educação
Cristovam Buarque: Populistas versus humanistas
Para enfrentar a crise ambiental, não bastam a cidadania e a democracia, inventadas para administrar cidades. Será preciso criar um sentimento de “planetania”, que vá além da cidadania, e uma prática de “humanocracia”, que vá além da democracia
Dificilmente um prefeito convence seus eleitores a elevar hoje o preço da gasolina, para evitar que o nível do mar suba no final do século. Ainda que tivessem solidariedade com as próximas gerações, os eleitores sabem que o problema climático é planetário, não é provocado apenas pelos carros de sua cidade.
Com seus interesses locais e visão de curto prazo, o eleitor de um país não representa a humanidade, de hoje e do futuro. Promessas de emprego, renda e consumo no presente representam melhor a vontade dos eleitores do que a ideia de salvar a Terra no futuro. Por isso, quando os governantes elaboram pactos internacionais, eles têm dificuldades em ratificar e cumprir essas decisões por seus eleitores, na hora em que os sacrifícios ficam conhecidos.
O mesmo ocorre com outros problemas do mundo global, como a imigração. O fechamento de fronteiras atrai mais apoio do que a proposta de aceitar imigrantes. Os eleitores não gostam de sacrifícios para proteger o meio ambiente, nem medidas de abertura de fronteiras para receber imigrantes que vão ocupar suas ruas, seus empregos, suas escolas. Para o eleitor, “nós” representa a família, a cidade ou o país, não a humanidade e o planeta.
Daí a dificuldade em obter simpatia popular para acordos como de Paris, sobre meio ambiente, e o de Marrakech, sobre migração, assinados por presidentes nacionais que serão substituídos por novos presidentes, quase sempre com ideias contrárias, quando os eleitores elegem populistas nacionalistas. A democracia, nacional e imediatista, não tem visão de longo prazo, nem é solidária internacionalmente: não é humanista.
Mesmo autores que falam dos riscos da democracia analisam a fragilidade do regime democrático na ótica dos problemas internos dos países, e não pelo fato de que a democracia não oferece solução para os problemas contemporâneos, globais e de longo prazo. Para estes autores, os problemas da democracia decorrem da maneira como líderes e partidos agem em suas disputas internas; não porque o Planeta e a Humanidade se transformaram em temas políticos, não mais apenas filosóficos, ainda que os eleitores não captam o novo sentimento e a nova lógica. A democracia ficou atrasada em relação aos avanços tecnológicos e sociais em escala global. Os limites nacionais das regras democráticas não permitem cuidar, de maneira plena, dos limites da ecologia, nem da expansão da migração.
Por isso, o debate político não está mais entre as velhas “direita” e “esquerda”, mas entre utópicos humanistas e populistas pragmáticos. E estes tendem a ganhar, até quando a pedagogia da catástrofe transformar o eleitor provinciano em um humanista. Mas quando isto acontecer, já pode ser tarde.
Para enfrentar a crise ambiental, não bastam a cidadania e a democracia, inventadas para administrar cidades. Para cuidar desse Novo Mundo será preciso criar um sentimento de “planetania”, que vá além da cidadania, e uma prática de “humanocracia”, que vá além da democracia. Mas o futuro visível não nos permite prever um eleitor globalizado em uma democracia planetária. A “humanocracia” vai exigir respeitar o voto do eleitor local e imediatista, mas sob um escudo humanista, contando com valores éticos universais que pairem acima das decisões eleitorais nacionais e imediatistas: o equilíbrio ecológico, a sobrevivência das espécies, a sustentabilidade do processo produtivo e de consumo, a solidariedade humana, independentemente da nacionalidade.
El País: Educação não é suficiente para reduzir a desigualdade no Brasil, aponta estudo
Se o país tivesse garantido educação secundária para a população desde 1994, disparidade da renda do trabalho teria caído apenas 2%. Para redução da pobreza à metade, seria preciso enormes melhorias
Por Heloísa Mendonça, do El País
O Brasil é hoje um dos países mais desiguais do mundo com quase 30% da renda nas mãos de apenas 1% dos habitantes do país. Para tentar diminuir tamanha brecha entre os ricos e os pobres, o investimento em educação quase sempre aparece como um dos remédios mais promissores. A solução frequentemente repetida para tentar resolver a desigualdade, entretanto, já é relativizada por especialistas.
Um estudo recente mostrou que optar apenas por uma política de expansão de ensino, dentro de um prazo razoável, não é suficiente para melhorar os salários e impactar na distribuição mais igualitária de renda do trabalho no país. A pesquisa foi realizada pelos sociólogos Marcelo Medeiros, do Instituto de Pesquisas Econômica Aplicadas (Ipea), Rogério Barbosa, da Universidade de São Paulo (USP), e Flávio Carvalhes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"Em termos globais, a educação já não é mais uma grande solução para os problemas de pobreza e desigualdade no Brasil. Ela pode ser vista como uma alternativa apenas num prazo muito longo", explica Medeiros.
Através de simulações com dados estatísticos, o grupo concluiu que, se desde 1994 o Brasil tivesse conseguido um sistema educacional "perfeito" em que os alunos de todo o país saíssem da escola com, no mínimo, o ensino médio completo direto para o mercado de trabalho, a desigualdade hoje teria caído apenas 2%.
A pesquisa apontou ainda que o quadro não seria muito diferente caso uma grande reforma garantisse que ninguém deixasse o sistema de ensino sem um diploma universitário. Em um caso hipotético em que todos os alunos tivessem conseguido um diploma semelhante ao de formação de professores e Ciências da Educação, uma das profissões mais mal pagas do mercado, a desigualdade teria recuado 4%.
"É uma queda muito pequena diante do grande esforço que o Brasil teria conseguido fazer para isso. Não dá mais para falar que é a educação que vai diminuir a desigualdade", afirma Marcelo Medeiros. Para o pesquisador, além desta via de combate à disparidade de renda ter um efeito menor do que se idealiza, seria necessário no mínimo meio século para conseguir educar toda a força de trabalho do país. "É tempo demais para esperar diante da urgência do problema", avalia.
Em 2017, o Brasil era o nono país do mundo com a maior desigualdade de renda, segundo o coeficiente de Gini. O mais desigual do continente americano. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano passado, o Gini foi de 0,549, conforme a renda média mensal domiciliar per capita. O indicador varia de zero a um, quanto mais próximo de zero, mais perto de uma situação ideal de absoluta igualdade.
Ensino médio é pouco
Os pesquisadores também simularam os efeitos da educação em um prazo mais longo, mas, novamente, os impactos dos estudos na queda da desigualdade foram aquém do que se imagina o senso comum. Em um cenário hipotético em que, desde 1956, todos os alunos tivessem concluído ensino médio ou tivessem o ensino superior incompleto, a desigualdade não teria caído nem 10% nos dias de hoje. Apenas em um cenário mais extremo, no qual fosse viável para todos, há mais de 60 anos, o ensino superior com retornos financeiro equivalentes aos proporcionados por um diploma em medicina, uma das carreiras mais bem pagas do país, é que a diminuição da brecha poderia chegar a um patamar substancial: 18%. O estudo ressalta, entretanto, que oferecer educação de elite para toda a força de trabalho é algo irrealista, "pelo menos em qualquer cenário futuro minimamente possível".
"O que concluímos é que ter um ensino médio é pouco para combater as diferenças de renda. O Brasil precisa massificar o acesso à universidade para ter um resultado melhor na queda da desigualdade. Nas últimas décadas, o ensino superior foi expandido, mas ainda precisa ser muito mais", diz Medeiros.
As propostas defendidas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, no entanto, parecem ir de algum modo na contramão dessa expansão. Uma das propostas dele é transferir recursos do ensino superior para o ensino básico. No seu programa de Governo, Bolsonaro ressalta que os gastos com educação no Brasil —cerca de 6% do Produto Interno Bruto— são comparáveis aos de países desenvolvidos, mas os resultados estão entre os piores do mundo. Ele propõe uma "reversão da pirâmide" de despesas para priorizar a educação básica. Para o ensino superior, o programa fala em parcerias de universidades com a iniciativa privada para desenvolvimento de novos produtos visando aumentar a produtividade no país.
O país é hoje um dos com o maior número de habitantes sem diploma do ensino médio. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mais da metade dos adultos (52%) com idade entre 25 e 64 anos não possuem esse nível de formação. E apenas 15% da população brasileira tem curso superior.
