Economia

Marcus Pestana: O falso dilema entre saúde e economia

Nenhum de nós poderia imaginar que o Brasil chegaria a mais de 345 mil mortes. Passamos os EUA em mortes diárias. A razão é simples: a diferença de ritmo na imunização. O SUS resiste heroicamente. A Saúde Suplementar dá respostas aos seus 47 milhões de usuários. Mas o horizonte de vacinação ainda é incerto.

Não havia registro de mortes por desassistência hospitalar. Agora, dada a velocidade de propagação das novas variantes do vírus, formaram-se filas para acesso às UTIs e muitos estão indo à óbito sem conseguir acesso a tratamentos intensivos. Sem falar na ameaça de desabastecimento de medicamentos essenciais como sedativos, anestésicos e anticoagulantes.

Paralelamente, estabeleceu-se a polêmica sobre a compra privada de vacinas, o que quebraria o sentido democrático e epidemiológico de organização das prioridades na fila de imunização.

Desde o início da pandemia, em março de 2020, erramos ao estabelecer um falso dilema entre saúde e economia. Cada um de nós só estará salvo, quando todos estiverem livres do vírus. Inclusive a economia. É natural a dificuldade de governadores e prefeitos para imporem medidas restritivas. Mais uma vez, faltou coordenação e sincronia. A decretação de lockdowns e assemelhados é necessária enquanto não superarmos o atraso na vacinação. Mas, as medidas de distanciamento social têm que ser acompanhadas de apoios compensatórios aos mais pobres e às empresas.

Temos boas notícias no front econômico para a retomada pós-pandemia. Votações importantes ocorreram no Congresso com a aprovação dos novos marcos legais do saneamento e do gás e das novas leis de falência e de licitações. Também o leilão das concessões de 22 aeroportos, agrupados em três lotes (Norte, Centro e Sul), com um ágio de 3.822% e investimentos da ordem de 6 bilhões de reais em trinta anos, foi um sucesso.

Mas nem tudo são flores e céu de brigadeiro na política e na economia. Felizmente a crise militar foi debelada e como disse o ex-ministro da Defesa, Raul Jungmann: “todos prestaram continência à Constituição”. Mas se há notícias boas, há também problemas. Primeiro, a discussão do OGU/2021 virou uma confusão generalizada e demonstrou a Torre de Babel que impera, às vezes, na interlocução entre o Governo e o Parlamento. Por outro lado, o Congresso entrou em abril com diversas propostas legislativas com sinalização equivocada, como por exemplo, o congelamento de preços de medicamentos e planos de saúde.

Ora, a economia de mercado pressupõe competição, sistema de preços relativos orquestrando a alocação de recursos, custos, sustentabilidade, liberdade econômica e regulação seletiva e eficaz. O Brasil para a retomada precisa enfrentar dois problemas fundamentais: o estrangulamento fiscal e a criação de um ambiente de negócios atrativo. Congelamentos geram disfunções como falências, desabastecimento e “mercado negro” e espantam investimentos. A Petrobrás praticou aumentos de 54% na gasolina e 22,7% no gás de cozinha. O óleo de soja aumentou 84,22% e o arroz, 69,01%. Temos que enfrentar corajosamente essa questão cultural, política e ideológica: queremos uma moderna economia de mercado ou vamos sempre cultivar a utopia de um Estado intervencionista e onipresente operando uma economia centralizada? A experiência histórica ensina qual é o melhor caminho.    

*Marcus Pestana, ex-deputado, federal (PSDB-MG)


Cristina Serra: Esquadrão da morte bolsonarista

O Brasil submerge no 'inferno furioso' da pandemia

Nesta semana, o esquadrão da morte bolsonarista conseguiu avanços importantes no Congresso. No Senado, a esperteza de um aliado garantiu a entrada em vigor das normas que facilitarão o acesso a armas e munições. Milícias, hostes militarizadas, criminosos em geral agradecem.

A Câmara aprovou projeto de lei que implode a fila única da vacinação e rasga o princípio da solidariedade social que orientou a criação do Sistema Único de Saúde. Ao permitir que empresas privadas comprem vacinas, institucionaliza a vacina "censitária", por critério de renda, não de vulnerabilidade.

O projeto, que ainda vai ao Senado, atende à mentalidade de capatazia do empresariado, que alega a necessidade de vacinar sua mão de obra. Se tem pouca vacina, que morram os velhos, os doentes, os mais fracos. É cruel assim. É bárbaro assim. Pensamento não muito distante da facção empresarial que se reuniu com o marginal da democracia em repasto noturno: bilionários da Forbes, o dinheiro grosso dos bancos, patrões da mídia e a bolorenta Fiesp.

A essa gente pouca importa que em algumas cidades o número de atestados de óbito já seja maior que o de certidões de nascimento e que possamos chegar ao meio milhão de mortos. Os empresários aplaudiram o genocida. Manifestaram "otimismo" e "tranquilidade" após ouvi-lo.

A falange religiosa do esquadrão, porém, sofreu derrota importante no STF. Foi inquietante assistir à pregação de André Mendonça, da AGU, a favor dos cultos presenciais em igrejas e templos. Com seus olhos vidrados e pausas teatrais, encarnou o pastor, não o representante de instituição laica. Felizmente, a Corte derrubou a pretensão de inspiração teocrática.

Decisão do ministro Barroso, contudo, acrescentou fator de imponderabilidade para os próximos dias ao determinar que o Senado instale a CPI da Covid. Enquanto isso, como disse um conselheiro da OMS, o Brasil submerge no "inferno furioso" da pandemia.


Hélio Schwartsman: O ocaso das CPIs

Elas se tornaram uma sombra daquilo que foram no passado

Parece-me corretíssima a liminar exarada por Luís Roberto Barroso, do STF, que determina a abertura da CPI da Covid-19 no Senado.

Os três requisitos legais para a instalação estão dados: assinatura de 1/3 dos senadores, existência de fato determinado a investigar e prazo de vigência. No mais, a decisão de Barroso está de acordo com a jurisprudência do Supremo, que já mandou abrir outras comissões no passado.

