educação
Míriam Leitão: A educação longe do foco
Foi uma semana difícil, a que termina. Difícil pelo que houve e pelo que não houve. A tragédia de Suzano jogou na cara do país uma emergência para a qual nunca estivemos preparados. O Ministério da Educação passou a semana imerso numa crise entre olavistas e não olavistas, tema totalmente estranho à realidade. A gestão do ministro Vélez Rodriguez esgotou-se nessa briga intestina e na sua incapacidade de olhar os verdadeiros problemas da área.
O que houve em Suzano não é culpa evidentemente do MEC. A relação entre os dois fatos se dá pela total alienação das autoridades federais, em um país onde a educação deveria ser a prioridade absoluta.
Não é a primeira vez que acontece uma tragédia como a de Suzano, mas ela mostrou que não foram estudados os ataques anteriores a escolas como os de Realengo e da creche de Janaúba, Minas, em que morreu heroicamente a professora Heley de Abreu Silva Batista. Sobre esse assunto que repete os macabros e frequentes atentados em escolas nos Estados Unidos, o país precisa se debruçar para compreender o fenômeno em todos os seus aspectos, em vez de simplificar a rota do entendimento das causas.
Foi equivocada e desconcertante a reação do governo. Nos primeiros momentos, governistas como os senadores Major Olímpio e Flávio Bolsonaro tentaram fortalecer as teses favoráveis ao porte de armas, quando, claramente, essa pauta se enfraquece. Olímpio defendeu que professores se armassem como solução, e Flávio culpou o “malfadado estatuto do desarmamento”. O presidente Bolsonaro demorou seis horas para manifestar uma simples solidariedade às famílias das vítimas, e o ministro só se moveu quando já estava ficando constrangedor seu silêncio e sua alienação.
O problema é complexo e tem sido estudado profundamente em outros países. Há pesquisas internacionais que podem ajudar o Brasil a tentar compreender esses eventos que são muito difíceis de prever. A abordagem terá que ser multidisciplinar, pela multiplicidade de fatores que podem ocasionar tragédias assim. É devastadoramente triste ver adolescentes sendo atacados por dois jovens, um deles menor de idade, no momento em que estavam estudando. Uma das alunas do 3º ano do Ensino Médio, que havia passado a manhã em aulas de sociologia e filosofia, falou a frase síntese: “em um momento a gente estava feliz e, no outro, implorando pra viver.”
O Brasil expõe os adolescentes a riscos excessivos. Este é extremo e não está no nosso radar. Mas há os perigos mais frequentes como os da gravidez precoce, do aliciamento pelo tráfico, da violência, do altíssimo índice de abandono e evasão do ensino médio. Há ainda a dificuldade de as escolas prepararem as crianças e jovens para um mundo que está em transformação vertiginosa.
Apesar da distribuição de tarefas entre os níveis federativos, o Ministério da Educação sempre vai liderar essa política pública no Brasil. E o MEC está à deriva. Basta ver o noticiário da semana. Durante todos os dias o Ministério foi assunto, mas era sobre quem era demitido e a quem o exonerado era ligado. Se era um militar, se era um olavista. Ou os ataques de Olavo de Carvalho ao ministro que indicou para o cargo. Enfim, nada relevante.
Recentemente, o presidente Bolsonaro estimulou os pais a rasgarem cartilhas que traziam desenhos anatômicos do corpo humano com explicações sobre educação sexual. É óbvio que isso é matéria de estudo, ao contrário do que pensa o presidente, numa carolice tardia e incoerente com sua própria história de vida. Não são vestais dos costumes os que nos governam. Os jovens precisam ser protegidos dos riscos de doenças e da gravidez precoce. Ignorar isso é aumentar os perigos a que estão submetidos. É medieval rasgar livros e tentar impedir a preparação de crianças e jovens para a vida sexualmente saudável.
O governo navega em uma realidade paralela correndo atrás da sua agenda de campanha, tolhido por ela e incapaz de reagir diante de emergências, ou de ter foco na pauta real do país. O Brasil precisa urgentemente de um ministro da Educação que conheça os assuntos do setor. É impossível ter esperança de que Vélez Rodriguez vá um dia encontrar a agenda educacional brasileira. Ele continuará prisioneiro das facções que levou para o Ministério.
Roberto Livianu: Em nome do patriotismo
É preocupante a ideologização da educação, para um viés como para outro
Quando criança, uma vez por semana eu e meus colegas de escola tínhamos de nos posicionar em fila e entoar em postura de respeito cívico o Hino Nacional brasileiro e, muitas vezes, o hino da escola. Vivíamos o tempo da ditadura militar e nenhum dos alunos ousaria questionar o porquê daquilo. Eu, particularmente, gostava de cantar os hinos.
Eis que quase 40 anos depois disto, precisamente 34 anos passados desde o processo de redemocratização, o ministro da Educação do governo eleito em outubro manda uma surpreendente carta às escolas do País determinando que todas as crianças cantem o Hino, sejam filmadas cantando, sob os auspícios de Deus acima de todos, reproduzindo-se o slogan de campanha do presidente da República a que serve.
Não é necessário ter doutorado em Direito para enxergar as derrapadas cometidas pelo nosso ministro da Educação, originário da Colômbia, nosso país-irmão no continente, que pode até ter tido boas intenções, mas elas são insuficientes para gerir essa tão complexa e importante pasta e as respectivas políticas públicas.
Não se revoluciona a educação no Brasil com a agenda de costumes. Exige-se ousadia para valorizar e capacitar os professores, além de rever métodos ultrapassados de ensino, coragem para lidar com um cenário em que estudantes abandonam a escola cedo demais (25% não terminam o ensino fundamental e 41% não concluem o ensino médio antes dos 19 anos).
No Brasil, mais de 50% não sabem ler nem escrever até os 9 anos e 7% não adquirem o conhecimento necessário em Matemática ao fim do ensino médio. Infelizmente, no ranking da qualidade da educação 2018, divulgado pelo Fórum Econômico Mundial, de 137 países avaliados, o Brasil ocupa a triste posição 119.
