EDUCAÇÃO

Se aprovado no Senado, projeto que autoriza educação domiciliar vai alterar a LDB | Foto: Reprodução/Mestrar

Revista online | As implicações da educação domiciliar

Maria Auxiliadora Lopes*, especial para a revista Política Democrática online (44ª edição: junho/2022)

No dia 19 de maio deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 1.388/2022, que autoriza a educação domiciliar, conhecida como homeschooling no Brasil, e, se aprovada pelo Senado e se tornar lei, irá alterar às Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).

Segundo o texto aprovado e enviado ao Senado, os critérios para quem optar pela educação domiciliar exigem, por exemplo, que o estudante esteja regularmente matriculado em uma instituição de ensino, que deverá acompanhar a evolução do aprendizado.

Além disso, pela proposta, pelo menos um dos pais ou responsáveis deve ter escolaridade de nível superior ou em educação profissional tecnológica em curso reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC).

A outra exigência é a comprovação dessa formação, que deverá ser apresentada à escola no momento da matrícula, quando também ambos os pais ou responsáveis pelo aluno terão de apresentar certidões criminais da Justiça Federal e estadual ou distrital.

No entanto, diante dessa proposta, é imprescindível repensarmos alguns conceitos de educação que socialmente construímos:

Ato ou processo de educar(-se), aplicação dos métodos próprios para assegurar a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral de um ser humano; pedagogia, didática, o ensino conjunto desses métodos; pedagogia, instrução, ensino” (Educação | Michaelis On-line).

A educação pode ser definida como sendo o processo de socialização dos indivíduos. Ao receber educação, a pessoa assimila e adquire conhecimentos. A educação também envolve uma sensibilização cultural e de comportamento, onde as novas gerações adquirem as formas de se estar na vida das gerações anteriores.” (Conceito de educação - O que é, Definição e Significado)

Denomina-se educação o processo em que se adquirem competências e habilidades.” (Brasil Escola)

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Visionárias, as comunidades tradicionais entendem que existem educação e educação escolar.

Educação é aquela compreendida dentro de um processo mais amplo e cotidiano, que faz parte de todos os grupos sociais, incluindo relação com a família, entre pessoas, as gerações, as relações de trabalho e com o meio ambiente. É a educação própria de determinados povos/comunidades.

Educação escolar é um recorte do processo educativo mais amplo. Ela implica na necessidade de organização de uma ação educacional de construção de processo de escolarização específico e diferenciado, voltado fundamentalmente para o fortalecimento e valorização das comunidades 

Existe uma relação intrínseca entre educação e escola, que é um espaço privilegiado da construção coletiva do conhecimento, da socialização dos indivíduos, do preparo para o exercício da cidadania, da correção das desigualdades e da valorização da diversidade.

Recentemente, a necessidade do distanciamento social, devido à pandemia da covid-19, trouxe à tona algumas questões no que se refere à saúde mental de crianças e adolescentes que foram obrigados a permanecer em casa.

Uma pesquisa, realizada pelo Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae, atestou que, em tempos de isolamento compulsório, como o que passamos por ocasião do acirramento da pandemia da covid-19, nossa população infantil e adolescente teve sua saúde mental gravemente afetada, grande parte em decorrência da privação do convívio escolar.

Os estudos e práticas afirmaram, com convicção, que a escola é fundamental para a educação de nossas crianças e adolescentes, mas, principalmente, para uma saudável constituição psíquica.

Além disso, há as situações de crime de abandono intelectual, violência doméstica e abuso sexual contra crianças que as escolas identificam e encaminham às instâncias responsáveis. 

O ser humano é um ser social, e o convívio com outras crianças e as interações são base para um desenvolvimento saudável. A criança não pode ser privada do convívio social independente da vontade de seus pais.

Será que o simples fato dos pais ou responsáveis terem nível superior ou técnico os habilita para o ensino de nossas crianças e adolescentes, considerando que a educação escolar é um processo complexo e requer formação específica que leve os alunos a desenvolverem competência e habilidades para seu pleno desenvolvimento intelectual e social, observando os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que orientam a educação básica brasileira? 