Na avaliação do pesquisador Rogério Barbosa, os dados do estudo comprovam que é preciso deixar de lado a ideia que a educação é a solução para todos os problemas. Na avaliação dele, a redução da desigualdade poderia ser atacada de forma mais rápida caso fossem adotadas medidas contra a discriminação de gênero, raça e cor no mercado de trabalho e através de uma reforma tributária que adotasse um programa que aumentasse a progressividade dos impostos.
"A educação é mais que necessária, é um requisito de cidadania, que possui inúmeros bens sociais. Mas hoje não é ela a credencial que vai te fazer ganhar mais. Os aumentos do salário mínimo, por exemplo, foram a principal política distributiva na década de 2000. Muito mais rápida e efetiva do que a educação", afirma Barbosa.
Pobreza
Com respeito à pobreza, a pesquisa "Educação, desigualdade e redução da pobreza no Brasil" mostrou que os impactos da educação são um pouco mais relevantes. No entanto, os estudiosos ponderam que o poder de redução da pobreza por essa via diminuiu, ao longo das últimas décadas, já que uma série de políticas do mercado de trabalho e de programas de assistência —como o Bolsa Família, de transferência de renda— tornaram a população menos pobre independentemente da formação escolar.
Para que o Brasil reduzisse a pobreza para menos da metade, seriam necessárias enormes melhorias, como, por exemplo, garantir a universalização da formação superior. Uma mudança ambiciosa, mas mais realista, segundo os pesquisadores, seria a de garantir que ninguém saísse da escola sem o ensino médio completo. No entanto, mesmo com esse nível de instrução da população, a pobreza ainda seria igual a três quartos da atualmente observada.
Monica De Bolle: Não fossem o gogó e os pés...
Seu objetivo era descobrir em que medida diferenças de temperamento entre os sexos eram culturalmente, não biologicamente, determinadas.
Não fossem o gogó e os pés... Sai a figura oculta que é um cachorro atrás, entra o marxismo cultural. Sai a saudação à mandioca, entra a ideologia de gênero. Ricardo Veléz Rodríguez, filósofo, teólogo e futuro ministro da Educação do governo Bolsonaro, condena a tal da ideologia de gênero, que, segundo ele e todos os ultraconservadores de sua estirpe que hoje pipocam mundo afora, é uma afronta aos valores tradicionais cristãos. Trata-se, segundo ele, de ideologia “destinada a desmontar os valores tradicionais de nossa sociedade, no que tange à preservação da vida, da família, da cidadania, em soma, do patriotismo”. Assim como o novo chanceler de Bolsonaro, o futuro ministro da Educação mantém, desde 2009, um blog em que expõe suas ideias. Apropriadamente, o blog chama-se “Rocinante”, cavalo virtual em que monta Vélez Rodríguez para lutar batalhas quixotescas contra moinhos de vento como a “doutrinação de esquerda nas escolas”. Vélez Rodríguez, quem poderia imaginar, quer estocar o vento da ideologia de gênero, trancando-o num armário bem fechadinho.
Mas o que é ideologia de gênero? De acordo com alguns estudos e análises — sérios — da área de gender studies, a ideologia de gênero condenada por setores ultraconservadores mundo afora seria a visão de que gênero não tem relação com diferenças biológicas e de que pode ser simplesmente fruto de uma escolha individual. Segundo os detratores da ideologia de gênero — expressão cunhada por eles —, ela seria linha de pensamento perigosa que poderia contaminar as crianças e destruir a democracia. O movimento anti gênero e anti-ideologia de gênero marcou presença nos ataques à visita da filósofa Judith Butler ao Brasil há pouco mais de um ano, no repúdio ao referendo sobre o acordo de paz do ex-presidente colombiano Juan Manuel Santos com as Farc em 2016, nas campanhas pela reforma da constituição distrital no México em 2017 e durante a votação final sobre a lei que acabaria com a proibição da interrupção da gravidez promulgada por Augusto Pinochet no Chile, também em 2017 . Esses são apenas alguns exemplos de como o rechaço à chamada ideologia de gênero vem se espalhando na América Latina com o fervor ultraconservador que se alastra como epidemia de fé e de rejeição à ciência.
Sobre a ciência, não resisti e fui reler trechos do fabuloso livro da antropóloga Margaret Mead publicado em 1935, Sexo e temperamento. Para escrever sua obra, Mead viajou para a Papua-Nova Guiné, espécie de paraíso dos antropólogos devido à imensa diversidade étnica e cultural do arquipélago ao norte da Austrália. Meu interesse pelo país é antigo — o visitei em quatro ocasiões diferentes no ano de 2001 e lá permaneci durante um mês a cada visita. Portanto, passei quatro meses na Papua-Nova Guiné, país que muitos brasileiros provavelmente não saberão localizar no mapa. Fui parar lá pois na época trabalhava no Fundo Monetário Internacional e precisávamos monitorar o empréstimo que havíamos dado ao governo da Nova Guiné. Foi o país mais fascinante que visitei, mas divago.
Margaret Mead foi para lá no início dos anos 30 e ficou por dois anos para conduzir uma pesquisa pioneira sobre a consciência de gênero. A Papua-Nova Guiné é o país ideal para estudar culturas isoladas, pois o terreno montanhoso da ilha principal, a densa floresta e a falta de infraestrutura — até hoje, só há estradas num raio de cerca de 20 quilômetros da capital, Port Moresby — tornavam muito difícil o contato entre diferentes povos primitivos.
Ao estudar três culturas diferentes, Mead encontrou divergências significativas nos padrões de temperamento observados em homens e mulheres. Em um dos povos, homens e mulheres mostravam-se dóceis, gentis e cooperativos. Em outro, a mulher era agressiva, dominadora, enquanto o homem era submisso e emocionalmente dependente. No terceiro, tanto homens quanto mulheres mostravam-se violentos e agressivos, em luta constante por poder e posição hierárquica. O trabalho pioneiro de Mead revelou as profundas diferenças entre o sexo biológico e a construção cultural do que entendemos por gênero. Desde então, a literatura científica corroborou sua pesquisa e a ampliou enormemente.
Concluo esse artigo com duas reflexões. A primeira: como seria bom se o novo ministro da Educação passasse dois anos na selva da Nova Guiné. A segunda: “Super vitamina dos reflexos, tão complexos de ambos os sexos”. Dá um Close nela.
El País: Do ensino básico ao ENEM, o que o futuro ministro de Bolsonaro pode mudar na Educação
Afinado com Secretaria de Privatizações, Vélez Rodríguez é visto como nome ideal para tirar do papel as propostas de governo bolsonaristas que vão além da questão ideológica
Indicado por Olavo de Carvalho, ícone da extrema direita e um dos gurus intelectuais de Jair Bolsonaro, o filósofo Ricardo Vélez Rodríguez não esconde seu apreço pelo golpe militar de 1964, a inclinação “antimarxista” e o ímpeto em desconstruir uma suposta “ideologização” nas escolas. Entretanto, para além dos discursos ideológicos, o futuro chefe da Educação terá missões complexas à frente de uma das pastas mais visadas durante o período de transição. Tanto pelo círculo próximo do presidente eleito quanto por setores ultraliberais e da bancada evangélica, o 10º ministro do Governo do PSL é encarado como a pessoa certa para colocar em prática as propostas de campanha no setor educacional.
Apesar de acadêmico e sem histórico em gestão de políticas públicas, Vélez Rodríguez venceu a disputa pela indicação ao cargo com nomes mais tarimbados, como o ex-secretário de Educação de Pernambuco, Mozart Neves, descartado por ter um perfil considerado “técnico demais”. Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o professor vai administrar logo em sua primeira experiência executiva um orçamento de aproximadamente 120 bilhões de reais. “Como se trata de um outsider, é difícil prever quais medidas ele [Vélez Rodríguez] vai priorizar. Mas, por suas posições, será no mínimo um guardião da ideologia de Bolsonaro”, afirma Luiz Carlos de Freitas, pesquisador aposentado da Unicamp.