Comissões parlamentares de inquérito, vale lembrar, são um dos instrumentos à disposição das minorias para exercer a função de fiscalização de governos —uma das principais missões das oposições—, daí que nem a Constituição nem os regimentos admitem que seu funcionamento seja obstado pela vontade da maioria e muito menos pela do presidente da Casa.

CPI da Covid-19 é, portanto, muito bem-vinda. Não vejo, porém, como deixar de observar que as CPIs de hoje se tornaram uma sombra daquilo que foram no passado.

Com efeito, nos anos 90, elas nos permitiram acompanhar com lupa grandes escândalos, como no caso da CPI do Orçamento. Mesmo quando tratavam de temas menos explosivos, não raro saíam com recomendações úteis para aperfeiçoamentos legais.

Ocorre, porém, que a política, como tudo na vida, está sujeita às agruras da evolução. Percebendo o potencial de danos das CPIs, as maiorias passaram a trabalhar para contê-los. Um dos muitos caminhos para fazê-lo era ampliar o escopo da investigação e, para cada convocado com potencial de incomodar o governo, convocavam um que poderia criar embaraços à oposição. Com isso, entramos numa dinâmica semelhante à da corrida armamentista entre predadores e presas, o que acabou tirando muito da efetividade das CPIs.

Não diria que elas se tornaram inúteis. Os chiliques de Bolsonaro contra Barroso dão mostra de que ainda assustam. Mas eu não esperaria nada parecido com a CPI do PC Farias que derrubou Collor.


Demétrio Magnoli: Da vacina ao protesto

Se houvesse abundância vacinal e a obrigação de optar, qual delas eu escolheria?

 “Qual vacina devo tomar, doutor?”. Nos EUA, na Europa e até no Brasil, médicos são confrontados com a inédita indagação. Jamais perguntamos a marca da vacina tríplice de nossos filhos ou do imunizante contra a febre amarela. Contudo, com a pandemia de Covid, a população mundial foi exposta a um curso relâmpago de imunologia cujo efeito colateral é a obsessão por comparar vacinas. Por que não selecionar a vacina como escolhemos automóveis ou celulares?

Mike Ryan, da OMS, deu a resposta certa e óbvia: a decisão racional é tomar o primeiro imunizante que lhe for oferecido. O raciocínio justifica-se por duas razões, uma “egoísta”, outra “altruísta”. A primeira: como todas as vacinas aprovadas previnem a imensa maioria dos casos graves, vacinar-se logo é proteger sua própria saúde. A segunda: cada pessoa imunizada contribui na redução da pressão sobre o sistema hospitalar.

Depois de meses de angustiante expectativa sobre o desenlace dos testes de imunizantes, o mundo foi informado de que, no lugar do temido fracasso universal, a ciência operou um pequeno milagre. As vacinas pioneiras, de tecnologia inovadora (Pfizer/BioNTech e Moderna), exibiram taxas de eficácia em torno de 95%. As seguintes, porém, apresentaram taxas menores, entre os 66% da Janssen ou 63% da AstraZeneca/Oxford e os 50% da Coronavac.

Aquilo que, antes, seria celebrado como triunfo, ganhou ares de decepção. Daí a pergunta que atormenta os médicos. A imprensa não prestou o melhor serviço público ao destacar, em manchetes, o número singular que indica a taxa de eficácia geral das vacinas. De um lado, porque há três taxas diferentes de eficácia: contra infecção, morbidade ou mortalidade. De outro, porque os testes de fase 3 não são comparáveis entre si.A Pfizer testou em amostra da população adulta; o Butantan testou a Coronavac entre profissionais de saúde da linha de frente, normalmente expostos a cargas virais maiores. Testes em diferentes países captaram a ação vacinal contra variantes diversas do vírus. Só conseguiremos cotejar imunizantes ao longo dos próximos meses, a partir de experimentos controlados ainda em andamento.

A publicidade ilusória das taxas de eficácia tem implicações negativas. Os EUA renunciaram a direcionar o produto da Janssen, que não exige ultracongelamento, às pequenas cidades, pois a decisão lógica seria fulminada pela (falsa) acusação de discriminação contra os pobres.Na União Europeia, governos acuados pela lentidão na imunização decidiram cobrir seus erros deflagrando uma guerra retórica contra a AstraZeneca.

O francês Macron chegou, ridiculamente, a dizer que a vacina seria “quase ineficaz” para maiores de 65 anos. O bombardeio oportunista prejudicou ainda mais o processo de vacinação, nutrindo resistências ao uso de um dos principais imunizantes disponíveis na região. Inexistem cardápios de vacinas. Os sistemas de saúde aplicam a vacina que está à mão. Mas, e se houvesse abundância vacinal e a obrigação de optar, qual delas eu escolheria?

Na ausência de nítidos motivos imunológicos, minha resposta derivaria de critérios éticos. Na Europa, eu optaria pela AstraZeneca. A associação da farmacêutica com a Universidade de Oxford comprometeu-se a vender seu produto sem lucro durante toda a pandemia, o que merece aplausos. Além disso, o gesto expressaria minha aversão à hipocrisia de Macron e cia.

No Brasil, pelo contrário, eu escolheria a Coronavac, como forma de reconhecer a persistência heroica e a competência do Butantan –e de protestar, solitariamente, contra os escandalosos atrasos da Fiocruz na entrega de doses da AstraZeneca. Felizmente, não terei opção: vacino-me com a primeira que chegar a meu ombro. Será, de qualquer modo, um protesto contra o negacionismo criminoso de Bolsonaro e a estúpida campanha antivacinal de seus acólitos.


Adriana Fernandes: Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção

 Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção

Reportagem desta semana do Estadão, “Receita diz que só rico lê, e livro pode perder isenção com unificação tributária”, viralizou e levou a uma série de relatos emocionantes nas redes sociais de brasileiros que nasceram em famílias de renda mais baixa e que se viraram para ter acesso à leitura. A discussão sobre o fim da imunidade para livros foi inserida no contexto do projeto de reforma tributária do governo, mas no Brasil de hoje esse é um assunto muito mais político do que de natureza tributária.