É importante destacar, ainda, a importância da convivência de crianças e adolescentes no ambiente escolar, já que a escola é um ambiente catalisador das diferentes culturas, formas distintas de viver e agir, criando mecanismos para que, a partir dessa convivência, tenha uma postura respeitosa diante das diferenças.

A aprovação de um projeto de lei que propõe mudança tão impactante para o sistema educacional brasileiro, sem que toda a população esteja ciente de todas as implicações, deve ser amplamente discutida com todos os segmentos populacionais, movimentos sociais, especialistas em educação, pais e representações estudantis, para que todos tenham conhecimento e analisem as consequências da aprovação da proposta.

A educação escolar representa um lugar de aprendizagem pela convivência com a diversidade e o respeito às diferenças sociais e culturais. A opção pela educação domiciliar é preocupante, uma vez que coloca a responsabilidade da aprendizagem curricular apenas nos pais ou responsáveis pelo educando, mesmo que estes não tenham habilitação para o ensino.

Considerando que a educação visa o pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para cidadania, privar crianças e adolescentes do convívio e do ambiente escolar viola a liberdade, a democracia e o desenvolvimento pleno que possuem, já que é necessária uma relação intrínseca com a educação. 

Sobre a autora

*Maria Auxiliadora Lopes é pedagoga, ex-consultora da Unesco e ex-diretora do Departamento de Desenvolvimento dos Sistemas de Ensino, da Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação (MEC). Também foi coordenadora da Coordenação Geral de Diversidade e Inclusão Educacional do Departamento de Educação para Diversidade e Cidadania da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC.

** O artigo foi traduzido para publicação na revista Política Democrática online de junho de 2022 (44ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.

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E-título | Foto: Shutterstock/rafapress

As eleições como forma superior de luta

Luiz Werneck Vianna, Horizontes democráticos

Será que o Brasil é isso mesmo, indiferente diante da injustiça, chapado sem erguer um dedo em sinal de protesto aos males que lhe são infligidos, engolindo ofensas calado, anômico, abúlico, e que estivemos redondamente enganados quando o imaginávamos, não há muito tempo, pleno de energia e animado para grandes realizações? Quando perdemos os elos que nos vinculavam a nossos maiores e seus feitos exemplares, como os de Mario Andrade, Drummond, Bandeira, Villalobos, Portinari, Niemeyer, Rondon, os tenentes de 22, a Coluna de 24, os do Teatro de Arena, com o Guarnieri e o Vianinha, e com todos aqueles que deixaram em seus rastros a promessa de aqui iria florescer uma sociedade justa e solidária?

Algo de muito grave ocorreu aqui para que nos encontremos na miserável situação do regime Bolsonaro, inimigo do nosso passado, de suas tradições e instituições, que não só quer aviltá-las como erradicar a sua memória para cujo sinistro desígnio já conspira para sua perpetuação. Tal resultado malévolo não é fruto apenas das circunstâncias desafortunadas que nos viram nascer como nação marcada pelo estigma do latifúndio e da escravidão, que ainda nos atormenta, pois ao longo da nossa história, inclusive recentemente, contamos com oportunidades de buscar alternativas benfazejas, que perdemos por incúria.

As eleições já ao alcance da mão nos fornecem mais uma oportunidade para que, dessa vez, afastemos o passivo que continua a nos assombrar abrindo passagem ao que há de novo na nossa sociedade que forças obscurantistas se esforçam em reprimir. O cenário à frente, diversamente dos idos de 1964, inscritos como estamos na geopolítica americana, apresenta possibilidades para que uma coalizão de forças democráticas encontre sua hora e sua vez e enfrente com êxito a fronda reacionária em plena articulação. O embate entre elas transcorre no campo da política, principalmente eleitoral, terreno mais promissor às oposições democráticas do que para seus adversários, que procuram, conscientes disso, levá-lo para outras esferas como evidente em suas arremetidas contra o processo eleitoral e suas instituições.

