Economia
Frente popular: o caso do Chile
Alberto Aggio, Horizontes Democráticos*
Muito se tem falado e escrito nos dias que correm sobre a atualidade das frentes populares, em especial no Brasil nesses meses que antecedem as eleições presidenciais. Esse interesse vem se cristalizando, não apenas no Brasil, por conta da necessidade de se enfrentar os chamados regimes, governos ou tendências que hoje caracterizamos como iliberais, reconhecendo que alguns personagens a eles referidos apresentam vivíssimos traços fascistas. Evidentemente, não se trata de imaginar uma repetição do passado, contudo, a perspectiva de enfrentamento a essa situação tem suscitado a lembrança das Frentes Populares que tiveram vigência a partir de meados da década de 1930. A menção ao tipo de aliança política que comportava a estratégia política da frente popular nem sempre tem enfatizado a necessidade de compreender a sua história bem como suas vicissitudes. A ênfase recai, no mais das vezes, na intenção ou na necessidade premente de ultrapassar um governo marcado permanentemente por ameaças a democracia brasileira. Nesse sentido, refletir sobre a trajetória histórica da frente popular no Chile, único país latino-americano a vivenciar concreta e objetivamente uma política com essas características, torna-se importante para se perceber tanto a positividade quanto os desafios e limites que esse resgate pode implicar.
Em função da vitória do nazismo na Alemanha no início da década de 1930, a Internacional Comunista (IC), passou a adotar, a partir de agosto de 1935, uma nova orientação política: a estratégia da Frente Popular. Embora não tão conhecida, ao lado da França e da Espanha, o Chile conheceu a vitória eleitoral e o estabelecimento de um governo baseado na política de Frente Popular, em 1938. Para o movimento global do comunismo, essa estratégia significava a ultrapassagem da política anterior de “classe contra classe” que não tinha gerado nenhum ganho efetivo ao movimento. Para a IC, haveria a necessidade de se impulsionar a unidade de ação entre os comunistas e outras forças políticas com o intuito de se fazer frente, política e ideologicamente, ao fascismo e ao nazismo, então em ascensão na Europa ocidental. Ainda que a América Latina figurasse como absolutamente secundária frente aos propósitos da IC, Brasil e Chile, em virtude de suas posições estratégicas, em relação ao Atlântico e ao Pacífico, passaram a ser vistos como países importantes para que se estimulasse a nova linha política.
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Apesar de cronologicamente posterior às experiências da França e da Espanha, as vicissitudes que deram origem a Frente Popular no Chile foram, de certa forma, similares. Tratava-se da necessidade de unidade político-social de setores populares para resistir ou impedir a instalação de um governo repressor. Da mesma maneira que na Europa, a Frente Popular articulou-se no Chile como uma aliança político-eleitoral que abrigava correntes político-ideológicas mais amplas do que o espectro formado pela esquerda de matriz marxista. Em oposição ao segundo governo de Arturo Alessandri (1932-1938), marcadamente autoritário e repressivo, a Frente Popular chilena foi composta essencialmente pelos partidos Radical, Socialista e Comunista, que assumiram, gradativamente, a defesa da democracia política como fundamento de uma coalizão de centro-esquerda, ainda que, à época, ela fosse caracterizada como um agrupamento genuinamente “esquerdista” por seus adversários.
Igualmente efêmeras, essas três experiências governativas de Frentes Populares foram historicamente decisivas em suas histórias nacionais, a despeito dos desfechos tão dispares que tiveram. A frente popular na Espanha redundou, como se sabe, no banho de sangue da guerra civil, iniciada em 1936, e, na França terminou, sumariamente, em função da falta de apoio parlamentar ao gabinete socialista de Léon Blum, em abril de 1938. No Chile, ao contrário da Espanha, não eclodiu a guerra civil. No entanto, a Frente Popular não conseguiu sustentar-se como aliança política passados os dois anos de sua chegada ao poder. Em 1941, ela seria irreparavelmente rompida. Mesmo assim, diferentemente da França, a ruptura da coalizão de centro-esquerda não significou, no Chile, o colapso do governo iniciado em 1938. Sustentado pelo presidencialismo da Carta Constitucional de 1925, o governo do presidente Pedro Aguirre Cerda (eleito em 1938 pela Frente Popular) prosseguiu mesmo após a ruptura da coalizão originária e seu mandato somente foi interrompido em virtude de sua morte, no mesmo ano em que se rompia a aliança dos partidos da Frente Popular.
Ainda que as alianças eleitorais e de governo posteriores a 1941 tenham sido mais amplas e variáveis do que a coalizão vitoriosa em 1938, a característica distintiva assumida pelo Chile está no fato de que a experiência da Frente Popular proporcionou ao país mais de uma década de governos sob sua inspiração, tendo sempre à testa um presidente vinculado ao Partido Radical. Depois da vitória de 1938 e da ruptura da Frente Popular em 1941, os Radicais venceram as duas eleições consecutivas para a Presidência da República. Na primeira, em 1942, com Juan Antonio Ríos encabeçando uma coalizão amplíssima, denominada “Aliança Democrática”. Na segunda, em 1946, Jorge González Videla foi o candidato da “União Nacional”, alcançando o poder com um forte e explícito apoio dos comunistas para em seguida colocá-los na ilegalidade, em 1947. Em ambas, como se nota, a consigna “Frente Popular” cedeu lugar, significativamente, a outras expressões. Depois de 1938, Videla foi o único presidente Radical do período que terminou seu mandato – Antonio Ríos, da mesma forma que Aguirre Cerda, morreu antes de concluí-lo. O desprestígio do Partido Radical como força política governante e as divisões no seio da esquerda no início da década de 1950 possibilitaram a eleição presidencial do ex-ditador Carlos Ibáñez del Campo, em 1952.
A Frente Popular e o Radicalismo, seguindo a dinâmica do processo de modernização iniciado na década de 1920, assentaram e implementaram profunda e sistematicamente, mas sem assumir uma feição revolucionária, políticas que possibilitaram a alteração da fisionomia econômico-social do país, através da ação estatal. Se os quatorze anos que se seguiram à vitória eleitoral de 1938 não devem ser compreendidos, em sua integralidade, como um período articulado pela linha política da Frente Popular, tampouco podem ser vistos em descontinuidade com as forças políticas que assumiram o poder em 1938 ou como externo às mudanças que a partir daquele momento se processaram. Numa visão comparativa, não seria despropositado um paralelo entre os quatorze anos de predomínio Radical no Chile e o período em que Getúlio Vargas governou o Brasil, entre 1930 e 1945, ainda que as diferenças no que se refere à dimensão política sejam contundentes e expressivas. Entretanto, o que mais chama atenção, além do contexto cronológico, são os projetos econômicos que foram implementados, mesclando nacionalismo e integração internacional, tendo como base a sedução pelo “americanismo”, apesar de ambos os países manifestarem também à época uma adesão incontestável aos fundamentos organicistas de matriz fortemente europeia.
No entanto, ao contrário do Brasil, a partir de 1938, a política conciliatória, flexível e pragmática do Partido Radical passou a ser o ponto de referência central na vida política do país, fortalecendo as convicções democráticas do republicanismo chileno. Isso acabou por gerar, a despeito das enormes divergências internas desde o estabelecimento da Frente Popular e dos conflitos latentes com as forças de direita, um clima de relativo consenso em torno de temas como a industrialização e a intervenção continuada do Estado na economia. À testa dos governos que se sucederam, o Partido Radical garantiu uma relativa estabilidade do sistema político e pautou-se pela conciliação, em quase todo o período a partir de 1938, em relação aos interesses das camadas subalternas, em especial as urbanas. Acomodando-se também às oscilações dos outros segmentos políticos, o Partido Radical pôde realizar, ao longo deste período (sobretudo depois de rompida a Frente Popular), alianças eleitorais e de governo de amplo espectro, ora encaminhando-se mais à esquerda, ora à direita, conforme os ditames da conjuntura. No geral, as alianças eleitorais lideradas pelos Radicais foram de centro-esquerda. Uma vez vitoriosos e no poder, os Radicais buscavam, e por vezes conseguiam, o apoio de frações dos Liberais, dos Conservadores e da Falange Nacional (futuro Partido Democrata-Cristão). Entre 1932 e 1952, os Radicais e os Conservadores nunca compuseram alianças eleitorais, ainda que tenham participado de algumas alianças de governo, no início e no final deste período.
Numa visão de conjunto do processo aberto em 1938, o consenso a que nos referimos anteriormente jogou um papel muito mais decisivo do que a natureza das coalizões levadas a efeito pelas políticas de esquerda ou aquelas do Radicalismo. Por esta razão, a ascensão ao poder da Frente Popular abriu um período na história do Chile que não correspondeu integral e precisamente aos anseios que expressavam (retoricamente ou não) suas bases de apoio e as representações políticas e sociais que lhe deram origem na conjuntura repressiva de 1936[4].
Neste sentido, pode-se dizer que o destino reservado aos atores políticos que operaram as mudanças empreendidas naquele período não corresponde à envergadura da tarefa realizada. Em relação à esquerda, ainda que as consequências da sua participação nos governos de coalizão tenham sido prontamente avaliadas como negativas – e esta visão será predominante no seio da esquerda chilena até a década de 1970 –, pode-se dizer que, em favor desta participação está o fato de que os partidos Comunista e Socialista não somente conseguiram assegurar o seu papel de representantes dos trabalhadores organizados, como também puderam aumentar suas bases e seu prestígio para, enfim, atuarem como forças proeminentes do processo político nacional, em condições de igualdade com os demais partidos. Isso é extremamente importante porque, além da experiência governativa, permitiu assegurar a autonomia política e organizativa das classes subalternas no processo de modernização que o país viveria a partir deste período.
Por outro lado, levando-se em conta que uma das bases do seu programa era o nacionalismo, podemos dizer que, no plano da economia, a esquerda foi incapaz de influenciar no sentido de se promover o desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, diminuir a vulnerabilidade e a dependência do país em relação ao exterior. No plano da cidadania, verificou-se a impossibilidade de se ampliar o eleitorado nacional e de se conseguir estender o processo de sindicalização ao campo. A ascensão ao poder das forças que se articularam na Frente Popular não levou a um processo de democratização, via ampliação do eleitorado. No final da década de 1940, o percentual de votantes em relação à população era menor do que ao término da década anterior e se comparamos as eleições presidenciais de 1932 e de 1946 verificamos que o crescimento da participação eleitoral foi insignificante: de 7,6% para 8,5%[5].
Este conjunto de resultados não se encontra fora do âmbito explicativo. Em primeiro lugar, é verdadeiro que a correlação de forças não era inteiramente favorável à esquerda e que a direita (Conservadores e Liberais, fundamentalmente), em maioria no Parlamento por quase todo o tempo, conseguiu bloquear a implementação de medidas voltadas para os objetivos democratizantes que constavam do programa da Frente Popular de 1938. Além disso, em diversas oportunidades, a direita demonstrou claramente aos Radicais que seus interesses teriam preferência até mesmo sobre a manutenção da democracia representativa. A direita combinou assim a sua força eleitoral com o seu poderio econômico: vetou tudo o que afetava seus interesses imediatos, especialmente a sindicalização camponesa, e permitiu as mudanças que expressavam os interesses das organizações empresariais, acomodando seus potenciais conflitos internos.
Neste sentido, operando a situação política para permanecer sempre com o controle da presidência da República, a disposição do Partido Radical em ceder às pressões da direita seguiu à lógica de afirmação histórica deste partido. Nela, o tema da ordem assumia importância equivalente ao da mudança. A afirmação das representações da esquerda, em função da estabilização democrática do sistema político, empurrou o Radicalismo para o centro. Nessa posição, os Radicais tinham tudo a oferecer aos dois lados do espectro político, desde que estes o brindassem, conforme as circunstâncias, com o posto maior da República e/ou com o apoio ao futuro governo. A leitura que os Radicais fizeram desta situação definiu com maior precisão o seu papel político. A partir dai, a combinação mais eficaz para dar andamento à modernização e garantir a estabilidade estava na sua própria razão de ser como ator político.
A trajetória histórica da Frente Popular no Chile chama atenção para inúmeras dimensões, especialmente para o conflito político, as representações da esquerda bem como para a estabilização de um sistema político democrático e pluralista. Seria importante atentar também para a difícil e complicada relação entre a proposição de origem, enfaticamente democratizadora, e os resultados alcançados que limitaram esse avanço, embora não o tenham suprimido integralmente. Contudo, comparada com França – onde sobreveio a invasão do nazismo – e com a Espanha – que imergiu numa guerra civil sangrenta –, a Frente Popular no Chile conseguiu realizar uma façanha histórica, especialmente se pensarmos no contexto latino-americano da época: conciliar democracia política e modernização econômico-social, mesmo com todas as limitações que se evidenciaram no percurso de quatorze anos.
Ps. A imagem de capa desse artigo registra a manifestação popular em frente ao palacio La Moneda, no dia da posse de Pedro Aguirre Cerda, presidente eleito pela Frente Popular em 1938.
*Publicado simultaneamente em Estado da Arte, em 30 de junho de 2022; https://estadodaarte.estadao.com.br/frente-popular-chile-aggio/
Revista online | Mesmo sob ataques, urna eletrônica mantém segurança do voto
Símbolo da modernização e da lisura do processo eleitoral no Brasil, a votação em urna com leitor biométrico mostra a eficácia da utilização da tecnologia da informação a favor da democracia e a serviço da segurança do voto, segundo especialistas. Um avanço em relação a um passado marcado pelo obscurantismo de fraudes históricas, com troca de voto por cestas básicas, combustíveis e outras benesses.
No entanto, às vésperas das eleições, o presidente Jair Bolsonaro (PL), que aparece atrás de Lula (PT) nas pesquisas de intenção de voto, continua a propagar suspeitas, sem apresentar provas, contra o sistema de votação por meio de urnas eletrônicas, que passaram a ser usadas no país há 26 anos. Ele repete o caminho do ex-presidente Donald Trump, do Partido Republicano, derrotado nas últimas eleições nos Estados Unidos.