Em nota emitida nesta sexta-feira, o novo ministro sinaliza caminhos que deve seguir no comando do MEC. No campo filosófico, ele voltou marcar posição criticando o que chamou de “instrumentalização ideológica da educação em aras de um socialismo vácuo” ao longo dos governos petistas. “Pretendo colocar a elaboração de normas no contexto da preservação de valores caros à sociedade brasileira, que, na sua essência, é conservadora e avessa a experiências que pretendem passar por cima de valores tradicionais ligados à preservação da família e da moral humanista”, pontuou, em aceno a movimentos conservadores como o Escola Sem Partido.
Já no aspecto prático, indicou que sua política educacional dará mais autonomia a Estados e municípios, em consonância com o mantra “menos Brasília e mais Brasil” difundido pela cúpula bolsonarista. “O Estado brasileiro, desde Getúlio Vargas, formatou um modelo educacional rígido que enquadrava todos os cidadãos, olhando-os de cima para baixo, deixando em segundo plano a perspectiva individual e as diferenças regionais.” Diante da perspectiva de o Governo deixar de lado o Plano Nacional de Educação (PNE), um conjunto de metas e estratégias elaborado em 2014 que determina as diretrizes da política educacional em todo o país, no período de 10 anos, em prol de uma estratégia de fragmentação, especialistas da área temem uma ruptura brusca com o projeto unificado para o sistema de ensino no Brasil.
“O Governo Federal tem de coordenar a educação por meio de uma estratégia nacional e políticas públicas que visem avanços em larga escala”, diz Olavo Nogueira Filho, diretor do movimento Todos Pela Educação. Às vésperas do segundo turno da eleição presidencial, a entidade divulgou um posicionamento em que destacava a necessidade de priorizar ações de abrangência a todo território brasileiro, como a valorização dos professores e o aprimoramento da alfabetização de crianças até 8 anos de idade. O temor de instituições suprapartidárias que ajudaram a construir o PNE é de que, a partir da sinalização de Vélez Rodríguez, não só as diretrizes nacionais sejam abortadas pelo novo Governo, mas também as premissas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que orienta disciplinas e material didático para a educação básica. “A base é fruto de uma ampla discussão com a sociedade”, afirma Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). “A educação brasileira já tem uma direção que precisa ser mantida, respeitando as metas estipuladas.”
Por outro lado, a corrente do ultraliberal vê com bom olhos a regionalização proposta por Bolsonaro, em defesa de mais autonomia a Estados e municípios na definição de metas e prioridades na educação. O Instituto Liberal do Rio de Janeiro celebrou a escolha do novo ministro, a quem se refere como “um gigante em nossa história” – Vélez Rodríguez é colaborador da organização –, assim como enalteceu a indicação do empresário Salim Mattar para a Secretaria de Privatizações. Dono da Localiza, maior empresa do setor de aluguel de carros no país, ele está encarregado de definir quais estatais serão privatizadas a partir de 2019, mas também deve ter papel determinante no enxugamento do Estado preconizado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com possíveis desdobramentos no MEC. “A lógica liberal para a educação passa pela economia e se encaixa no conjunto das privatizações. Possíveis mudanças no modelo de financiamento educacional não serão conduzidas no Ministério da Educação”, afirma Luiz Carlos de Freitas.
Uma das possíveis mudanças citadas pelo especialista é o “voucher educação”, que estipula a distribuição de vales para as famílias escolherem um colégio privado e matricularem seus filhos e tem como grandes entusiastas Paulo Guedes e Salim Mattar. A proposta é inspirada em fórmulas já testadas em países como Estados Unidos e Chile, que adotou os vouchers durante a ditadura de Augusto Pinochet, na década de 80, e constava no plano de governo de João Amoêdo, do NOVO, partido que recebeu apoio financeiro do dono da Localiza. Ultraliberal convicto, Mattar defende ainda aprofundar a formação técnica e profissional, já prevista na reforma do ensino médio homologada pelo MEC no início da semana. Para o futuro ministro de Privatizações, as escolas devem preparar os alunos para o mercado de trabalho. Ele financia em Minas Gerais um projeto que oferece aulas de empreendedorismo a estudantes de colégios públicos. Em suas palestras, Mattar costuma citar o exemplo pessoal, contando que tinha o sonho de viajar o mundo e virar pianista na adolescência, mas acabou desincentivado pelo pai que o convenceu a abrir seu próprio negócio, ao defender a expansão do ensino profissionalizante.
Tanto Mattar quanto Vélez Rodríguez comungam da intenção de “criar um ambiente favorável ao empreendedorismo no Brasil”, destacada pelo plano de Governo de Bolsonaro –o que é uma vertente valorizada, mas a maioria dos especialistas discorda da dicotomia entre "formar para a vida" ou para ser um professional e para o "mercado de trabalho". Nesse sentido, ainda não há definição sobre uma possível transferência do ensino superior para a pasta de Ciência e Tecnologia, sob o comando do astronauta Marcos Pontes. Antes disso, deverá ser discutida a proposta de cobrar mensalidade em universidades públicas, que conta com a simpatia de Paulo Guedes. Outro foco do MEC é a ampliação do ensino à distância (EaD), que Bolsonaro entende como forma eficaz para se combater a suposta doutrinação, ao estendê-la também ao ensino fundamental da rede pública, sobretudo em áreas rurais – a reforma do ensino médio já prevê até 30% de EaD para alunos da modalidade.
Por fim, o novo ministro da Educação tem pela frente a incumbência de comprar briga com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), órgão vinculado ao MEC que elabora as provas do ENEM. Bolsonaro entrou em rota de colisão com a presidente do instituto, Maria Inês Fini, depois de protestar contra uma questão do último exame que citava como exemplo o Pajubá, dialeto falado pela comunidade LGBT. O presidente prometeu fazer mudanças nas provas, deixando claro o intuito de avaliá-las pessoalmente antes da aplicação o que, pelas regras atuais, é ilegal. Em seu blog, Vélez Rodríguez já revelou o alinhamento às críticas ao ENEM, que ele qualifica como um “instrumento de ideologização para auferir a capacidade dos jovens no sistema de ensino”.
Embora sirva mais para inflamar os ânimos entre militantes favoráveis e de oposição ao governo Bolsonaro do que para produzir efeitos práticos na política de educação, a batalha cultural deve ocupar boa parte dos discursos da gestão Vélez Rodríguez. Colombiano naturalizado brasileiro, ele surge como potencial articulador da integração de grupos similares ao Escola Sem Partido pela América Latina. Sua ascensão ao ministério recebeu ao menos o visto positivo da bancada evangélica, que já iniciou contatos com movimentos de outros países onde Bolsonaro ostenta a imagem de liderança regional que irá consolidar os valores e costumes das famílias conservadoras, a começar pelas escolas.
VEJA OS CAMINHOS E ENTRAVES PARA MUDANÇAS NA POLÍTICA EDUCACIONAL
Veto a livros e novas disciplinas
Para rever materiais didáticos sobre ditadura e criacionismo e instituir o ensino de moral e cívica nas escolas, o novo Governo depende do Conselho Nacional de Educação, órgão independente que auxilia as tomadas de decisão do MEC e é responsável pela definição da Base Curricular. Como os mandatos de conselheiros do órgão foram renovados por Michel Temer, Bolsonaro teria de esperar pelo menos dois anos para mudar parte da mesa diretora, que hoje prioriza o enxugamento de disciplinas e tem praticamente fechada a lista de livros didáticos recomendados nas escolas. Se quiser impor as ideias de seus correligionários já no início de mandato, o novo Governo precisaria transferir para o Congresso o poder de determinar as disciplinas no currículo, rompendo com as instituições que hoje ditam os rumos da educação brasileira.
Educação sexual
O projeto Escola sem Homofobia, que ganhou a pecha de “kit gay” imposta por movimentos conservadores, pretendia levar educação sexual sob a perspectiva de gênero ao ensino básico, mas não chegou a sair do papel. Em resposta, parlamentares da bancada evangélica elaboraram o Escola sem Partido, que veta várias práticas, entre elas o uso da palavra “gênero” e da expressão “orientação sexual”. O projeto está na pauta de uma comissão especial na Câmara e pode ser aprovado ainda este ano. A educação sexual, que tanto mobiliza Bolsonaro, hoje é tratada apenas de maneira transversal com foco em sexualidade no último ano do ensino fundamental.
