Economia
Cristovam Buarque: Olhar para frente
Há meses o debate político se restringe ao eleitoral, limitado à opção entre PT, Bolsonaro ou candidatos no que vem sendo chamado de Centro ou Polo Democrático. Os que fazem parte deste grupo têm a tendência a achar que qualquer nome deles, se unidos, teria lugar no segundo turno.
Esquecem o imenso número de eleitores entre os nem-nem, que são nem-nem-nem. Dependendo do nome escolhido pelo Polo ou Centro, preferirão votar em branco ou nulo ou viajar no dia da eleição.
O eleitorado descontente com o PT e com Bolsonaro quer mais do que outro nome, quer um candidato que aponte para o futuro, um quadro político diferente, nem o desastre atual nem a volta para o passado. Mas lamentavelmente, o Polo ou Centro democrático não está apontado um rumo para frente.
Com este propósito este Polo tem apresentado nomes de qualidade, como Ciro, Huck, Dória, Mandetta, Leite, cada um com suas qualidades. A novidade do novo nome, Tasso Jereissati, é que ele tem fortes ligações com os outros candidatos, o que facilitaria a unidade de todos em torno a ele no primeiro turno, no segundo ele tem eleitores entre bolsonaristas e entre petistas, mantendo diálogo com o próprios Lula e outros líderes do PT. Além disto, tem experiência e uma narrativa para a transição para o fim do atual período de exceção que atravessamos. Neste sentido, é positivo que ele tenha manifestado que seria presidente comprometido com um só mandato, para recuperar o que foi perdido.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador
Blog do Noblat
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/olhar-para-frente-por-cristovam-buarque
Luiz Carlos Azedo: A CPI da necropolítica
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado começa suas oitivas hoje, com os depoimentos dos ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. O primeiro foi defenestrado pelo presidente Jair Bolsonaro, que ficou enciumado da popularidade do médico ao liderar o Sistema Único de Saúde (SUS) na pandemia. O segundo pediu demissão rapidinho e se recusou a endossar as teses negacionistas do presidente da República. O cenário de atuação da pandemia é emoldurado por 400 mil cruzes, que podem chegar a 500 mil, antes de a comissão concluir seu trabalho, no prazo de 90 dias.
Mais de 300 requerimentos de informações já foram aprovados na CPI, mas esses dois depoimentos têm o poder de dar o rumo de suas investigações. Os dois ex-ministros são médicos e têm plena dimensão das razões que nos levaram à tragédia sanitária atual. Os passos seguintes serão ouvir o general Eduardo Pazuello, amanhã, e o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, na quinta-feira. Ambos terão que dar respostas convincentes aos integrantes da CPI.
Pazuello é um caso perdido, coleciona decisões e atitudes equivocadas. Se mantiver a costumeira soberba, estará no sal. Queiroga é médico, porém, ainda está enrolando o paraquedas. Manteve a maioria dos militares que assessoravam Pazuello. Sem confrontar o negacionismo do general, está se atrapalhando com a campanha de vacinação, sobretudo devido aos erros do antecessor. Pode complicar a vida de Pazuello ou se complicar, se fizer o contrário.
Ontem, Queiroga anabolizou o número de vacinados no Brasil, durante encontro na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp): “Hoje já temos imunizados com as duas doses cerca de 18% da população brasileira. Isso é um dado importante, e vamos avançar mais”. Mais fake news, impossível: a segunda dose foi aplicada em 15.869.985 pessoas, ou seja, 7,49% da população do país. Com a primeira dose, são 31.875.681 de imunizados, o que equivale a 15% da população.
Criar falsas expectativas é uma especialidade do Ministério da Saúde, que corre atrás dos atrasos na vacinação desde o início do ano. Nesta semana, oito capitais interromperam a imunização por falta de vacinas: Aracaju, Belo Horizonte, Belém, Campo Grande, Porto Alegre, Porto Velho e Recife. Entretanto, apesar do ritmo lento, a vacinação vem reduzindo o número de mortos na população de risco. As medidas de distanciamento social nos estados e municípios contribuíram para reduzir a taxa de transmissão do vírus para menos de 1, o que está se refletindo na queda do número de casos e de mortos.
Tragédia social
O problema é que o patamar ainda está muito alto: o país registrou 1.210 mortes pela doença nas últimas 24 horas e totalizou 407.775 óbitos desde o início da pandemia. Com isso, a média móvel de mortes nos últimos sete dias chegou a 2.407. Em comparação à média de 14 dias atrás, a variação foi de -16%, confirmando a tendência de queda. Se Bolsonaro tivesse bom senso, estimularia a adoção de duas ou três semanas de lockdown nos municípios mais importantes do país e jogaria o índice de contaminação no chão.
O que acontece é o contrário, o presidente Bolsonaro estimula aglomerações, como as que ocorreram no domingo, e se recusa a tomar a vacina, bem como a usar máscaras. Sabota sistematicamente os esforços das autoridades de saúde para conter a pandemia. Do ponto de vista estratégico, essa atitude foi um erro que pode lhe ser fatal nas eleições de 2022. Num país continental como o Brasil, uma crise sanitária dessa envergadura desorganiza a economia e destrói atividades produtivas, deixando ao relento e com fome milhões de pessoas. São os frutos envenenados da “necropolítica”. Esse conceito do filósofo negro e historiador camaronense Achille Mbembe define a política de governo que escolhe quem deve viver e quem deve morrer. Infelizmente, traduz a situação em que vivemos.
Até breve. Em férias, deixarei de assinar a coluna por quatro semanas.