Um país que tem o orçamento público capturado por demandas políticas de cunho eleitoreiro. Com governo e parlamentares que não tiveram coragem de fazer cortes importantes nas renúncias tributárias de setores com grande influência em Brasília.

A incoerência fica ainda mais escancarada por um presidente da República que adotou corte de tributos para incentivar a compra de armas e videogames, além de ampliar incentivo para as multinacionais de refrigerantes na Zona Franca de Manaus. Medidas que drenaram a arrecadação em plena pandemia.

A polêmica surgiu porque a Receita, para justificar o projeto que cria a Contribuição Social sobre Bens e Serviços, a CBS, disse que a isenção aos livros pode acabar com a justificativa de que a maior parte é consumida pelas famílias com renda superior a dez salários mínimos. O certo teria sido o projeto retirar o incentivo ao livro e destinar o aumento da arrecadação para uma política de incentivo aos mais pobres. 

A pergunta que muitos se fizeram depois de ler a reportagem foi: por que os livros?

A resposta é complexa e com vários pontos de vista. De um lado, aqueles que defendem o fim da isenção com o argumento de que os mais pobres bancam o consumo dos mais ricos. De outro, os que acham que a medida vai dificultar ainda mais o acesso aos livros pelos mais pobres.

Com a controvérsia instalada, a pesquisadora portuguesa Rita de La Feria, que já fez a reforma em São Tomé e Príncipe, Índia e vários outros países, entrou em campo nas redes sociais em defesa do projeto do governo. “Uma manchete alternativa (e verdadeira) seria: com a reforma tributária, os mais pobres vão deixar de subsidiar o consumo dos mais ricos. Fica a sugestão.”

Rita ainda disparou outro conselho: “Muitos de nós (eu inclusive) têm uma relação emotiva com livros. Mas o sistema tributário não deve refletir emoções, apenas dados.” 

Patrocinador da PEC 45 de reforma tributária, o deputado Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara, alertou que a defesa da isenção aos livros era uma narrativa bonita, mas distorcida num falso dilema de um país em que os pobres financiam os ricos num Estado que não existe para reduzir as desigualdades.

No modelo tributário ideal, esses argumentos são todos muito válidos. O subsídio financeiro, via orçamento, destinado às políticas públicas, sem dúvida, é bem mais eficiente do que o tributário, que banca os ricos - assim como os livros acontece com os produtos da cesta básica. Que, aliás, o projeto da CBS não ataca.

No Brasil de hoje, porém, essa verdade não é tão certa. O setor privado captura dinheiro público por meio de incentivos muito mais robustos do que a isenção dada aos livros. E com impacto muito maior na arrecadação. Um exemplo desse método foram as tentativas frustradas de mudar a tributação de fundos exclusivos de investimentos dos super-ricos. Não tem jeito disso avançar no Congresso. Medida que garantiria hoje muito mais do que os R$ 10 bilhões calculados na última vez que se tentou emplacar a mudança, em 2018.

O enredo é sempre o mesmo. Acaba-se com o incentivo ao livro, mas ficam tantos outros. Defendidos ferozmente por lideranças políticas que não vão deixar que esse modelo tributário tão perfeito na teoria se aplique por aqui na prática. Na hora da votação, sempre tem uma listinha bem grande de exceções.

A briga feroz pelas emendas parlamentares, que divide o governo e se estende há duas semanas, é a maior prova disso. Não houve até agora nenhuma única ação para cortar incentivos ou aumentar tributos dos mais ricos para elevar a arrecadação e diminuir o endividamento público.

É por essas e outras razões que a reforma tributária faz água. Entre armas e livros, continua sendo melhor apostar na segunda opção.


César Felício: Bolsonaro e os ungidos do Senhor

Presidente deve redobrar aposta conservadora

Na Assembleia de Deus - Ministério de Madureira no Parque Jandaia, em Guarulhos, só se admitiu a presença no culto do domingo a quem se apresentou de máscara e com álcool gel. Foi feito um rodízio para cumprir o protocolo de se garantir a lotação de apenas 25% da capacidade do templo. O frequentador é convidado por mensagem de aplicativo a comparecer. Quem vai em um culto, precisa aguardar uma semana para ser chamado de novo. Antes, havia fiéis que batiam ponto no templo todos os dias. A empolgação de cantos de louvor não existe mais, para evitar a emissão de partículas de aerosol.

É muito difícil convencer um religioso praticante que, mesmo com a adoção de todos estes cuidados, não há segurança sanitária para se promover a aglomeração em um evento fechado. Como de fato não há, por mais protocolos que se adotem.

A ilusão de que se pode driblar o vírus com cautelas, profilaxias e precauções, no entanto, é por demais persuasiva. E para os fiéis, há uma estrada aberta para se acolher como verdadeira a narrativa de que não passam de preconceito contra os religiosos os bloqueios à realização de cultos, referendada por governadores, prefeitos, ministros do Supremo Tribunal Federal e pelo consenso do entendimento científico,

O julgamento dessa semana no Supremo Tribunal Federal, portanto, reforça a estratégia bolsonarista de que existe um movimento “cristofóbico”. Estratégia na qual, por motivos diversos, se incorporam o ministro Kassio Nunes Marques, o advogado-geral da União e o procurador geral da República.

O presidente se apoia no Centrão, nos militares e no mercado para governar, não raro colaborando para jogar estes grupos um contra o outro. Para ganhar eleição, entretanto, ele depende do fundamentalismo cristão. É um conceito que transcende o protestantismo: abarca também movimentos leigos conservadores da Igreja Católica e as correntes denominadas “carismáticas” do catolicismo.

Houve um tempo, o da hegemonia na Câmara dos Deputados de Eduardo Cunha, em que os interesses do fundamentalismo cristão iam para a linha de frente do Parlamento. O lobby fundamentalista teve mais sucesso, entretanto, em barrar a agenda dita progressista e identitária do que propriamente em impulsionar a pauta conservadora.