Ensino à distância, vouchers e regionalização
O EaD já está previsto (até 30% da carga horária) na reforma do ensino médio homologada pelo MEC esta semana. Para expandi-lo ao ensino fundamental, assim como aumentar a autonomia de estados e municípios na condução de metas e estratégias educacionais em detrimento do Plano Nacional de Educação, também seria preciso romper com as diretrizes do Conselho. Os vouchers, por sua vez, dependem da seleção e credenciamentos de colégios particulares que receberiam subsídios do Estado. Porém, o baixo desempenho das instituições privadas surge como entrave para a proposta. Apesar de terem melhor média no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), somente 23% das escolas particulares conseguiram alcançar as metas estabelecidas pelo MEC, contra 42% das escolas públicas.
Colégios militares
O plano de Governo de Bolsonaro promete a construção de um colégio militar em cada capital brasileira. O custo por aluno nesse modelo é três vezes maior que o da escola pública. Segundo especialistas, a proposta, que depende de alto investimento, tem baixo alcance no universo de 40 milhões de estudantes do país.
ENEM
O Inep só prevê mudanças no exame a partir de 2021, depois da aplicação das novas diretrizes do ensino médio. As provas são elaboradas por uma comissão independente de professores e passam por um rígido e sigiloso processo de revisão, seguindo as matrizes da BNCC. Antecipar alterações na dinâmica do ENEM, incluindo revisão de conteúdo e aprovação do presidente, dependeria de manobra semelhante ao rompimento institucional com o Conselho Nacional de Educação para redefinição de material didático nas escolas. No caso, há de se desautorizar o Inep, que tem posição contrária à ingerência governamental na prova.
Mensalidade e fim das cotas raciais
Para mexer nas universidades, o futuro Governo depende do Congresso. Mais precisamente da aprovação, pelos parlamentares, de alterações na Constituição – a gratuidade está prevista em todos os níveis do ensino público e as cotas são garantidas por lei federal de 2012. As emendas precisam de aprovação em dois turnos na Câmara e no Senado, com maioria qualificada (três quintos).
Cristovam Buarque: Partido sem Escola
Uma das artimanhas das forças políticas conservadoras é esconder os problemas da sociedade para desviar a atenção da população. Um exemplo é a obsessão com que muitos defendem a ideia de “escola sem partido”, para esconder a realidade de que nossos partidos e nossos políticos não passaram pela Escola. Para esconderem a falta de escolas com qualidade para todos, defendem que é preciso impedir que elas debatam livremente nossos problemas e soluções.
Querem evitar o despertar dos alunos para a necessidade do ensino com qualidade para todos, garantindo que o Brasil não desperdiçará seus cérebros; colocando os filhos dos pobres em escola com a qualidade daquelas onde os filhos dos ricos estudam. Além de esconder que no Brasil os pobres não têm escola com qualidade e os ricos têm escolas com qualidade medíocre, a “escola sem partido” levará professores e alunos a um campeonato de denúncias contra ideias dentro de sala de aula, onde será implantado o terror: a “escola sem partido” será “escola aterrorizada”.
Muito mais do que escola sem partidos, o Brasil precisa de partidos e políticos que tenham passado pela escola, que conheçam história e saibam que houve tempo de “escola sem partido”, na Rússia Soviética, na Alemanha nazista, no Portugal salazarista, na Itália fascista, na Espanha franquista, no Brasil da ditadura. Não sabem e não percebem os danos decorridos na formação da juventude durante aqueles períodos; ou sabem e desejam aqueles tempos de volta. Na verdade, eram tempos de escola com partido único: o partido no poder, com ideia única para explicar a realidade social, política e mesmo científica. Uma escola precisa de todos os lados do mundo das ideias, não de nenhum partido ou um partido único.
É certo que devemos impedir a dominação política por partidos, com narrativas que não respeitam outras opiniões e que tentam doutrinar, no lugar de ensinar. Isso tem ocorrido nos últimos anos, na Universidade de Brasília, por exemplo, onde é proibido debater a diferença entre golpe e impeachment e comparar 2016, no caso de Dilma, com 1992, no caso Collor. Ainda na UnB, filha da liberdade e da democracia, há hoje impeachment para manifestações de apoio ao Bolsonaro.
O caminho não é proibir o debate, denunciar o professor que manifesta uma opinião, o caminho é abrir o debate para todas as opiniões. Se na universidade prevalece uma única narrativa, a falha não é do partidarismo de alguns professores doutrinadores sem capacidade de diálogo. De fato, grande parte de nossos alunos universitários sofrem lavagem cerebral, acreditam em fantasmas históricos que seus partidos lhes ensinam, são intolerantes com ideias diferentes das que receberam como doutrina. A solução não é proibir o partido dominante, nem substituí-lo por uma nova dominação.
A solução não virá mais para os atuais universitários, já são geração perdida. A saída é investir na educação de base, com total liberdade para o debate de todas as ideias, todos os partidos — uma “escola sem censura” que defenda a necessidade de professores bem remunerados, bem preparados, bem dedicados, em escolas bem equipadas, todas públicas e com compromisso em horário integral para formar uma nova geração. Manter escolas nas atuais condições de penúria intelectual, e ainda mais sob censura, com os alunos transformados em denunciadores e não em participantes dos debates, será cair no desastre dos países que passaram por isso no passado. Precisamos de “partidos com escola”, e não de “escola sem partido”.
Quando olho os próximos anos, a sensação de alívio por não ter os compromissos da agenda do mandato (agora mesmo que escrevo da China onde participo de seminário sobre economia dos BRICS) é substituída pela sensação de frustração, por não poder votar contra “escola sem partido”, nem poder continuar a luta por um “país com escola” de qualidade para todos, criando eleitores e dirigentes educados. Fica a frustração de saber que meus substitutos provavelmente votarão pela “escola sem partido”.
Mesmo longe do parlamento, continuarei defendendo que a saída não é proibir partidos nas pobres escolas que temos, mas construir escolas de qualidade, onde todas as ideias e todos os partidos possam participar do debate, inclusive sobre “escola sem partido”, como atualmente. Isso não será permitido se a proposta de censura for aprovada, porque “partido sem escola” constitui um partido que deseja negar o direito de “partidos na escola”. (Correio Braziliense – 20/11/2018)
El País: Educação, o primeiro ‘front’ da guerra cultural do Governo Bolsonaro
Adepta do Escola sem Partido, futura gestão cogita revisionismo sobre a ditadura, além de incentivar vigilância a professores para “expurgar Paulo Freire” das escola
Antes mesmo de ganhar a eleição, Jair Bolsonaro já aparecia em vídeos convocando pais e alunos a delatar professores que promovam, segundo suas palavras, “doutrinação ideológica”. Agora, políticos do PSL incentivam o patrulhamento contra “o comunismo e a ideologia de gênero”. Eleita deputada estadual por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo criou um canal para denúncias contra professores. Nesta quinta-feira, a Vara da Infância e da Juventude acatou representação do Ministério Público Estadual e considerou ilegal o canal mantido por Campagnolo, determinando também a retirada do ar de vídeos em que ela aparece conclamando pais e alunos a denunciarem.
Não se trata de iniciativas isoladas, pelo contrário. A pregação contra a suposta sexualização de crianças nas escolas e a “doutrinação” de esquerda na educação são facetas centrais da campanha vitoriosa de Bolsonaro, que também estão presentes na estratégia de mobilização de forças conservadoras e de extrema direita pelo mundo, parte das chamadas “guerras culturais”. Uma semana após a votação, já há sinais de que a Educação será um dos primeiros fronts do bolsonarismo que chega ao poder.
Na Câmara dos Deputados, na euforia após a vitória do capitão reformado do Exército, o tema também se moveu. O projeto “Escola sem Partido”, que veta várias práticas, entre elas o uso da palavra “gênero” e da expressão “orientação sexual” nas escolas, foi pautado para ser discutido em uma comissão especial. A votação acabou, no entanto, adiada. "Esse tema não é apenas do Parlamento. Ganhou as ruas. É um tema do Brasil. Pautaremos na próxima semana para debate democrático", prometeu o deputado presidente da comissão, Marcos Rogério (DEM-RO).