Blog do Azedo / Correio Braziliense
https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/a-cpi-da-necropolitica/
Benito Salomão: O keynesianismo envergonhado de Paulo Guedes
O Brasil da segunda metade da década de 2010 tinha uma agenda econômica clara, interromper a trajetória explosiva da dívida pública e ao menos equilibrar o orçamento primário da União em déficit desde 2014. Inúmeras medidas foram empreendidas neste sentido, porém no meio do caminho, houve uma eleição. O projeto vencedor nas urnas prometeu zerar o déficit primário já no primeiro ano de governo. Justiça seja feita, o déficit não foi zerado, mas houve uma redução em termos reais dos R$136 bilhões em de 2018, para cerca de R$85 bi, em 2019. Não é pouca coisa, no contexto de estagnação da economia e de crescimento compulsório do gasto público obrigatório.
Mas veio a pandemia e com ela a necessidade de ampliar o gasto. Muitos atribuem tal expansão fiscal ao célebre economista britânico John Maynard Keynes que jamais escreveu sobre isto em sua Teoria Geral de 1936. Porém, o governo brasileiro e dentro dele, a equipe econômica, preferiram subestimar a doença por vias de uma coleção de falas infelizes como “com qualquer R$5 bilhões a gente aniquila com o Coronavírus”. Gastaram R$524 bilhões e o país entrou em colapso sanitário.
Até o presente momento, a Pandemia trouxe a óbito cerca de 3,1 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, que deve passar os Estados Unidos em número de mortos nos próximos meses, até o presente momento morreram cerca de 392 mil pessoas. Apenas a título de comparação, a guerra civil na Síria que completou 10 anos no último dia 15/03, fez cerca de 388 mil vítimas segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH). O COVID-19 no Brasil matou mais em pouco mais de 14 meses do que o maior conflito civil do nosso tempo matou em 10 anos.
Trata-se, portanto, de um contexto de guerra, sem escombros, mas com muitas vítimas. E não se faz ajuste fiscal em guerras. Nestes contextos, o orçamento precisa proteger as pessoas. O Brasil não pode ser acusado de não ter gastado durante a pandemia. Segundo o Tesouro, a soma gasta exclusivamente com despesas relacionadas ao combate do COVID-19 em 2020 foi R$524 bilhões, pouco mais de 7% do PIB. Em comparações internacionais o Brasil gastou mais do que países como Israel (6,1% do PIB), Dinamarca (5,1%) e Noruega (4,35%). Mas mesmo com todo esforço fiscal, o país não evitou a hecatombe humanitária que levou a colapso os sistemas público e privado em todo o território nacional.
O problema não é a falta de gasto, mas sim a eficiência do mesmo. Gastou-se muito, porém gastou-se mal. Ao final do processo o país terá um enorme passivo fiscal e um gigantesco trauma humanitário. Por dois anos seguidos, o Estado do Amazonas foi acometido por um enorme caos sanitário. A pergunta é, por que a região norte do país não teve seu acesso limitado de forma preventiva (exceto para a chegada de suprimentos) durante a primeira onda, antes que o caos se instalasse? Uma região de amplo território com pequenas populações demasiadamente espalhadas em localidades de difícil acesso. Não seria muito mais eficiente, em termos sanitários e financeiros, impedir (ou postergar) que o vírus lá chegasse, do que levar atendimento médico e estrutura hospitalar depois que a situação já era grave? Enquanto isso os esforços e recursos seriam direcionados para as periferias dos grandes centros do Sudeste, por onde a doença entrou no país e se mostrou igualmente grave.
Olhando para o orçamento direcionado ao COVID-19 em 2020 no Gráfico 1, o principal item de gasto foi o auxílio emergencial, pago em 9 parcelas que ao final custou R$293 bilhões ao Tesouro. Se o governo tivesse pago por 4 meses, um auxílio de R$1000 mensais o impacto fiscal teria sido de R$256 bilhões. Se isto fosse vinculado às medidas de isolamento social, auxiliando a federação na implementação de um lockdown verdadeiro, com cerca de 2 meses de duração, mais 2 meses para reabertura das economias em etapas, quantas mortes seriam evitadas no auge da primeira onda da doença? Tudo isso sem falar o descaso absoluto da União para com a aquisição de vacinas, dos R$524 bilhões gastos ano passado, apenas R$2.2 bi foram gastos com a compra de imunizantes. Não fosse os esforços do Governo do Estado de São Paulo, a calamidade seria maior.
O descaso com a aquisição de vacinas está causando o prolongamento e ampliação da crise fiscal. Apenas para que se tenha a exata noção, o decreto que instituiu a calamidade pública do Coronavírus durou 288 dias. O custo fiscal diário da pandemia foi superior a R$1,8 bilhões. Com uma segunda onda ainda mais devastadora e possibilidade de uma terceira onda em 2021, o governo vai gastar, principalmente adquirindo vacinas, ou deixar o número de mortes ser a variável de ajuste, junto com a proliferação da pobreza e da fome? Este é o pior cenário possível para as contas públicas, primeiro porque o descontrole da pandemia no tempo vai exigir mais gastos por muito mais tempo, segundo porque isto leva a quarentenas intermitentes que derrubam a arrecadação. Ficaremos com a dívida e com os mortos.
Com isto, o ministro Paulo Guedes faz uma política “Keynesiana” um pouco constrangida, envergonhada e desconectada de objetivos claros. Este é o problema de servir o Governo sendo vinculado à ideologia. Vez ou outra a realidade cobra uma revisão intelectual dos nossos pressupostos. Max Weber previu o duro dilema do homem público que por vezes é posto diante da escolha entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção. Se o país vive uma situação de guerra e o aumento temporário de despesas públicas é uma realidade impositiva, que a convicção seja posta de lado e a responsabilidade seja assumida. Afinal, o que se espera do resultado final do gasto público? O Brasil terá evitado mortes com estes gastos? Terá evitado falências? Terá fortalecido o SUS? E o day after da pandemia? Como o governo está se organizando para quando a pandemia acabar?
*Benito Salomão é economista.