Com o advento de Bolsonaro, este lobby deixou de dar o tom no Congresso, ao menos por agora, e cresceu sua influência de modo excepcional no Executivo. Começa a ofensiva este ano sobre o Judiciário, da qual a polêmica sobre os templos abertos é o primeiro movimento.

Um dos mecanismos de fidelização é a ocupação de espaços estratégicos. O antropólogo Ronaldo Almeida, livre-docente da Unicamp e especialista no tema, está mapeando o aparelhamento da máquina pública pelo fundamentalismo cristão. O mapeamento é parte de uma pesquisa que em breve aparecerá com mais detalhes em publicações especializadas.

É enganoso tomar como exibição de força evangélica apenas o fato de terem hoje cinco ministros na Esplanada (Luiz Eduardo Ramos, Onyx Lorenzoni, Milton Ribeiro, Damares Alves e André Mendonça). Nem todos deste grupo estão onde estão por serem evangélicos.

Chama mais a atenção de Almeida a qualidade dos espaços ocupados. Por meio do MEC e do ministério de Damares, o fundamentalismo tem como tocar sua pauta de modo transversal. Na Funai, os evangélicos conquistaram a área que cuida de indígenas isolados, ponto nevrálgico para a expansão missionária na região Norte.

No próximo ano, o da eleição presidencial, ninguém segura Bolsonaro, acredita Almeida. Ele procurará avançar com a agenda conservadora com toda força que tiver, para sedimentar seu apoio no segmento que em 2018 entregou a ele dois de cada três votos.

“Ele não vai parar um instante sequer de tentar fidelizar este público”, aposta o antropólogo. Até porque existem rachaduras no apoio fundamentalista a Bolsonaro, já perceptíveis a olho nu.

“A pandemia traz um problema para Bolsonaro entre os evangélicos, porque há uma incidência maior de mortes exatamente nas áreas em que a concentração de fiéis é maior. Quando Bolsonaro muda de tom em relação às vacinas, também está de olho nisso”, comenta o reverendo André Mello, da Igreja Presbiteriana da Aliança, em Florianópolis. Há lideranças evangélicas morrendo.

Bolsonaro chegou ao poder retratado por fiéis como um ungido do Senhor. E em um ungido do Senhor não se toca, e nem se cobra ao Altíssimo pelo fato de pessoas por vezes tão destituídas de mérito terem recebido o chamado para este papel. Ao ungido do Senhor se obedece. Só há um detalhe: o ungido do Senhor pode perder esta condição.

Mello afirma que em sua rede de contatos são frequentes as comparações de Bolsonaro com o rei Saul. É uma comparação simplesmente terrível no meio evangélico. Pelas mãos do profeta Samuel, Saul foi ungido para ser o primeiro rei do povo de Israel. Antes de receber a unção, Saul era apenas um pastor da menor tribo dos judeus que andava em busca de alguns jumentos perdidos. A autoridade de Saul foi aceita porque provinha de Deus, mas o monarca pecou contra o Senhor. Soberbo, ele envolveu Israel em guerras inúteis contra vizinhos poderosos e passou por cima da autoridade dos profetas, sem demonstrar arrependimento. Perdeu a condição de ungido, que foi transferida para Davi. Israel passou a estar sob juízo do Senhor. Nada poderia dar certo para o povo escolhido nas mãos do rei errado.

A metáfora indica que nada, nem mesmo o apoio evangélico, é monolítico ou incondicional. Cultivar essa base precisa ser um esforço permanente do presidente.

Doria

Por motivos que ainda não estão claros, o governador paulista João Doria não colhe dividendos em sua imagem depois do inegável sucesso de sua administração em produzir uma vacina que tem se mostrado eficaz, até o momento, contra a pandemia. A pesquisa Ipespe divulgada pelo Valor, se confirmada por futuros levantamentos, debilita dramaticamente sua articulação para concorrer à Presidência.


Maria Cristina Fernandes: Rejeição empresarial a presidente se mantém ascendente

Propaganda de apoio do PIB nacional com jantar em São Paulo foi tiro que saiu pela culatra

Se o jantar oferecido pelo dono da empresa de segurança Gocil, Washington Cinel, ao presidente da República tinha por objetivo propagandear o apoio desfrutado por Jair Bolsonaro no meio empresarial, o tiro saiu pela culatra. Grupos de WhatsApp de grandes empresários e investidores amanheceram indignados com a percepção vigente sobre o encontro. A avaliação é de que o Palácio do Planalto foi bem sucedido em passar a percepção, que asseguram equivocada, de que Bolsonaro tem apoio na elite econômica do país. A reunião, dizem, limitou-se a um punhado de empresários e banqueiros que responde a um dos critérios ou a ambos: são do núcleo duro raiz do bolsonarismo e estão sempre a assediar o presidente de plantão. A casa que sediou o jantar é um reflexo simbólico desta percepção. Vizinha do ex-deputado Paulo Maluf, nos Jardins, em São Paulo, a casa um dia pertenceu a um dos grandes industriais do país, José Ermírio de Moraes, e hoje é do empresário da segurança privada, ramo que cresceu junto com violência decorrente da falta de rumos do país.

A posição do grande empresariado e da grande finança estaria bem mais refletida, na visão deste interlocutor, em iniciativas como a Coalizão Brasil e a Concertação pela Amazônia, motivadas pelos equívocos da política ambiental brasileira, ou mesmo o apoio ao manifesto dos economistas por saídas para a pandemia. Essas mobilizações reúnem CEOs de grupos como Itaú, Klabin, Gerdau, Amaggi, Natura, Ambev, Gávea e Marfrig. Jantares do gênero são comuns em momentos de descrença sobre o apoio empresarial a um presidente em crise, mas a baixa representatividade do encontro de quarta-feira saltou aos olhos. A política dos “campeões nacionais” e a fartura do BNDES poupou a ex-presidente Dilma Rousseff de quóruns tão pouco representativos, o que não a impediu de cair.