Portanto, o problema não se restringe a questões jurídicas, já que, obviamente, crianças não podem ser filmadas sem autorização dos pais, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não é só o desrespeito à Constituição, que desde 1891 proclama o Brasil um Estado laico, sendo inadmissível menoscabar os adeptos de quaisquer credos ou religiões, assim como os ateus ou agnósticos.
Deus acima de todos pode ser um chamariz de campanha política e uma opção religiosa individual, mas é ideia que não pode ser imposta aos ateus e agnósticos nem nortear a política pública da educação, já que aqueles que não creem têm o mesmo direito à educação que os que creem, mesmo que estes sejam maioria – numa democracia a vontade da maioria prevalece para a escolha do governante, que governa para todos.
É preocupante a ideologização da educação – tanto para um viés como para outro. Todos têm direito a ela, que transforma as pessoas, sendo inadmissível ser utilizada como instrumento para manipulação política, para formar massa de manobra eleitoral.
E neste ponto vale refletir sobre a necessidade de reinserção das disciplinas de Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política do Brasil (OSPB) na grade curricular escolar, que durante algum tempo cheguei a pensar ser algo razoável e positivo.
Não tenho dúvida da importância de se falar na escola sobre valores éticos, humanismo, cidadania, Estado e suas funções, direitos e deveres de cada um e cada uma. Mas tenho sérias dúvidas se a melhor forma é a reintrodução dessas matérias, porque nos tempos em que elas eram ensinadas os respectivos conteúdos eram impostos arbitrariamente pelo governo militar, que dava as cartas à época, o que nos autoriza a imaginar que poderemos correr riscos de ver conteúdos manipulados transmitidos nas aulas dessas disciplinas, distantes do verdadeiro, nobre e humanista espírito educativo apartidário.
A carta do ministro da Educação reforça e reaviva a preocupação, não obstante fazer ele parte de um governo eleito democraticamente. Também o foram Trump nos Estados Unidos, Putin na Rússia, Erdogan na Turquia, Orbán na Hungria, objeto de análise dos professores de Ciência Política de Harvard Ziblatt e Levinsky, autores da festejada obra Como as Democracias Morrem, em que mostram como instituições democráticas podem ser dinamitadas pelo mau uso das próprias regras do jogo democrático e por posturas ditatoriais. Por minha conta acrescento o caso Hugo Chávez na Venezuela.
Nada contra o canto do Hino nas escolas, mas que se tenha clareza de que isso é muito raso e insignificante para a construção do sentimento patriótico, que diz respeito a uma nova cultura, que nunca tivemos verdadeiramente. Mudanças culturais são instituídas ao longo das gerações a partir de políticas públicas planejadas estrategicamente visando tal objetivo.
Construiremos patriotismo a partir do enfrentamento corajoso da crise de representatividade política, pelo resgate da confiança dos cidadãos em seus representantes, quando estes deixarem de exercer o poder visando a se autobeneficiar, como percebem os brasileiros (93% deles – Latinobarómetro 2018); quando forem apresentadas ações concretas de Estado no combate à corrupção, eliminando o foro privilegiado, aprovando uma reforma político-partidária de verdade, permitindo candidaturas avulsas, como fazem mais de 90% das nações do mundo.
Em vez de reintroduzir EMC e OSPB, talvez fosse melhor e menos arriscado transmitir as ideias essenciais inerentes à cidadania, à ética, ao humanismo, aos direitos e deveres, como já mencionei, de forma transversalizada, difusa, ao ensinar Geografia, História, Biologia ou Língua Portuguesa, com seminários, debates e exemplos sutis e inteligentes que façam o estudante refletir, sem demonizar alguns nem santificar outros, ensinando-o a desenvolver senso crítico, sem impor ao estudante verdades absolutas.
*DOUTOR EM DIREITO PELA USP, PROMOTOR DE JUSTIÇA EM SÃO PAULO, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO NÃO ACEITO CORRUPÇÃO
Cristovam Buarque: Educação para todos
Brasil continua com mais de dez milhões de adultos analfabetos, só 40% dos jovens terminando o ensino médio sem qualidade
Um dos exemplos do populismo da elite brasileira é a defesa da ideia de “universidade para todos” sem que o defensor assuma compromisso e lute por outros sete objetivos: “erradicação do analfabetismo de adulto”, “alfabetização de todas as crianças na idade certa”, “garantia de conclusão de ensino médio com qualidade igual para todos”, “cada jovem com a mesma chance na disputa por uma vaga nos cursos mais demandados”, “garantia de que os selecionados para as universidades vão poder concluir seus cursos”, “confiança de que os formados estarão preparados para o exercício de suas profissões” e “possibilidade de que serão capazes de aperfeiçoamento para os novos conhecimentos e profissões que surgirão ao longo de suas vidas profissionais”. Sem estas sete lutas, a reivindicação de “universidade para todos” é um slogan demagógico por não defender as mudanças estruturais de que a educação brasileira de base e nosso ensino superior precisam para educar bem a todos.
As cotas para afro-brasileiros buscavam, e conseguiram em parte, mudar a cor da cara da elite brasileira. No entanto, a política de ampliar vagas para ingresso na universidade sem garantir aumento de egressos no ensino médio com qualidade provoca um crescente número de alunos que entram, mas não concluem o curso universitário — se concluem, não recebem a necessária qualificação para o desempenho de suas profissões no mundo contemporâneo. No fundo, “universidade para todos” sem “educação de base para todos com qualidade igual” é uma proposta dentro do espírito do individualismo neoliberal: atende quem pode pagar boa escola e oferece vagas para quem não tem boas escolas; sem a revolução de que o Brasil precisa.
Precisamos de um programa de educação de base com a máxima qualidade igual para todos. Isto é possível, mas não atrai votos, porque exige de 20 a 30 anos para chegar a todo o Brasil, substituindo o atual frágil sistema municipal por um robusto sistema federal. Em 2003, o novo governo da época chegou a iniciar um programa de erradicação do analfabetismo de adulto, o Brasil Alfabetizado, e iniciou experiência visando à federalização da educação de base, o Escola Ideal. A partir de 2004, o governo parou estes dois programas e concentrou sua estratégia em ampliar vagas nas universidades, facilitando o ingresso no ensino superior. Alguns jovens conseguiram ingresso, mas o Brasil continua com mais de dez milhões de adultos analfabetos, apenas 40% dos jovens terminando o ensino médio sem qualidade e sem reduzir a desigualdade entre escolas dos ricos e escolas dos pobres.