Os efeitos já são sentidos em escolas e universidades pelo país, que registraram nos últimos dias episódios de denúncias a professores e rusgas entre apoiadores e detratores de Bolsonaro. Em Fortaleza, o professor de história Jam Silva Santos foi acusado de doutrinação após exibir o filme Batismo de Sangue, baseado em um livro de Frei Betto sobre a ditadura, a estudantes do ensino médio no colégio Santa Cecília. Um aluno gravou trecho do filme que parou nas redes sociais, onde Santos sofreu linchamento virtual sob a alegação de crítica velada a Bolsonaro. Na segunda-feira, ele foi recebido no colégio com aplausos dos estudantes, que consideraram injustas as críticas ao professor. Ele exibe o filme em suas aulas há cinco anos e nunca havia tido problemas semelhantes.
De acordo com o Sindicato dos Professores do Ceará (APEOC), os casos de denúncias por suposta "doutrinação ideológica" têm crescido no Estado este ano. Desde janeiro, pelo menos cinco professores, além de Jam Silva Santos, estiveram sob a mira de críticos nas redes sociais. Um deles é Euclides de Agrela, professor de história e sociologia da Escola Estadual Otávio Terceiro de Farias, em Fortaleza. Uma discussão entre ele e um aluno, expulso de sala depois de ofendê-lo, foi filmada e viralizou em páginas de apoio a Bolsonaro, que atrelaram a fala do professor sobre atitudes “nazifascistas” atribuídas ao ex-capitão à sua militância pelo PSOL, partido ao qual é filiado.
Agrela admite que se exaltou e teve reação descabida à confrontação do estudante bolsonarista, mas condena a divulgação fora de contexto dos vídeos em sala de aula, que lhe rendeu ameaças de morte. “Tive que sair de casa por alguns dias. Um clima de terror.” O vice-presidente da APEOC, Francisco Reginaldo Pinheiro, afirma que o sindicato criou um canal para prestar apoio a educadores vítimas de intimidação e patrulhamento nas escolas. “Defendemos a liberdade de ensino. Existem espaços adequados para queixas de pais e alunos. Expor o professor em rede social é perigoso, coloca sua segurança em risco. Infelizmente isso está se tornando recorrente por causa da polarização ideológica motivada pela política”, diz Pinheiro.
Paulo Freire e os grandes males
O plano de governo em educação é considerado vago em vários pontos como valorização do professor ou reforma do ensino médio, mas a equipe de Bolsonaro explícita bem suas prioridades. Aponta que “um dos maiores males atuais é a forte doutrinação” e promete “expurgar a ideologia de Paulo Freire”, o patrono da educação brasileira, embora atualmente as bases curriculares tanto do ensino fundamental quanto do médio não façam referência aos métodos do educador. “A rejeição a Paulo Freire é uma estratégia narrativa”, afirma Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e ex-candidato ao Senado pelo PSOL. “Porque ele simboliza o estímulo ao senso crítico e a própria pedagogia, que, na visão de Bolsonaro, significam doutrinação.”
Cara não está sozinho na avaliação. “O que Paulo Freire preconiza é aceito no mundo inteiro. Estive em Cingapura, primeiro lugar no (teste educacional) Pisa, e eles citaram Paulo Freire como alguém que inspira o país a buscar as aspirações educacionais que desejam”, disse à revista Nova Escola Cláudia Costin, coordenadora do Centro de Excelência e Inovação de Políticas Educacionais (CEIPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-diretora do Banco Mundial.
Outro desejo do futuro Governo é, também, a reinserção no currículo escolar das disciplinas de educação moral e cívica, algo abolido após o fim da ditadura militar. Durante a campanha, o general Aléssio Ribeiro Souto, um dos designados por Bolsonaro para elaborar o plano de educação, chegou a questionar a teoria da evolução e defender o criacionismo no ensino de ciências. “Se a pessoa acredita em Deus e tem o seu posicionamento, não cabe à escola querer alterar esse tipo de coisa”, afirmou Souto.
Souto também prega uma revisão do período ditatorial nas aulas de história, exigindo que se conte “a verdade” sobre o regime. “É uma concepção autoritária da educação”, diz Luiz Carlos de Freitas, pesquisador e professor aposentado da Unicamp. “Enxergam qualquer pensamento diferente do deles como um risco, que deve ser combatido com disciplina e repressão. E, ao combaterem uma possível ideologia com a imposição de suas crenças, acabam caindo na contradição de promover doutrinação às avessas. É um retrocesso.” Atualmente, ao contrário do material didático adotado em colégios militares, que se referem ao golpe militar como “revolução de 1964”, os livros do MEC definem o regime como uma ditadura. O criacionismo consta na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Já a educação sexual, que tanto mobiliza Bolsonaro, já vem sendo atacada há anos e é tratada apenas de maneira transversal com foco em sexualidade no último ano do ensino fundamental.
Os obstáculos para colocar as ideias em prática
Para colocar em prática as propostas direcionadas à área a partir do próximo ano, Bolsonaro terá de entrar em rota de colisão com as diretrizes do Plano Nacional de Educação (PNE) e da Base Nacional Comum Curricular, além de apelar à influência no Congresso. As propostas de revisão de currículo nas escolas se chocam com determinações recentes do Conselho Nacional de Educação, órgão independente que auxilia as tomadas de decisão do MEC e é responsável pela definição da Base Curricular. A reforma do ensino infantil e fundamental já está finalizada, enquanto a do ensino médio deve ser concluída até o fim do ano. Como os mandatos de conselheiros do órgão foram renovados por Michel Temer, Bolsonaro teria de esperar pelo menos dois anos para mudar parte da mesa diretora, que hoje prioriza o enxugamento de disciplinas e tem praticamente fechada a lista de livros didáticos recomendados nas escolas.
Por muito tempo nossas instituições de ensino foram tomadas por ideologias nocivas e inversão de valores, pessoas que odeiam nossas cores e Hino. Hastear uma bandeira do Brasil não tem relação com política, mas com o orgulho de ser brasileiro e a esperança de tempos melhores.
Se quiser impor as ideias de seus correligionários já no início de mandato, entre elas o revisionismo da ditadura, que, segundo o general Souto, passa pela eliminação de livros que “não tragam a verdade sobre 1964 [ano do golpe militar]”, criacionismo, ensino de moral e cívica e foco nas matérias de ciência, matemática e português, o novo governo precisaria transferir para o Congresso o poder de determinar as disciplinas no currículo. “Bolsonaro já deu mostras de desprezo pelas regras do jogo democrático”, critica Daniel Cara. “O caminho para emplacar suas medidas na Base Curricular seria um rompimento institucional com o Conselho.”
Olavo Nogueira Filho, diretor do movimento Todos Pela Educação, lamenta que os planos para educação não tenham sido debatidos na campanha e critica a falta de profundidade dos projetos de Bolsonaro, cujo plano conclui dizendo que a educação precisa “evoluir para uma estratégia de integração” entre os governos federal, estadual e municipal, sem maiores detalhes. “Infelizmente, o debate sobre políticas educacionais não ocorreu nessas eleições. Há muitas propostas em discussão na esfera suprapartidária. Espero que o novo governo esteja disposto a ouvi-las para buscar avanços duradouros na área.”
PAGAR POR UNIVERSIDADE PÚBLICA DEPENDE DE MUDANÇA NA CONSTITUIÇÃO
No plano já ventilado por apoiadores de Bolsonaro, há propostas como a cobrança de mensalidade nas universidades que dependem de alterações na Constituição – a gratuidade está prevista em todos os níveis do ensino público. Para revogar as cotas raciais, desejo antigo do presidente de extrema direita, que pretende manter apenas as cotas sociais, ele teria de mexer na lei de 2012 que reserva vagas para estudantes negros e indígenas nas instituições federais. As emendas dependeriam de aprovação em dois turnos na Câmara e no Senado. Pelos acenos favoráveis a seu partido, que elegeu a segunda maior bancada de deputados, o governo não teria grandes entraves para aglutinar maioria em torno dos projetos, mas corre o risco de desperdiçar capital político previsto para reformas que lhe exigirão mais esforços, como a tributária e a da Previdência.