Fonte:
Demétrio Magnoli: Envelhecer antes de enriquecer
‘Três Anos de Desastres Naturais’ — foi assim que, cinicamente, o Estado maoísta batizou um dos maiores ciclos de fome registrados na história. Na China, entre 1959 e 1962, algo entre 15 e 55 milhões de pessoas morreram de fome. Os “Três Anos de Dificuldade”, na terminologia reinventada em 1981, configuraram o solitário período de declínio populacional desde a fundação da República Popular da China, em 1949. Agora, um tanto ressabiado, o regime chinês prepara-se para anunciar que o declínio populacional tornou-se o novo normal.
O Brasil, sob Bolsonaro, já não consegue realizar censo. A China completou em dezembro seu censo decenal — e descobriu, com alguma surpresa, que sua população não atingiu 1,4 bilhão. Na Grande Fome, a taxa de fertilidade desabou bruscamente de 6,4 filhos por mulher, em 1957, para 3,3, em 1961, antes de se recuperar. Hoje, é de 1,7, pouco menor que a dos EUA (1,8) e aproximando-se da taxa da União Europeia (1,55). A China é o singular exemplo histórico de país que envelheceu antes de enriquecer.
Excluindo eventos extremos, como a Grande Fome, as curvas de taxas de fertilidade comportam-se mais ou menos como imagens invertidas das curvas do PIB per capita. As famílias têm menos filhos à medida que aumentam os custos de criação e caem os incentivos para uniões precoces. Na China, porém, a regra foi rompida pela ação de um regime totalitário. O governo introduziu a política de dois filhos por casal em 1970 e, uma década depois, estabeleceu o objetivo do filho único. O impacto de longo prazo do antinatalismo radical evidencia-se na implosão demográfica em curso.
A taxa de fertilidade recuou de 5,7, em 1970, para, 1,6 em 2000. A curiosa pirâmide etária chinesa exibe uma contração acentuada na faixa de 35 a 44 anos: o vazio deixado pelo forte recuo da natalidade no decênio iniciado em 1975. As sanções destinadas a impor o filho único foram relaxadas desde meados da década de 1980, e, a partir de 2015, o regime passou a estimular as famílias a ter dois filhos. Pouco adiantou: o gênio do controle reprodutivo não voltará à garrafa.
Na Índia, a taxa de fertilidade ainda gira em torno de 2,2. Há pouco, projetava-se que a população indiana se tornaria a maior do mundo em 2026. Tudo indica que a ultrapassagem ocorrerá antes, mas isso é quase irrelevante. Por outro lado, os impactos da implosão demográfica chinesa não devem ser subestimados — e interessam ao mundo inteiro.
A expansão econômica da China baseou-se, desde 1980, na agregação de massas de trabalhadores ao sistema industrial. O envelhecimento demográfico já se tornou um fator limitante, provocando aumento no custo da força de trabalho. O PIB chinês, que crescia a taxas médias superiores a 10% entre 1992 e a crise financeira global de 2010, acomodou-se em torno de 6% às vésperas da pandemia. A China atual só pode seguir crescendo pela via de uma contínua escalada tecnológica. Isso exige conservar a rede de intercâmbios que a prende à economia global, um imperativo com óbvias repercussões geopolíticas.
A taxa de fertilidade da China é quase igual à dos EUA, mas seu PIB per capita situa-se anos-luz atrás (US$ 10,2 mil, contra US$ 65,3 mil). A idade média de chineses e americanos é quase igual (38,4 anos). A política antinatalista maoísta eliminou as antigas famílias numerosas que asseguravam a sobrevivência dos idosos. As reformas de mercado pós-maoístas tiraram dos trabalhadores urbanos as garantias de emprego, moradia e saúde chamadas de “tigela de arroz de ferro”. A Lei de Seguro Social, de 2011, criou o atual sistema previdenciário nacional, uma ficção burocrática ignorada pela maior parte das empresas.
A crise saltou ao palco político em 2014, quando os 40 mil operários de uma fábrica em Cantão descobriram que seus direitos previdenciários eram sonegados — e engajaram-se numa inédita greve de duas semanas, que iluminou os contornos do capitalismo selvagem chinês. EUA, Europa e Japão enfrentam o desafio de oferecer previdência a suas vastas populações idosas. A China encara um dilema similar muito antes de enriquecer.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/envelhecer-antes-de-enriquecer.html
Rodrigo Augusto Prando: O bolsonarismo na mira da CPI
Teve início, no Senado, a CPI que investigará as responsabilidades do Governo Federal, bem como de estados e municípios, no que tange à crise pandêmica que ora vivenciamos. Embora outros entes federativos possam ser trazidos à tona, não nos enganemos, pois, a comissão parlamentar de inquérito mira, sim, o bolsonarismo no bojo do Governo.
Há, neste sentido, um bolsonarismo militante – nas redes e nas ruas – e o bolsonarismo governamental, daqueles que, ideologicamente e nos valores, ocupam funções na estrutura estatal e imprimem, em suas falas e ações, facetas do presidencialismo de confrontação. Nos primeiros meses do mandato do presidente Jair Bolsonaro, após sucessivas declarações, principalmente, do próprio presidente, asseverei, alhures, que as vontades e suas realizações trazem consequências. A situação em tela: quase 400 mil mortos e uma CPI em funcionamento são, portanto, os resultados de uma escolha deliberada de Bolsonaro e seus ministros de alicerçar discursos e condutas sobre os pilares do negacionismo, do desprezo à ciência, das teorias da conspiração e das fake news.
A CPI, como se sabe, é instrumento político das minorias parlamentares e que objetivam desnudar determinadas responsabilidades, podendo estas serem, também, políticas, jurídicas, e até criminais. No conjunto dos senadores que compõem a comissão, o governo se encontra em minoria e, por isso, a situação já é, na largada, difícil. Manobras jurídicas tentaram impedir que Renan Calheiros fosse indicado como o relator, cuja posição é de suma importância dado ao fato de produzir o relatório final. No palco da CPI, os atores serão: o presidente eleito Omar Azis (PSD-AM), o vice-presidente Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e, na sequência, Azis indicou Renan Calheiros (MDB-AL) como relator. Há, ainda, os senadores Humberto Costa (PT-PE), Otto Alencar (PSD-BA), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Marcos Rogério (DEM-RO), Eduardo Braga (MDB-AM), Eduardo Girão (Podemos-CE), Ciro Nogueira (PP-PI) e Jorginho Mello (PL-SC).