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Bolsonaro, porém, tem alguns senões. Ele e os familiares foram eleitos 19 vezes por meio de urnas eletrônicas, desde que foram instituídas no país. Começou em 1996, com a eleição da então esposa, Rogeria Nantes Braga Bolsonaro, para vereadora. Depois, foram os filhos. Ele, sozinho, já conseguiu mandatos com sete resultados de votação eletrônica, incluindo o primeiro e segundo turnos da disputa que o elegeu presidente.
Para manter suas suspeitas sem provas, Bolsonaro apela a ataques. No último final de semana, criticou o ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, em grupos de WhatsApp, por causa de uma declaração do jurista durante o Forum Brazil UK, no Reino Unido. Na ocasião, Barroso disse que o Brasil está enfrentando um “déficit imenso de civilidade”.
Bolsonaro afirmou que o ex-presidente do TSE foi “confrontado” ao dizer que derrubou proposta que envolvia contagem manual de votos. Citou as falas de duas pessoas presentes ao evento que questionaram o ministro e publicou a seguinte mensagem: “Não há déficit de civilidade no Brasil, mas déficit de honestidade por parte de v. exa. e alguns outros”.
Apesar dos constantes ataques propagados por Bolsonaro, o TSE segue suas atividades para manter o calendário das eleições previstas para outubro, com 577 mil urnas eletrônicas para mais de 150 milhões de eleitores aptos a votar no país. No dia 14 deste mês, o plenário elegeu os ministros Alexandre de Moraes, para próximo presidente do órgão, e Ricardo Lewandowski, para vice. Eles tomarão posse no dia 16 de agosto.
Na sessão que elegeu os seus sucessores no cargo, o presidente do TSE, ministro Edson Fachin, ressaltou que a Justiça Eleitoral está pronta para realizar eleições “transparentes, limpas e seguras, como tem feito ao longo de 90 anos”. “A Justiça Eleitoral contará com a temperança e a sabedoria para navegar nessas águas que reclamam, neste momento, firmeza e serenidade”, afirmou.
O vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gustavo Gonet Branco, observou a gravidade dos ataques às urnas eletrônicas, mas destacou a importância da democracia brasileira, que, segundo ele, vem sendo fortalecida “pela segura continuidade do trabalho sério, firme, inteligente, talentoso e corajoso” da Corte.
“Resultado das urnas tem de ser defendido com unhas e dentes”
Ex-ministro do TSE da classe dos juristas e representante do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (Ibrade), o advogado Marcelo Ribeiro reafirmou a importância da Justiça eleitoral para o fortalecimento e resistência da democracia diante de ataques ao processo de votação eletrônica. “Nós estamos enfrentando um momento difícil. Têm sido feitos muitos ataques ao sistema eleitoral, sempre infundados. O tribunal está, sem dúvida nenhuma, sob ataque”, asseverou.
Na contramão dos ataques antidemocráticos bolsonaristas, diversos políticos têm se posicionado a favor do processo eleitoral brasileiro e da segurança do voto por meio da urna eletrônica. Os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), têm reiterado suas manifestações em defesa do voto eletrônico.
Assim como os demais pré-candidatos à presidência do campo da oposição, Simone Tebet (MDB), apoiada pelo Cidadania e PSDB, diz que "colocar em xeque a lisura do processo eleitoral é mais um dos desserviços que Bolsonaro faz à nação”. “O Brasil precisa de reconstrução, e será por meio das urnas eletrônicas que vamos resgatar a esperança de um futuro melhor", afirmou à Política Democrática online.
Publicado em setembro do ano passado e que voltou a circular neste mês, um vídeo divulgado pelo presidente do PL, Valdermar Costa Neto, mostra que ele também já defendeu, de forma enfática, as urnas eletrônicas. Neste ano, porém, para agradar a Bolsonaro, o partido concordou em contratar um instituto para fazer uma auditoria independente das urnas eletrônicas. Até agora, não deu em nada.
No ano passado, o presidente do partido de Bolsonaro afirmou que o voto impresso custaria uma fortuna para o país e abriria margem para que pessoas com "espírito de porco" tentassem manipular o pleito. “Não pode reclamar. Ninguém pode reclamar. O próprio Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil com mais 53 deputados federais. Como reclamar da urna eletrônica? Não tem como reclamar. O voto impresso ia só trazer prejuízo para o Brasil", afirmou, no vídeo.
Para se blindar dos ataques, o TSE investe ainda mais no aprimoramento do processo eleitoral. Segundo o órgão, a urna eletrônica tem mais de 30 barreiras de segurança, e a Justiça eleitoral utiliza o que há de mais moderno para garantir a integridade, a autenticidade e o sigilo dos dados.
Para alterar uma informação, um hacker teria de passar por todas essas barreiras, o que, segundo o TSE, é praticamente inviável, já que teria de fazê-lo em um único momento: na hora da votação. Além disso, mesmo se conseguisse ultrapassar alguma barreira, o invasor não obteria sucesso, pois qualquer ataque ao sistema causa um efeito dominó, e a urna eletrônica trava, não sendo possível gerar resultados válidos.
Entre as tecnologias implementadas pelo TSE para garantir a segurança do software e do hardware da urna estão a criptografia, a assinatura digital e o resumo digital. A Corte ainda realiza a Cerimônia de Lacração e Assinatura Digital, em que os sistemas eleitorais são compilados e assinados digitalmente em um evento público, para garantir ainda mais transparência.
“Sistema brasileiro é um dos mais avançados do mundo”
A primeira manifestação da Justiça Eleitoral relacionada à aplicação tecnológica no processo de eleitores ocorreu 10 anos antes da implantação por amostragem da urna eletrônica no país. Em 1986, ainda no início da informática no mundo, o Brasil foi um dos países pioneiros a fomentar a informatização e integração de informações nos bancos de dados dos eleitores brasileiros.
Simultâneo ao processo de cadastramento e organização da estrutura eleitoral, o objetivo intrínseco do TSE era contribuir no combate a fraudes relacionadas ao cadastramento de pessoas com documentos falsos ou, até mesmo, o uso de cédulas de votação e títulos de pessoas já falecidas. Essa prática era bastante comum naquela época.
Nos anos sequenciais ao mandato de José Sarney, por exemplo, o Brasil viveu um período democrático no que se refere à escolha de seus representantes. Os anos 1990 provocaram uma grande novidade na história do voto no país: as urnas eletrônicas. Apesar de terem sido usadas pela primeira vez nas eleições municipais de 1996, as os equipamentos foram introduzidos em todo o país quatro anos depois.
As informações constam da pesquisa A cultura do voto eletrônico no Brasil: Contribuição Tecnológica para a Democracia e Comunicação Pública, produzida pelo hoje pós-doutor em Comunicação Política pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) Roberto Gondo Macedo.
“Hoje, há um consenso entre os historiadores e as autoridades ligadas à questão eleitoral de que o sistema brasileiro é um dos mais avançados do mundo”, afirmou o pesquisador, em trabalho publicado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea).
A parceria entre a Justiça Eleitoral e a Informática resultou na otimização de tempo e eficácia das eleições, segundo o pesquisador. O Cadastro Único Computadorizado de Eleitores permitiu a consulta de informações sobre qualquer eleitor dentro do território nacional, o que possibilitou à Justiça Eleitoral identificar inscrições duplas, triplas ou múltiplas de eleitores e eliminá-las gradualmente.
Em seguida, passou-se à totalização de resultados por meio do computador. Ela é a soma dos números finais de cada urna para saber o eleito em cada município, estado ou no País. Antes essa soma era feita à mão, e, posteriormente, com o auxílio de máquinas de calcular. No entanto, esse tipo de manuseio resultava, algumas vezes, em erros de soma, propositais ou não, que distorciam o resultado de toda uma eleição.
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Revista online | Veja lista de autores da edição 44 (junho/2022)
*Carlos Melo é o entrevistado especial da edição 44 da revista Política Democrática online. Cientista político e professor senior fellow do Insper.
*Paolo Soldini é o autor do artigo O que nos dizem aquelas tatuagens nazistas do batalhão Azov. Jornalista do histórico L’Unità e, também, de Il Riformista e da Radio Tre Rai.
*Luiz Sérgio Henriques é o tradutor do artigo O que nos dizem aquelas tatuagens nazistas do batalhão Azov. Tradutor e ensaísta, ele escreve mensalmente na seção Espaço Aberto.
*Benito Salomão é autor do artigo Voltaremos a Crescer? Economista chefe da Gladius Research e doutor em Economia pelo Programa de Pós-graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia (PPGE-UFU).
*Rodrigo Augusto Prando é autor do artigo Cenário eleitoral e guerras de narrativas. Professor e pesquisador. Graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
*Maria Auxiliadora Lopes é autora do artigo As implicações da educação domiciliar. Pedagoga, ex-consultora da Unesco e ex-diretora do Departamento de Desenvolvimento dos Sistemas de Ensino, da Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação (MEC). Também foi coordenadora da Coordenação Geral de Diversidade e Inclusão Educacional do Departamento de Educação para Diversidade e Cidadania da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC.
*Priscilla Kitty Lima da Costa Pinto, conhecida como Kitty Lima, é autora do artigo Apoie mulheres. Natural de Aracaju (SE). Vegetariana desde os 5 anos e protetora dos animais desde então, fundou a ONG Anjos, há 10 anos, com o objetivo de salvar vidas de animais em sofrimento.
Em 2016, quase sem recursos, foi eleita vereadora de Aracaju com 4925 votos. Em sua atuação, chamou atenção da sociedade sergipana ao levantar pela primeira vez na história o debate do direito animal em Sergipe. Este fato a levou a ser eleita deputada estadual, em 2018, mantendo sua atuação imperativa em defesa dos animais e dos direitos da mulher e das minorias.
*Cácia Pimentel é autora do artigo O que o Brasil pode ganhar com o novo mercado de carbono. Doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pesquisadora de Direito e Sustentabilidade na Columbia University e mestre em Direito pela Cornell University.
*Ana Pimentel Ferreira é autora do artigo O que o Brasil pode ganhar com o novo mercado de carbono. Mestranda em Economia Ambiental e graduada em Ciência e Tecnologia do Meio Ambiente pela Universidade do Porto, Portugal.
*Marcus Pestana é o autor do artigo A reinvenção da democracia brasileira e as eleições de 2022. Foi deputado federal (2011-2018) e secretário estadual de planejamento (1995-1998) e saúde (2003-2010) de Minas Gerais.
*Felipe Barbosa é autor do artigo Guerra às drogas e a insistência no fracasso. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás desde 2013, titular da 2ª Vara Criminal de Águas Lindas de Goiás (GO). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008). Pós-graduado em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (2011). Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).
*Vercilene Francisco Dias é autora do artigo Povos quilombolas: invisibilidade, resistência e luta por direitos. Quilombola do Quilombo Kalunga, advogada, doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Em 2019, tornou-se a primeira mulher quilombola com mestrado em Direito no Brasil. Graduou-se no mesmo curso pela UFG, três anos antes. É coordenadora do Jurídico da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ela também foi eleita pela revista Forbes como uma das 20 mulheres de sucesso de 2022.
*Lilia Lustosa é autora do artigo Top Gun: Maverick – um voo de nostalgia. Crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
* A Fundação Astrojildo Pereira detém os direitos da reportagem especial da edição 44: Mesmo sob ataques, urna eletrônica mantém segurança do voto
Revista online | "Bolsonaro é um bom exemplo de degradação", diz Carlos Melo
Equipe da Revista e, como convidado especial, Luiz Sergio Henriques | (44ª edição junho/2022)
O cientista político, mestre e doutor pela Pontifícia Unidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Carlo Melo disse que “as lideranças em vários partidos estão calcificadas”. “A crise de liderança política afeta a todos”, afirmou. Ele, que é professor de Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), é o entrevistado especial desta 44ª edição da revista Política Democrática online deste mês (junho de 2022).
Na avaliação de Melo, o cenário eleitoral deste ano reflete o problema apontado por ele. “O fato de a gente chegar a esta altura da disputa eleitoral diante do dilema Lula ou Bolsonaro é revelador da crise de liderança política por que estamos passando”, destacou ele, que diz ter buscado contribuir com o debate político, econômico e social do Brasil, por meio de uma análise conjuntural isenta e reflexão desapaixonada.
Analista político, com participação ativa em vários veículos de comunicação, palestrante e consultor de empresas nacionais e estrangeiras, Melo também faz um alerta ao centro, que, segundo ele, “não se dispõe a assumir claramente um projeto, uma visão de mundo”.
Na entrevista, Melo também defende “ajuste fiscal”. “Isso é importante, fundamental, embora ainda não suficiente”. Além disso, segundo ele, “independentemente do resultado da eleição a crise haverá de continuar a partir de janeiro de 2023”. A seguir, leia os principais trechos da entrevista.
Revista Política Democrática Online (RPD): Há quase três anos, tivemos uma bela conversa em que você explorou com o brilho habitual a conjuntura política nacional. Hoje, talvez conviesse centrar-nos na grande crise institucional brasileira, que é antes de mais nada uma crise de representatividade dos partidos. Um estranhamento radical entre representantes e representados. Você concorda?
Carlos Melo (CM): Acho ótimo evitar falar de conjuntura. Nosso problema não é exatamente a conjuntura, nossos problemas são estruturais. Diria mais, nossos problemas são estruturais e não são só no Brasil. O mundo todo está passando por um momento complicadíssimo. Outro dia, participei de um evento com a grata presença do embaixador Rubens Ricupero, que disse: “O mundo me preocupa mais que o Brasil, e não é que o Brasil me preocupe pouco”.