“Universidade para todos” sem as sete outras metas é uma bandeira para políticos de olho na popularidade eleitoral imediata, não no reconhecimento histórico posterior, “Educação de base para todos” seria assunto para estadistas, capazes de mobilizar eleitores e sociedade em uma estratégia para que “os filhos dos pobres estudem em escolas tão boas quanto as dos filhos dos ricos”, e disputem em igualdade de condições o ingresso nos cursos mais demandados nas melhores universidades.
A política educacional de beneficiar indivíduos, em vez de mudar a estrutura da educação, é uma forma de “neoliberalismo social”: facilita a entrada no ensino superior para alguns, sem dar oportunidade a todos para uma educação de base com a máxima qualidade. Os 15 anos dessa política já mostraram que apenas alguns foram beneficiados, mas sem a mesma chance para todos. A revolução está em assegurar igualdade de qualidade na educação e fazer as reformas que nossa universidade precisa para ser instituição de excelência.
Fernando Gabeira: Ouviram do Ipiranga
Orgulho pelo país não nasce necessariamente das aulas de Moral e Cívica; desenvolve-se nas dores e alegrias do cotidiano
Conversa de segunda-feira de carnaval. Antes de vir para o Brasil, passei na velha livraria Bertrand, em Lisboa. Queria comprar um livro, apenas um para a estrada, a longa viagem de volta. Optei pelo de Milan Kundera “Os testamentos traídos”. Dei sorte. É um livro excelente. Num dos ensaios, intitulado “Em busca do presente perdido”, ele fala de Hemingway. Ressalta o esforço do escritor americano em ouvir e anotar diálogos, sua tentativa de capturar na forma e no som a realidade das conversas.
Kundera menciona a novela de Hemingway “Colinas como elefantes brancos”. É um diálogo entre um homem e uma mulher. Cheio de ambiguidades, aberto para a imaginação do leitor. Mas a interpretação de alguns críticos transformou a história numa lição de moral, heroína e vilão, bem contra o mal. As abstrações acabaram engolindo a realidade do momento vivido.
É um tipo de visão do mundo, segundo Kundera, que nos faz morrer sem saber o que vivemos. A realidade se esvai nas abstrações.
Podemos escrever um diário, lembra Kundera, anotar todos os acontecimentos e descobrir que não registramos nenhuma imagem concreta. O presente é um planeta desconhecido. Não conseguimos mais acessá-lo nem pela memória e nem pela imaginação.
Cheguei ao Brasil em meio à polêmica sobre o Hino Nacional nas escolas. O ministro da Educação queria que as crianças o cantassem e recitassem o slogan de Bolsonaro: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Tudo isso já foi desfeito pelo recuo do governo na proposta. O ministro tinha a intenção de levar Moral e Cívica às escolas. Seus opositores respondem também com uma visão cívica, pois alegaram contra a proposta dispositivos constitucionais e algumas leis ordinárias.
E as crianças nisso tudo foram apenas objeto de um confronto entre diferentes visões cívicas.
O que representa um hino nacional para elas? Às vezes acho que, na infância, primeiro brincamos com o som das palavras para mais tarde entende-las. Meu neto aprende a cantar em alemão. Brinca com a sonoridade, mas não tem a mínima ideia do sentido das palavras. Eu mesmo, quando menino, cantava os hinos mais importantes tentando trazê-los para a realidade tangível. “Já podeis da pátria, filhos”, por exemplo, substituía por “Japonês tem quatro filhos”.
Com o tempo, as experiências coletivas, a vivência da história, passei a ouvir os hinos de forma diferente e, em certos momentos, cantá-los emocionado. Mas o que a criança pode fazer com um lábaro que ostentas estrelado? Que tipo de terra é mais garrida? Pode se guardar na mochila o penhor dessa igualdade?
Mesmo essa história do slogan de Bolsonaro, “Deus acima de todos”, pode não confundir as crianças, mas a mim confunde. Deus não está em toda parte? No meio e abaixo ele deveria estar também, creio; não apenas acima de tudo. Pode estar nas pequenas coisas, nos antros mais sórdidos do planeta.
Compreendo que é tudo um modo de dizer. Mas são essas grandes ideias abstratas que povoam a cabeça da direita e da esquerda. Ambas correm o risco de criar uma espécie de cortina que nos afasta da própria realidade.
Existe uma força permanente que visa não apenas ao jogo vital das crianças, seu divertimento, mas também a mascarar a própria face do real. Como diz Kundera: “para que nunca saibas o que vivestes”. Crianças uniformizadas cantando hinos e acenando bandeirinhas estão presentes em muitas situações. Na Coreia do Norte, por exemplo, parecem disciplinadas e endurecidas pelo patriotismo; no entanto, há uma certa tristeza nesses espetáculos.
Alguma coisa no olhar, na rígida encenação, revela que a alegria e a espontaneidade foram embora, que as crianças amadurecem um pouco à força, como frutas de supermercado.
Compreendo que exista o medo de que as crianças não sintam amor pelo seu país, nem se entusiasmem por defendê-lo. Uma de minhas filhas é atleta. Toda vez que que consegue uma vitória internacional, costuma acenar com a bandeira do Brasil.
O orgulho pelo país não nasce necessariamente das aulas de Moral e Cívica nem dos prolixos hinos pátrios. É algo que se desenvolve na experiência coletiva, nas dores e alegrias do cotidiano.
Lançar o véu dos lugares-comuns sobre a riqueza do instante presente, como observa Milan Kundera, é a forma de sufocar o real com abstrações para que a criança nunca saiba o que viveu.