Dentro da intenção de levar ordem e disciplina ao ambiente escolar, se destaca a proposta de construir um colégio militar em cada capital brasileira. Hoje existem 13 instituições de ensino fundamental e médio vinculadas ao Exército no país, sendo 11 delas localizados em capitais. O custo por aluno nesse modelo é três vezes maior que o da escola pública. Além do investimento, o desempenho dos colégios militares costuma ser inflado pelo fato de adotarem processos seletivos na admissão de estudantes. A promessa de campanha, entretanto, teria pouco impacto no contexto de problemas complexos da educação nacional. “O Brasil tem mais de 40 milhões de alunos. Somos um país que carece de políticas públicas para resolver a dificuldade de acesso e permanência nas escolas, especialmente entre a população mais vulnerável. Os colégios militares são um recurso de baixo alcance, que, no fim das contas, acabam beneficiando os estudantes de melhor condição”, afirma Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
Cristovam Buarque: Jovens nonagenários
A melhor palavra para definir cada um desses três nonagenários exigiria reunir os conceitos de incansável-estimulante-antecipador-professor — homem de ação — estadista de ideias
Entre 27/5 e 1º/8 de 1928, nasceram três brasileiros que marcariam a história do Brasil na área do ensino superior e do pensamento nacional: José Goldemberg, filho de imigrantes judeus vindos da Rússia; Cândido Mendes, filho da aristocracia católica do Rio de Janeiro; e Heitor Gurgulino, filho de um comerciante cearense e uma jovem alemã recém-chegada. Apesar de uma idade ligeiramente menor que a deles, tenho o privilégio de pertencer à mesma geração e ter convivido com os três.
Fui reitor da UnB em período coincidente com Goldemberg, na USP. Fizemos parte do primeiro grupo de reitores posteriores ao regime militar, quando a comunidade acadêmica se deslumbrava com a democracia e caía na tentação de pôr em oposição Liberdade e Mérito. Fizemos parte dos que não abriam mão da busca de mérito na instituição acadêmica. Defendemos a importância da estrutura multidisciplinar no ensino superior, iniciamos a revolução da internet, promovemos o desenvolvimento da pesquisa tecnológica, em cooperação com o setor produtivo. Esta convivência me passou admiração pelo homem público, estadista da ciência e do ensino universitário, cientista e professor.
Tomei conhecimento de Cândido Mendes nos anos 60, quando eu ainda jovem e ele já era um acadêmico ativo na formulação do pensamento brasileiro que serviu de base à formação intelectual de minha geração. Nos últimos anos, convivi pessoalmente com ele em visitas à Universidade Cândido Mendes e durante os seminários que organiza sob o título de Islam et Latinité, buscando construir diálogo entre os mundos Islâmico e Cristão. Estes seminários fazem parte do patrimônio mundial na busca do diálogo inter-religioso e do entendimento dos problemas contemporâneos. Filho da aristocracia católica, Cândido fez uma opção pelos pobres e optou pela racionalidade sem preconceito contra qualquer credo; humanista cosmopolita é um vigoroso nacionalista. Dele reconheço, sobretudo, a generosidade com que se entrega aos amigos que faz e às causas que defende.
Heitor Gurgulino é um jovem nonagenário que tem uma bicicleta em cada um dos seus endereços. Quando lhe perguntei sobre as dificuldades no tratamento de um câncer, reclamou do trânsito que lhe tomava muito tempo nos trajetos entre a casa e o hospital. Heitor foi professor assistente de física na criação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA); fundador e primeiro reitor da Universidade Federal de São Carlos. Por 10 anos, ficou à frente da reitoria da Universidade das Nações Unidas e construiu o Câmpus da UNU, em um majestoso prédio, em uma das mais refinadas áreas da capital japonesa. Ocupou também o cargo de Subsecretário Geral das Nações Unidas e participou das mais importantes conferências da ONU. Aos1990 anos, é presidente da Academia Mundial de Arte e Ciência. Por tudo isso e por sua intensa atividade em dezenas de órgãos internacionais relacionados com educação, ciência, tecnologia, cultura, ele é o mais bem-sucedido brasileiro no cenário mundial da gestão acadêmica e da promoção de ciência.
A melhor palavra para definir cada um desses três nonagenários exigiria reunir os conceitos de incansável-estimulante-antecipador-professor — homem de ação — estadista de ideias. Os três fazem parte do seleto grupo de seres humanos que, ao longo do século 20 e início do 21, estiveram à frente de seu tempo, refletindo sobre a crise e propondo alternativas para a civilização, na encruzilhada que atravessamos: véspera de catástrofes ou de utopias. Deles tenho a imagem da juventude permanente: todos continuam em plena atividade intelectual, instigando, criando, contestando.Em um país que insiste em se manter como um dos piores do mundo na qualidade e na distribuição da educação para sua população, é surpreendente e animador que tenhamos três personalidades, nascidas ao mesmo tempo, que deram contribuições intelectuais e políticas tão elevadas ao mundo. E que não se cansam, não perdem a crença no futuro da humanidade e não param de lutar por ela.
Um dia, anos atrás, eu disse: “Quando crescer quero ser Darcy Ribeiro”; daqui a alguns poucos anos, gostaria de ser um nonagenário como algum desses três. Há duas semanas, tivemos o primeiro dia de Brasília sem Ari Cunha. Aos 91 anos, nos deixou o jornalista que nos informava e inspirava desde a inauguração de nossa cidade. Ele também foi um jovem nonagenário.
Cristovam Buarque: A pauta dos jovens
Não sobreviveremos se não formos capazes de formular causas comuns que nos unam como povo e nos construam como nação, com coesão social e rumo histórico. A mais importante dessas causas é o cuidado e a formação de nossas crianças e jovens. Os políticos devem unificar partidos e superar divergências para atender às necessidades da pauta desse público. E para cuidar dos jovens é preciso entender os problemas da cidade e do país na ótica deles.
Para os jovens, o emprego não é apenas questão de crescimento econômico, porque sabem que a robótica e a inteligência artificial não vão criar tantos postos de trabalho quanto no tempo de seus pais. O emprego futuro será resultado de educação comprometida com empregabilidade, de leis trabalhistas flexíveis adaptadas às mudanças no mundo e da capacidade dos jovens para o empreendedorismo. Eles querem uma economia dinâmica, que sirva não apenas para crescer a produção material, mas também para aumentar o tempo livre de cada pessoa, ampliar a criação cultural e respeitar o meio ambiente.
Para os jovens, a educação precisa de professores com melhor formação e boa remuneração, que sejam bem avaliados e motivados, trabalhando em escolas bonitas, confortáveis e modernamente equipadas, todas em horário integral, onde recebam a formação de que necessitam para entender, aproveitar e transformar o mundo, fazendo-o melhor para seus filhos e netos. Mas, para os jovens, o ensino de qualidade pouco tem a ver com as escolas de hoje; acham que a educação deve se fazer com o que há de mais moderno em tecnologia da informação, com liberdade para o aluno escolher o que quer estudar, com aulas a distância, sem necessidade de presença física permanente.
Eles querem aprender a conservar a natureza, respeitar a diversidade, adquirir um ou mais ofícios que lhes permitam trabalho ao longo da vida e conhecimento para mudar de profissão se necessário; aprender a comprometer-se com a defesa da democracia, da liberdade e dos direitos civis; aumentar a produtividade na economia, o sentimento e a prática da cidadania e da solidariedade.
Os jovens sabem que o problema das drogas não será resolvido com a proibição delas; que até agora não reduziu o consumo, mas promoveu o tráfico e encheu as cadeias. Eles desejam uma sociedade que, no lugar de proibir drogas, faça com que o uso delas seja desnecessário, graças ao bem-estar social e à realização pessoal e com felicidade.
Os nossos jovens querem segurança para se locomover, estudar, viver em paz, sem medo de bala perdida ou assalto; mas para eles a violência não deve ser enfrentada apenas com intervenção policial mas, sobretudo, com a construção de uma consciência de paz na sociedade.
Os jovens não querem aposentadoria imediata, mas, para eles, a principal qualidade da Previdência é a sustentabilidade ao longo de décadas. A política não deve ser apenas sem corrupção no comportamento dos políticos, mas também feita sem corrupção nas prioridades, atendendo às necessidades sociais, e garantindo equilíbrio ecológico e estabilidade monetária; feita por políticos com dignidade, austeridade e integridade, sem uso nem defesa de mordomias, nem desperdícios.
Apesar da desconfiança, é preciso que os jovens saibam que alguns candidatos oferecerão propostas para atender a pauta deles, recuperando ou apoiando projetos que Brasília já conheceu no governo entre 1995 e 1998, tais como: Escola em Casa, Poupança Escola, Projeto Saber, Temporadas Populares, Escola Candanga, Projeto Orla, Fecitec, PAS.