A tentativa do presidente da República de ressuscitar o antipetismo para fisgar de volta o apoio empresarial perdido, diz este interlocutor, tampouco surtirá efeito. Entre aqueles que, de fato, ditam os rumos da economia nacional, este discurso não adiciona um único voto para o presidente da República em 2022. Uma parte deles reconhece que se o PT estivesse no poder o país não teria afundado tanto e a grande maioria recebe esse discurso do presidente da República como um estímulo redobrado para a busca por uma terceira via. A presença do ministro Paulo Guedes tampouco sensibilizou os empresários que ficaram de fora do jantar. Se o ministro da Economia já não empresta prestígio ao presidente da República, a recíproca também é verdadeira. Guedes hoje é visto como ministro de um país imaginário onde todos gostariam de viver, mas que, infelizmente, ninguém acredita existir senão em seus devaneios.

Apesar do incômodo gerado pelo jantar, cuja divulgação teve o empenho pessoal de ministros palacianos, não haverá mobilizações adicionais para mostrar o azedume com este governo. E o principal motivo é a pandemia. Os CEOs críticos ao bolsonarismo estão recolhidos em suas casas porque temem aquilo que o presidente despreza, a agressividade da covid-19. Cresce, porém, neste grupo, a percepção de que Bolsonaro, no limite, chegará a 2022.

O cerco da imprensa internacional a Bolsonaro reflete-se no comportamento dos parceiros internacionais desses empresários. Edições das duas principais publicações financeiras do mundo, “The Economist” e “Financial Times”, mostraram que o dano à imagem internacional do presidente é irreversível. A revista trouxe uma charge contestando que a resposta brasileira à pandemia seja conduzida por um cabeça-oca, mas sim por um “ignorante, teimoso e arrogante”. Já o jornal da City londrina trouxe uma reportagem sob o título “Bolsonaro mais isolado do que nunca” em que uma dirigente da Organização Pan-Americana de Saúde reportou preocupação com o espraiamento das variantes brasileiras por 15 vizinhos das Américas. É a percepção do Brasil como ameaça global que cresce no mundo e preocupa os grandes empresários brasileiros.

Não há, por outro lado, percepção sobre saídas fáceis à vista. Há empresários deste meio que se aproximaram do vice-presidente Hamilton Mourão por conta de sua atuação no Conselho Nacional da Amazônia mas não há qualquer mobilização real para apear o presidente da República do poder por conta da percepção de que o Congresso quer mantê-lo no cargo. O artigo do vice-presidente publicado na terça-feira, 6, no jornal “O Estado de S. Paulo” (“O que os brasileiros esperam de suas Forças Armadas”) foi lido como uma manifestação clara de que Mourão não endossou o comportamento de Bolsonaro na recente crise militar e que subscreve a atuação estritamente constitucional das Forças Armadas em defesa das instituições nacionais.

Um dos empresários descrentes do bolsonarismo diz ter sido procurado por ministro de origem militar em busca de sua percepção sobre a conjuntura. O constrangimento do ministro ante seu pessimismo lhe deixou a impressão de que os militares deste governo têm a consciência de que estão em nau à deriva. Ante reclamações de que o Supremo Tribunal Federal estica a corda com o presidente, este empresário responde que o limite da tensão, na verdade, foi alargado lá atrás pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas com o tuíte ameaçador sobre o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e com o beija-mão promovido pelo mesmo general aos pré-candidatos à Presidência da República em 2018. Este empresário não mantém contato com o vice-presidente Hamilton Mourão. Tem a convicção de que, assim como o ex-ministro do TSE Herman Benjamin estava com a razão quando dizia que a chapa Dilma Rousseff-Michel Temer deveria ter sido cassada por excesso de provas, é preferível dois impeachments em cinco anos a um crime de responsabilidade por dia.


Malu Gaspar: Jair Bolsonaro, um presidente imunizado contra a CPI da Covid

O requerimento para a criação de uma CPI da Covid-19, protocolado no Senado no início de fevereiro, deixou há muito de ser um pedido de investigação para ser um termômetro que afere as chances de sobrevivência política do presidente da República. Aos olhos de hoje, os líderes da Câmara e do Senado parecem ter concluído que Bolsonaro, que esteve na UTI, já pode ser politicamente desentubado.

O requerimento tem a assinatura de 31 senadores, mais do que as 27 exigidas, e o objeto da investigação é definido: “apurar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados” nos primeiros meses de 2021.

Nessas circunstâncias, o regimento do Senado diz que o pedido deve ser lido em plenário e a CPI, instalada imediatamente. Mas Pacheco, eleito para o cargo com o apoio de Bolsonaro, está há dois meses produzindo desculpas para não fazê-lo. A última foi expressa num documento enviado ontem pelo Senado ao Supremo Tribunal Federal, em resposta a uma ação de parlamentares pedindo a instalação da comissão.

Diz que a CPI poderia ter “efeito inverso ao desejado”, produzindo “desconfiança da população em face das autoridades públicas em todos os níveis”. Menciona, ainda, um eventual “apagão das canetas”, em que os gestores públicos deixariam de tomar decisões urgentes por medo de punição.

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Causa espécie o argumento de que não se deva apurar responsabilidades por uma tragédia sanitária para não causar medo em gestores públicos. Crises são momentos desafiadores, mas não podem ser consideradas salvo-conduto para desvios que causam mortes.

Além disso, acreditar que, depois do colapso no Amazonas e da omissão do governo federal na obtenção de vacinas, será uma CPI que dilapidará a confiança do brasileiro nas autoridades públicas soa tão falso como a promessa milagrosa de cura oferecida pela cloroquina.

Outra coisa que se ouve muito no Congresso é que “uma CPI desviaria o foco”, que deve ser voltado para a obtenção de vacinas. É fato que a pressão dos senadores removeu do cargo o chanceler Ernesto Araújo. É verdade também que o discurso do presidente da Câmara, Arthur Lira, ameaçando o governo com “remédios amargos” e até fatais (como uma CPI), causou paúra em Bolsonaro.