Eugênio Bucci: O ridículo do hino e a escola sem sentido
É difícil pensar em algo pior do que ‘Brasil acima de tudo’ ou ‘Deus acima de todos’
Na segunda-feira a repórter Renata Cafardo, do Estadão, revelou que o MEC enviara às escolas do Brasil um par de instruções estapafúrdias e patriofrênicas. Por e-mail o órgão máximo da educação nacional pedira que as crianças fossem perfiladas para cantar o Hino Nacional e as cenas, gravadas em vídeo, fossem enviadas a Brasília para deleite dos ocupantes da Esplanada.
Não foi só. O MEC também solicitou aos dirigentes das escolas que lessem para os alunos uma mensagem ufano-pedagógica de autoria do titular da pasta, Ricardo Vélez Rodríguez: “Brasileiros! Vamos saudar o Brasil dos novos tempos e celebrar a educação responsável e de qualidade a ser desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês, alunos, que constituem a nova geração. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!”.
Como ainda resta um pingo de consciência – e de senso de ridículo – na sociedade, a reação foi instantânea. Educadores e advogados protestaram, alegando que crianças não podem ser filmadas assim, de qualquer jeito, sem autorização dos pais. Outros repudiaram a transformação de um slogan de campanha eleitoral em chamamento de governo para as escolas.
A grita foi tão determinada e irrefutável que o ministro recuou de pronto. Tem sido assim, aliás, nesse governo de idas e vindas. O estilo da administração de turno é o “fez que foi e acabou não fondo”. A toda hora uma autoridade dispara uma bravata e depois recua. Esta semana mesmo o presidente da República voltou atrás e desistiu de aumentar o sigilo em documentos da administração federal – quer acalmar os parlamentares. Quanto ao ministro da Educação, ele é um virtuose em matéria de “fez que foi e acabou não fondo”. Há poucas semanas, numa entrevista escalafobética, pronunciou impropérios sobre o cantor e compositor Cazuza e logo teve de se desculpar. Um pouco antes, já tinha voltado atrás em mudanças desastradas nas regras de compra dos livros didáticos. Agora, adotou o mesmo procedimento. Reconheceu o erro. Disse que não quer filmar a meninada sem que os pais autorizem e admitiu que esse negócio de usar símbolos partidários como insígnias de políticas públicas não fica bem.
E assim caminha este país, sem caminhar para lugar algum. Mas não é esse o maior dos nossos problemas. Sem dúvida, as reviravoltas desastradas num governo chegado a pirotecnias patrioteiras tumultuam desnecessariamente o quadro. São ruins. Atrapalham. Mas a situação é mais complicada ainda. O nosso maior problema, como fica patente em mais essa gafe do MEC, não está nas trapalhadas cometidas por autoridades civis em posição de sentido. O maior problema é que a administração federal de turno tem, sim, um modelo obscurantista com o qual sonha em amordaçar a sociedade brasileira e só não o leva adiante porque a sociedade não se deixou vergar. Não fossem os protestos – justos e legítimos –, a esta altura as crianças brasileiras, como nos idos da ditadura militar, estariam aí ao sabor de delírios autoritários com ponto de exclamação.
Se temos algum juízo, deveríamos olhar com muito mais atenção para esse modelo obscurantista acalentado nas fileiras do bolsonarismo. Como arma publicitária de campanha, o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” já era um pesadelo. Para começar, a primeira parte, “Brasil acima de tudo”, é um plágio infeliz de um mote abraçado pelo nazismo nos anos 1930, “Alemanha acima de tudo” (Deutschland über alles). Esse mote, por sua vez, veio de um verso de uma canção nacionalista do século 19. Logo, a fantasia que o bolsonarismo resolveu papagaiar, além de não ser original, além de não ser sequer brasileira, é velha de quase 200 anos.
Um passado mítico, já sabemos, funciona como motor para os discursos tendentes ao fascismo. No nosso caso, porém, estamos tratando de passados míticos que são de segunda mão e, na melhor das hipóteses, são paródias de mau gosto.
Se o MEC tivesse um mínimo de compromisso com a educação e com a modernidade (a fantasia de “Alemanha acima de tudo” é pré-moderna e antimoderna), pediria aos alunos redações críticas sobre o mote nazista. Pediria aos alunos que pensassem. Mas não, o MEC prefere ver as crianças perfiladas para ouvir o slogan eleitoral transformado em estética estatal. Outra vez, não por acaso, se manifesta aí mais um traço distintivo dos regimes hierarquizados, centralizadores, disciplinadores, opressivos: a estetização do Estado.
Agora nos ocupemos da segunda parte: “Deus acima de todos”. Pelo que me lembro, nas missas católicas os fiéis repetem outro tipo de enunciado: “Deus está no meio de nós”. Esse Deus autocrático, vertical, impositivo, francamente, não dá para saber bem de onde os bolsonaristas foram tirar. Não adianta dizer que é o Deus do Velho Testamento, porque aquele Deus se basta, ele não está na disputa para ficar “acima de todos”.
Em termos filosóficos, ou racionais, é difícil pensar em algo pior que “Brasil acima de tudo” ou “Deus acima de todos”. Só o que pode ser pior que cada um dos dois imperativos são os dois imperativos postos juntos. Aí, qualquer lógica desmorona. Vamos lá.
Se o Brasil está mesmo acima de tudo, teria de estar também acima de Deus. E se Deus está acima de todos, ora, teria de estar acima do Brasil. Imaginemos a cabeça de uma criança, empertigada na frente da Bandeira, tentando compreender os dois mandamentos fundidos num só. Essa criança, pobrezinha, vai concluir que Deus está fora de tudo (ou o Brasil estaria acima de Deus) e que o Brasil está fora de todos (ou Deus estaria acima do Brasil). Portanto, “tudo” não é “tudo”, assim como “todos” não significa exatamente “todos”. Alguém chame o Tim Maia, o filósofo que dizia: “Tudo é tudo e nada é nada”. Mais do que uma escola sem partido, o que o MEC quer para o Brasil é uma escola sem sentido. A sanha autoritária precisa de uma escola que não pense.