A verdade é que estamos vivendo uma revolução, cujo início vem lá dos anos Reagan e Thatcher, quando o mundo virou de cabeça para baixo, ao perder algumas referências do pós-guerra. O Estado de bem-estar social, por exemplo. Aquela política tributária que tirava dinheiro dos ricos para distribuir para a sociedade e fazer o bem-estar morreu e começa a concentrar nos ricos. De fato, os ricos investem, geram um baita processo tecnológico. Os Estados também investem pesadamente nisso. Aos poucos, a gente vai mudando completamente. Costumo brincar com meus alunos e dizer que troquei canal de televisão no seletor. Todos nós trocamos assim os canais de televisão. E não foi de um século para o outro, parece ter sido para outro milênio, considerando o longo tempo que faz. No mundo de hoje, a reza diária, a Bíblia que uma pessoa lê, o primeiro que se pega é, de fato, o celular, onde se concentram as notícias.
Devo registrar que troquei o canal de televisão no seletor, usei máquina de escrever, usei máquina de tirar fotografia, vi telex e, depois, muito mais à frente, vi o fax. Hoje, tudo isso está no celular. Essas mudanças afetaram terrivelmente a sociedade, em particular o mundo do trabalho, ao deslocar milhões, bilhões até de pessoas para uma situação de abandono, afetando a política.
A política e o Estado não reagiram a esse fenômeno. Sejamos justos, porém: não seria muito fácil. Tínhamos de compreender esses processos a quente, o que me faz lembrar de anedota atribuída a um político chinês, que, perguntado sobre a Revolução Industrial, disse: “Bom, só se passaram três, quatro séculos. É, portanto, muito cedo para avaliar”.
Eu diria que as mudanças que estamos enfrentando ainda não nos deram tempo, nem distância, para serem avaliadas. Daí talvez porque a política não tenha podido oferecer respostas, dando origem ao sentimento de desamparo de muita gente em nossos dias. O que se vocaliza é a demagogia. Não vou dizer que seja o populismo, porque o populismo, com todos os seus defeitos, tem uma qualidade superior a essa demagogia em voga na fala das lideranças políticas que conhecemos. Não surpreende, assim, que, diante dessa confluência de fatores e da multiplicidade de demagogos, o sistema político esteja absolutamente perdido, sem capacidade de resposta.
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Os partidos, não só do Brasil, mas da maioria dos países democráticos, padecem desse mal. O grande historiador Tony Judt antecipou em um livrinho, cujo título O mal ronda a Terra já tudo revelava, um processo da década final do século passado, invadindo o atual, de mal-estar que já adoecia o sistema político. Ele defendia a volta de uma visão capaz de reunir as pessoas que, como ele, estivessem tão absolutamente desoladas. A morte precoce privou-o de aprofundar seu pensamento e de contribuir para, quem sabe, influir nos partidos, nos intelectuais, e dar as respostas reclamadas por esse processo extraordinário de transformação.
Há pouco tempo, um ano antes da pandemia, fui convidado a falar sobre a política brasileira. Contrapropus falar não do Brasil, mas do mundo. É o cenário por onde se aceleram esses processos tecnológicos que causam mal-estar. Foi quando um senhor da plateia me interpelou: “Mas o que tem de errado em adotar avanços tecnológicos para reduzir custos de produção?”. Respondi: “Não sei se é certo, ou se é bom, saberemos dentro de um século, mas, agora, vivemos uma transição, que é custosa”. Sérgio Abranches amplia essa discussão com particular brilho, em seu belo livro A era do imprevisto.
Essa discussão não é nova, mas segue importante. Zygmund Bauman, por exemplo, recupera o sentido do conceito de transição desenvolvido por Antonio Gramsci, chamando de “interregno” este processo. Antonio Scurati, de sua parte, escreveu M, o filho do século, sobre Mussolini e o mundo do primeiro pós-guerra, um período claramente de transição, de interregno, parecido com o mundo pós-Guerra Fria, com todo este sentido de transição. Os partidos têm perdido essa perspectiva do processo histórico. Há partidos sérios e há partidos picaretas, que não se atualizam, seguem na mesma toada, como parasitas do sistema político.
Senti necessidade de explorar essas digressões para melhor situar o debate sobre o papel dos agentes políticos na tarefa de compreender o mundo em transformação e, ao mesmo tempo, traduzi-lo no conteúdo das metas prioritárias das ações dos governos. De novo, reconheço que se trata de um desafio tão difícil transpor como fundamental enfrentar.
RPD: No rastro de decisões que o Congresso vem tomando com insistência, não se enxerga com clareza o interesse nacional; antes, interesses patrimonialistas. Limito-me a mencionar que agora se cogita de um projeto declarar estado de calamidade pública nacional, que, entre outros efeitos, liberaria o governo para fazer o que lhe aprouvesse, incluindo um estado de emergência, vale dizer um golpe de estado, sob pretexto de fazer frente à calamidade pública de turno. Isso remete ao paradoxo imaginado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, de que partidos fracos favoreceriam um Congresso forte. O que pensa a esse respeito?
CM: Essa tentativa de decretar uma calamidade pública justamente para tirar proveito da ocasião de fato, passa por um problema sério. Algo precisa ser feito. Levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV) por esses dias revela que ultrapassamos a média mundial em relação à fome, a partir de uma pergunta simples: “Nos últimos 12 meses, você passou algum dia com fome, sem poder comer?”. As respostas afirmativas superaram 36%, acima da média mundial (35%), dado inédito na História do Brasil.
Posso estar enganado em algumas cifras, mas não muito. Na última pesquisa realizada, 31% das mulheres, hoje são 47%, responderam que sim, ao passo que os homens variaram um pouco menos: eram 27% dos homens, hoje são 26%. Essa calamidade está pesando muito mais sobre as mulheres. Renato Meireles, do Instituto Locomotiva, mostrou-me recentemente dados impressionantes. Hoje, temos 14,6 milhões de mães solo, o que significa famílias desestruturadas, mulheres tocando sozinhas a vida de seus filhos, suas próprias vidas, não raro carregando toda uma família, mãe, pai...
É uma situação calamitosa, e algo precisa ser feito. Só que não pode ser feito dentro de um espírito oportunista. Aliás, não poderíamos ter chegado a esse ponto. Alguns colegas dizem, tentando mascarar ou simplesmente evitar o debate, ou por mera insensibilidade, que a situação está, de fato, ruim, mas as instituições estão funcionando. As instituições estão funcionando porcaria nenhuma, algumas estão resistindo. Se elas estivessem realmente funcionando, não estaríamos onde estamos. Se as instituições estivessem funcionando, não teríamos o Bolsonaro. Simples assim. Existe, sim, oportunismo no sistema político brasileiro.
Além de todos os problemas comentados, não vamos esquecer de acrescentar problemas estruturais de âmbito mundial, bem conhecidos desde sempre. Tomemos como exemplo o próprio patrimonialismo. Uma coisa é passar por uma crise estrutural de mudança de paradigma num país democrático; outra bem diferente é passar pela mesma crise em um país com pouca tradição democrática e extremamente patrimonialista. Os sanguessugas, aqueles parasitas que matam o hospedeiro, correm para se aproveitar disso.
Sem dúvida, há motivos, sim, para ações emergenciais. Vários setores da sociedade, como o mercado financeiro, precisam saber que a pauta mudou. Nada pode ser feito se não tiver ajuste fiscal, se não tiver equilíbrio fiscal. Isso é importante, fundamental, embora ainda não suficiente. O equilíbrio fiscal demanda políticas públicas eficazes para resolver esse problema emergencial, mas não só se limitando a garantir que os compromissos assumidos e os contratos celebrados devam ser honrados. Não é esse o ponto. Impõe-se, na emergência, adotar políticas públicas eficazes, bem concebidas, que não desperdicem recursos públicos e se destinem a resolver, ou pelo menos mitigar, as questões estruturais, elidindo o patrimonialismo, o oportunismo e a picaretagem que há décadas assolam a trajetória das políticas públicas no Brasil. A sociedade tem de ter consciência do que está acontecendo no país e dar um basta nisso. Esse é o grande problema.
RPD: Com relação às eleições que se aproximam, temos, de um lado, um candidato buscando a reeleição, apoiado em uma corrente de opinião radical, extensa, ampla, embora minoritária, e que prescinde de siglas partidárias. De outro, como o nome mais bem posicionado nas pesquisas até este momento, um candidato ancorado em um partido estruturado, sólido, também dependente da vocalização de um único líder. Está claro que a democracia necessita mais do que isso. O que nos falta?
CM: O fato de a gente chegar a esta altura da disputa eleitoral diante do dilema Lula ou Bolsonaro é revelador da crise de liderança política por que estamos passando. Essa crise, aliás, não atinge só o Brasil. Se compararmos a liderança política do mundo nos anos 1980, época da queda do muro de Berlim e, depois, da unificação da Europa, com a liderança que temos hoje, é desolador. É verdade que algo tem também a ver com o processo de transformação da era Reagan/Thatcher. Lembremos que Thatcher declarou que esse negócio de sociedade não existe, o que existe são os indivíduos e suas famílias. Outro dia, comentei essa opinião com o ministro Delfim Neto, que se limitou a dizer: “Foi um equívoco”. Equívoco ou não, a sociedade acreditou que ela não existia e voltou-se para um individualismo hedonista, consumista.
O enfraquecimento da liderança tornou-se evidente. Sentimos falta de um Adenauer, de um Kohl, de uma Angela Merkel, reduzidos como estamos a um Putin, figura terrível, deletéria. No Brasil, no lugar de um doutor Ulysses ou de um Nelson Jobim, gente do que se poderia chamar alto clero, ou José Genoíno, Gastone Righi e José Lourenço, temos agora gente de todos os matizes, conformando um baixíssimo clero que se tornou hegemônico. Dos remanescentes daquela época – o período da redemocratização – sobraram-nos Fernando Henrique com 93 anos de idade e Lula, com 76 anos.
Voltando ao processo como um todo, um homem não substitui um partido. Tenho dito há mais de um ano, quando me perguntam da possibilidade da candidatura do Lula, que, apesar de todos os problemas com a justiça, ele estava cercado por um estado-maior de altíssima qualidade. Pode-se gostar ou não, mas, olhando para o passado, ele podia contar com José Dirceu, Luiz Gushiken, uma pessoa extraordinária, responsável pela indicação do Palocci, Márcio Thomaz Bastos, Duda Mendonça, um staff capaz de livrá-lo de um monte de frias. Hoje isso não acontece. Enquanto conversamos, Lula terá voltado a errar em algo. Ficou, às vezes, quase irreconhecível, na comparação com aquele homem que dava regularmente provas de sapiência, de sagacidade política. Era bem aconselhado, muito bem assessorado. Diante do vazio dos partidos – PT, incluído –, as lideranças políticas decaíram em qualidade de forma estrondosa. Restou o Lula. Então, tudo bem, é com esse que a gente vai. Tem méritos? Tem méritos, mas está longe de ser aquele quadro de 2002, quando tinha um grupo.
A crise de liderança política afeta a todos. Olhemos para a direita, temos em Bolsonaro um bom exemplo de degradação. Lembremos que a direita radical teve figuras pelo menos mais bem formadas. Do Plínio Salgado ao Carlos Lacerda, ao próprio Paulo Maluf, com todos os seus problemas, eram políticos mais bem equipados do ponto de vista intelectual, inclusive. Com o ocaso do malufismo no começo dos anos 2000, a direita debilitou-se, caiu no vazio terrível. O PSDB tentou abraçá-la, mas não conseguiu. Faltava-lhe um ingrediente, um princípio ativo ao Serra e ao Alckmin. Esse princípio ativo apareceu nesse genérico Jair Bolsonaro, que também é uma degradação no sentido da liderança mesmo de uma direita radical, extremista.
Parodiando a música do Pedro Caetano, é com esse que eu vou. É isso que a gente tem. Infelizmente é isso, com todo o respeito ao Lula, porque não cabe compará-lo a Bolsonaro. Essa é a verdade. Mas mesmo o Lula é um homem de ontem, não é um homem de amanhã. É um homem de ontem. Só que a gente está em uma situação tão complicada que talvez seja necessário recuperar o ontem para colocar os pés no presente de novo e, quem sabe, daqui a quatro anos, poder olhar para o futuro.
RPD: A gente está lidando entre o estrutural e o conjuntural, no mundo e no Brasil. Passamos aí pela extrema truculência da direita atual e, também, pela velhice do padre eterno da esquerda. Os sintomas de envelhecimento do Lula se mostram até no vestuário. Não sei se vocês têm reparado que ele se apresenta ainda hoje, depois de 20 anos, com o mesmo terninho bolivariano nas apresentações públicas, para um público sempre exaltado. São sinais do passado, signos melancólicos. Mas talvez convenha passar a conversa para a questão central, a de examinar a série de partidos, desde a União Brasil, pela centro-direita, até o Cidadania, pela centro-esquerda, passando pelo PSD, do Kassab, PSBD, MDB, frações de um centro democrático que há décadas – não é um fenômeno recente – não consegue se articular, se coordenar, minimamente. Por que a prevalência dessas forças centrífugas no território do centro? Isso tem conserto?
CM: Gostei muito da imagem do “terninho bolivariano”. Percebi isso semanas atrás em um evento na PUC, São Paulo, mas não tinha elaborado dessa forma brilhante. É perfeito.
Quanto à questão do centro, existe uma série de questões de conceituação. Primeiro, falar de centro no Brasil é falar de muita coisa. Fala-se de um centro fisiológico ou de um centro democrático? Geraldo Alckmin, em 2018, foi vítima da crítica ao centro fisiológico. Seu maior erro foi deixar-se abraçar pelo Centrão. Aliás, o governo do Temer foi um governo de centro, o Temer sendo um primus inter pares. Durante algum tempo, não se usava o termo centrão, era “peemedebização”, referindo-se à lógica peemedebista de abandonar candidaturas majoritárias, para aderir a quem se estimava fosse ganhar a eleição e engordar suas bancadas, para beneficiar-se, assim, de um butim maior da máquina pública.