Nesse sentido, o foco central dos democratas consiste em criar condições para garantir a preservação do calendário eleitoral e se apresentar nas eleições com candidaturas capazes de ampliar nos limites do possível alianças que lhes facultem o sucesso nas urnas, e, mais que isso, por sua envergadura, afastar as eventuais tentativas de impedir a sua conclusão. A aliança entre Lula e Alckmin certamente é um bom começo para esse fim, mas não basta, a gravidade dos riscos a que estamos expostos exige a incorporação de todas as forças vivas da sociedade, dos sindicatos aos movimentos sociais, não podendo faltar as agremiações de estudantes, universitários e secundaristas, fermento sempre presente em nossas lutas libertárias, capazes de evocar em suas manifestações o que fez do Brasil Brasil.

*Texto publicado originalmente no blog Horizontes democrático, de Alberto Aggio


Dia da língua nacional escancara analfabetismo como desafio urgente

O alfabetizando já sabe que a língua também é cultura, de que o homem é sujeito: sente-se desafiado a desvelar os segredos de sua constituição, a partir da construção de suas palavras – também construção de seu mundo.  (Paulo Freire)

Luciara Ferreira e João Vítor*, com edição do coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida

A língua é uma das mais potentes formas de interação em sociedade e o que possibilita as pessoas a interpretar a realidade e intervir nela. Um mecanismo de desenvolvimento humano. Aquilo que faz cada um ter consciência do existir. No Brasil, porém, ainda é algo efetivamente distante, estranho, um embaraço, para 11 milhões de pessoas que não sabem nem ler nem escrever

A situação é ainda pior no caso de crianças brasileiras, que são tratadas pela Constituição como “prioridade absoluta”, ao menos no papel. Isto porque 40,8% das que têm 6 e 7 anos não sabiam ler e escrever em 2021. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do Instituto Brasileiro Geografia e Estatística (IBGE) e foram divulgados pelo programa Todos pela Educação neste ano.

O dia da língua nacional, celebrado neste sábado (21/5), expõe a importância da principal ferramenta de comunicação e de expressão das nações e busca reforçar a necessidade do estudo e da atualização do idioma nativo a fim de manter a cultura do país viva. Por outro lado, revela, também, um desafio já entranhado na estrutura da nação, mas que deve ser encarado e solucionado: o analfabetismo.

Formada em letras pela Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ) e com parte de sua vida dedicada à função de professora, Maria Dulce Reis Galindo destaca a importância de valorização da língua nacional. “Tudo começa com a leitura”, diz ela, que também é conselheira da Fundação Astrojildo Pereira (FAP). “A educação deveria ser prioridade, em primeiro, segundo e terceiro lugar”, acrescenta.

“Não pode ser estático”

A língua portuguesa originou-se do latim, idioma disseminado na Europa inteira pelo Império Romano em meados do século 3 antes de Cristo, mas foi decretada como idioma oficial do Reino de Portugal em 1290, pelo rei Dom Dinis I. 

Ao chegou ao Brasil, através da colonização portuguesa, em 1532, o idioma passou por diversas mudanças originadas de outras línguas, como o tupi-guarani. A presença indígena foi mantida em sua base, mas, conforme lembra Dulce Galindo, o vocabulário está sempre em movimento. “Isto é positivo. Não pode ser estático”, afirma.

O português é uma das principais manifestações culturais do povo brasileiro e traduz, de maneira única, o modo como as pessoas se mostram perante o mundo. A língua brasileira, assim como as de outras nações, sofre constantes variações, conforme o processo de globalização e no mundo cada vez mais interconectado, tanto física quanto virtualmente.

“O brasileiro é um povo orgulhoso de sua língua. Ela se espalha por todo território nacional com variações. Os cidadãos têm orgulho de ouvir canções de Tom Jobim e de ouvir os poemas de Vinicius de Morais”, diz ela, referindo-se, respectivamente, ao poeta e ao compositor e cantor, ambos nascidos no Rio de Janeiro.

Influências

A ex-secretária do Plano Nacional do Livro e Leitura do Brasil (PNLL) Renata Costa observa que, apesar da colonização portuguesa, diversos estados brasileiros tiveram influência por migração de vários países e línguas. “Um exemplo é o Ceará, que possui uma grande colônia holandesa”, pondera.