*JORNALISTA, PROFESSOR DA ECA-USP
Merval Pereira: Escolas com (outro) partido
E as escolas públicas? Terão seus diretores segurança para recusar a proposta do ministro de cantar o Hino?
Está tudo errado na “sugestão” do ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, para que as escolas coloquem seus alunos cantando o Hino Nacional, o que foi mantido ontem, apesar da polêmica que provocou. E indica que o governo que denuncia a partidarização das escolas no governo petista quer apenas trocar de partido.
Retirar o slogan político da campanha de Bolsonaro é o de menos, mas colocá-lo na mensagem oficial indica que o novo ministro da Educação tentou infiltrar nas escolas do país uma propaganda política do governo a que serve. Só não conseguiu porque seu abuso de poder foi denunciado.
Mandar pedir autorização dos pais para que seus filhos sejam filmados, também, é só uma questão de cumprir a legislação em vigor. Mas indica que o governo estava se preparando —e pelo visto continua com a ideia — para promover campanhas “educativas” utilizando-se dos alunos e professores. O problema maior é o subterfúgio usado para implementar uma promessa de campanha do presidente eleito.
Durante a campanha eleitoral, tanto Jair Bolsonaro quanto seus filhos prometeram que o Hino Nacional voltaria a ser cantado nas escolas brasileiras.
O Ministério da Educação (MEC) afirma que se trata de um “pedido de cumprimento voluntário” e que os diretores que quiserem seguir a recomendação do ministro devem ler a carta aos alunos no primeiro dia letivo deste ano.
Ora, para as escolas particulares, não haverá muito problema em recusar a “sugestão” do ministro. Mas, e as escolas públicas? Terão seus diretores segurança para recusar a proposta do ministro? Outra questão grave é a permissão dos pais para que seus filhos sejam filmados.
Não me parece uma solução, pois também nas escolas públicas do país a maioria dos pais se sentirá constrangida diante de um pedido da diretoria da escola. Especialmente nas regiões menos desenvolvidas.
Quem se recusar, qual garantia terá de que não será perseguido, do ponto de vista institucional, no caso dos diretores discordantes, ou do pessoal, no caso de constrangimento para assinar a autorização? E os alunos que se recusarem, que ambiente passarão a ter nas suas escolas?
O ministro Vélez Rodríguez diz, com razão, que cantar o Hino Nacional “não é constrangimento, é patriotismo”. Mas patriotismo só é imposto em governos autoritários. É um sentimento de pertencimento que move muitos cidadãos espontaneamente. Ninguém precisa mandar a torcida brasileira cantar o Hino Nacional, às vezes à capela. Estímulos oficiais pelo patriotismo podem levar a frases como a de Samuel Johnson, que dizia que “o patriotismo é o último refúgio do canalha”.
Uma sugestão dessas só poderia ser feita pelo MEC depois de ouvidas as entidades ligadas à educação, num ambiente institucional adequado, certamente o Conselho Nacional de Educação (CNE).
Não se trata de concordar ou não com cantar o Hino, mas de uma orientação oficial que muda o cotidiano das escolas. A recomendação lembra o governo Vargas, que estimulava esse tipo de “patriotada”, ou a implantação das matérias Estudo de Moral e Cívica (EMC) e a Organização Social e Política do Brasil (OSPB), que se tornaram obrigatórias no currículo das séries dos hoje ensinos fundamental e médio em 1969, em substituição a Sociologia e Filosofia. Aliás, a volta dessas duas matérias está nos planos do novo governo. O Hino Nacional seria apenas o começo.
Mas, mesmo na ditadura, essas mudanças no currículo seguiram os trâmites legais, sendo aprovadas no Conselho Nacional de Educação. No governo Temer, em 2017, o Ministério da Educação decidiu promulgar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio, com alcance para todos os alunos da educação básica no Brasil, depois de amplo debate no Conselho Nacional de Educação e também no Congresso Nacional.
É uma norma de Estado e, como disse na ocasião da sua aprovação o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), “deve ser implementado independentemente de quem esteja no governo federal ou estadual”. O mesmo Consed protestou contra a “sugestão” do ministro da Educação.
Segundo especialistas, é a autonomia e a liberdade do ensino que estão em jogo, e, sem isso, não existe aprendizado, existe controle mental, o que é bem grave do ponto de vista, inclusive, legal.
Marco Aurélio Nogueira: Quando o despreparo dá o tom
Carta do ministro da Educação é uma exorbitância autoritária e um claro desvio de função
Se alguma bobagem adicional precisasse ser cometida para que ficássemos preocupados com o futuro da nação, o ministro da Educação Vélez Rodriguez se encarregou de pô-la na mesa.
Não se tratou de uma bobagem qualquer. Antes de tudo, por ter sido forjada numa área estratégica, que alcança diretamente o conjunto da população, os jovens e crianças que, dentro de alguns anos, serão a base intelectual, moral e operacional da sociedade. Se o responsável pela Educação se dá ao luxo de propor uma absurda intervenção ideológica e político-partidária nas escolas do País, então é porque estamos carentes de limites e critérios.
É difícil imaginar o que passou pela cabeça de Sua Excelência ao pedir aos dirigentes escolares e professores que lessem aos alunos um besteirol como esse: “Vamos saudar o Brasil dos novos tempos e celebrar a educação responsável e de qualidade a ser desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês, alunos, que constituem a nova geração”. Não satisfeito, acrescentou: “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!”, um mero slogan de campanha.
O ministro pediu, ainda, que após a leitura, alunos, professores e funcionários deveriam, compenetrados e com os olhos marejados de fervor patriótico, entrar em ordem unida para cantar o Hino Nacional. Alguns filmariam o rito e enviariam as imagens para controle dos órgãos governamentais.
Seria cômico e ridículo se não fosse trágico. É ridículo porque não pode ser levado à prática nas milhares de escolas do País, onde a missiva por certo gerou estupor e ironia. Não haveria nem sequer fiscais e controladores para exigir o cumprimento da ordem. É cômico porque expõe o ministro à execração pública e mostra seu despreparo.