Segundo, tem também um centro democrático, que, sendo justo, inclui parcelas do MDB, de fato preocupadas com a democracia. O problema é que ambos os tipos de centro se confundem. Veja, por exemplo, o caso do PSDB. Depois de tantas idas e vindas, depois de perder sua principal característica fundadora – a ideia da social-democracia, de ser um partido de centro-esquerda –, pouco a pouco, perdeu a identidade de centro-esquerda, para se tornar um partido de centro por excelência. Ele tem setores que são centro democrático e setores que são centro fisiológico. A luta do PSDB, hoje, é para não ter um candidato à presidência da República, para ficar liberado à adesão fisiológica nos estados, à lógica do partido estadual, à lógica da federação de partidos estaduais em um só partido.
Urge separar o joio do trigo, o que é centro democrático e o que é centro fisiológico, fenômeno que contagia todos os partidos chamados de centro. Veja o União Brasil: a candidatura do Bivar é uma caricatura desse processo. O Bivar, presidente do PSL, há quatro anos deu guarida a Jair Bolsonaro. O PSL foi o partido do Bolsonaro por um bom tempo e agora se apresenta como partido de centro democrático. O primeiro problema é separar o joio do trigo e não jogar o trigo fora. É isso.
Falemos do centro democrático. Carece, também, de renovação de lideranças. É impressionante verificar como as lideranças em vários partidos estão calcificadas. São lideranças de ontem, algumas até com mérito, é verdade, mas também é verdade que de ontem, com imensa dificuldade de olhar para o futuro. E, assim, retoma-se o problema mais conjuntural: como definir esse centro. Para além de ser centro democrático, como se define? Nem Lula nem Bolsonaro? O que qualifica o centro é estar equidistante de dois polos? Isso lá é forma de definir algo?
Isso é pouco. É o que venho defendendo, sem êxito, há algum tempo. O centro não se dispõe a assumir claramente um projeto, uma visão de mundo. Talvez um certo oportunismo: surrupiar forças da direita e da esquerda, para engordar, mas sem engrossar nem fortalecer a musculatura. Atua num espaço do nem-nem. Não conseguiu se qualificar a ponto de, aí sim, surgir como uma força de centro capaz de aglutinar os outros. Os candidatos de centro que apareceram eram todos candidatos com esse perfil indefinido. Basta a proposta do nem Lula nem Bolsonaro. Qual projeto de futuro, qual crítica ao patrimonialismo, onde está uma verdadeira visão moderna de mundo? Surgiu alguém com capacidade política, intelectual, moral, para efetivamente conduzir esse projeto?
O que aconteceu com o centro pode ser uma reedição extemporânea do jogo “resta-um”. De início, eram 11 jogadores, passou-se para 10, depois nove e, assim, sucessivamente, até chegar a dois, Ciro e Simone Tebet. E ainda pode se reduzir a um ou uma. Pena que não se enxergue que não existe mais esse negócio de nem-nem, encoberto por uma cortina de fumaça que ofusca uma aposta cega na ambiguidade de perfis, de identidade política. A expectativa – equivocada – é a de que cerca de 25% do eleitorado, que não pretendem votar nem no Lula nem no Bolsonaro, terminarão migrando, por gravidade, para o centro. Quem acredita nisso é melhor voltar para a casa.
Ou, ainda, será possível que Eduardo Leite volte a encarnar o sonho peessedebista de concorrer à eleição para presidente? Tudo no Brasil é possível, pois, como ensinava Ulysses Guimarães, a política brasileira é sempre movida por “sua excelência, o fato novo”. Por isso, ainda há tempo. Mas por que não se construiu uma identidade? Será ele, finalmente, candidato à governança do Rio Grande do Sul, depois de ter rejeitado a proposta de Kassab para concorrer nacionalmente pelo PSD, ter sido deslocado da disputa presidencial pela vitória de Doria, na prévia do PSDB, e, em seguida, pela perda de espaço junto ao MDB, de Simone Tebet? Sem esquecer que este partido está fraturado, se equilibrando entre apoiadores de Lula ou de Bolsonaro. Esse é apenas um reflexo sobre a estratégia na campanha eleitoral da ausência de projeto de governo dos candidatos alternativos. Seguimos atraídos por nomes, não por programas, menos ainda por lideranças.
A falta de definição de segmentos do eleitorado revela a grande crise de liderança. Quando falo de liderança, não estou falando de uma liderança unipessoal. Estou falando de um grupo capaz de conduzir processos, preocupantemente ausente no universo político-partidário do país, que reúne homens de ontem que não sabem separar o joio do trigo e um centro que mescla centro democrático e centro fisiológico.
O exemplo mais eloquente disso é o PSDB. Três ou quatro facções brigam entre si, mas todas se indignaram com a declaração de Lula de que o PSDB morreu. Embora politicamente infeliz, a assertiva sobrevive a uma análise objetiva no sentido de que o partido, se não morreu, está na UTI, e precisa de alguma forma ser resgatado. Foi um partido importantíssimo. Basta lembrar o legado dos governos Fernando Henrique, que tiveram entre tantas outras realizações o Plano Real. Mas, já em 2002, na primeira campanha sem FHC, José Serra saiu-se com essa: “Continuidade sem continuísmo”. Em 2006, Geraldo Alckmin, sendo criticado pela esquerda por conta das privatizações, tirou aquela foto ridícula com um bonezinho do Banco do Brasil e a blusa da Caixa Econômica, exibindo seu afastamento do projeto do Fernando Henrique. Não vejo ninguém, hoje, do PSDB discutindo o problema da gasolina, dos combustíveis, etc. Bolsonaro cometeu essa patacoada de querer privatizar a Petrobras, e ninguém do PSDB resgatou a ideia das agências de regulação, da importância da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), da importância de todas essas agências, projetos vencedores do governo Fernando Henrique. Ninguém resgata isso. Quem se der ao trabalho de ler meus artigos nesses dois últimos anos verá que defendi a ideia de que o centro democrático deveria tentar a formação de uma frente ampla até mesmo com o PT de Lula. Mas isso não ocorreu, e temo dizer que, independentemente do resultado da eleição – e sabe-se lá que resultado teremos e com quais consequências –, a crise haverá de continuar a partir de janeiro de 2023.
Sobre o entrevistado
*Carlos Melo é cientista político e professor senior fellow do Insper.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (43ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Simone Tebet: “Fantasma da fome volta a nos atormentar”
Cleomar Almeida, coordenador de Publicações da FAP
A pré-candidata à presidência da República Simone Tebet (MDB), que tem o apoio do Cidadania e do PSDB, disse nesta sexta-feira (24/6) que “o Plano Real transformou o Brasil”, às vésperas de o modelo econômico completar 28 anos. “Agora, o fantasma da carestia, da fome e do mau uso do dinheiro público volta a nos atormentar”, afirmou ela ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
Simone está prevista para participar de evento online, na quinta-feira (30/6), a partir das 18 horas, para discutir o Plano Real, que passou a vigorar, em 1º de julho de 1994, no Brasil. A moeda contribuiu para contornar a alta generalizada de produtos e serviços por meio de etapas que ocorreram, simultaneamente, para desinchar a economia. O webinar será transmitido, ao vivo, no portal e nas redes sociais (Youtube e Facebook) da fundação.
Participantes
Também confirmaram presença no webinar o presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire; o senador Tasso Jereissati (PSDB), apoiado pelo partido como vice na chapa de Simone; e o economista Edmar Lisboa Bacha, integrante da equipe econômica que instituiu o Plano Real, durante o governo Itamar Franco.
Também vai participar do evento online o chefe do Centro de Crescimento Econômico do Instituto Brasileiro de Economia (FGV IBRE), Samuel Pessôa, que é professor assistente da Escola de Pós-graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro (EPGE/FGV). O pré-candidato tucano ao governo de Minas, o ex-deputado federal Marcus Pestana, será o mediador.
Levantamento da FGV, divulgado no início deste mês de junho, mostra que a parcela de brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento nos últimos 12 meses subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021, atingindo novo recorde da série iniciada em 2006. É a primeira vez desde então que a insegurança alimentar brasileira supera a média simples mundial (35%). Os debatedores atribuem o problema também ao cenário de inflação.
Simone ressalta que o Plano Real “acabou com a hiperinflação, organizou as contas públicas, preservou o valor da poupança e do salário dos brasileiros e preparou o país para a globalização”. “Agora, juntos, MDB, PSDB e Cidadania preservarão o que criaram”, afirmou ela.
Bacha, que participou da equipe econômica que instituiu o Plano Real, disse que esse modelo econômico hoje “não tem risco algum”. “Estamos falando de 10% de inflação contra 3.000% de inflação”, afirmou o economista, ressaltando as diferenças entre o momento atual e o período que levou à implementação da nova moeda.
“O Plano Real conseguiu estabilizar a economia brasileira, e, atualmente, a gente se encontra num período muito instável. A gente precisa encontrar um símile do Plano Real para conseguir prosseguir e recuperar o crescimento da economia. Certamente, é uma tarefa para o próximo governo”, destacou Bacha, que vai ser o expositor do evento online ao lado de Samuel Pessôa.
"Frente democrática"
O presidente nacional do Cidadania destacou a importância de se debater o Plano Real “especialmente pelo momento em que o país vive com a volta da inflação”. “O Plano Real foi construído num governo de uma frente democrática que se criou a partir do impeachment [do então presidente] Fernando Collor e tendo como presidente Itamar Franco”, lembrou.
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Roberto Freire: “Esquerda é prisioneira de dogmas dominantes no século 20”
O governo de Itamar Franco tinha, em seu núcleo, a partir do próprio presidente, a presença do PSDB, do Cidadania – a época como PPS – e alguns outros representantes de partidos que ficaram divididos no apoio ao mandato. “No governo Itamar, havia Fernando Henrique Cardoso como grande líder do PSDB; eu, como líder da Câmara dos Deputados, do PPS, e Pedro Simon, grande líder do hoje MDB”, lembrou Freire.
“Isso [articulação] agora, quem sabe, vai ser necessário se construir para se resolver o que a irresponsabilidade do governo Lula, especialmente o de Dilma, e o de Bolsonaro, fizeram com o país, pela crise que vivemos hoje. Esse ato [evento online] lembra a necessidade de enfrentarmos novamente problemas da crise econômica e da inflação”, asseverou o presidente nacional do Cidadania.
"Inflação aguda"
O pré-candidato ao governo de Minas pelo PSDB também reconheceu os avanços provocados pelo Plano Real no país. “O Plano Real acabou com a inflação aguda e revolucionou a economia brasileira. Hoje, é preciso debater os riscos para que não seja jogada fora a herança dele”, alertou Pestana.
O presidente do Conselho Curador da FAP, médico Luciano Rezende, ex-prefeito de Vitória por dois mandatos consecutivos, afirmou que a discussão sobre o Plano Real é importante para a sociedade lembrar “uma das mais bem-sucedidas ações do mundo para conter a hiperinflação”.
“O Plano Real foi uma ideia genial que serve de inspiração a todo o Brasil no sentido de mostrar que o país pode gerar solução para problemas graves, inclusive, inéditas a nível mundial. É um painel imperdível até porque estamos lidando de novo com a volta da inflação. Temos muito que aprender com o momento histórico que criou o Plano real como solução para um problema que infelizmente voltou”, disse Rezende.
Histórico
O Plano Real foi um processo de estabilização econômica iniciado em 1993 e o seu sucesso representou a quebra da espinha dorsal da inflação no Brasil. A entrada em circulação do real em 1º de julho de 1994 mudou o cenário de uma inflação que, no acumulado em doze meses, chegou a 4.922% em junho de 1994, às vésperas do lançamento da nova moeda.
A inflação, que finalizou 1994 com 916%, atingiu 22% em 1995. Desde então, mesmo com as várias crises internacionais e internas que prejudicaram a estabilização econômica, o IPCA acumulado em 12 meses passou de 9% em poucas ocasiões.
Ao longo deste período, Banco Central tem buscado assegurar a estabilidade do poder de compra da moeda brasileira, o que vem sendo colocado em questionamento pelo novo período inflacionário pelo qual o país passa.
Inovação
No enfrentamento do ceticismo do cidadão brasileiro em relação a planos de estabilização, a execução do Plano Real exigiu esforços de planejamento e inovação significativos por parte dos gestores da política econômica. No segundo semestre de 1993, equipes do Ministério da Fazenda, Banco Central e Casa da Moeda trabalharam junto no desenvolvimento do Plano, dividido em três fases.
Na primeira, iniciou-se o esforço de ajuste fiscal, com destaque para a criação do Fundo Social de Emergência (FSE), concebido para aumentar a arrecadação tributária e a flexibilidade da gestão orçamentária em 1994/1995. A segunda etapa foi marcada pela utilização de uma moeda escritural, a Unidade Real de Valor (URV), como unidade de conta.
Na última fase, a introdução do novo padrão monetário, o real, implicou a necessidade de rápida e abrangente disponibilização do novo meio circulante a partir de 1º. julho de 1994.
Transição para o Real
Para o Banco Central e a Casa da Moeda, as duas últimas fases do Plano Real foram grandes desafios logísticos. Nas décadas de 1970 e 1980, a inflação alta e crônica corroía rapidamente o valor do dinheiro e a produção de numerário se dava em ritmo intenso na Casa da Moeda. Mesmo assim, concluiu-se que não seria possível conciliar a manutenção do estoque do meio circulante em Cruzeiros Reais com a produção física do Real durante a fase de transição – entre março e junho de 1994.
A distribuição do novo numerário para a rede bancária começou a ser feita em abril de 1994 para acelerar a substituição integral do meio circulante. Até 30 de junho daquele ano, mais de 940 milhões de cédulas e mais de 688 milhões moedas já tinham sido distribuídas em todo o país. Em operação inédita, o BC coordenou simultaneamente: o fornecimento físico do Real, o acolhimento de depósitos à vista feitos na nova unidade monetária e o recolhimento de numerário em cruzeiros reais (que circularam até setembro de 1994).
Vídeo
Abaixo, veja documentário sobre o Plano Real sob a ótica dos servidores do Banco Central, produzido e divulgado em 2019, quando o modelo comemorou 25 anos.