Depois disso, ele abriu negociações para comprar a Sputnik V. Mas é difícil entender como uma CPI com 11 de 81 senadores poderia causar mais tumulto que os conflitos promovidos pelo próprio presidente da República.

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A questão, aí, parece ser quem se quereria proteger do tumulto. Com a naturalidade de quem entendeu que o que estava em jogo era a ocupação de espaços na máquina pública, e não a confiança da população, Bolsonaro pagou a fatura. Cedeu a cabeça de Araújo ao Senado e entregou um ministério dentro do Palácio do Planalto à Câmara, nomeando para a Secretaria de Governo uma afilhada de Lira, a deputada Flávia Arruda.

No dia seguinte, o presidente da Câmara foi ao Planalto se reunir com o ministro da Saúde e saiu com discurso de líder de governo, desafiando as informações de prefeitos e governadores sobre a vacinação. “Por que o Brasil distribuiu 34 milhões de doses de vacinas e nós só temos 18 milhões de doses aplicadas? Não acho que seja possível que nenhum governador e nenhum prefeito não esteja vacinando.”

De um dia para outro, o remédio amargo virou água com açúcar.

Na Câmara, o foco de Lira passou a ser atender os empresários bolsonaristas Luciano Hang e Carlos Wizard, que reivindicavam mudanças na lei que permitiu a compra de imunizantes pelo setor privado.

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O texto aprovado em março mandava as empresas doarem as doses compradas ao SUS até que fossem vacinados todos os brasileiros do grupo de risco para a Covid-19. Só depois elas poderiam imunizar seus funcionários, entregando ao SUS uma dose para cada empregado vacinado.

Para atender Hang e Wizard, Lira aprovou, em regime de urgência, o fim da obrigação de esperar a vacinação dos grupos prioritários — o que rendeu ao projeto o apelido de “fura-fila”.

E Bolsonaro, de novo à vontade, voltou a defender remédios sem eficácia, visitou sem máscara bairros populares nos arredores de Brasília e falou contra medidas de isolamento social. No dia seguinte, o Brasil ultrapassou a marca de 4.000 mortes por dia pela Covid-19.

No ofício ao STF, Pacheco afirma que a população “reclama a priorização de soluções, e não a busca de culpados”. A julgar pelos últimos lances, o Congresso não está preocupado em encontrar nem uma, nem outra.

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Merval Pereira: LSN, incompatível com a democracia

Assim como chegou a vez de extinguir a Lei de Imprensa promulgada na ditadura militar, graças à ação, em 2009, do então deputado federal Miro Teixeira, jornalista e advogado, parece ter chegado ao fim a vigência da famigerada Lei de Segurança Nacional.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, quer colocar em votação um pedido de urgência para a análise de um projeto de lei que revisa integralmente a LSN. As mesmas razões se impõem hoje. Conforme argumentou na ocasião Miro Teixeira, a Lei de Imprensa imposta pela ditadura militar continha dispositivos incompatíveis com o Estado de Direito inaugurado com a Constituição de 1988, como a prisão de jornalistas condenados por calúnia, injúria e difamação.

Com sua revogação, as questões envolvendo notícias ou comentários têm nos Códigos Civil e Penal sua resolução. Também a Lei de Segurança Nacional (LSN) tem servido de base para diversas ações do atual governo contra seus opositores, jornalistas e cidadãos em geral. Dados oficiais mostram que, nos últimos 18 meses, foram abertos 41 inquéritos com base na LSN, mais do que em qualquer período dos últimos 20 anos, quando foi usada 155 vezes.

O artigo 26, que considera crime “caluniar o Presidente da República, o do Senado federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”, é o mais usado para coagir os críticos do governo. O projeto de lei na Câmara pretende alterá-lo para considerar crime apenas atentados contra a integridade física de autoridades, cuja pena pode chegar a 30 anos em caso de morte.

Uma dificuldade, ou um constrangimento, para que o Supremo Tribunal Federal (STF) reveja a LSN é que ele a vem utilizando em inquéritos sobre os ataques desferidos contra o próprio Supremo, nas manifestações antidemocráticas acontecidas e na prisão do deputado Daniel Silveira.

Existe, porém, uma explicação jurídica para isso: a lei está em vigor até que seja extinta. Também a Lei de Imprensa era usada para processar jornalistas ou exigir direito de resposta, até ser revogada. Por isso mesmo, deve ser extinta. O ministro Gilmar Mendes, que é o relator de ações no Supremo que pedem que a LSN seja revogada, deu cinco dias para que o Ministério da Justiça justifique o uso da lei contra os que supostamente ofenderam o presidente da República.

Para o ministro Luís Roberto Barroso, a Lei de Segurança Nacional precisa de uma revisão, ou mesmo revogação completa, para sanar as “inconstitucionalidades variadas”. Ele falou em seminário virtual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, considerando a LSN “uma obsessão mais com a segurança do Estado do que com a institucionalização da democracia e com o exercício pleno da cidadania”.

Ao afirmar que a LSN não se coaduna com a atualidade da sociedade brasileira, o ministro Barroso está entrando numa questão jurídica que vem sendo debatida desde a promulgação da Constituição de 1988: a recepção das leis anteriores. O jurista Marcelo Cerqueira, ex-deputado federal e advogado de presos políticos, que atuou na Constituinte como assessor, defende desde sua tese de 1994, com que foi aprovado como professor titular da Universidade Federal Fluminense, que, como definiu o jurista austríaco Hans Kelsen, as leis incompatíveis com o espírito de uma nova Constituição não são “recepcionadas”por ela, e considera que a Lei de Segurança Nacional (LSN) é uma delas e deveria ser tratada não apenas como inconstitucional, mas “ilegal”.

Para ele, “há um direito novo que o pacto político alargou e que a Constituição refletiu. Os novos preceitos constitucionais permitem uma outra leitura do direito, um novo impulso em que as regras velhas se vestem com novas roupagens para ser aceitas na festa da democracia”.


