava pela eleição nos próximos anos: Juscelino era o nome principal nessa operação. Tal eleição nunca veio. Sessenta anos depois, os militares aprenderam a fazer isso muito melhor. Eles descobriram que o vocabulário da “inexistência” é muito mais sutil, se habilmente manipulado. Há de se estar preparado para isto.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.