200 anos agora: da independência à crise da nova República Brasileira
Vinicius Müller, Horizontes Democráticos*
A efeméride de duzentos anos da independência do Brasil, comemorada neste ano de 2022, vem suscitando um sem número de balanços sobre os caminhos de nossa história que buscam, sobretudo, identificar em nosso passado os erros e acertos que, de algum modo, nos trouxeram até aqui. Há um razoável consenso que afirma que é destes erros e acertos que tiramos alguns parâmetros para possíveis projeções que fazemos ao futuro da sociedade brasileira.
Neste sentido, e entre tantas possibilidades, há duas abordagens que nos auxiliam nesta tarefa de resgatar o passado em nome do entendimento do presente e da projeção do futuro. Uma delas vincula-se à identificação de uma história que, nestes duzentos anos, pode ser entendida como sendo de longa duração; ou seja, a história que recupera a formação do Brasil, do processo de independência aos nossos dias, apontando para os variados projetos que nesta trajetória foram apresentados, debatidos e disputados entre grupos e interesses múltiplos. Nela estão também as interpretações que pautaram o entendimento que temos sobre nossa própria trajetória. A outra busca na trajetória histórica brasileira os elementos que promovem a intersecção entre a temporalidade longa e a conjuntura. Neste caso, a pertinência de uma história mais recente e conjuntural – e que trataremos como sendo o período da Nova República – a partir de sua relação com a trajetória mais longa.
Na primeira perspectiva destacam-se quatro possibilidades de entendimento de nossa história. A primeira é aquela que expõe a formação brasileira, especialmente em sua dimensão econômica, por seus aspectos ligados à origem e destino da produção. Ou seja, aquela que vê o país por sua tradição primária e exportadora – e pelos problemas a ela relacionados, como a concentração da terra, a fragilidade diante das oscilações do mercado internacional, a incorporação de novas fronteiras agrícolas a partir de movimentos pouco ciosos com a lei e com a preservação ambiental e social, e a baixa sofisticação tecnológica aderente a esta formação econômica e produtiva. Por outro lado, a industrialização e a urbanização, marcadamente durante o século XX, teriam aberto a possibilidade de modernização brasileira, principalmente amparadas em três características que, circunstancialmente, apresentaram: a forte presença estatal (com destaque ao seu papel de empresário), sua forte vinculação ao mercado interno e, em tese, sua facilidade em contribuir com a ampliação da qualidade de vida e com a diminuição da desigualdade econômica.
A segunda é a dicotomia que opôs centralização e descentralização, entendidas como modelos de gestão tanto política quanto administrativa, e potencializadas pelo gigantismo territorial e pela diversidade regional brasileira. Esta dicotomia cristalizou, em razão de episódios históricos específicos, uma síntese que identifica a descentralização como necessariamente limitada em seu alcance, já que ela teria, nas vezes que foi ampliada, produzido três consequências indesejáveis: o questionamento da unidade brasileira (neste caso de maneira pontual e já superada), a ampliação da desigualdade entre as regiões brasileiras e o atraso – e/ou enfraquecimento – da cidadania e dos direitos sociais. Em oposição, a centralização – mesmo que em coexistência com algum nível de descentralização e/ou federalismo – seria responsável pela melhor distribuição da riqueza entre as regiões e, portanto, como propulsora de uma redução da desigualdade entre elas. E pela aceleração do processo de ampliação dos direitos sociais entendidos como pilares da democracia moderna.
Já a terceira é a associação entre pobreza e desigualdade presente em modelos explicativos sobre a formação econômica e social brasileira. Neste caso, haveria uma complementaridade entre o modo como estruturamos nossa produção de riqueza e a ampliação e/ou manutenção da desigualdade. Portanto, a desigualdade seria fundamentalmente fruto da estrutura produtiva, amparada na escravidão e na baixa capacidade de acumulação. Desta forma, apenas uma mudança aguda no modo de criação da riqueza poderia romper a relação histórica entre a (baixa) riqueza e a desigualdade. Não há duvidas quanto à herança nefasta da escravidão à sociedade e à economia brasileiras. Contudo, ao não dissociarmos estes elementos – e, portanto, os entendermos sempre em conexão um ao outro –, deixamos escapar algumas sutilezas que envolvem os outros elementos. Por exemplo, acabamos por creditar pesos iguais à escravidão e à estrutura de propriedade da terra; ou à estrutura do mundo (incluindo uma ética) do trabalho e à formação de nossas instituições de mercado.
E, por fim, esta mudança aguda e necessária para romper a relação histórica entre o modo de criação da (baixa) riqueza e a desigualdade viria não só por uma mudança produtiva que nos afastasse da tradicional estrutura econômica como também teria que ser acelerada e invertida. Ou seja, faríamos esta mudança a partir de uma ‘revolução’ que aceleraria a história de modo a nos lançar à outra organização econômica e social. Neste sentido, a aceleração dos processos históricos de ‘superação’ seria compatível com propostas de refundação e rupturas, não com arranjos e conciliações.
Todas estas considerações são, embora pertinentes, limitadas em seus diagnósticos sobre a formação brasileira. Assim, a construção de pares antitéticos criados a partir destes diagnósticos pouco produziram remédios eficientes em relação aos resultados desejados. Isto porque a formação agrária e exportadora da economia brasileira não é a matriz nem da baixa capacidade de criação de riqueza e muito menos da desigualdade. Ao contrário, não há uma relação linear entre as regiões que se formaram sobre a agricultura de exportação, pobreza e desigualdade. O que há é uma relação entre o modo como o uso dos recursos obtidos pela economia primária – tanto aquela voltada ao mercado externo quanto ao mercado interno – e a desigualdade. Ou seja, não foi o modo de criação da riqueza que determinou o menor ou maior desenvolvimento (e a maior ou menor desigualdade) e sim a maneira que se fez uso dos recursos oriundos da economia agrícola, especificamente, ou primária, no geral. Também porque a solução centralista, dada como resposta aos atrasos nos avanços sociais e da cidadania, pouco esteve amparada em análises sobre a estruturação do Estado brasileiro em seus aspectos burocráticos, autoritários e patrimonialistas. Acreditou-se que o atraso no desenvolvimento social e econômico estava vinculado à ‘oligarquização’ do Estado brasileiro. E que a solução passaria pela centralização do poder. Pouco se assuntou a possibilidade de que a burocratização do Estado em nome da centralização revelaria outros lados sombrios de nossa sociedade: o autoritarismo e a radicalização presentes naquelas que foram consideradas as duas experiências mais marcantes do país no século XX: a ditadura de Vargas e a ditadura militar.
Assim, duas características estiveram entre aquelas que impactaram na capacidade de criação de riqueza e na transformação desta riqueza em desenvolvimento: a combinação – e não oposição – entre duas dimensões da estrutura econômica (mercado interno e externo; setores da economia diferentes); e o ambiente institucional – formal e informal – que determina o uso da riqueza independentemente de sua origem (agrícola ou industrial; mercado interno ou exportação).
Portanto, ao contrário do que parte significativa da historiografia e dos diagnósticos sobre a formação brasileira diz, as regiões que melhor combinaram riqueza, menores índices de desigualdade e desenvolvimento em prazo mais alongado – e que sustentaram esta condição em períodos maiores – foram aquelas que independentemente da origem, combinaram de modo mais equilibrado produção e infraestrutura voltado ao mercado externo com estímulo e desenvolvimento do mercado interno; que melhor equilibraram a diversificação produtiva entre setores primários, secundários e terciários. E não quem tentou abruptamente passar de um ao outro. E quem, localmente, usou seus recursos em nome da criação de uma institucionalidade que incentivasse a competição, o empreendedorismo e, principalmente a educação. Em outras palavras, não foram os projetos nacionais que, de “cima para baixo”, estabeleceram as condições de desenvolvimento das regiões brasileiras. E sim, as condições oriundas da formação e das decisões regionais que determinaram a relação entre riqueza, desigualdade e desenvolvimento. Principalmente aquelas que, antes de buscarem grandes mudanças em suas estruturas produtivas, como, por exemplo, o desenvolvimento industrial em regiões de economia primária, desenvolveram sustentações mais duradouras, como educação, incentivos institucionais ao empreendedorismo e infraestrutura. Não funcionou a estratégia de modernização econômica que lideraria o desenvolvimento educacional, e sim o contrário: a educação e a infraestrutura vieram antes da modernização econômica, inclusive industrial.
Em suma, as condições do desenvolvimento brasileiro guardam mais relação com os resultados e desigualdades regionais do que com os projetos nacionais de desenvolvimento feitos de “cima para baixo”. Menos com escolhas ou tentativas de passar de um setor para outro – por exemplo, da economia primária para a industrial – e mais com o modo como um transbordou para outro, ou como eles se relacionaram e se complementaram. Assim como tem menor relação com sua orientação voltada ao mercado externo ou interno, e sim com a maneira que investiu os recursos independentemente de suas origens. Ou seja, não importou muito se os recursos vieram da economia agrícola de exportação ou voltada ao mercado interno, da indústria ou do comércio, mas sim em como esses recursos foram usados para transbordarem de seus setores de origem em direção a outros.
E, fundamentalmente, não existe uma sina que associa a riqueza (ou a pobreza) à desigualdade no Brasil. Riqueza e pobreza, de um lado, e igualdade e desigualdade, de outro, são eixos que, embora possam estar relacionados, também podem – e devem – ser vistos separadamente. Não há num país tão grande e com tantas diferenças internas como o Brasil um diagnóstico que explique a riqueza, a pobreza, a desigualdade e o desenvolvimento. E, portanto, muito menos um projeto nacional que sirva de remédio. Ao contrário, há inúmeras combinações, essencialmente regionais, que melhor explicam estas diferenças. Elas, em geral, seguiram estas três orientações, como já dito: decisões regionais e não nacionais; relação de transbordamento e complementaridade entre setores econômicos e produtivos diferentes e não oposição entre eles; e criação de infraestrutura, instituições de incentivo ao empreendedorismo e educação antes de apostarem em investimentos ‘de cima para baixo’ (em geral do governo nacional) como motores da modernização da economia, da industrialização e da geração de renda.
Em outra dimensão temporal, que não aquela vinculada às estruturas e diagnósticos relativos à longa história brasileira, há um desafio que também carece de diagnósticos mais certeiros ou minimamente revisados. Nas últimas três décadas um tornado de mudanças tomou de assalto o país e reorganizou nossos paradigmas e o modo como entendemos o passado e suas interpretações. Ao menos três elementos determinaram estas mudanças. Um deles foi a redemocratização do país a partir de 1985, ano oficial do fim do regime militar que durava desde 1964. E, fundamentalmente, a promulgação da Constituição de 1988, conhecida como a Constituição cidadã. Embora fruto do arranjo possível à época, a Carta máxima brasileira, como deve ser, manteve vivo um debate com o passado nacional e, portanto, com as interpretações que fazemos dele. Neste sentido, reconheceu o déficit de cidadania que nos persegue, apostando na ampliação dos direitos consagrados no mundo ocidental – civis, políticos e sociais – como redutora da desigualdade. Embora correta no atacado, a consolidação da Constituição – e do que chamamos de Nova República – dependia do ajuste possível naquele momento. E o momento, ou os momentos diferentes que se encontravam naquele contexto da segunda metade da década de 80, não eram tão simples. Se por um lado o protagonismo deveria e foi dado aos opositores da ditadura que se encerrava, por outro havia um baixo reconhecimento de que muitos dos problemas legados pelos militares tinham origem no período anterior. Ou seja, pouco se reconhecia que a estrutura burocratizada, centralista – não obstante a pretensa, porém frágil, repactuação do federalismo – e de estirpe positivista transpassava período mais amplo do que o governo militar. E, nos anos 80, teria que compor com a justa ascensão de novos atores – refiro-me ao sindicalismo e aos novos grupos políticos – e com a pressa de superar as mazelas legadas pela ditadura (crise econômica, atraso institucional, bloqueio da democracia e censura). Isso em meio à ansiedade que se manifestava na crença de que a Nova República conseguiria, finalmente, romper a barragem histórica que nos impossibilitava ter uma sociedade moderna, desenvolvida e menos desigual.
Esta esquina da história coincidente com nossa redemocratização ainda esbarrou em outros dois elementos fundamentais. O primeiro foi a dificuldade em superarmos a herança maldita (essa sim uma herança verdadeiramente maldita) deixada pela república militar e representada pela crise fiscal do Estado e pela inflação galopante. E o segundo foi a mudança do cenário internacional caracterizado pela queda do muro de Berlim, pelo fim da URSS e da Guerra Fria e pela reafirmação da liderança dos EUA e de seu modelo revigorado durante os anos 80 e 90. A inflação e a crise fiscal do Estado tornavam mais difícil, na prática, o ajuste da Constituição de 1988, ancorada tanto na superação de nossos entraves sociais quanto na manutenção de elementos de nosso nacional-desenvolvimentismo em suas partes mais condenáveis. Entre elas a antiga crença de uma liderança estatal (em sua forma burocratizada, protecionista e patrimonialista sob o eufemismo de política industrial) sobre nosso processo de modernização econômica. Em outras palavras, a Nova República nasceu sob a ameaça de ter sua virtuosidade, representada pela legítima defesa da Constituição cidadã, superada por seu vício de reproduzir os males de uma estrutura que superava, em termos históricos, o período sob o governo dos militares. E que, no fundo, remontava ao varguismo. Esta ‘linha de falha’ viria a produzir a nossa versão de uma esclerose institucional que se manifestou em diversas situações desde então: nos impedimentos de Collor e Dilma, nas parcialmente fracassadas tentativas de reforma do Estado e nas dificuldades de organização de um consenso mínimo sobre a responsabilidade fiscal. Mas também pelo persistente desequilíbrio do federalismo, pelos indesejáveis mecanismos de negociação e cooptação entre Executivo e Legislativo e pela captura do Estado por grupos organizados em torno de uma ética que estimula e naturaliza a corrupção. E pelos constantes, e cada vez mais graves, conflitos que envolvem poderes e organizações do Estado, como Judiciário e Forças Armadas. O resultado disso foi a incapacidade do estado brasileiro em ser responsivo à sociedade que se manifestou em 2013. E, claro, o renascimento de um tema que pensávamos superado: as críticas ao modelo democrático e as defesas de controle, censura e no limite de experiências autoritárias. Ainda somos, portanto e fundamentalmente, divididos entre as ‘viúvas’ de Vargas, de um lado, e as ‘viúvas’ da ditadura militar, de outro.