Míriam Leitão: Escolhas erradas no pior da crise

Há algo profundamente errado no Orçamento, além de todos os números desencontrados. Os erros são crassos, de todos os lados, e reveladores. Mas a principal falha é que o governo e o Congresso juntos fizeram uma peça em completo divórcio com o país. Os brasileiros estão morrendo, as emergências são dramáticas na saúde e na educação, mas o Orçamento garantiu verba para submarino nuclear e corvetas dos militares, encheu os bolsos dos parlamentares de emendas, reservou verba para os palanques de Bolsonaro. É a prova, mais uma, de um governo alheio a tudo o que é de fato urgente neste pavoroso momento brasileiro.

Mesmo se houvesse mais dinheiro para o Ministério da Educação, o risco é o uso errado. O ministro Milton Ribeiro saiu da sua inexistência para ir ao Congresso defender a medieval educação domiciliar, com a socialização das crianças sendo feita nas igrejas, e as verbas para programas essenciais foram cortados. O autor da lei da compra de vacinas pelas empresas queria passar o custo para todos os brasileiros. O deputado Hildo Rocha (MDB-MA), autor da lei que autoriza o fura-fila na vacinação, queria incluir um dispositivo permitindo que os empresários descontassem no Imposto de Renda Pessoa Jurídica. Diante das críticas, recolheu sua péssima ideia. Mas é um sinal da distorção na escolha das prioridades dos poderes no Brasil. O ministro Kassio Nunes Marques, ao expedir sua liminar permitindo os cultos no meio desta carnificina que virou o Brasil, mostrou que também o Judiciário pode ser colhido por essa falta de noção que atingiu os poderes no Brasil. Como perguntou o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, em que planeta estão os negacionistas?

O Orçamento é parte dessa mesma confusão de prioridades. Quem entra no emaranhado dos números vê muita coisa errada nos detalhes, de parte do Executivo e do Legislativo. Ninguém pode dizer que não viu a grande lambança das contas públicas. No blog ontem contei que houve pedalada para frente e pedalada para trás. O governo superestimou despesa, o relator subestimou. No caso dos gastos da Previdência, o projeto de lei orçamentária previa R$ 712 bilhões. Isso é, segundo técnicos, pelo menos R$ 7 bilhões a mais do que o valor que pode ser projetado. O valor correto seria em torno de R$ 705 bilhões. Mas o relator Márcio Bittar (MDB-AC) fez algo ainda pior, ele subestimou despesa obrigatória e colocou no seu relatório R$ 698 bilhões. O governo fez o cálculo do aumento da despesa vegetativa, mas não considerou os ganhos da reforma da Previdência. Isso é um dos detalhes desse emaranhado numérico. Isso é só um exemplo da torre de babel que se tornou esse Orçamento do ano, com comprovações explícitas de erros de parte a parte.

Em cada escolha, o que se vê é o retrato de um governo com distorção da realidade. O Censo pode até não ser feito neste ano e ficar para 2022. Há uma discussão entre especialistas se faz agora ou no próximo ano com mais segurança. Mas o que é mais importante é se dar conta de que o governo vem estrangulando o IBGE desde 2019. O previsto inicialmente eram R$ 3,4 bilhões, o Ministério da Economia mandou cortar R$ 1 bilhão. A então presidente do IBGE aceitou e reduziu os questionários. Depois cortou mais R$ 400 milhões e agora acabou praticamente com a dotação. O atual governo briga com números e não vê relevância em estatística. E o Censo será fundamental para trazer os dados com os quais reconstruiremos as políticas públicas.

Neste momento aumentou espantosamente a insegurança alimentar no Brasil. E o governo só neste quarto mês do ano está depositando nas contas digitais da Caixa o auxílio emergencial. Em dezembro, estava claro que seria necessária uma nova rodada do auxílio, mas o Ministério da Economia fez avaliação errada de conjuntura. Achou que o país estava retomando o crescimento, quando estava entrando em nova onda de contágio e mortes.

Depois que consertarem todas as contas do Orçamento da União, com vetos em emendas e um projeto restaurando as despesas obrigatórias, quando resolverem todos os conflitos com as leis fiscais do país, sobrará a questão mais importante: no Brasil, executivo e legislativo erram dramaticamente ao definir que prioridades o país deve ter no meio da maior crise em um século.


Adriana Fernandes: Crise do Orçamento deixou mágoas na relação entre Congresso e governo

Independentemente do tamanho do acerto do presidente Jair Bolsonaro com o comando do Congresso para a saída do impasse sobre as emendas parlamentares do Orçamento de 2021, a crise política já deixou mágoas e feridas abertas na relação entre o Senado e a Câmara e também com o governo.

As cicatrizes poderão ser maiores ou menores a depender da forma como o presidente vai bater o martelo. Bolsonaro tem prazo até dia 22 para sancionar o Orçamento. De hoje até lá, parece uma eternidade.

Foi assim em 2020, quando impasse orçamentário semelhante se instalou na República, no momento em que a pandemia da covid-19 mostrava a sua cara no Brasil. A diferença é que agora Senado e Câmara estão divididos. Lideranças já avisaram que o rancor é grande no Senado com Paulo Guedes pela postura que consideram errática do ministro da Economia em relação ao acordo feito pelo governo para acomodar o aumento das emendas parlamentares com cortes de despesas obrigatórias.

O Senado ficou com a imagem chamuscada porque não cumpriu o acordo das emendas e aumentou a parcela para obras de interesse dos senadores. Será, portanto, o mais atingido pelo desfecho da crise, que ainda não está fechado e terá de passar pelo arbítrio do presidente Bolsonaro. Por sua vez, a Câmara vai ficar com o que já tinha negociado antes da votação. É para isso que o presidente da Casa, Arthur Lira, luta e sobe o tom: garantir o mesmo valor das emendas parlamentares para os deputados que já estava acertado. Nenhum centavo a mais ou a menos.

A crise causa frisson e explica o vaivém de rumores que têm surgido no mercado com o processo “estica a corda” do Centrão. É o jogo de pressão funcionando.