Renata, que também é gestora do projeto Palavralida – que começou como um blog de resenhas literárias, em 2009, e hoje dá consultorias na área dos livros e leitura –, aponta a relação do analfabetismo com a falta de interpretação de texto. “Ao olharmos para muitas pesquisas realizadas em torno do livro e da leitura, começamos a entender melhor o grau de importância do fomento à leitura”, diz.

A gestora dá destaque aos dados do Indicador do Alfabetismo Funcional (Inaf) que apontam que 3 a cada 10 brasileiros são considerados analfabetos funcionais e apenas 12% da população está no nível “proficiente”, o mais alto da escala.

Estimativas apontam que até 29% da população brasileira seja analfabeta funcional. É um agravante quando pessoas encontram dificuldades na busca por emprego. Outras, porém, não conseguem nem ler a placa do ônibus do transporte coletivo e identificam o veículo correto de seu trajeto por meio de número.

“Linguagem do povo”

Dulce Galindo lamenta que os governos alternados não tratem o acesso à educação como um direito que deve ser garantido a todas as pessoas, conforme previsto na Constituição de 1988, também chamada de Constituição Cidadã. Muitas escolas não têm nem material nem infraestrutura básica necessária.

“Isso envolve também os professores. As pessoas fogem do magistério. Salários mais altos tornam a carreira mais atrativa”, observa a conselheira.

O desafio histórico continua posto para todos os governantes e, sobretudo, para a sociedade em geral, que tem o poder de escolhê-los nas urnas, como vai ocorrer em outubro deste ano. Aprender a língua é ir além do saber ler ou escrever. É usar o instrumento que possibilita o caminho em busca da autonomia e do próprio existir, coletivamente, em sociedade.

Paulo Freire observou bem essa relação. “A linguagem do educador ou do político (e cada vez nos convencemos mais de que este há de tornar-se também educador no sentido mais amplo da expressão) tanto quanto a linguagem do povo, não existe sem um pensar e ambos, linguagem e pensar, sem uma realidade a que se encontrem referidos”, escreveu ele, em uma de suas obras.

*Integrantes do programa de estágio da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sob supervisão do jornalista, editor de conteúdo e coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida


Ensino das línguas indígenas nas aldeias esbarra na falta de infraestrutura | Imagem: reprodução/Brasil de Fato

Educação escolar indígena fortalece culturas originárias e ajuda a combater o racismo

Murilo Pajolla*, Brasil de Fato

O idioma do brasileiro não é só o português. O país tem mais de 270 línguas faladas por mais de 300 povos diferentes. Para os indígenas, o direito de aprender a língua materna é uma forma de manter viva a cultura e combater o racismo. 

Esse direito, inclusive, está na Constituição, que determina uma educação escolar indígena intercultural, bilíngue e diferenciada. Essa proposta surgiu na década de 70, das reivindicações do movimento indígena, como um contraponto ao projeto de apagamento das suas culturas.

No sul do Amazonas, Fredeilton Carvalho, do povo Apurinã, é um dos educadores indígenas da cidade de Lábrea. Ele explica que, nas aldeias mais isoladas, o professor tem que assumir um papel indispensável na vida da comunidade. 

"O professor indígena é professor, é zelador, é merendeiro e muitas vezes médico. Às vezes você se sente até num papel de pai, porque você tem aquele amor, aquele carinho pela criança, pelos seus alunos", afirma.

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O salário pago pelo município é de no máximo R$ 2 mil e não está à altura do desafio. Para acessar as comunidades mais distantes é preciso viajar de barco durante cinco dias. E quando o professor finalmente chega, costuma se deparar com infraestrutura insuficiente.

"Muitas vezes o ambiente escolar não é adequado. A sala é pequena, você está dando aula tem e que fazer a merenda ao mesmo tempo. Acaba sendo meio complicado. Mas a gente, como professor indígena, resiste. Porque a gente é forte", garante.     

Essa região teve um pioneiro na educação escolar indígena: professor João Batista da Silva, o João Baiano, de 74 anos, também Apurinã. Ele aprendeu a língua do seu povo durante a infância. E lembra que, naquela época, muitos indígenas tinham vergonha de falar o idioma na cidade, por causa do racismo.  