E é trágico porque se trata de uma exorbitância autoritária, de um escandaloso desvio de função, de uma demonstração clara de que no ministério da Educação não se tem uma pessoa preocupada com a educação, com a qualidade do ensino e a criação de condições para o desenvolvimento educacional, mas um agitador barato, interessado em fomentar desentendimento, congestionar o cotidiano escolar e bajular o presidente da República. Ou seja, precisamente tudo aquilo que não deveria integrar uma agenda ministerial.
Reações não faltaram, e foram expressivas. Mas nenhuma voz governamental procurou desautorizar a bravata. O ministro veio a público, no dia seguinte, dizer que errou ao pedir que filmem os alunos cantando o Hino. “Cantar o Hino Nacional não é constrangimento, não, é amor à pátria”, disse. E acrescentou: “O slogan de campanha foi um erro, já tirei, reconheci, foi um engano, tirei imediatamente. E quanto à filmagem, só será divulgada com autorização da família”.
É muito pouco. Ele mereceria bem mais que uma reprimenda presidencial: deveria ser afastado a bem do serviço público. Pois, se teve a ousadia de praticar um ato assim insano e desqualificado, é fácil imaginar o que mais poderá ser capaz de fazer.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp
Bernardo Mello Franco: Por qué no te callas, Vélez?
O ministro da Educação perdeu outra chance de ficar calado. Descreveu os brasileiros, que pagam seu salário, como bárbaros e ladrões
O ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, perdeu mais uma chance de ficar calado. Em entrevista à revista “Veja”, ele chamou os brasileiros de “canibais” e descreveu os contribuintes que pagam o seu salário como ladrões.
“O brasileiro viajando é um canibal. Rouba coisa dos hotéis, rouba o assento salva-vidas do avião, ele acha que pode sair de casa e carregar tudo”, disse.
Vélez nasceu na Colômbia e fala português com sotaque. Ao tratar os brasileiros como bárbaros, insultou o país que lhe ofereceu passaporte e cidadania.
O professor também deu aula de desinformação. Atacou Cazuza, morto em 1990, por algo que ele nunca disse. A frase “Liberdade é passar a mão na bunda do guarda”, que Vélez atribuiu ao cantor, foi popularizada pelos humoristas do Casseta & Planeta.
O ministro ainda atacou a cineasta Carla Camurati por não ter retratado dom João VI como “um grande herói” em “Carlota Joaquina”. O filme é uma comédia, não um documentário. Reuniu um elenco estrelado e impulsionou a retomada do cinema brasileiro, que Vélez também parece desprezar.
Mais adiante, ele defendeu a volta das aulas de moral e cívica, impostas pela ditadura militar. A patriotada não vai tirar o Brasil da lanterna dos rankings internacionais de educação. Quem estuda o assunto sabe que os alunos precisam de reforço em disciplinas mais importantes, como matemática e ciências.
O besteirol de Vélez não se limita aos chavões reacionários. Em outra entrevista recente, ele disse ao “Valor Econômico” que as universidades “devem ficar reservadas para uma elite intelectual”.
De acordo com o IBGE, os brasileiros com ensino superior ganham 2,5 vezes mais do que os que têm apenas o ensino médio. A taxa de desemprego entre os diplomados é a metade da média nacional. Além de excludente, a tese do ministro é antieconômica.
Em 2007, o rei Juan Carlos silenciou Hugo Chávez com uma pergunta famosa: “Por qué no te callas?”. Vélez é fã da monarquia. Agora que virou ministro, deveria se aconselhar com o ex-soberano espanhol.
Luiz Carlos Azedo: Eles estão voltando
“Os dois grandes eixos de discussão no Congresso são o apoio às reformas, principalmente a da Previdência, e o fortalecimento da Câmara e do Senado”
As articulações para ocupação de espaços nas Mesas do Congresso e nas comissões permanentes da Câmara e do Senado já estão em pleno andamento. Há políticos veteranos que sobreviveram ao tsunami eleitoral, novatos que nunca exerceram um mandato e alguns que estão voltando ao Congresso ou participavam de legislativos estaduais e municipais. Nenhum dos 513 deputados e 81 senadores é bobo. Não existe essa categoria no parlamento, como dizia Ulysses Guimarães. Os dois grandes eixos de discussão no Congresso são o apoio às reformas que serão encaminhadas pelo governo, principalmente a da Previdência; e o fortalecimento da Câmara e do Senado, que vêm de eleições nas quais ficou patente o descolamento de ambos da sociedade. A relação dos políticos com o Executivo e o Judiciário será balizada pela eleição das Mesas da Câmara e do Senado.
Vamos às reformas. São quatro as mais importantes, mas a da Previdência é uma espécie de Rubicão para o governo Bolsonaro, sem a qual a economia não deslanchará. A dificuldade do governo não é de natureza técnica, a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, sabe o que precisa fazer. O problema é político. A base governista é muito heterogênea e foi articulada a partir de frentes parlamentares com interesses específicos, como as do agronegócio, dos evangélicos e da bala. É mais fácil atrair setores da oposição para a reforma da Previdência, por exemplo, do que a bancada da bala, formada majoritariamente por policiais e militares que não querem abrir mão de seus privilégios. Além disso, a alta burocracia está mobilizada e faz um lobby poderoso, encabeçado por magistrados e procuradores.
A segunda reforma mais importante e difícil é a tributária. A resistência é inercial, alguém já disse que imposto bom é imposto velho. Mas a carga tributária e a burocracia são brutais, como sustenta o presidente Jair Bolsonaro. Com a tecnologia ficou muito fácil arrecadar, mas cada vez mais difícil, financeiramente, pagar. Há um clamor na sociedade, principalmente na economia formal, a favor da redução de impostos. Talvez seja a reforma mais popular entre agentes econômicos, principalmente empreendedores e assalariados. O problema é o pacto federativo, entre a União, que arrecada muito mais e gasta muito pior, e os estados e municípios, os entes federados. O nó górdio da reforma é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS), arrecadado na origem; a maioria dos estados quer que seja recolhido no destino, como já acontece com o combustível, mas os estados produtores são muito mais poderosos do que os consumidores. O governo não sabe ainda como desatar esse nó.