A pauta para os jovens só será possível se for a pauta construída por eles próprios. Os políticos devem identificar, entender e defender a pauta dos jovens, mas são eles que escolherão os políticos. No quadro atual, é difícil um jovem acreditar na política; eles sabem, porém, que só com a participação na política será possível construir um Brasil com coesão e rumo e que isso depende do envolvimento deles. Há pouco mais de um século parecia impossível um Brasil sem escravidão, mas os jovens abolicionistas conseguiram. (Correio Braziliense – 03/07/2018)
Cristovam Buarque: Maioridade da faixa
Na semana passada, o Correio Braziliense dedicou uma página ao 21º aniversário da implantação da faixa de pedestre no Brasil, graças ao pioneirismo dessa iniciativa no Distrito Federal. Em entrevista, o professor Paulo Cesar Marques da Silva, da Universidade de Brasília (UnB), disse: “Foi uma conquista importante, é um marco de cidadania essa valorização das pessoas em relação aos veículos. Essa coisa de oferecer o espaço prioritariamente aos pedestres é boa. Mas é necessário dizer que não tivemos nenhuma mudança na lei. Essa sinalização já era prevista nos manuais. O que aconteceu foi uma conscientização, um conhecimento das pessoas. Todo esse trabalho foi muito benfeito, houve uma mudança de valores, é fato. Mas é importante lembrar que isso não aconteceu em todo o país. Nem todo mundo que dirige passou por isso 21 anos atrás. A população deve ser informada constantemente sobre a importância da faixa”.
Sem explicitar, ele percebeu que o “milagre de Brasília”, como os visitantes citam para se referir ao respeito dos brasilienses à faixa de pedestre, decorre da inversão da lógica com que o Governo do DF, entre 1995-1998, administrou a implantação desse programa que mudou a mentalidade da população. No lugar de ver a faixa como um assunto da engenharia e da legalidade de trânsito, o problema foi tratado pelo então governo como uma questão de educação. A engenharia (pintura, sinalização, escolha dos locais) e a legislação (leis e decretos) foram complementos auxiliares.
Ao tratar o problema de trânsito sob a ótica da educação, o Governo do DF, com a colaboração da mídia, especialmente do Correio Braziliense e da Rede Globo, deu um exemplo que o resto do Brasil não conseguiu reproduzir ao longo desses 21 anos, por continuar tratando o respeito ao pedestre como assunto de engenharia de trânsito.
Essa não foi a única inversão lógica no governo local, entre os anos de 1995 e 1998. No lugar de enfrentar o assunto da saúde pela engenharia para aumentar o número de leitos nos hospitais, buscou e conseguiu diminuir o número de doentes, por meio do programa Saúde em Casa, da universalização do saneamento, da redução de acidentes de trânsito, da melhoria da merenda escolar, da implantação da Bolsa Escola (permitindo às famílias mais pobres comprarem comida) e pelo pioneirismo na instalação dos kits ginástica nas quadras e praças.
Com isso, foi possível reduzir doenças e filas, simplificar atendimento, reduzir gastos e sofrimento, oferecer dignidade e garantir a todos um serviço que, hoje, está degradado. Para o mandato seguinte, que não ocorreu, a inversão da lógica na saúde estaria em garantir checape anual para qualquer pessoa, independentemente da renda. O resultado é que, sem grandes obras, o governo deixou leitos sobrando, pessoas saudáveis, um sistema funcionando.
A implantação do PAS (Programa de Avaliação Seriada), cuja ideia foi do professor Lauro Moure (UnB), é prova dessa inversão. No lugar de fazer o vestibular para eliminar os alunos que não aprenderam o básico ao longo do ensino médio, o governo de 1995 a 1998, em cooperação com a UnB, preferiu usar a universidade para incentivar os alunos a aprenderem o máximo, estudando ao longo dos três anos, e não mais apenas no último ano e em um cursinho.
A própria Bolsa Escola, que, de tanto êxito, espalhou-se pelo Brasil e pelo mundo, fazendo Brasília ser reconhecida como o berço dos programas de transferência de renda condicionada à educação, é um exemplo de inversão da lógica: no lugar de deixar as crianças pobres trabalhando e fora da escola, nosso programa utilizou o potencial das mães para garantir que seus filhos frequentassem as aulas. Assegurou uma renda básica à família e, ao mesmo tempo, educação para as crianças.
Já a Poupança Escola — implementada no governo entre 1995-1998 —, no lugar dos elevados custos na educação devido à repetência, preferiu garantir um prêmio para o aluno que fosse aprovado, tomando o cuidado de não entregar esse dinheiro ao fim de cada ano, mas depositá-lo em caderneta de poupança, para só ser retirado se o aluno concluísse o ensino médio. A faixa de pedestre foi um bem-sucedido projeto da lógica invertida criado pelo governo da época, mas apenas um deles; muitos outros até hoje continuam, 21 anos depois. (Correio Braziliense – 10/04/2018)
Cristovam Buarque: Prisioneiros do presente
Aumento da renda depende da educação de alto nível
A Rede Globo vem promovendo uma campanha em que apresenta depoimentos de brasileiros sobre a questão: “o Brasil que eu quero”. Todos manifestam o desejo de honestidade, saúde, educação, preservação do meio ambiente. Os institutos de pesquisas dizem que o eleitor busca um presidente capaz de vencer a corrupção, a violência, as desigualdades. Mas ninguém indica qual o caminho para fazer o nosso país ser “como queremos” nem como deve ser o seu futuro, no longo prazo, depois que os problemas atuais forem resolvidos.
Nem os eleitores nem os 15 pré-candidatos a presidente apresentam propostas de “como fazer!” para realizar os desejos dos brasileiros, tampouco para onde conduzir o país nas próximas décadas, ao longo do Terceiro Centenário de nossa independência. Há um excesso de desejos e de candidatos, mas uma escassez de ideias-força e de propostas para adquirir coesão e construir rumo.
A população brasileira quer justiça social, mas, apesar do trágico exemplo venezuelano, ainda não percebe que esta não se constrói sobre uma economia ineficiente. Também não se dá conta de que os recursos, fiscais e naturais, são limitados. Ao não perceber isso, o Brasil não entende que a realização dos sonhos no futuro vai exigir sacrifícios no presente: limitar os gastos com recursos públicos conforme a arrecadação; controlar o crescimento da produção para não ferir o equilíbrio ecológico; e evitar intervenções estatais que desorganizem o funcionamento da economia.
Ainda não faz parte de nossas ideias o entendimento de que a economia do futuro depende do conhecimento técnico e cientifico capaz de aumentar a produtividade e a criatividade; que não há como distribuir renda que ainda não existe, nem como criá-la sem educação de qualidade para todos.
Parece difícil compreender que o aumento da renda nacional depende da educação de alto nível para aumentar a produtividade. Sem isso, não tem como distribuir renda. O Brasil não tem a convicção de que é preciso impedir o desperdício de cérebros ao negar-lhes educação, principal recurso para fazer o país rico e para distribuir a riqueza.
Infelizmente, não faz parte da crença de boa parte dos brasileiros a ideia de fazer nosso país campeão em educação e em produção intelectual na ciência, tecnologia, arte, filosofia, nem que este é o caminho para fazer o Brasil que queremos. Tampouco a ideia de que nossas crianças devem estudar em escolas com a mesma qualidade, independente da renda de seus pais, sejam eles pobres ou ricos.
Os candidatos e os eleitores têm uma identificação nos sonhos, mas sem limitá-los aos recursos disponíveis, fiscais e naturais, prometem ações sem calcular seus custos, não dizem como serão financiados. Ambos parecem ter sonhos para o futuro, mas se mostram prisioneiros do presente.
Luiz Carlos Azedo: O drama dos bons políticos
O Brasil está mais ou menos como aquele cavaleiro descrito pelo escritor tcheco Franz Kafka, no conto A Partida:
— Para onde cavalga, senhor?
— Não sei direito — eu disse —, só sei que é para fora daqui, fora daqui. Fora daqui sem parar; só assim posso alcançar meu objetivo.
— Conhece então o seu objetivo? — perguntou ele.
— Sim — respondi — Eu já disse: “fora daqui”, é esse o meu objetivo.