Já o fim da Guerra Fria e a retomada da liderança dos EUA no plano internacional culminaram na revalorização do modelo liberal e, mais do que isso, na internacionalização – ou globalização – deste modelo. Descontando as análises mais precipitadas e que se mostraram equivocadas, como aquela que decretava o fim da História ou a que acusava a globalização de ser o imperialismo norte-americano (?), esta conjunção entre globalização e liberalismo foi a senha para uma série de transformações cujos resultados ainda vivenciamos. Um deles foi a adesão menos orgânica e mais instrumental às tentativas de redefinição do papel do Estado, aqui exemplificado pelas privatizações. Instrumental, pois, mais do que amparada numa aderência ao debate sobre a quantidade e a qualidade do Estado (ou seja, se o ponto principal era a diminuição do Estado ou a ampliação da qualidade de sua atuação), a adesão do país aos códigos e linguagens do liberalismo global esteve vinculada fundamentalmente a uma tentativa quase desesperada de recuperação da credibilidade internacional e de superação da crise econômica e fiscal dos anos 80.
Ou seja, a oportunidade aberta pela reorganização internacional foi menos entendida como a janela para as mudanças estruturais e mais como uma ferramenta para superarmos problemas conjunturais. O resultado foi a falha em nossa preparação para nos integrarmos na nova economia internacional e em acompanharmos as mudanças tecnológicas, educacionais, institucionais e de gestão pública e privada. A comparação, neste caso, é eloquente e conhecida. Enquanto o Brasil apresentou esta dificuldade, países como Índia, Coréia do Sul e China potencializaram suas economias durante o alvorecer do século XXI de modo inequívoco e bem-sucedido.
A aproximação destes dois contextos diferentes – a Nova República, suas contradições e conflitos, e a dificuldade de nos prepararmos para a economia globalizada em um ambiente de renovado e ‘esburacado’ liberalismo – produziu resultados impactantes que revelam, então, nossas dimensões estruturais e conjunturais: a persistência da pobreza, a fragilidade de nossas tentativas de diminuição da desigualdade econômica, social e regional, a incapacidade de endereçarmos nosso sistema educacional em nome de um projeto realmente modernizador, a comprovação da fragilidade de nossa indústria (e, portanto, de todo o modelo de sua implantação e desenvolvimento que vigorou por quase um século) e, menos surpreendentemente do que pode parecer, a ascensão do novo agronegócio brasileiro.
A persistência da pobreza e, em partes, a dificuldade de diminuirmos a desigualdade de modo mais duradouro, deve-se ao equívoco analítico bastante difundido que trata as duas dimensões – pobreza e desigualdade – como siamesas. Talvez tenham sido no passado, mas há muito que não são. O avanço tecnológico e a economia de mercado internacionalizada desde o século XIX, e que nas últimas três décadas viveram um recrudescimento, criaram condições que fundamentalmente impactam na capacidade de ampliação da riqueza. Se esta capacidade de criação de riqueza não impacta na diminuição da desigualdade – o que não é verdade em várias regiões do mundo – é porque elas têm determinantes diferentes. Superar a pobreza tem sua relação principal com a capacidade produtiva. Nela se encontram tecnologia e trabalho, entre outros. Já a desigualdade guarda relação íntima com instituições informais e valores morais. Ambas ficam, assim, congeladas tanto pela nossa baixa capacidade tecnológica e educacional como pela inversão – principalmente após 1989 – do modo como entendemos o papel do Estado na redução da desigualdade. A desigualdade realmente se reduz quando os elementos da redução estão mais ligados ao lado da oferta do que ao lado da demanda. Ou seja, não é o aumento do consumo ou do acesso aos bens materiais – mesmos que justo e necessário – que faz com que a desigualdade caia de modo sustentável. E sim a ampliação equitativa da capacidade de trabalho, educacional e tecnológica. Além da mudança da mentalidade fundamentada em ideal aristocrático e hierarquizante que, no Brasil, é alimentada, entre tantos e há tanto tempo, pelo próprio Estado. A redução da desigualdade pela demanda é prato cheio para demagogos e populistas.
Por fim, a fragilidade da indústria frente ao processo de abertura econômica internacional e a ascensão do agronegócio revelam o equívoco dos paradigmas que norteiam nossas mais frequentes análises. Por um lado, revela que o modo como concebemos nossa industrialização não preparou o setor para enfrentar a abertura comercial e a integração global. Também não foi capaz de promover a diminuição da desigualdade entre as regiões brasileiras. Ao contrário, só as reforçou. E a ascensão do agronegócio nas últimas décadas (há uma projeção, crível, de que o Brasil será o maior exportador de comida do mundo em 2025) revela não só a preparação do setor para se integrar à globalização como também a superação de vícios que carregou em sua trajetória. Em tempo, vicio que esteve ligado à disponibilidade de terra e mão de obra que prescindiam de avanço tecnológico e de produtividade. Ao que tudo indica, antes de ser um retrocesso histórico e econômico, a ascensão do novo agronegócio será uma oportunidade de crescimento e desenvolvimento do país, assim como já foi, ao menos parcialmente, em outras oportunidades históricas.
No final, é isso que importa: evitar que, mais uma vez, percamos a oportunidade de crescermos e desenvolvermos o país, como já ocorreu em vários outros momentos. E para tanto, urge pensarmos nossa experiência tanto em dimensão longa e estrutural, quanto conjuntural. Será nossa capacidade de criar um ambiente favorável ao debate que envolva as duas dimensões, que identifique as suas intersecções e que as proteja de capturas eleitoreiras de curto prazo que nos possibilitará sair da armadilha que nós mesmos criamos nos últimos 200 anos ou nas últimas três décadas. O momento de efeméride da independência pode nos estimular a isso, mas também a necessidade de reorganização da indústria, de maior e mais eficiente internacionalização da economia, de (re) nascimento da economia primária exportadora como uma oportunidade e não como um retrocesso, e da firme defesa da institucionalidade democrática e da estabilidade do país (independentemente de projetos de poder e de táticas eleitorais, como ocorreram em passado recente).
Estes elementos praticamente nos obrigam a refazer nossa trajetória. E principalmente, de repensarmos nossas grandes interpretações, que foram e continuam sendo parâmetros para nosso entendimento sobre o passado, seus problemas e soluções já identificados e testadas, assim como as bases de projeções de nosso futuro. Desta forma, qualquer projeto que se pretenda pensar o futuro do Brasil a partir de sua experiência de 200 anos independente ou de quase 40 de nova República deverá incorporar tais questões sobre nossa mentalidade, equívocos dos diagnósticos passados, resultados bons e ruins de nossas experiências anteriores. E, principalmente, enfrentar nossos tabus relacionados aos nossos modelos explicativos e nossos parâmetros analíticos, a fim de incentivar um debate mais amplo e arejado em favor do desenvolvimento econômico e social para os próximos anos, décadas e quem sabe séculos.
Revista online | A reinvenção da democracia brasileira e as eleições de 2022
Marcus Pestana*, especial para a revista Política Democrática online (44ª edição: junho/2022)
Poucos meses nos separam daquela que talvez seja a eleição mais tensa, decisiva e importante das últimas décadas. O horizonte que se abre é carregado de dúvidas. A democracia brasileira será testada no limite. As escolhas que serão feitas poderão impactar não apenas nos próximos quatros anos, mas em uma geração inteira.
É preciso reconhecer que há uma obra incompleta a ser concluída. Todos nós, que participamos intensamente das lutas que levaram à redemocratização, tínhamos a expectativa de que a conquista da anistia, das eleições diretas para presidência da República e do novo marco constitucional consolidado em 1988 resultariam, com o passar dos anos, na solução dos mais graves problemas que afetavam a população e o país. Passados 34 anos da conclusão do processo de redemocratização, é inevitável admitir que hoje, ao olharmos o Brasil, fica a sensação de um copo meio cheio, meio vazio.
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Os resultados são contraditórios. Por um lado, construímos o mais longo período democrático de nossa história, derrotamos a inflação, construímos o SUS, lançamos as bases de uma sólida rede de proteção social, universalizamos o ensino fundamental. Mas não podemos festejar os resultados da Nova República tendo metade da população sem coleta de esgoto, 33 milhões de brasileiros vítimas da fome, 23 milhões deles abaixo da linha da pobreza vivendo com 7 reais por dia, desempenho sofrível nas avaliações da qualidade do aprendizado de nossas crianças e nossos jovens, comunidades inteiras sequestradas pelo tráfico e pelas milícias, ameaças permanentes ao nosso patrimônio ambiental e um crescimento econômico pífio ao longo de décadas.
A eleição presidencial de 2022 pode ser um precioso momento catalisador das discussões sobre a agenda nacional de desenvolvimento, identificando desafios e gargalos e apontando soluções. Pode efetivamente se tornar uma oportunidade de reinventarmos a democracia brasileira, relançando, sob novas bases, nosso pacto político e social. Isso se não nos perdemos em uma polarização estéril, verdadeiro simulacro de embate ideológico, onde a eficácia das urnas eletrônicas, a tornozeleira do irrelevante deputado, a manipulação da discussão sobre valores morais ou questionamentos às posturas de ministros do STF roubem a cena e eclipsem a discussão dos mais profundos problemas estruturais do país.
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Nossa história política é povoada de traços populistas, caudilhescos, autoritários e paternalistas. O Estado sempre esteve no centro de gravidade da vida nacional e à população foi negado o exercício pleno de uma cidadania ativa e madura. Os personagens e líderes se sobrepõem às ideias. Primeiro, discute-se nomes, personalidades, predicados e defeitos pessoais, apoios e rejeições individuais. Depois, de forma tardia e improvisada, procura-se rechear as candidaturas com algum conteúdo programático. Pelas informações disponíveis até agora, é impossível identificar, a poucas semanas da eleição, qual é o programa econômico ou as linhas estratégicas das principais políticas públicas dos dois candidatos que lideram as pesquisas. Nada além de platitudes, obviedades e retórica vazia.
As forças democráticas precisam virar esse jogo e impor uma discussão profunda no seio da sociedade sobre o futuro que esperamos construir nesse imenso Brasil. Creio que cinco eixos estratégicos orientadores devem presidir o debate:
- Defesa e fortalecimento da democracia: para além da resistência a qualquer tentativa de rompimento da ordem constitucional e de retrocesso político, precisamos avançar na superação das inconsistências e fragilidades de nossos sistemas de governo, partidário e eleitoral. Isto implica em promover profunda reforma política visando remodelar a convivência entre os três poderes republicanos; colocar na mesa a discussão do parlamentarismo e do semipresidencialismo; repensar o sistema eleitoral, apontando para algum nível de regionalização do voto com a superação do fosso existente entre representantes e representados; racionalização do quadro partidário em busca de partidos mais orgânicos, democráticos e com maior densidade programática; e, aprimorar o regramento dos mecanismos de financiamento das atividades partidárias e eleitorais.
- Construção de um novo modelo de crescimento econômico: após ter sido, de 1932 a 1980, o país com a maior taxa média de crescimento em todo o mundo, assistimos nas últimas quatro décadas a uma trajetória semelhante a um voo de galinha. Espasmos de crescimento acelerado alternados com recessões profundas, desenhando uma trajetória que nos torna prisioneiros da armadilha da renda média. No mesmo período, alguns países, como Coréia do Sul, Portugal, Espanha, Israel, Austrália e Singapura, atravessaram a fronteira que os separava do mundo desenvolvido. A receita é conhecida. A questão é de liderança política e formação de maioria parlamentar em torno da agenda de reformas. Conquistar a complexa e imprescindível reforma tributária que simplifique e torne mais justo e eficiente nosso sistema. Revisitar a questão previdenciária, ainda longe de superar suas iniquidades e responder às mudanças demográficas. Gerar expectativas positivas oferecendo um rumo claro, estabilidade política, legal, regulatória, e segurança jurídica. Dar uma equação definitiva ao dilema fiscal. Enfrentar com coragem e competência o desafio da abertura externa. Incrementar radicalmente a capacidade de inovação da economia e o aumento de sua produtividade. Avançar na qualificação do ensino fundamental, médio e profissionalizante como alavanca do crescimento. Privatizar, com modelos transparentes e corretos, estatais que ganharão eficiência e gerarão efeitos positivos para a sociedade e a economia, como foram os casos da siderurgia, da mineração, das telecomunicações e da indústria aeronáutica. Agressiva política de parceria com o setor privado para a superação dos gargalos de infraestrutura que abalam a competitividade da economia brasileira.
- Ataque frontal às desigualdades, à pobreza e à miséria: a principal tarefa do futuro governo será colocar sobre trilhos sólidos e consistentes à política social combinando os programas de transferência de renda, geração de emprego e renda e políticas públicas eficientes de educação, saúde, combate às desigualdades regionais e qualificação profissional. O maior “Calcanhar de Aquiles” da democracia brasileira é a abissal distância a separar famílias e regiões através de uma das piores distribuições de renda de todo o mundo. A mudança no modelo de crescimento econômico deve ter como objetivo central gerar inclusão e justiça social.
- Recuperar o protagonismo na busca do desenvolvimento sustentável: a sustentabilidade ambiental é hoje um imperativo global no século 21. As mudanças climáticas são uma realidade viva e inequívoca. O Brasil, desde a Cúpula Rio-92, assumiu uma posição de vanguarda e protagonismo e construiu um dos marcos legais mais sofisticados e profundos para a área ambiental entre todos os países. Infelizmente, houve retrocessos visíveis no atual governo. Recuperar, dentro de uma perspectiva de integração governamental horizontal, o compromisso com o desenvolvimento sustentável é tarefa imprescindível que caberá ao próximo presidente da República.