"Por exemplo, quando estávamos conversando, a gente não era considerado como pessoa normal. É 'caboclo', né? 'Índio é preguiçoso, índio não fala'. Eles mandavam a gente [não falar no idioma]: ‘corta a gíria, caboclo”. Rapaz, a gente ficava todo tímido", relembra. 

Esse racismo ainda está longe de ser superado. Mas o ensino da língua materna ajudou a tornar os indígenas orgulhosos das suas culturas. Aos 17 anos, a neta de João Baiano aprendeu o Apurinã na sala de aula com o avô. 

A jovem está decidindo qual carreira seguir e se preparando para fazer o ensino superior e tem orgulho de saber um idioma que já foi tão silenciado. "Não só a língua, aprendemos muito sobre a cultura, sobre nossos territórios e sobre as leis que nos apoiam".

*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato


É HOJE: Desigualdade social, educação e democracia

Por um Brasil mais justo e inclusivo, precisamos debater sobre a educação e o acesso democrático às oportunidades.

João Rodrigues, da equipe da FAP

Paralelo à discussão de um país mais justo e inclusivo, são proeminentes os problemas políticos, sociais e econômicos que culminam na exclusão social e identitária, por meio de circunstâncias e contextos prejudiciais que assolam os mais carentes e excluídos.

Expositor

Ricardo Paes de Barros

Coordenador

José Mendonça Filho – ILEC – DEM

Debatedores

Ricardo Henriques

Cristovam Buarque




Cristovam Buarque defende educação como prioridade nacional

"Nossa história é de escravidão e de desigualdade. A educação precisa ser igual para todos, precisa ser prioridade”, destaca o professor emérito de UnB e educacionista.

João Rodrigues, da equipe da FAP

No podcast Rádio FAP desta semana, que publicado na manhã desta sexta-feira (27), o professor emérito de UnB e educacionista sugere que a educação deve ser o vetor do progresso no Brasil. “Nossa história é de escravidão e de desigualdade. A educação precisa ser igual para todos, precisa ser prioridade”, explica Cristovam Buarque. O programa de áudio é divulgado em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts.

Ouça aqui o podcast.




Cristovam Buarque: Nudez da desigualdade e do atraso

Cristovam Buarque / Correio Braziliense

A covid-19 não provocou a tragédia da educação brasileira. Ela apenas desnudou a realidade do atraso e da desigualdade na educação. Desde sempre, as avaliações colocam o Brasil entre os países com uma das piores e com a mais desigual educação de base no mundo, conforme a renda da criança.

Apesar disso, a população brasileira, eleitores e eleitos, não parecia perceber a dimensão da tragédia, nem estava atenta às terríveis consequências disso para o futuro das crianças e do país. A baixa qualidade impede o aumento da produtividade para gerar renda nacional e a desigualdade na educação é a principal causa da pobreza social e da concentração de renda e suas consequências. A epidemia da covid não criou essa situação, apenas denudou a realidade e explicitou os desafios que já existiam.

A sociedade brasileira sempre tratou com descaso o fato de termos a oitava maior população de analfabetos entre todos os países do mundo, e termos apenas metade dos brasileiros terminando o ensino médio e no máximo metade deles em condições de alfabetização para o mundo contemporâneo: conhecer bem a língua portuguesa e falar pelo menos mais um idioma, saber matemática, as bases das ciências, história, geografia, problemas do mundo e dispor de um ofício para conseguir emprego e renda. A pandemia permitiu descobrirmos a realidade: o Brasil tem escolas e fake escolas. As primeiras, embora ainda deficientes, foram capazes de se ajustar e mantiveram um mínimo de qualidade, as outras praticamente abandonaram as crianças por falta dos equipamentos necessários, de professores preparados e motivados e de governantes que dessem importância à educação.

Além disso, a imensa maioria das famílias brasileiras não dispunha em casa dos equipamentos básicos para receber aulas transmitidas, no caso da escola que estivesse em condições de transmiti-las remotamente.