No mercado financeiro, enquanto reunião sobre Orçamento acontecia em Brasília, a especulação que corria era de que, se não houvesse acordo, Guedes poderia cair. Quem não gosta do ministro da Economia pega carona na crise para desgastá-lo ainda mais.

Enquanto a corda estica, o recado que vem sendo transmitido pelos líderes é que haverá maior dificuldade para aprovação dos projetos de interesse da área econômica. Muitos falam em retaliação a Guedes que na visão deles trava o acordo.

Um aperitivo já foi dado pelo Senado que colocou na pauta de votação projeto que permite às empresas cortarem jornada e salário dos funcionários ou suspenderem contratos neste ano, nos mesmos moldes do programa adotado em 2020, o BEm.

Na hesitação do governo sobre como bancar o BEm em alinhamento às regras fiscais, o Senado foi lá e cravou uma no governo, que no mesmo dia saiu do muro e mandou projeto para alterar a Lei de Diretrizes Orçamentárias e abrir caminho ao financiamento do BEm por meio de créditos extraordinários e sem compensação de aumento de arrecadação ou mais corte de despesa.

O recado político do Congresso, que tem chegado até empresários e banqueiros, é o de que haverá distensão política com uma saída honrosa para a crise do Orçamento e que o tamanho das emendas não será o que foi aprovado.

Mas esse mesmo PIB, que fica cobrando publicamente as reformas, já sabe que não terá mais nenhuma aprovada. Ninguém tem expectativa de reforma nem sonha mais com elas.

Por outro lado, o recado transmitido por empresários a interlocutores do governo é que pare de meter os pés pelas mãos (ou seja, de fazer besteira) para chegar até o ano que vem, quando haverá folga orçamentária pela correção do teto de gastos pela inflação mais alta.

“Não regredir mais” virou o ponto mais alto do sarrafo das cobranças dos empresários junto com mais vacina e melhoria das relações diplomáticas. São oito meses até o fim do ano. Depois é só eleição e nada mais.

Guedes tenta evitar a decretação de calamidade (tema da última coluna) e quer administrar a edição de novos créditos extraordinários de medidas de combate ao impacto da pandemia na base do conta-gotas para controlar a expansão dos gastos.

E o presidente do Banco CentralRoberto Campos Neto, trabalha para comunicar o dilema orçamentário apontado pelo Copom como risco adicional para a inflação que pode levar a uma alta maior dos juros, como apontado por ele em entrevista ao Estadão publicada no domingo.

Guedes e Campos Neto estariam com Bolsonaro nesta quarta-feira em jantar com empresários. Tentativa do governo de estancar a sangria que faz com que o presidente esteja perdendo apoio na parcela do PIB brasileiro que o ajudou na sua eleição em 2018.


Ricardo Noblat: Jantar de Bolsonaro com empresários foi uma ação entre amigos

O presidente reafirmou o que pensa e acabou ovacionado

Nos oito anos dos governos de Fernando Henrique Cardoso, e nos oito de Lula, não foi preciso selecionar com rigor nomes de empresários dispostos a jantar com eles para driblar o risco de serem fortemente pressionados por isso ou por aquilo. Fernando Henrique estava à vontade no meio deles. Lula, também.

Já foi o caso do presidente Jair Bolsonaro até, pelo menos, metade do ano passado. Desde então deixou de ser, daí os cuidados tomados em ocasiões como essas. Recentemente, centenas de economistas, empresários e banqueiros pesos pesados do PIB assinaram um manifesto fazendo duras cobranças a Bolsonaro.

Não se tem notícia se alguns deles participaram do jantar oferecido a Bolsonaro, ontem, em São Paulo, por Washington Cinel, dono da empresa de segurança Gocil. Mas nomes graúdos compareceram. E os primeiros relatos indicam que Bolsonaro foi muito bem recebido e chegou a ser ovacionado quando discursou.

O que ele disse para merecer aplausos? No dia em que o Brasil ultrapassou a marca de 340 mil mortos pela Covid-19, o presidente fez duras críticas a Estados e prefeituras que defendem restrições mais severas de isolamento social. E defendeu a manutenção de igrejas e templos abertos, segundo o jornal VALOR.

O encontro fora planejado para apresentar um Bolsonaro mais moderado à parte do empresariado paulista. Mas ele foi o de sempre. “Tem de olhar o lado bom do país. Os investidores estão acreditando no Brasil. Basta olhar, hoje, o leilão dos aeroportos. Não existe terra melhor do que essa!”, disse o presidente.

Que em seguida disparou: “Podem me dar porrada à vontade. […] Imagina se o [Fernando] Haddad tivesse ganhado a eleição?”. E ele mesmo respondeu: “O Brasil teria afundado. Se os atuais presidenciáveis tivessem no meu lugar, tinha virado o caos social”. A agressiva retórica entusiasmou os convidados.

Eles se sentiram então mais à vontade para, a salvo dos jornalistas, impedidos de testemunhar a cena, criticarem as medidas mais duras de isolamento do governador João Doria (PSDB). Muitos aproveitaram para falar mal dos governos do PT e disseram ver Lula como seu inimigo número um.

“Estamos com o senhor. O Brasil não volta para ladrão e vagabundo”, gritou um empresário, para quem falta compreensão de certa parcela do público para entender o quanto Bolsonaro é autêntico. Flávio Rocha, um dos apoiadores de Bolsonaro, pediu a aprovação das reformas econômicas ainda este ano, e prometeu:

– Vamos te dar apoio.

Falou-se de vacinação, por suposto, mas nada que pudesse constranger o presidente, outra vez aplaudido ao afirmar que o Brasil é um dos poucos países do mundo que produzem imunizantes. Não disse que sem os insumos fornecidos por outros países, o Brasil seria incapaz de produzir as vacinas que usa.

“Foi uma conversa boa, eu gostei, me deu tranquilidade”, definiu Rubens Menin, controlador de MRV, Banco Inter e da rede de televisão CNN. Questionamentos sobre o viés ideológico de Bolsonaro ficaram de fora da pauta do jantar. “Foi uma conversa de alinhamento, não de confusão”, segundo Menin.