- Aprofundar a reforma do Estado: é fundamental recuperar a credibilidade da ação de Estado junto à sociedade. Gastar menos com a máquina estatal e mais com os cidadãos. Devolver serviços públicos de melhor qualidade. Apostar radicalmente nas tecnologias da informação como ferramentas de oferta ágil e desburocratizada de serviços e potencializar o seu uso na teleducação, telessaúde e na segurança pública. Consolidar o papel das Forças Armadas e das polícias estaduais como instrumentos institucionais e órgãos de Estado e não de governo a serviço do poder civil. Organizar a estrutura do governo à luz das demandas da sociedade e não da lógica da inércia histórica e da visão dos interesses corporativos.
A atual polarização não favorece a discussão profunda desta agenda. As candidaturas Bolsonaro e Lula não são portadoras de uma visão de futuro promissora. Independente dos números das pesquisas de opinião, o polo democrático, que congrega setores que vão do social-liberalismo à esquerda democrática, passando pela socialdemocracia, mais do que o direito, tem o dever de apresentar uma alternativa moderna e progressista ao confronto entre um presente que não nos orgulha e um passado que não abre os horizontes necessários de um novo Brasil.
Sobre o autor
*Marcus Pestana foi deputado federal (2011-2018) e secretário estadual de planejamento (1995-1998) e saúde (2003-2010) de Minas Gerais.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de junho de 2022 (44ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Onde está a saída para a crise
Marco Antônio Villa
Viver no Brasil sob a presidência de Jair Bolsonaro não é tarefa fácil. A cada dia somos surpreendidos por alguma ação que confronta o Estado democrático de Direito, um ataque às instituições, um comentário que quebra o decoro presidencial, uma imagem que desmoraliza a figura presidencial, uma entrevista que pretende transformar a torpeza em qualidade. São sustos e mais sustos e imaginamos que cada um deles não mais se repetirá. Ledo engano. Nos dias posteriores ficamos espantados com mais ações absolutamente distantes do que assistimos como comportamento político ao longo da história republicana.
Com Jair Bolsonaro, a escória tomou o poder. Será que devemos imputar ao destino o que estamos vivendo? Não creio. O destino está cansado de nos punir. O que estamos assistindo é produto de um processo histórico. O desafio dos pesquisadores será, quando virarmos esta triste página da história, buscar encontrar mas razões que conduziram o Brasil a uma situação que ninguém sequer poderia supor a apenas um lustro atrás. Entender historicamente que havia um processo se desenvolvendo à nossa frente sem que pudéssemos compreendê-lo. A surpresa do ocorrido, portanto, foi produto não de algum fato inesperado, mas sim pela dificuldade analítica de entender e agir para que não vivêssemos o pesadelo bolsonarista.
Não é o caso de atribuir culpa a algum agente histórico. O essencial é analisar cuidadosamente o desenrolar dos acontecimentos buscando os fatores estruturais que levaram o Brasil a uma presidência ruinosa, a pior, sem qualquer dúvida, da história da República.
Por que o Brasil perdeu o bom caminho da democracia, tão arduamente construído especialmente desde a promulgação da Constituição de 1988? Por que deixamos de crescer, como nos anos 1930-1980 quando fomos o País que mais cresceu no mundo ocidental? E a desindustrialização? Isto quando em 1980 tínhamos o maior parque industrial do hemisfério sul. Como explicar que fomos nos transformando em uma Nação com estrutura econômica neocolonial? E as imensas regiões metropolitanas – onde vivem a maioria dos brasileiros – que perderam o dinamismo e concentram hoje um conjunto de graves problemas sociais, urbanísticos e econômicos?
As perguntas são fáceis de serem elaboradas. Mas, e as respostas? Como vamos sair deste labirinto? Onde está a saída? Como um aluno do Dr. Pangloss, espero que os candidatos à Presidência da República apresentem as respostas.
É muito otimismo?
*Texto publicado originalmente no Horizontes Democráticos
Rendimento médio tem queda recorde e atinge menor valor em 10 anos
Daniel Silveira*, g1
Dados divulgados nesta sexta-feira (10) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a renda do brasileiro se deteriorou diante da crise provocada pela pandemia do coronavírus. O rendimento mensal real da população, assim como a renda domiciliar per capita, tiveram queda recorde e atingiram o menor patamar da série histórica do instituto, que começa em 2012.
A pesquisa aponta queda generalizada entre as diversas fontes que compõem a renda do brasileiro na passagem de 2020 para 2021 e destaca a dimensão do impacto do Auxílio Emergencial diante do contexto pandêmico – a redução do benefício fez a renda domiciliar per capita chegar ao menor valor histórico, além de aumentar a proporção de pessoas que vivem sem qualquer tipo de rendimento no país.
O rendimento médio mensal real é calculado pelo IBGE considerando apenas as pessoas que têm algum tipo de rendimento, indiferente de qual seja a fonte dele. Já a renda domiciliar per capita considera a divisão do rendimento das pessoas que efetivamente o recebem entre as demais que vivem sob o mesmo teto.
De acordo com o levantamento, o rendimento mensal médio real de todas as fontes no país passou de R$ 2.386 em 2020 para R$ 2.265 em 2021, valor mais baixo desde 2012, quando tem início a série histórica da pesquisa e era estimado em R$ 2.369 (já descontada a inflação do período). Este recuo corresponde a uma queda de 5,1%, a mais intensa da série.
Até então, a maior queda da renda mensal real no país, considerando todas as fontes de rendimento, havia sido de 3,4%, registrada na passagem de 2019 para 2020, puxada pelo alto nível de desemprego provocado pela pandemia. O novo recorde, no entanto, ocorreu mesmo diante do aumento do número de pessoas ocupadas no mercado de trabalho.
Segundo o levantamento, aumentou de 38,7% para 40,2% a proporção de pessoas com rendimento efetivamente recebido pelo trabalho. Apesar disso, o rendimento médio efetivamente recebido pelo trabalho teve queda de 4,6%.
"O aumento da ocupação se deu pela informalidade, e a renda do trabalho informal não foi suficiente para aumentar o rendimento médio", explicou a analista da pesquisa , Alessandra Scalioni Brito.
Já a proporção de pessoas com outros rendimentos, que inclui os programas assistenciais como o Bolsa Família e o Auxílio Emergencial caiu de 14,3% para 10,6%, provocando uma queda de 30,1% da média advinda dessa fonte de renda.
“Esse auxílio foi meio que um colchão para a queda da renda do trabalho durante a pandemia. Foi esse colchão que segurou o impacto em 2021, mas ao começar a ser retirado em 2021 provocou essa queda generalizada da renda no país”, avaliou a analista da pesquisa, Alessandra Scalioni Brito.
Impacto do Auxílio Emergencial
Em 2020, os outros rendimentos tiveram uma alta de 12,3% na comparação com o 2019 devido à abrangência do Auxílio Emergencial, que beneficiou cerca de 68 milhões de brasileiros. Passado o primeiro ano da pandemia, o número de beneficiados foi reduzido em cerca de 30% devido às mudanças nos critérios de pagamento.
Além de beneficiar menos pessoas, o valor do Auxílio Emergencial também foi reduzido. Quando começou a ser pago, tinha patamar básico de R$ 600 e chegava a R$ 1.200 para mães que chefiam sozinhas suas famílias. Já em 2021, ele passou a ser de R$ 150 para solteiros, R$ 250 para casais e R$ 375 para mães que sustentam individualmente suas famílias.
Neste contexto, a proporção de pessoas com algum tipo de rendimento no país caiu de 61% para 59,8% - mesmo percentual de 2012, o mais baixo da série histórica da pesquisa. Essa queda ocorreu a despeito do aumento da proporção de pessoas com renda do trabalho, que passou de 40,1% em 2020 para 41,1% em 2021.
O percentual de brasileiros com rendimento de outras fontes caiu de 28,3% para 24,8% no período. As chamadas "outras fontes" incluem aluguel e arrendamento, aposentadoria e pensão e outros rendimentos, onde estão incluídos os programas assistenciais do governo - foi nesta fonte que se observou a queda mais intensa da proporção de pessoas que a recebiam.
Maior impacto no Norte
A análise regional também evidencia o impacto da redução do auxílio emergencial sobre a renda da população brasileira. Em todas as grandes regiões do país houve aumento da proporção de pessoas com renda do trabalho, mas em todas foi registrada queda do percentual de pessoas com algum tipo de rendimento.
A queda mais intensa da população com rendimento foi observada no Norte do país, que já era a com maior percentual de pessoas sem qualquer fonte de renda. Também foi lá que ocorreu a maior redução da proporção de pessoas com outras fontes de rendimento diferente do trabalho.
Tombo recorde da renda domiciliar per capita
Neste contexto, o rendimento médio mensal real domiciliar per capita em 2021 foi estimado em R$ 1.353, o menor valor em uma década.
Descontado o efeito da inflação, significa que, na média, o brasileiro recebeu quase R$ 100 a menos que em 2020, o que representa uma queda de 6,9% - a mais intensa da série histórica da pesquisa. Antes, o maior recuo havia sido de 4,3%, registrado na passagem de 2019 para 2020.
Na comparação com 2012, quando tem início o levantamento, a redução na renda média per capita foi de R$ 64, o que corresponde a um recuo de 4,5%.
O rendimento proveniente do trabalho ganhou mais peso na composição da renda domiciliar per capita - sua participação passou de 72,8% em 2020 para 75,3% em 2021, enquanto a proveniente de outras fontes caiu de 27,2% para 24,7%.
Essa mudança foi diretamente impactada pelo Auxílio Emergencial. De acordo com pesquisa, dentre as outras fontes, somente a de outros rendimentos, que inclui os programas assistenciais do governo, registrou queda no período, passando de 7,2% para 4% - aposentadoria e pensão aumentou de 17,6% para 18,2%, aluguel e arrendamento, de 1,5% para 1,7%, e pensão alimentícia, doação e mesada, de 0,8% para 0,9%.
“Houve um aumento importante em Outros rendimentos no primeiro ano da pandemia, 2020, por conta do incremento no item ‘Outros Programas Sociais’, onde foi classificado o auxílio-emergencial. As alterações que ocorreram nos critérios de concessão e nos valores do auxílio em 2021 explicam esse tipo de renda estar perdendo importância. Há menos gente ganhando e o valor também diminuiu”, explicou a analista do IBGE, Alessandra Scalioni.
*Texto publicado originalmente em g1: Título editado
Revista online | Voltaremos a Crescer?
Benito Salomão* , especial para a revista Política Democrática online (44ª edição: junho/2022)
No dia 2 deste mês, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou o resultado do PIB referente ao primeiro trimestre de 2022. O resultado foi considerado melhor do que o esperado pelos agentes de mercado, porém, há pouco a comemorar. Existem inúmeras formas de apurar o dado do PIB. Na variação trimestral, houve crescimento de 1% no quarto trimestre de 2021. Já quando se observa o resultado acumulado no ano, o crescimento verificado foi de 1,7%. O dado do PIB acumulado é melhor para uma análise mais de longo prazo, pois são filtrados choques de oferta e demanda que tenham perturbado o comportamento do PIB na passagem de um trimestre para outro.
O risco de uma recessão para o ano de 2022, que constava das previsões ao final de 2021, foi afastado. Porém, a economia brasileira retornou à sua trajetória de baixo crescimento verificado ao longo da última década. Os dados trimestrais do PIB estão disponibilizados para um período que tem início em 1996 até o presente trimestre. Ao longo de todo o período, o crescimento médio trimestral foi de 2,2%.
Uma análise mais cuidadosa dos dados, no entanto, indica que os trimestres que pressionam a média para baixo estão concentrados a partir de 2011. Entre 2001 e 2010, a taxa média de crescimento do PIB brasileiro foi de 3,7%. Já entre o primeiro trimestre de 2011 e o primeiro trimestre de 2022, essa mesma média foi de 0,8%. Estes dados são inequívocos. O Brasil cresceu pouco ao longo dos últimos 25 anos e, para além disso, houve aguda desaceleração da atividade nos últimos 12 anos.
A análise do crescimento econômico pode ser observada sobre duas perspectivas: (1) ciclo que se refere aos movimentos de curto prazo da atividade e (2) tendência que aponta um comportamento de longo prazo que indica uma trajetória. A supracitada média de crescimento se refere à abordagem de longo prazo, o que já seria grave por si só. Há, no entanto, um ingrediente a mais, três ciclos recessivos ocorreram nos últimos 15 anos: a crise do subprime em 2009, a crise da Nova Matriz Macroeconômica de 2014 a 2016 e a crise do covid-19 de 2020. É possível que a ocorrência consecutiva de tantos choques recessivos de curto prazo tenha deslocado a tendência de longo prazo da economia brasileira que não foi capaz de retornar, até o presente momento, para uma média de crescimento razoável na casa dos 2% ao trimestre.
O problema do baixo crescimento da economia brasileira escancarado pelo IBGE, no dado do PIB do dia 2 de junho, deveria estar neste ano no bojo das principais preocupações do debate eleitoral, no qual novos governantes serão escolhidos para o país e para 27 unidades federativas. A qualidade do debate quanto aos problemas reais do país tem sido frustrante. Esperava-se que intelectuais, economistas, acadêmicos e empresários pudessem conduzir essa discussão via debate público, pressionando e constrangendo os políticos para que encarem esta realidade. Mas isso não tem ocorrido no debate público brasileiro, que tem se concentrado em torno de pesquisas eleitorais.
Na literatura, há um extenso arcabouço teórico voltado a explicar o sucesso (ou não) dos países na busca por um nível elevado de renda per capita. Um dos pioneiros nesta literatura foi o Nobel de economia Robert Solow, que, em seu artigo de 1956, tratou o crescimento de longo prazo dos países como uma função do crescimento dos seus fatores de produção: trabalho, capital e desenvolvimento tecnológico. Em 1990, o também Nobel de economia Paul Romer avançou sobre esta literatura endogenizando, nos seus modelos de crescimento de longo prazo, o processo de desenvolvimento tecnológico. Surge a família de modelos de crescimento endógeno, cuja política pública de desenvolvimento de ciência, tecnologia e inovações tem papel central na elevação do PIB per capita dos países.