A covid-19 desnudou nosso despreparo para o uso das modernas técnicas de teleinformática aplicadas à educação. Há pelo menos duas décadas, o avanço técnico já tinha criado as condições para a execução das aulas remotas. O ensino à distância é uma realidade que o ensino superior vem praticando, mas que a educação de base nem ao menos considerava. Além de desnudar a desigualdade, a pandemia desnudou o atraso no equipamento de nossas escolas.

Ao desnudar o atraso e a desigualdade, ela nos trouxe dois desafios: como equipar as escolas para aproveitar todas as vantagens da modernidade da teleinformática, dos bancos de dados e imagens, e como oferecer essas vantagens a todos, independentemente da renda e do endereço de cada criança.

A pandemia mostrou que a pedagogia está atravessando, 100 anos depois, o desafio que a arte dramática enfrentou na passagem do teatro para o cinema, devendo adaptar as aulas teatrais – professor, aluno, quadro negro – para as aulas cinematográficas – onde o professor usa o seu conhecimento, os equipamentos e linguagens novas para ensinar presencial ou remotamente. O desafio está em formar professores e oferecer a eles o apoio técnico e os equipamentos necessários para o novo tipo de magistério que vai caracterizar os próximos anos.

Será uma estupidez nacional não aproveitar as novas técnicas, será uma indecência se esta nova pedagogia continuar como privilégio de poucos. O desafio trazido pela covid, ao desnudar a realidade do atraso e da desigualdade, vai exigir que o Brasil desperte para o atraso e a desigualdade: crie um Sistema Único Nacional de Educação de Base, capaz de oferecer em condições iguais o potencial das novas técnicas, aliadas às concepções humanistas da pedagogia.

A pedagogia precisa dar o salto que o cinema deu para universalizar a arte dramática, permitindo a qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, assistir os melhores diretores e atores, que eram privilégio dos ricos em cidades grandes. As novas técnicas digitais e de teleinformática vão permitir atividade pedagógica de qualidade: mais agradável ao aluno, mais eficiente para o aprendizado e mais democrática ao se espalhar para todos. No caso da passagem do teatro ao cinema, não houve necessidade de vítimas, nem mortos. No caso da educação, tanto demoramos para abrir os olhos que foi preciso a maldição da covid-19 para mostrar a nudez do atraso e da desigualdade. Pior será se percebermos a nudez, mas não enfrentarmos os desafios de modernizar e dar equidade à educação de base oferecida às crianças brasileiras.

*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o futuro da educação

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/08/4942638-artigo-nudez-da-desigualdade-e-do-atraso.html


Folha de S. Paulo: Se você não se ligar, o racismo te envolve na universidade, diz reitora negra

Angela Pinho, Folha de S. Paulo

Integrante de um grupo pequeno, mas agora organizado, de reitores negros, Luanda de Moraes celebra a redução da desigualdade racial no ensino superior, mas denuncia a persistência do racismo na sociedade brasileira e, em especial, nas universidades, onde ele é mais sutil.

À frente da Uezo (Fundação Centro Universitário Estadual da Zona Oeste), que recebe alunos vindos de áreas pobres do Rio de Janeiro, ela acaba de formar com mais seis colegas um grupo de reitores negros que levará à frente posicionamentos conjuntos sobre temas como a Lei de Cotas.

A norma, que reserva vagas nas universidades, deve ser revista no ano que vem, e Luanda avalia que há risco político de retrocesso.

Isso ocorre no momento em que a crise econômica e o enxugamento de políticas públicas trazem risco de interromper a trajetória do ensino superior rumo à equidade racial, como mostrou o Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial).

À Folha ela falou sobre racismo, políticas de ação afirmativa e representatividade.

O que te motivou a entrar na vida acadêmica? Sempre tive a convicção de que precisava retribuir à sociedade, porque sou fruto do ensino público. Sou filha de uma mulher negra e de um homem também negro. Sou originária da periferia do Rio de Janeiro. Fui aprovada no vestibular, na minha primeira tentativa, para engenharia química na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Descobri que eu gostava tanto de química ao estudar para o vestibular.