Renan Calheiros é, na política, daqueles adversários que ninguém deseja. Um amigo e interlocutor frequente nos assuntos atinentes à política disse-me que “Renan é dos poucos que sabem fazer o mal com tanto carinho”. Na instalação da CPI, a fala de Calheiros foi dura. “Não foi o acaso ou o flagelo divino que nos trouxe a este quadro. Há responsáveis, há culpados, por ação, omissão, desídia ou incompetência e eles serão responsabilizados”, disse. E, ainda: “Os crimes contra a humanidade não prescrevem jamais […]. O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes. E eles devem ser punidos imediatamente e emblematicamente”. Se muitos políticos, metaforicamente, podem atirar para todos os lados, Renan é um atirador de elite, um sniper.
Senadores aliados do governo buscaram, no Supremo Tribunal Federal, barrar a função de Renan na relatoria da CPI. E isto indica que o senador alagoano é deveras temido pelo Planalto. Muito se comentou acerca de um relatório produzido pelo governo que, para antecipar sua defesa, destacou ações e omissões que nem mesmo se tinha aventado na CPI e, pior, foi este relatório ter vazado. Mas, para quem acompanha a cena política, lê os jornais e revistas e, ainda que panoramicamente, frequente as redes sociais, Bolsonaro, seus ministros, seus filhos, aliados políticos já produziram material fartamente registrado sobre praticamente todas as falas, entrevistas, lives e ações, desde março de 2020 até agora.
O ponto alto em toda a CPI é, sem dúvida, tirante o relatório final, as sessões com depoimentos aos parlamentares. E, neste caso, os parlamentares, dotados de retórica política, submetem os depoentes a um ambiente de tensão, enorme exposição e saraivada de perguntas e argumentações que podem produzir peças explosivas. Deem um microfone ao ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta, médico e político e, depois, ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Submetam os dois à pressão. Já conseguem imaginar o resultado? Coloquem cientistas e pesquisadores como, por exemplo, Natalia Pasternak, Atila Iamarino, Margareth Dalcolmo e Miguel Nicolelis de um lado e, do outro, Ernesto Araújo, Paulo Guedes, Carla Zambelli e Flavio Bolsonaro. É, por isso, que muito se afirma que todos sabem como começa uma CPI e nunca como ela termina.
O presidente Bolsonaro e o seu governo serão desgastados ao longo deste processo de investigação. O resultado, por enquanto, será difícil de prever, todavia, numa perspectiva de construção de cenários futuros, nenhum deles é favorável para o bolsonarismo. Acuado, Bolsonaro continua a atacar, ameaçar e menosprezar a CPI, chamando-a de “carnaval fora de época”. Felizmente, para o governo, não é carnaval e, por conta disso, não há o povo nas ruas. Dialeticamente, a pandemia que fragiliza o governo também o protege de protestos massivos.
*Rodrigo Augusto Prando é professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia, pela Unesp
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-bolsonarismo-na-mira-da-cpi/
Ricardo Antunes: 1º de Maio – O que comemorar?
Chegamos neste 1º de Maio de 2021 com o pior retrato de toda a história republicana. Nem durante a Primeira República vivenciamos uma situação tão trágica.
O desemprego hoje, segundo o IBGE, é de mais de 14 milhões. E, se a ele somarmos quase 6 milhões em desalento, ultrapassamos 20 milhões. Em fins de 2019, somávamos 17 milhões de desempregados e desalentados. Assim, é ilusório imaginar que tudo isso foi causado pela pandemia. A praga sanitária desnudou e exasperou uma realidade que vem se acumulando há tempos, mas se acentuou com Michel Temer e Jair Bolsonaro, com suas visíveis afinidades destrutivas.
O principal causador dessa devastação social se encontra na vigência de uma pragmática neoliberal perversa, que vem derrogando, um a um, a totalidade dos direitos sociais do trabalho. Flexibilização, terceirização, informalidade, negociado sobre o legislado, trabalho intermitente e uberizado, enfraquecimento dos sindicatos e da Justiça do Trabalho: foi este o cenário que a Covid-19 encontrou.
Outro exemplo emblemático: segundo o IBGE, no primeiro trimestre de 2020, constatou-se uma redução na taxa de informalidade quando comparada ao trimestre anterior, o que parecia positivo. Mas, ao contrário, essa constatação estampou outro vilipêndio, uma vez que houve aumento do desemprego dentro da informalidade. Nem isso o “Posto Ipiranga“ e seu chefe conseguiram impedir, aflorando mais um descalabro do desgoverno: o informal-desempregado. Para “comemorar” restou a explosão do desemprego, o “descobrimento” dos milhões de “invisíveis”, o aumento da fome e da miserabilidade, além do empobrecimento de amplos setores da classe média, que estão cada vez mais endividados e engrossando as fileiras dos sem-teto.
Mas é bom recordar que há quem esteja ganhando muito. As grandes plataformas digitais que se utilizam do trabalho intermitente e uberizado não param de crescer no tabuleiro do capital. Quanto mais “incluem” trabalhadores (que redenominaram “empreendedores” para excluí-los da legislação protetora do trabalho), maior é a intensidade do trabalho, mais longevas suas jornadas e menor a remuneração percebida. Os bancos, todos sabemos, seja na bonança ou na crise, garantem sempre o seu quinhão.
Como escrevi neste mesmo espaço (“De novo a Belíndia”; 24/10/16), naquele momento já estávamos caminhando para nos tornar uma nova Índia na América Latina, contando desemprego, informalidade, precarização e miséria aos muitos milhões, seguindo os passos do imenso país asiático
Será difícil, então, imaginar como irão sobreviver aqui os trabalhadores e as trabalhadoras, os negros e as negras, os indígenas, a juventude das periferias, os imigrantes etc.