Mais recentemente, tem ganhado espaço no debate acadêmico a noção de que a qualidade institucional dos países influencia nas suas trajetórias de crescimento. Essa tese, que pode ser resumida no livro Por que as nações fracassam?, de Daron Acemoglu, de Harvard, e James Robinson, do MIT, se sustenta no argumento de que há países que criam instituições inclusivas (que estimulam a concorrência via inovação e o crescimento) vis à vis instituições extrativistas. Neste segundo caso, o processo de busca pela inovação e pelo lucro é desestimulado por elites políticas, que capturam os bônus deste processo.
O Brasil precisará enfrentar esta discussão sobre políticas públicas de ciência e tecnologia e sobre modelos institucionais que levem este conhecimento para a competição entre as empresas. Se continuarmos postergando este debate, seremos penalizados como país ao colecionarmos décadas perdidas e vermos nosso PIB per capita se distanciando dos países de renda alta.
Sobre o autor
*Benito Salomão é economista chefe da Gladius Research e doutor em Economia pelo Programa de Pós-graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia (PPGE-UFU).
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de junho de 2022 (44ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Fome: Em busca de uma saída solidária e global
Claudio Fernandes, Outras Palavras*
Caro leitor e cara leitora. Não se espante com o título aparentemente alarmista deste artigo, pois ele reflete uma verdade sobre fatos! Ouso dizer que, do jeito como as coisas estão colocadas, a humanidade não irá respirar tranquila pelos próximos anos. Contudo, meu trabalho aqui não será fazer previsões pessimistas para o futuro, mas sim, refletir sobre alguns aspectos da arquitetura financeira mundial, o papel das Nações Unidas e os compromissos políticos que os Estados-nações precisam assumir para construir e implementar uma resposta efetiva às crises que se acumulam.
Começo esta reflexão a partir de uma experiência recente, quando estive representando a Gestos e o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda (GT Agenda 2030) em Nova York, durante o VII Fórum de Financiamento para o Desenvolvimento (FfD), promovido pela Organização das Nações Unidas. O fórum buscava discutir estratégias de atuação que pudessem responder à perspectiva de uma nova grande crise global resultante de um colapso no pagamento das dívidas externas de países em desenvolvimento.
Lembro-me que, em seu segundo dia, a guerra imposta pela Rússia à Ucrânia chegou de forma pesada à quarta reunião de debates do FfD. Para além das mortes e da violência militar explícita que tem chocado a comunidade internacional, outro problema já se apresenta: vários países dependem de grãos importados do país atacado. O tema dominante, então, passou a ser o novo perigo de racionamento de alimentos e a insegurança alimentar, multiplicados pelos riscos do aumento da inflação, resultado dos problemas de cadeia de valor causados pela pandemia da Covid-19.
Contudo – e apesar do clamor da sociedade civil internacional para traçar alternativas socialmente responsáveis e verdadeiramente sustentáveis para reconstruir a economia mundial de forma equitativa – o que se ouviu no VII FfD foi mais do mesmo. A pura repetição de estratégias fracassadas que favorecem prioritariamente o 0,1% mais rico, enquanto os 99% da população mundial são arrastados para o fundo do abismo que a atual arquitetura financeira global cavou ao longo das últimas décadas. Diante disso, voltei para casa maquinando algumas das reflexões abaixo.
Para além da guerra, pode-se perceber a falta de compreensão da urgência em que o mundo está colocado. A emergência climática é uma disrupção presente e destinada a acelerar exponencialmente. Estamos falando de uma resposta logarítmica do planeta. O tempo já se esgotou para muitas populações em muitos países. Otimizar os fluxos financeiros em direção à sustentabilidade tem sido um apelo urgente há, pelo menos, sete anos, mas pouco avançou nesse sentido.
É preciso reconhecer que as soluções financeiras projetadas até agora ficaram aquém de seus objetivos. O “mercado” (esta entidade mítica e abstrata que engole todas as instâncias da economia política), como sempre, é o que domina o processo de financiamento para o desenvolvimento sustentável. Por quê? Porque os players e as regras do jogo não mudaram nem um milímetro para criar um processo normativo de transformação. O risco já há muito tempo tem sido considerado por meio da expansão de instrumentos derivativos para manter o sistema em rotatividade. Não podemos priorizar a mera reprodução do capital através do sistema financeiro enquanto continuamos a prejudicar pessoas e comunidades – o verdadeiro material concreto que faz a sociedade e a economia existirem.
A esses desafios, somam-se problemas sistêmicos e históricos já existentes que atrasam, e em certos casos, impedem a implementação da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Como proposta para se encontrar soluções efetivas, a sociedade civil organizada vem requerendo explicitamente a convocação da quarta Conferência Internacional do Financiamento para o Desenvolvimento, entendendo que é o único espaço legítimo onde decisões que levam a mudanças fundamentais na arquitetura financeira global podem ser tomadas. Enquanto a União Europeia apoia a iniciativa, a China e os 134 países (incluindo o Brasil) que compõem o G77 estão divididos sobre o tema. Em conversa com um representante brasileiro, nos foi confiado que o motivo é o “medo de que uma nova conferência tenha como resultado um retrocesso nas questões em discussão”. Outros países do Sul Global também expressaram a mesma preocupação.
Realmente o mundo hoje está bem diferente do que era em 2015, quando foram aprovadas as resoluções da Agenda 2030, do Acordo de Paris e da Agenda de Ação de Addis Ababa. Desde então vários países se mostraram contrários aos processos de mitigação da emergência climática, de equidade de gênero e de expansão democrática. Em diversas regiões, a política foi infectada pela intolerância, pelo desrespeito e pela violência, criando riscos às liberdades e às instituições de direito. No entanto, decisões precisam ser tomadas sobre a arquitetura financeira vigente, que tem exacerbado os problemas ao invés de oferecer soluções sustentáveis para os diversos desafios que persistentemente ampliam os níveis de desigualdade presentes em cada país e entre as nações.
Em debate especial com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e as instituições Bretton Woods – isso é, Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) – tornou-se evidente que as medidas tomadas para mitigar os efeitos da pandemia de Covid-19 foram insuficientes. Por exemplo, os Direitos Especiais de Saque (SDR) emitidos pelo FMI, equivalentes a 650 bilhões de dólares, ficaram principalmente nas mãos dos países que menos precisavam. Isso ocorreu porque o critério de distribuição foi baseado em quotas dos países na instituição; essas quotas, por sua vez, são determinadas por volumes de doação. Ou seja, os países com mais recursos tiveram as maiores quotas.
Como salientou Bodo Elmers, do Global Policy Forum e representante do grupo da sociedade civil para o FfD, “neste momento 400 bilhões de dólares estão dormentes nos bancos centrais de países que não precisam, enquanto os que precisam não conseguem acesso aos recursos”. É importante ressaltar que essas instituições foram criadas no contexto da maior crise mundial do século XX para prevenir crises futuras; mas aparentemente não foram capazes de prevenir ou mitigar satisfatoriamente as crises atuais.
Este órgão, a Organização das Nações Unidas, deveria representar o compromisso com os valores mais elevados para a humanidade e assumir um papel de protagonismo na tentativa de resolver a confluência de crises em que nos encontramos; particularmente o crescente desafio financeiro para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030. Uma nova Conferência Internacional de financiamento para o desenvolvimento em um futuro próximo, mas que deve ser decidida com urgência, é o único processo legítimo para realmente assumir a responsabilidade que o mundo precisa da comunidade internacional.
Portanto, precisamos de políticas públicas concretas e pragmáticas para reprojetar o equilíbrio das relações de poder que criaram a confluência de crises que vivemos e viveremos nos próximos anos. O que este fórum pode decidir? Pode decidir estabelecer um quadro normativo para um mecanismo de resolução de dívida soberana dos países, mas recusa-se a fazê-lo. Tem um mandato para criar uma convenção tributária internacional, conforme solicitado pelo G77, o que atualizaria o quadro normativo para um mundo globalizado e digitalizado. Mas tampouco avança.
De fato, a Agenda 2030 parece, cada vez mais, ser um sonho inalcançável; porém, algumas medidas governamentais também poderiam ajudar a amortecer os impactos globais e ampliar a implementação dos ODSs, como a precificação das emissões de carbono, a taxação sobre grandes fortunas e a adoção de tributos sobre transações financeiras em contexto multi-jurisdicional. A emissão de títulos da dívida pública com a condicionalidade para o financiamento do desenvolvimento sustentável também poderiam, em tese, servir para fazer girar a engrenagem financeira necessária para uma mudança sistêmica na aplicação de recursos privados.
Mas como lembra o editorial The private-equality delusion (A ilusão da igualdade privada, em tradução livre), publicado em 4 de março deste ano pela revista The Economist, “nós precisamos passar a levar a sério e refletir o que os mercados privados podem e não podem fazer”. Enquanto faltam recursos para a sociedade civil promover as mudanças necessárias para implementar a Agenda 2030, os agentes privados, de diversos tamanhos e volume de capital, já demonstraram que não têm compromisso efetivo com o desenvolvimento sustentável.
Um exemplo emblemático é o do Estado brasileiro que em 2012 (ainda durante o governo Dilma), optou por zerar as alíquotas do imposto sobre operações financeiras (IOF) na bolsa de valores e futuros. Isso fez com que este tributo passasse a ser sentido apenas pelo cidadão médio. Além disso, o país está na contramão das grandes economias do mundo em vários sentidos, entre eles figuram a não progressividade de impostos sobre fortunas e medidas de austeridade fiscal como a Emenda Constitucional 95/2016 (que estabeleceu o famigerado “teto de gastos” para investimentos fundamentais para o desenvolvimento social) – isso para não falar do problema (cultural) inflacionário que está sendo tratado da pior forma possível – e de uma economia oligopolizada que abre espaço para a formação de cartéis e moderna engenharia de preços.
Verdade seja dita: é inadmissível que enquanto o mundo amarga 6 milhões de mortes por Covid-19 e cada vez mais pessoas são jogadas para a pobreza e extrema pobreza, os bilionários do mundo tenha ampliado suas fortunas em cerca de 60% (segundos dados da Forbes e da Oxfam). Reorganizar o fluxo de capitais, bem como os destinos e condicionalidades sustentáveis de suas aplicações deve ser um compromisso humanista.
Temos os recursos necessários para fazer isso, mas é preciso coragem. Coragem das pessoas responsáveis pela formulação de leis, de chefes de Estado e players da geopolítica para abandonar um modelo econômico falido que coloca a existência da vida humana no planeta em risco. Acima de tudo, é preciso reconhecer a capacidade ímpar das organizações da sociedade civil em liderar o caminho para uma comunidade global sustentável e equitativa. Sabemos como fazer e, cada vez mais, precisamos dos recursos necessários para alavancar nossas ações e causar impacto positivo em maior grau e volume.
*Texto publicado originalmente em Outras Palavras
Revista online | Veja lista de autores da edição 43 (Maio/2022)
*Marco Aurélio Marrafon é o entrevistado especial da edição 43 da revista Política Democrática online. Advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).
*Luis Quesada é autor do artigo Os Índios atravessaram a Ponte!, artista visual multimídia, docente e doutor em Artes pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). É licenciado em Belas Artes pela Universidade de Granada (Espanha) e mestre em Produção e Investigação em Artes pela mesma universidade. Sua obra e pesquisa se desenvolvem sobre a perspectiva do hibridismo cultural e o estudo da identidade/alteridade com foco nas demandas político-artísticas socioambientais de criações que se envolvem com comunidades indígenas.
*Alberto Aggio é autor do artigo O caminho da América Latina é a democracia . Mestre e doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professor titular em História da América pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com pós-doutorado nas universidades de Valência (Espanha) e Roma3 (Itália). Dedica-se à história política da América Latina Contemporânea, em especial à história política do Chile. É o diretor do Blog Horizontes Democráticos.
* Mariana Valentim é autora do artigo Conquistas e desafios na luta contra a LGBTfobia no Brasil. Arquiteta, urbanista e empresária. Ativista trans, ocupa o cargo de vice-diretora executiva do Lola (Ladies of Liberty Association) Brasil e de conselheira do Movimento Livres.
*Lilia Lustosa é autora do artigo Novidades para o Oscar 2023. Será que agora vai? Crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne (UNIL), Suíça.
*Sérgio Denicoli é autor do artigo Twitter, Musk e a economia da atenção. Pós-doutor em Comunicação pela Universidade do Minho (Portugal) e Westminster University (Inglaterra) e pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor dos livros TV digital: sistemas, conceitos e tecnologias, e Digital Communication Policies in the Information Society Promotion Stage. Foi professor na Universidade do Minho, Universidade Lusófona do Porto e UFF. É sócio-diretor da AP Exata, empresa que atua na área de big data e inteligência artificial.
*Beatriz Rodrigues Sanchez é autora do artigo Por que ainda precisamos do feminismo? Pós-doutoranda vinculada ao Programa Internacional de Pós-Doutorado (IPP) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Doutora e mestra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). É formada em Relações Internacionais pela mesma Universidade. É pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do CEBRAP. Desde a graduação vem estudando temas relacionados às teorias feministas e à representação política das mulheres.
*Henrique Brandão é jornalista e autor do artigo Uma ficção bem real.
*Ivan Alves Filho é autor do artigo Um historiador cordial. Historiador licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Os mais recentes de suas dezenas de livros publicados são Os nove de 22: o PCB na vida brasileira e Presença negra no Brasil: do século XVI ao início do século XXI.
*José Luis Oreiro é autor do artigo A economia brasileira à deriva. Professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília
* A Fundação Astrojildo Pereira detém os direitos da reportagem especial da edição 43: O desafio de um país que trata cultura com descontinuidade política.