Casa de enforcado
A questão do combate à corrupção e à criminalidade é a terceira reforma, cuja formulação está a cargo do ministro da Justiça, Sérgio Moro. A Lava-Jato teve um papel decisivo na eleição, mas também é um trauma para políticos, principalmente os que sobreviveram. Endurecer ainda mais o jogo em relação ao caixa dois eleitoral e à improbidade administrativa é como falar de corda em casa de enforcado, no caso, o Congresso. E, depois do caso Queiroz, o senador Flávio Bolsonaro(PSL-RJ) é primeiro da fila do cadafalso. Mas, em contrapartida, o endurecimento das penas para crimes como latrocínio, feminicídio e tráfico de drogas é barbada. Soa como música para a maioria dos parlamentares, que também não são tão resistentes à flexibilização do porte de armas, tema favorito da chamada Bancada da Bala e do próprio presidente da República.
A quarta questão, na verdade, é uma contrarreforma. Trata-se da questão dos costumes e do Estado laico, em torno da qual se dará um grande embate entre os setores conservadores que serviram de vanguarda para a campanha de Bolsonaro e as forças derrotadas na eleição, que buscam refúgio nessa pauta. É uma agenda que envolve a questão dos direitos humanos e dos direitos civis, em conexão direta com o mundo da cultura e da educação. Embora sejam temas que não tratam diretamente das relações de poder entre os políticos, essa agenda é a que tem mais conexão com a sociedade civil e suas agências, com forte repercussão no Congresso. Outra agenda emergente é a ambiental, em evidência novamente por causa da tragédia de Brumadinho (MG). É uma agenda de resistência, que tem muito a ver com a centralidade econômica da produção de commodities de minérios e agrícolas, hoje o polo mais dinâmico da nossa economia.
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Bruno Boghossian: Absurdos na educação mostram que ignorância não tem ideologia
Agenda do governo Bolsonaro tangencia obscurantismo e revisionismo barato
O disparatado edital de livros didáticos que permitia a compra de obras com erros e sem referências bibliográficas mostra como a educação é um setor vulnerável aos cavalos de pau da política. Basta uma canetada para acrescentar anos de atraso ao ensino no país.
Em 2 de janeiro, o Ministério da Educação sumiu com itens que proibiam publicidade e mencionavam a violência contra mulheres no material didático. Também desapareceram exigências de que os livros estivessem livres de erros de revisão e contivessem a origem da informação.
O ministro Ricardo Vélez Rodríguez diz que o edital foi alterado no governo Michel Temer, em 28 de dezembro, mas o ex-ministro Rossieli Soares afirma que as mudanças nunca foram discutidas em sua gestão.
Os dois fizeram reuniões de transição por quase 30 dias. Se essa medida absurda não foi discutida no período, há algo errado com as prioridades da política educacional.
Acabar com referências bibliográficas e flexibilizar a revisão de erros não têm justificativa plausível. A proposta afronta a ciência e abre as portas para inundar livros didáticos com teses do submundo.
Jair Bolsonaro declarou que a mudança é responsabilidade de Temer e que corrigiria o erro. Tomou iniciativa após a Folha noticiar o fato.
As regras insensatas se encaixam na agenda do bolsonarismo, que prioriza a guerra a um inexistente “marxismo cultural” e tangencia o obscurantismo. A equipe do ministério é formada por auxiliares sem experiência, que patrocinam um revisionismo histórico e científico barato.
A qualidade da educação continuará presa ao passado enquanto gestores quiserem empunhar a lança dessa guerra política improdutiva.
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Gleisi Hoffmann anunciou que vai à posse de Nicolás Maduro por solidariedade ao povo do país e em resposta a Bolsonaro. O PT serviria melhor a oposição se abrisse os olhos para abusos antidemocráticos e desmandos do governo venezuelano.
Luiz Carlos Azedo: O poder civil e os jabutis
“As exonerações em massa na Casa Civil, que tendem a se reproduzir em outras pastas, eram esperadas. Os cargos comissionados serão ocupados por quem venceu as eleições”
O sucesso de Jair Bolsonaro depende muito mais do poder civil do que do grupo de militares que cercam o presidente da República. Para ser mais claro, a médio e longo prazos, não é a retórica ideológica nem o esculacho da oposição que garantirão esse êxito, mas o desempenho dos ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça, Sérgio Moro. Os generais terão um papel importante, principalmente para o governo não sair do próprio eixo, como parece acontecer no Itamaraty, mas isso dependerá também de suas concepções de gestão. Vamos por partes.
Paulo Guedes encontra uma casa arrumada do ponto de vista financeiro, não foi à toa que trouxe importantes integrantes da equipe econômica anterior para o time que montou, ainda que o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, ontem, tenha levantado dúvidas sobre a movimentação financeira do governo no último mês. Na máquina federal, a correria para fazer empenhos e efetuar pagamentos em atraso no último mês do ano fiscal é normal. O problema do governo é outro: o deficit fiscal. Não há possibilidade de retomar o crescimento e enfrentar o desemprego em massa sem a reforma da Previdência.
Ninguém se iluda, há um alinhamento político favorável ao sucesso da nova equipe econômica. Como defendeu Guedes, o “projeto liberal democrata” de Bolsonaro não vive o dilema de quem pega o violino com a mão esquerda e toca com a direita. “A aliança de centro-direita, entre conservadores, em princípios e costumes, e liberais na economia”, como definiu Guedes, é robusta, porque conta com o apoio da maioria da população. Enfrentará resistência das corporações, inclusive militar, mas o maior perigo é a recidiva do patrimonialismo dos que vivem à custa das rendas e benesses do Estado. Eles aparecem onde menos se espera.
Abrir a economia, privatizar as estatais, controlar gastos, reformar o Estado, desregulamentar, simplificar e reduzir impostos e descentralizar os recursos para estados e municípios não são um “estelionato eleitoral”. O governo foi eleito com essa pauta. Se vai dar certo é outra história, mas, desta vez, as chances realmente são maiores. E as políticas sociais? Bolsonaro somente prometeu prioridade para o ensino fundamental e a saúde das crianças, o resto vai jogar no colo dos estados e municípios. É a receita da Escola de Chicago, aplicada na Alemanha, no Japão e no Chile. No fim da guerra, com seus países em ruínas, alemães e japoneses estavam comendo ratos; no Chile de Pinochet, era chumbo mesmo. No Brasil, num cenário completamente diferente, o sucesso do projeto será um novo “case”.