Algum desavisado poderá afirmar: mas o governo algo fará!
Sua primeira ação já está definida: proibir o novo Censo Demográfico do IBGE. Com o apagão dos dados, pensa que será mais fácil esconder o tamanho do desastre social neste país tão desventurado. Será?
Tudo isso demonstra que, no Brasil de Bolsonaro, o 1º de Maio é um dia de luto. Mas é bom recordar que, historicamente, é também um dia de luta.
*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH/Unicamp); autor, entre outros, de ‘Os Sentidos do Trabalho’ (ed. Boitempo)
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/05/1o-de-maio-o-que-comemorar.shtml
Fernando Henrique Cardoso: Hora de decisão
Há períodos em que se necessita ter muita imaginação, ou o senso de dever aguçado, para cumprir compromissos. Pois bem, olhando em volta, e com minha escassa imaginação, só resta mesmo o senso do dever para escrever este artigo: o desânimo em volta acaba por inibir, se não a todos, a muitos de nós, brasileiros. Será que tal processo só acontece conosco, ou é a pandemia que tira da maioria – queiramos ou não – a vontade de falar, de escrever? Tenho dúvidas. Mas o fato é que o desânimo tolhe muito a imaginação: ao redor, mortes e enfermos; por enquanto há esperança de vencer mais este vírus. Mas escrever sobre política…
Francamente, com o governo atordoado e o povo desinteressado, pois o dia a dia consome as energias e boa parte da população deixa de lado tudo o que existe além do trabalho e da família, parece até estranho que alguém se disponha a conjecturar sobre o futuro ou sobre o mundo. Em meu caso, não fosse o “senso de responsabilidade” (herdado de pais e avós militares), preferiria “flanar”, como se dizia antigamente, a trabalhar sobre tais temas. Mas não há escolha: ao trabalho, portanto.
Para ver mais longe e não choramingar sobre o cotidiano local, convém pensar no positivo e no global. Apesar do encolhimento econômico, os que mais sabem parecem ver caminhos e, bem ou mal, a democracia se manteve onde ela resplandece. Nos Estados Unidos há um novo presidente, eleito pela maioria. Já isso é reconfortante.
Até que ponto a decisão americana nos atinge ou alcança? Por mais que acreditemos que nosso país é grande (somos mais de 200 milhões) e, afinal, a América Latina pesa para os Estados Unidos, é melhor não esquecer o ditado, como se diria em latim: modus in rebus. Ou, mais popularmente, devagar com o andor, pois o santo é de barro. O mais provável é que, descontando as boas palavras e as regras de convivência, como é do feitio diplomático, as mudanças no panorama americano não mudem muita coisa entre nós. E ainda bem.
No mundo internacional os interesses definem mais a ação do que a boa vontade ou mesmo os valores (salvo em casos extremos). Saudemos, pois, a mudança de governo por lá, porque o novo presidente pertence a um partido democrático. Mas paremos por aqui e cuidemos do nosso quintal.
Não sei se é correto falar em “nosso” quintal. O mundo está tão integrado economicamente e as influências cruzadas são tantas que é melhor ser prudente. De qualquer modo, a eventual insatisfação com o rumo das coisas por aqui não afeta os interesses maiores de lá, nem os de lá aqui. Se algo puder acontecer, deverá ser por vontade da maioria daqui mesmo.
Ou seja, o olhar panorâmico ajuda, mas a decisão dos rumos há de ser local. Convenhamos: as maiorias se formam e nem sempre seus resultados são os melhores. Mas quem julga? Na democracia, o eleitorado. E este, se não houver lideranças que abram seus olhos, pode resultar no que, ao ver de alguns, ou mesmo de muitos, seja a escolha de um mau caminho. Paciência. Como tenho escrito nesta página, melhor esperar novas eleições do que tumultuar o processo. À condição de que se preparem alternativas mais consistentes com nossos valores, aqueles em que acreditamos.
Escrevi “nossos valores”. Quais? Há alguns conflitantes e essa é a beleza do jogo democrático: não se sabe de antemão se a escolha foi boa, mas tem-se a certeza de que haverá chance de refazê-la. Desde que a maioria mude de opinião. Convém, portanto, não apenas aceitar resultados eleitorais, mas propor alternativas. É esta a fase em que estamos: os arreganhos de uns e outros deixam entrever que há vários caminhos. É hora para os candidatos se apresentarem e dizer o que propõem. E me refiro aos candidatos de diversos partidos. Além de que, como se sabe, há mais de um candidato em alguns partidos.
Que pelo menos se comprometam a respeitar o jogo democrático; se ocupem de defender nossos interesses, como povo e como cultura; e tenham a capacidade de decidir, qualidade que é indispensável nos regimes presidencialistas. Talvez esta seja a crítica mais geral que se possa fazer a quem ganhou as últimas eleições. Têm-se a impressão de que o eleito foi “uma família”, e não seu chefe. E que este às vezes se cerca mal. E talvez fique, em certos momentos, menor do que a cadeira que ocupa.
Se dentre os candidatos houver um ou dois capazes de cumprir esses requisitos, o barco retornará a andar. O País, nesse sentido, é mesmo grande: é só mostrar o rumo que ele caminha. Isso, se não serve de consolação, pelo menos explica como foi possível chegar aonde chegamos. Com muitas mazelas, é certo, mas caminhando para melhorar as condições de vida. Por enquanto, não de todos, mas talvez de boa parte. Está passando da hora de querer que seja pelo menos a condição de vida da maioria. E venha quem vier, se não enveredar pelo caminho do crescimento econômico e de mais renda para muitos, que encontre, se não a oposição – que seria salutar –, pelo menos o desprezo da maioria.