É mais ou menos assim que vamos às eleições de 2018. As pesquisas mostram uma desorientação muito grande da maioria dos eleitores. Não é por causa da inelegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), nem em razão da liderança resiliente do deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ). O percentual de indecisos na eleição varia de 38% a 42%, considerando-se todos os candidatos pesquisados. Numa eleição relâmpago, com 45 dias de campanha, qualquer coisa pode acontecer, inclusive nada de extraordinário.
Comecemos, pois, pelo extraordinário.
Os projetos mais radicais à mesa são os de Bolsonaro e de Guilherme Boulos, o líder dos sem-teto lançado pelo PSol. Radicais de direita e esquerda, respectivamente. Ambos são regressistas do ponto de vista do papel do Estado e da relação do Brasil com o mundo. São projetos excludentes entre si, mas que têm em comum o anacronismo ideológico de direita e de esquerda. Eleitoralmente falando, Bolsonaro tem muito mais densidade do que Boulos. É beneficiado por uma certa reação conservadora de parcelas da sociedade à violência, ao desemprego e à corrupção, principalmente, o eleitorado evangélico. Boulos busca os órfãos de Lula com o antigo radicalismo petista, que não cola mais, por causa da Operação Lava-Jato.
Fora esses dois extraordinários, temos Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede), Álvaro Dias (Podemos), Geraldo Alckmin (PSDB) e Rodrigo Maia (DEM) com candidaturas formalizadas. O presidente Michel Temer ainda costeia o alambrado, como diria o falecido Leonel Brizola. E o PT não sabe ainda quem será o substituto de Lula, embora o nome mais cotado seja o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad. Os eleitores de esquerda, centro-esquerda, centro-direita e direita estão sendo disputados por essa turma. Por enquanto, todo mundo pode virar ou continar japonês.
O que pode fazer diferença na campanha para esses candidatos? Em primeiro lugar, o recall de campanhas anteriores. Casos de Marina, Ciro e Alckmin. Em segundo, os recursos financeiros e o tempo de televisão. Vantagens para Haddad, Alckmin e Maia. Em terceiro, as estruturas de poder e capilaridade partidária, idem. Quarto, a imagem do candidato em relação à Lava-Jato e às propostas que seduzam os eleitores. É aí que o jogo pode haver muita diferença. Finalmente, a proposta política. Nesse quesito, ninguém apresentou ainda um programa exequível. E, ademais, como diz o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a proposta precisa ser traduzida e “fulanizada” para seduzir os eleitores.
O rumo
De volta ao cavaleiro kafkiano, os eleitores estão de partida. Mas não sabem para onde. Querem que alguém aponte um caminho no qual acreditem. É aí que mora o perigo do senso comum. A saída pode ser um não caminho, um precipício. O ambiente facilita a vida dos demagogos e dos populistas, que oferecem soluções fáceis para uma situação difícil e complexa. Na eleição, todos são tentados a isso. Mas há os que acreditam nesse tipo de narrativa, como aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff, que deu com os burros n’água, e os que sabem que não é por aí. O caminho a percorrer é pedregoso, difícil, e não dará vida fácil para ninguém.
O Brasil precisa da estabilidade da moeda, de taxas de juros baixas, de crédito acessível e de investimentos maciços em infraestrutura. Mas não pode garantir um cenário dessa ordem com o governo gastando mais do que arrecada e sem a reforma da Previdência. O país precisa crescer e gerar empregos, mas não tem como fazer isso sem aumentar a produtividade. Para isso, precisa melhorar a qualidade da educação, de saúde da população e de segurança dos cidadãos. O rol de necessidades de um ciclo virtuoso de desenvolvimento não se resolve com mágica. Entretanto, é difícil vencer as eleições com esse discurso, depois de uma recessão que gerou 14 milhões de desempregados. Esse é o problema dos bons políticos.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-drama-dos-bons-politicos/
Luiz Carlos Azedo: Justiça seja feita
A taxa de resolução dos casos de homicídio é baixíssima; começa na hora de preencher o atestado de óbito e fazer a autópsia, sem os quais não existe sequer investigação
Uma das dificuldades para compreender o fenômeno da violência nas cidades brasileiras decorre da inversão do senso de Justiça. A noção positiva, do ponto de vista do cotidiano dos moradores das favelas e periferias urbanas, é o senso de “injustiça”, porque a Justiça passa ao largo de suas vidas, serve para proteger os interesses das camadas mais favorecidas e criminaliza transgressões que poderiam ser tratadas de outra maneira, como, por exemplo, a produção, comercialização e consumo de maconha ou aborto de adolescentes nos casos de gravidez involuntária ou indesejável, para entrar em temas muito polêmicos, que deveriam estar sendo discutidos e varridos para debaixo da tapete.
É daí que nasce a ética popular na hora de “julgar” as ações da polícia, das milícias e dos traficantes. Por exemplo, na “lei do morro”, quando um traficante corta o dedo de um assaltante que roubou alguém da própria comunidade, fez-se “justiça”; quando a polícia faz um “baculejo” num cidadão que ganha a vida honestamente, há humilhação e “injustiça”. As milícias transitam entre a “injustiça” e a “justiça”, respectivamente, quando arrocham comerciantes ou expulsam os traficantes de seus territórios.
Essas ética e moral próprias não são características apenas das comunidades pobres, porque há outras manifestações do gênero nas camadas mais favorecidas, nas quais o jeitinho, a propina, os privilégios e a busca de favores são parte do dia a dia. O mesmo sujeito que apoia a pena de morte contra os traficantes não hesita em subornar um servidor público para se livrar das multas de trânsito. A mesma família de classe média que defende a eliminação dos traficantes tolera que seus jovens fumem maconha e não vacila em providenciar um aborto seguro para a filha que engravidou por descuido. Muitos não veem problema na falsificação da carteira de estudante pelos filhos, para que frequentem ambientes de risco nos quais é proibida a entrada de menores.
É nessa fronteira que transita a discussão provocada pelo novo ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, ao criticar os que “durante o dia, clamam contra a violência e, à noite, financiam esse mesmo crime por causa do consumo de drogas”. O ministro acerta ao criticar a hipocrisia, mas peca pelo reducionismo ao tratar da questão. Na guerra das drogas, a criminalização generalizada e o endurecimento das penas estão mais ou menos como as tropas norte-americanas no Vietnã. Não têm a menor chance de vencê-la. Essa estratégia está sendo derrotada; é comprovado pela ampliação do tráfico. Em todo o mundo, o que tem provocado é o aumento da população carcerária e o fortalecimento do lobby da bala.
Dever de casa
Em contrapartida, estatisticamente falando, em Nova York, a legalização do aborto teve muito mais impacto na redução dos indicadores de violência do que a política de tolerância zero. Simplesmente porque reduziu a população de risco, possibilitando às famílias de baixa renda evitar que suas adolescentes fossem incorporadas à cadeia da violência pela desestruturação familiar. Mas há alternativas menos polêmicas para reduzir a população de risco, como a massificação de atividades esportivas entre os jovens, com melhor aproveitamento de espaços urbanos degradados, como praças e viadutos ocupados por consumidores de drogas, principalmente em horários noturnos, nos quais a iluminação é a chave para aumentar a sensação de segurança. O esporte é uma atividade estruturante do caráter e do espírito, de baixo custo e alto impacto, com efeitos imediatos para a saúde e o desempenho escolar. O problema da “territorialidade” não se resolve apenas com a presença coercitiva do Estado, indispensável neste momento, mas com a ocupação dos espaços públicos pelas famílias.
Mas há que se destacar: o dever de casa do sistema de segurança pública está ao largo da discussão. O principal indicador da violência são as mortes por causas externas, principalmente os homicídios. Esses são o tipo de crime mais cruel a ser combatido, é nele que a impunidade revela sua face mais perversa. A taxa de resolução dos casos de homicídio é baixíssima; começa na hora de preencher o atestado de óbito e fazer a autópsia, sem os quais não existe sequer investigação. Na economia informal das favelas e periferias, não existe título protestado em cartório. A cobrança é feita à bala, tanto pelos traficantes como pelas milícias. Não pagou, vai para o “micro-ondas”. A fronteira sinuosa entre o tráfico de drogas e o comércio das milícias é demarcada por esse ajuste de contas, que quase sempre envolve a banda podre da polícia.