Como foi isso? Naquele momento, precisei estudar muito mais do que de hábito, porque, devido à precariedade do financiamento das escolas públicas, elas só conseguem oferecer uma educação limitada. Então, mesmo sempre tendo bons resultados nas provas, eu ainda estava muito distante dos estudantes de escolas particulares ou mesmo federais.

Mas preciso dizer que o meu pai também foi engenheiro químico, e ele chegou lá porque teve o apoio da minha mãe. Em casa éramos muito incentivados a ser fortes. Éramos alimentados de diálogos para encarar a opressão que vivíamos fora de casa. Porque, ainda que morando na periferia, ainda que estudando em escolas públicas, eu era vítima de um racismo muito forte.

Pode falar mais sobre isso? Um feto negro já sofre racismo. Ainda dentro do ventre materno a mãe sofre, e essa criança vai sofrer junto. Isso vai sendo impregnado na vida. Uma lembrança clara que tenho é da escola primária, eu tinha oito ou nove anos. Uma colega ia na segunda-feira com rabo, na terça de maria chiquinha, na quarta com o cabelo solto e na quinta com coque. E eu ia com o meu cabelo black. A colega perguntava: você vai vir com esse cabelo todos os dias? Quando ela falou isso, eu tinha todas as respostas e ela teve que ouvir um longo sermão. Isso só foi possível porque tinha referências em casa de pessoas que frequentaram o movimento negro. Outro caso de que me lembro na escola municipal é que a diretora todo final do dia entregava um brinde pra criança mais limpinha. Eu era amiga de uma menina loira e nunca ganhei, ela sempre ganhou. Na minha família, sempre fui vista como a chatinha criteriosa com higiene. Ainda assim, a diretora nunca conseguiu me ver como a criança mais limpinha.

Ainda sofre racismo? Ainda. Mas falando da infância e da adolescência, essas questões marcam muito os jovens. Já é dificil vencer as limitações naturais inerentes a qualquer pessoa, como por exemplo timidez, medo, insegurança, e é muito mais difícil para a população negra que sofre essas violências. É por isso que a gente diz que a sociedade brasileira é estruturada na prática do racismo. Em muitos outros casos as pessoas desistem por falta de oportunidades.

Hoje eu ainda sofro racismo quando eu frequento determinados restaurantes e lugares. É algo muito presente. Os casos de racismo têm sido muito publicizados, a coisa está bem escrachada. Os racistas estão com muita disposição, mas nós também estamos para mudar essa realidade.

E na universidade, o racismo é diferente? Mais sutil? Sim, porém existe e, se você não estiver bem ligada, acaba sendo envolvida. A partir da implementação das ações afirmativas, o debate interno da universidade foi ampliado e ela foi se democratizando, por isso o debate começa a ser mais direto e palpável. Mas nós encontramos racismo sim e é realmente uma luta diária.

O que é ser envolvida? É quando você não consegue atuar contra. Por exemplo, quando identifica um caso e não reage porque ele está camuflado, porque existem relações de hierarquia. Tinha aquela campanha que perguntava onde você esconde o seu racismo. Você esconde o seu racismo quando não enxerga, por exemplo, o docente negro que pode ser o seu diretor de unidade, quando não enxerga uma docente que pode ser sua reitora negra.

Por que há tão poucas reitoras negras no país? Em muitos casos não existe nem mesmo uma candidatura, porque quem faz o reitor são as relações pretéritas à eleição. Em muitos casos essas relações nem conseguem ser construídas por porque, pela ação do racismo, os negros e negras sao afastados desses espaços de poder.

Agora estamos formando um grupo de reitores negros e negras de universidades públicas no Brasil. Hoje, até onde eu sei, somos apenas sete, cinco reitoras e dois reitores. Esse número já foi ainda menor, já foi zero, é muito baixo, mas existe. Posso concluir que existe sim um resultado das políticas de ações afirmativas para esse dado, porque elas conseguiram transformar as instituições de ensino superior em espaços mais plurais e, portanto, capazes de produzir e disseminar reflexões sobre o processo de formação da sociedade brasileira.