*Sociólogo, foi presidente da República
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,hora-de-decisao,70003700766
O Globo: ‘Tenho que lutar dez vezes mais do que pensei’, diz Guedes
Thiago Bronzatto,, Marcello Corrêa e Manoel Ventura, O Globo
BRASÍLIA — O ministro da Economia, Paulo Guedes, costuma medir em percentual o apoio de Jair Bolsonaro à agenda liberal. Nas eleições de 2018, era 100%. Depois, passou para 99% — e, aos poucos, essa taxa foi caindo. Até que, agora, está em 65%, embora nos momentos mais críticos o presidente tenha bancado o seu Posto Ipiranga no cargo.
Em entrevista ao GLOBO, Guedes reconhece que a aderência ao seu plano de trabalho em Brasília é menor que imaginava. “Estou tendo que lutar dez vezes mais do que eu pensei que fosse lutar”, afirma o ministro.
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Apesar disso, ele diz que não pensa em desistir. “Eu tenho um senso de responsabilidade muito grande”, afirma. E garante que não ficará só na defensiva — quer partir para o ataque com a sua equipe, colocando em prática medidas para reduzir o desemprego e a pobreza.
Guedes entrou na mira de senadores oposicionistas da CPI da Covid-19. Para ele, a comissão parlamentar de inquérito faz parte do jogo democrático, mas pode atrapalhar o andamento das reformas no Congresso.
Nesta entrevista, o ministro também antecipou medidas para incentivar a geração de empregos no país e criticou o questionamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da autonomia do Banco Central.
Como o senhor vê o andamento da agenda econômica?
Eu tinha três hipóteses quando eu vim para cá. Uma, que o presidente ia apoiar o programa de uma aliança de conservadores e liberais. O presidente ia apoiar o programa liberal na economia. O presidente mesmo brinca que já foi 99%, agora é 97%, ele fala. Aí eu brinco: “Não, presidente, o senhor está em 65%”. A segunda hipótese é que temos um Congresso reformista, que ia nos ajudar a fazer as reformas. E não era só o Congresso. É o Congresso, o Supremo e a mídia, que era a minha terceira
Fies: Guedes diz até filho de porteiro que zerou no vestibular entrou na faculdade
Como o seu trabalho se adapta a esse processo de reavaliação?
Na nossa democracia, eu continuo apostando. Eu só estou recalibrando. Eu tinha uma fé um pouco ingênua de que tudo seria muito mais rápido e de que as transformações seriam muito mais profundas. Eu estou só recalibrando tudo um pouquinho para baixo, mas sem mudar em nada a direção, a esperança. Só está me dando mais resiliência. Estou tendo que lutar dez vezes mais do que eu pensei que fosse lutar. Porque a aderência é um pouco menor do que eu pensei. Mas sem reclamação. É a democracia. Nas horas críticas, o presidente sempre nos apoiou. E o Congresso reformista tem nos ajudado também. Eu acredito na dinâmica de uma grande sociedade aberta.PUBLICIDADE
Mas por que a aderência é menor?
No capítulo um, o presidente está atento a dimensões políticas que arrefecem os impulsos de transformação. Você quer fazer uma transformação rápida, privatizar rapidamente. (Alguém diz) “Espera aí, tem um efeito político, uma reclamação aqui, outra ali”. Isso não é uma reclamação. É um reconhecimento de que quem manda é a política. E não é só o presidente. Eu, por exemplo, parti para uma reforma que teria capitalização na Previdência, e o Congresso disse “não”.
Por isso que eu atenuei um pouco o entusiasmo inicial. Porque tanto o presidente quanto o Congresso e a mídia vieram com menos ímpeto na direção das transformações. Aí o trabalho tem que ser muito maior para um resultado menor. Talvez essa seja a experiência de todo mundo que já passou pelo governo um dia. Quem está de fora olhando acha que tudo é mais simples.
Para o senhor, esse esforço vale a pena?
Sem falsa modéstia, eu sei que fui crucial em momentos decisivos. Eu tenho um senso de responsabilidade muito grande. Não só com a pessoa que confiou em mim, que foi o presidente. Mas principalmente com quem ele representa, que são 200 milhões de brasileiros. A nossa velocidade de resposta à crise, a nossa capacidade de fazer uma política econômica integrada, tudo isso só foi possível porque tinha esse comando único na economia.
O senso de responsabilidade e o compromisso com os brasileiros que estão lá fora são muito maiores que a preocupação de ficar bem na fotografia. É muito simples falar: “Não privatizaram duas ou três empresas, vou sair porque não estão me atendendo”. Como é que vai sair no meio de uma pandemia, com pessoas morrendo? Você está no meio de uma guerra e vai pensar: “Não estou bem na foto”?.
Não é razoável. Se tem gente que diz que eu fui avalista, tenho que ter um compromisso de entregar isso na próxima eleição do jeito que peguei. Eu peguei uma democracia e entregarei uma democracia. Peguei uma inflação alta e entregarei uma inflação mais baixa. Peguei o país crescendo 1% e o entregarei crescendo 3%. Peguei o país com 12 milhões de desempregados e o entregarei com dez. Temos que ter compromisso de melhorar o país.
Como o senhor recebe as críticas de que o seu plano não saiu do papel?
É um negacionismo dizer que não temos plano, que não estamos fazendo nada, que promete e não entrega. Isso dói. Isso é uma falta de reconhecimento ao trabalho, uma negação de coisas que são autoevidentes e empíricas. “Eles não fizeram”. Não fizeram o quê? A reforma da previdência? “Ah não, mas o Temer ia fazer”. Por que não fez? É uma negação dos nossos méritos. Nosso programa é reconhecido por todos e dizer que não o conhece é negacionismo ou uma desonestidade intelectual. Até as pedras sabem do nosso programa.
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O senhor perdeu os seus principais secretários. Por que houve mudanças em sua equipe?