Corrupção e violência
A outra perna do poder civil está no Ministério da Justiça, que nunca concentrou tanto poder e instrumentos de atuação como agora. Combate à corrupção e ao crime organizado são bandeiras de Bolsonaro sob a responsabilidade de Sérgio Moro, que também encontrou a casa arrumada, em particular, o recém-criado Sistema Unificado de Segurança Pública. Como levou para sua equipe os principais parceiros da Operação Lava-Jato, Moro também partirá de um patamar mais elevado no combate à corrupção.
A estratégia de endurecimento das penas e a política de liberação da compra de armas pelos cidadãos, condizentes com o discurso de Bolsonaro, garantem amplo apoio popular ao novo governo, mas têm eficácia duvidosa quanto aos presídios e às mortes violentas. Há estudos realizados no Brasil e, principalmente, nos Estados Unidos sobre isso. Na Califórnia, essa política fez explodirem a população carcerária e os gastos com manutenção de presídios. Em Nova York, ao contrário do que muitos imaginam, o que baixou os índices de violência foi a legalização do aborto, com a progressiva redução da população de risco, e não a política de “tolerância zero”.
E os militares? Essa é outra história. Se trabalharem com a centralização e a verticalização da gestão, como é da cultura mais tradicional de nossas Forças Armadas, de inspiração francesa e alemã, vão burocratizar e paralisar a administração. Ao contrário, se adotarem como método a coordenação e a cooperação, a grande influência norte-americana junto aos oficiais que integraram a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, durante a 2ª Guerra Mundial, vão ajudar o governo a melhorar sua performance administrativa e capacidade operacional.
Houve uma gritaria grande por causa das exonerações em massa na Casa Civil, que tende a se reproduzir em outras pastas, principalmente dos cargos comissionados. O ministro Onyx Lorenzoni justificou a decisão como uma necessidade de alinhamento com a nova política do governo. Os petistas já haviam sido desalojados com a saída da presidente Dilma Rousseff, exceto àqueles que aderem a qualquer governo. O estrilo da oposição não faz sentido, porque é até uma questão de respeito à vontade das urnas ocupar esses cargos com quem venceu as eleições. O ministro, porém, vai descobrir o que é um jabuti em cima da árvore. Como se sabe, jabuti não sobe em árvore, alguém pôs ele lá, como na velha fábula.
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Maria Alice Setubal: À espera das políticas sociais, culturais e ambientais
Posição do novo governo tem sido genérica até aqui
O ano de 2018 está chegando ao fim depois de muitas turbulências e conflitos profundos, causados pelos diferentes posicionamentos políticos, que geraram, inclusive, discórdia entre amigos e familiares.
A polarização ocorrida durante a campanha eleitoral pode ter se amainado, mas ainda está longe de se dissipar. O país segue dividido, mas com uma espera em comum: a posse do novo governo, que, até aqui, tem se posicionado de forma genérica, fazendo oposição ao sistema e à corrupção.
Essa postura se concretizou na busca de escolhas ministeriais independentemente de partidos, no desenho de uma ideologia liberal privatizante e iniciativas morais ultraconservadoras, expressas pela defesa da Escola sem Partido e pela oposição à ideologia de gênero e ao que denominam como marxismo cultural, definição que parece englobar tudo aquilo que se considera contrário aos princípios do grupo eleito, algo ainda um pouco nebuloso para o público em geral.
Nos últimos 30 anos, o Brasil avançou muito em todos os indicadores sociais. Políticas inovadoras foram construídas e muitas delas referendadas e premiadas internacionalmente. Certamente, os avanços não foram na velocidade desejada e, apesar de termos universalizado o ensino fundamental, tirado 16 milhões de pessoas da extrema pobreza (de 2003 a 2013), o SUS ser um modelo de saúde para muitos países, para dar apenas alguns exemplos, ainda temos muito a melhorar para alcançarmos uma qualidade nos serviços prestados.
A boa notícia, muito importante a ser destacada, é que temos estudos, pesquisas e evidências que apontam onde acertamos e quais ajustes e inovações devem ser feitos no intuito de poder embasar as novas políticas nessas e nas demais áreas sociais, culturais e ambientais.
A sociedade civil brasileira é constituída por uma pluralidade grande de organizações, com um acervo de pesquisas e experiências rico e variado que pode ser colocado a serviço das políticas públicas.
Como se trata de um país com diferenças regionais e culturais enormes, são necessários programas e políticas alinhados aos seus diferentes contextos, e as instituições locais podem ter um papel fundamental na articulação de pontes entre os níveis macro e micro para contribuir com leituras, construções e ajustes.
O século 21 se estabelece como o tempo de construções colaborativas, e precisamos refazer pontes desfeitas durante os últimos anos, unindo novamente os fios do tecido social das diferentes comunidades.
Diversas pesquisas apontam baixíssimo nível de confiança nas instituições ou em pessoas que não fazem parte da família dos brasileiros.
Construir confiança, portanto, é condição sine qua non para fortalecer a democracia e para alcançarmos um bem comum e um espaço público inclusivo e diverso. Para isso, são necessárias instituições fortes, transparentes, livres e responsáveis, de modo a criar um vínculo de continuidade entre passado, presente e um futuro comum que continuará com as próximas gerações.
Descobrir um modo singular de pertencer à sociedade e ao mundo é uma condição indispensável para dar sentido às nossas ações e para a renovação desse espaço coletivo.
O Brasil espera as novas políticas sociais, culturais e ambientais na certeza de que a sociedade civil tem muito a contribuir para a construção de um país mais justo e sustentável.
*Maria Alice Setubal é doutora em psicologia da educação (PUC-SP), presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal e do Gife (Grupo de Institutos Fundações Empresariais)