Como esse processo se relaciona com as ações afirmativas? A política de ações afirmativas aumenta a representatividade e isso incentiva as pessoas.

Trazendo a minha questão pessoal, e posso ampliar isso para a população negra em geral, eu tive pessoas que me representavam quando criança e adolescente. Não quando eu ligava a televisão, porque quando ligava parecia que não estávamos no Brasil, mas na Noruega. Mas tinha a representatividade na minha família, naquela bolha. Precisamos ampliar o número de bolhas. Para isso, precisamos de políticas públicas de ingresso e permanência.

O que vocês pretendem com esse grupo de reitores negros? Ainda estamos discutindo, mas pretendemos nos mostrar na sociedade brasileira e contribuir para o debate da revisão da Lei de Cotas, que está prevista para 2022.

A Lei de Cotas deve ser mantida como está? Deve ter alguma mudança? A gente precisa lembrar as cotas sempre existiram aqui no Brasil, mas nunca foram para contemplar negros e indígenas. Desde o Brasil colônia, foram sempre para privilegiar brancos estrangeiros, latifundiários, empresários. Mas ainda é preciso ampliar o número de vagas, ampliar a atenção para a permanência e atentar para a questão do controle das fraudes, porque isso está tirando de fato o lugar da população que de fato precisa.

Precisamos ainda incluir mais o negro, seja aumentando o número de vagas ou o percentual, e é preciso olhar o antes também. Os jovens estão sendo retidos no ensino fundamental e no ensino médio.


ÍNDICE FOLHA DE EQUILÍBRIO RACIAL

Ferramenta inédita permite medir diferenças de oportunidade entre brancos e negros pelo país

Consulte o Ifer

Regiões ricas falham mais em dar oportunidade igual a negros e brancos, revela índice

Índice indica que, sem políticas públicas, exclusão racial persistirá por décadas no Brasil

Em município de Goiás, diretoria de igualdade racial faz a diferença

Brasil pode atingir equilíbrio racial no ensino superior na próxima década

Maioria dos estados tem medidas recentes contra desigualdade racial

Pauta da exclusão racial perde espaço na gestão federal, dizem especialistas

Punição a anúncio racista gera divergência na Promotoria de MG

Exclusão racial no topo da pirâmide de renda do Brasil deve aumentar

Crise econômica faz disparar a desigualdade entre brancos e negros no NE

Menor isolamento de negros em periferias facilita queda da disparidade no CO

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Expediente – Quem realizou o projeto


Vê algum risco de retrocesso na revisão? Diante da nossa realidade governamental, essa é uma grande preocupação. Se não tivermos apoio na Câmara e no Senado, a lei pode ser enfraquecida. Existe uma discussão que a lei de cotas causa conflitos raciais. Imagina: conflito racial maior que o racismo é o quê?

Como responde a esse argumento dos conflitos raciais? Quando se diz que a política de cotas pode trazer conflitos raciais, vejo como uma bela jogada arquitetada pelo movimento racista. As primeiras leis brasileiras excluiam negros e negras da escolas públicas. A lei das sesmarias, que ainda gera resultados nas nossas questões fundiárias, excluiu os negros. A Lei Áurea não previu trabalho nem salário. As pessoas foram para a rua, e aí vieram leis como a da vadiagem para tirar as pessoas da rua. E depois vem essa política de segurança. Então é inegável que é preciso políticas públicas de reparação e inclusão.

Mas, quando nós começamos a ocupar os lugares, isso causa um incômodo muito grande. Voltando à questão do racismo na universidade: eu disse que, quando a gente não percebe, a gente é envolvido. E isso acontece porque a ação racista te engana, você fica embriagada e muitas vezes você se questiona. E é por isso que você tem que estar ligado, porque você não está em questão. Em questão está o sistema racista.


LUANDA SILVA DE MORAES, 43 é reitora da Uezo, é graduada em engenharia química pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, com mestrado e doutorado pelo Instituto de Macromoléculas da UFRJ

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/07/se-voce-nao-se-ligar-o-racismo-te-envolve-na-universidade-diz-reitora-negra.shtml