Nós jogamos dois anos na defesa. Agora nós vamos para o ataque. Quais foram os dois anos na defesa? Controle na dinâmica de gastos do governo. Fizemos a reforma da Previdência, derrubamos a dívida/PIB e o déficit no primeiro ano. No primeiro ano de governo, o déficit primário era 2% do PIB e caiu pela metade. A dívida era 76,4% do PIB e caiu para 75,4%.
Não demos aumentos de salários por três anos e nenhum governo fez isso. Jogamos na defesa, travando as despesas. Depois de dois anos jogando assim, há desgastes naturais na equipe. O que aconteceu agora foi uma reavaliação do grupo, o que no setor privado acontece com uma frequência. Isso estava marcado para acontecer no início de 2020, mas a pandemia chegou. Nós não recuamos na nossa política e não nos retiramos de combate.
Nós podemos ser derrotados, mandados embora, aniquilados, vencidos. Mas não tem rendição. O lema do grupo é: “Não desistimos”. Então, se alguém desistir sai do grupo. O Salim (Mattar, ex-secretário de Desestatização) desistiu.
Há uma pressão política para recriar o Ministério do Planejamento?
Durante a campanha e logo depois da eleição do presidente, houve um esforço enorme para não deixar juntar os ministérios. Houve muito lobby contra a fusão dos ministérios, particularmente em relação ao Ministério da Indústria e Comércio. Agora, há, sim, algumas pressões para desmembrar.
Mas o presidente não conversa sobre isso comigo. Ele nunca conversou sério disso comigo. Ele só brinca. Fala: “Olha, você sabe que, volta e meia, tem pressão política aí para fazer isso”. Eu falo: “Eu sei, presidente”. Mas a nossa capacidade de implementar uma política consistente, como estamos fazendo, depende de estar junto. Se tiver comando duplo, triplo na economia, rapidamente vamos para a desorganização. Aí, você diz assim: “Bom, o Ministério do Planejamento não fez falta no Orçamento?”. Nenhuma.
E qual foi o problema do Orçamento?
O governo achou o eixo político de sustentação e começou a avançar. Aí veio o primeiro exercício de fazer o Orçamento juntos. Nesse exercício conjunto, o time mostrou seu desentrosamento. Eu falo que toda informação tem um sinal e um barulho. O barulho é que tem uma crise terrível, tremenda. A informação é que é o primeiro Orçamento elaborado por uma nova configuração política. É uma coalizão política tentando dar seus primeiros passos juntos. E isso está muito claro hoje. Alguns atores se excederam durante a elaboração do Orçamento.PUBLICIDADE
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O senhor disse que os chineses teriam ‘inventado’ o vírus da Covid-19. Essa declaração criou um ruído e o colocou no foco da CPI da Covid…
Criou. Desde o início do governo, falei que o Brasil ia dançar com todo mundo. Nunca houve movimento meu contra a China. Eu considero aquele comentário meu dentro de um contexto. Eu quis dar o exemplo de quando a economia de mercado é forte e robusta, ela consegue se adaptar em pouco menos de um ano e criar uma vacina ainda mais eficiente do que as vacinas produzidas na própria região que está muito mais habituada a esse tipo de doença. Aí desvirtuam tudo. Eu, aliás, tomei a CoronaVac.
Como o senhor vê a possibilidade de ser convocado pela CPI da Covid?
Eu fui nove vezes ao Congresso em tempo real durante a pandemia. Se me chamar, vai ser a décima vez. Eu quero elogiar a comissão mista (da Covid-19)do Congresso sob orientação do senador Confúcio Moura e do deputado Francisco Júnior. A CPI é parte do jogo democrático. Dito isso, usar isso que eu falei para confundir com CPI, eu acho um oportunismo. Quero fazer uma reflexão.
Estamos em meio à pandemia. Isso é equivalente a fazer um tribunal de guerra durante a guerra contra o vírus. Para mim, é inédito. Você acha que a classe política vai sair bem disso? Foi o que eu sempre falei: subir em cadáveres para fazer política numa hora dessas… Acho que a população brasileira não vai apreciar isso. Ela quer resolver o problema. Ela quer a preservação da vida e dos empregos.
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A investigação da CPI não é importante para corrigir os rumos das políticas públicas contra a pandemia?
Eu acho que levantar o tema, de que nós vamos fazer uma CPI, já estimularia a correção de rumos. Temos um desafio difícil pela frente: evitar que a politização da crise piore a gestão da crise. Vacinação em massa e reformas é o ganha-ganha. Acho que precisa desse equilíbrio: de um lado, vamos fazer a CPI que eles acharem que é oportuno fazer, mas, por outro, não paralisem as reformas.
Temos nos próximos 90 dias as reformas administrativa e tributária e os marcos regulatórios para destravar os investimentos. Quer fazer a agenda de CPI, pense que estamos no meio de uma pandemia. Faça, mas com alguma moderação para não desorganizar tudo. Tanto as medalhas quanto as avaliações nos tribunais de guerra são feitas logo após a guerra.
De que maneira o atraso da vacinação em massa penalizou a retomada do crescimento econômico?
É claro que durante uma guerra há falhas. Nós, por exemplo, lançamos um programa de crédito no início que não funcionou bem.
A autonomia do Banco Central, já aprovada, está sendo questionada no STF por PT e PSOL e até mesmo pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Como o senhor vê isso?
Acho que merece um alerta muito sério. Estamos dessincronizando o ciclo político da gestão monetária. Há muitas acusações a governos passados que usaram o Banco Central para reeleição. Você vê a ironia. Quando você faz uma política de Estado, vem a própria oposição, o PT, e questiona a política de Estado. Eu não vou questionar a PGR. Com Justiça, a gente não fala nada, só olha. Mas eu acho que merece uma profunda reflexão. Quando há aumentos setoriais e transitórios de preços, como que impede que se transformem em alta generalizada de preços? É justamente um Banco Central independente.
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O governo pretende ampliar o Bolsa Família, mas ainda há o desafio dos trabalhadores informais. Qual é o plano para lidar com o desemprego e o aumento da pobreza?
A primeira coisa é a vacinação em massa. A segunda medida estamos chamando de Bônus de Inclusão Produtiva (BIP). Da mesma forma que se dá R$ 200 para uma pessoa que está inabilitada receber o Bolsa Família, por que não poderia dar R$ 200 ou R$ 300 para um jovem nem-nem? Ele nem é estudante nem tem emprego. Ou seja, é um dos invisíveis.
Agora, esse jovem vai ter que bater ponto e vai ser treinado para o mercado de trabalho. Ele vai ser servente de pedreiro, mecânico… É uma oportunidade. Ele é a vítima da nossa legislação trabalhista. Quando você bota lá o salário mínimo, um rapaz filho de uma classe média, que estudou em uma boa universidade, fala duas línguas, ele consegue emprego com salário mínimo.
Qual seria a contrapartida da empresa?
Zero. Ajuda o Brasil, treina o menino. Estamos estudando. Isso deve vir rápido para esse segmento dos invisíveis. Temos que erradicar a miséria. A grande lição do ano passado foi que, com o dinheiro que vai direto para quem precisa, tivemos a maior redução de pobreza em 40 anos. Essa lição não pode ser esquecida. Vamos ter que reforçar o Bolsa Família e criar os programas de inclusão produtiva.
O maior exemplo de compromisso com a saúde é que eu falei que tem que criar voucher. Acho natural que, com as novas tecnologias, as pessoas queiram viver 100 anos. O grande desafio é como ajudaremos nesse sentido as camadas mais frágeis. Por que um sujeito rico se interna no (hospital) Albert Einstein e o pobre tem que ficar numa fila do SUS durante dez dias? Se o pobre tiver um voucher e não tiver vaga no SUS, ele vai na rede privada. São soluções privadas efetivas para problemas públicos gravíssimos.
O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, determinou a realização do Censo pelo IBGE. Como o senhor vai responder a isso?
O nosso Orçamento enviado ao Congresso tinha previsão dos recursos para o Censo. O Congresso, acredito que pensando na pandemia, e não nas verbas, deve ter achado sensato tirar (do Orçamento). Se fizemos a previsão é porque sabemos a importância de ter o Censo para orientar políticas públicas. E esperamos agora, depois da decisão do ministro Marco Aurélio, a orientação da Advocacia-Geral da União (AGU). Imagino que o Congresso tenha visto o Censo como elemento de risco para a pandemia. Mandar um pesquisador de casa em casa para fazer perguntas pode criar um agente de transmissão do vírus.
Fonte:
O Globo
Merval Pereira: Histórias exemplares
Nesses depoimentos, o que mais se ouve são duas palavras: liderança e governança. O comentário é de José Augusto Coelho Fernandes, pesquisador que conduz as trinta entrevistas com formuladores e gestores de políticas públicas que compõem a série de podcasts sobre a “arte da política econômica no Brasil”, a ser lançada na próxima semana pelo IEPE/ Casa das Garças, um dos principais think tanks do país.
Na série, temos depoimentos importantes que podem ser usados para comparação com o que está sendo feito no atual momento. A negociação incessante com o Congresso, no lançamento do Plano Real, e a atuação em equipe com autonomia na crise energética de 2001, são exemplares.
Atores importantes da cena econômica nos anos recentes, Maílson da Nóbrega, Edmar Bacha, Pérsio Arida e Gustavo Franco abrem o primeiro mês da série, com relatos sobre os anos de aprendizado dos planos e reformas, com o fim da conta movimento entre Banco do Brasil e Banco Central, a criação da Secretaria do Tesouro, até desembocar no Plano Real, suas reformas econômicas e privatização, regime de metas de inflação e câmbio flutuante.
No desenrolar da série, ouvem-se relatos sobre gestão de crises, desafios de governança, construção e desenho de instituições. A série se encerra com o depoimento do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. Inaugurando a série específica sobre o Plano Real, o economista Edmar Bacha, presidente da Casa das Garças e membro da Academia Brasileira de Letras destaca o papel do Departamento de Economia da PUC RIO nas discussões sobre as causas da inflação e as políticas para o seu controle, o aprendizado com as experiências fracassadas de estabilização no Brasil e no mundo, como o Plano Cruzado.
O Plano Real foi produto de muitas discussões acadêmicas que desaguaram num conjunto de etapas que se inicia pela consolidação fiscal e termina com o lançamento da nova moeda, o Real. No caminho, um plano intensivo em negociações com o Congresso, principalmente para a aprovação das medidas de transição para a nova moeda e a criação do fundo social de emergência.
A tarefa ficou a cargo de Bacha, que era chamado de “senador” pelos companheiros de equipe, a tal ponto chegou sua dedicação. Ele diz que o grande trunfo negociador esteve na oferta de um produto de alta demanda da população – a inflação baixa- e, na expectativa dos efeitos desse novo ambiente sobre o crescimento do salário real e a popularidade dos políticos que o apoiavam.
Engenheiro eletrônico e ex-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Pedro Parente relata a sua experiência na administração pública brasileira, especialmente na crise de energia em 2001, que ele admite ter acontecido por desconhecimento do governo da complexidade do sistema hidroelétrico brasileiro.
O conhecimento da real situação teve impacto sobre as expectativas, queda de popularidade do governo e gerou forte preocupação na sociedade. A primeira percepção é que a reação exigia uma coordenação geral, que ficou a cargo de Parente, visto que não se tratava apenas de um contratempo no Ministério de Minas e Energia, e sim de um fato com impacto geral na economia e sociedade.
A mesma percepção não teve o governo Bolsonaro, embora estivesse mais bem informado sobre as consequências da pandemia da COVID-19. Nos debates, ficou demonstrada a importância da autonomia, já que sem ela não se poderia resolver o problema. Em segundo, era preciso ter poder, ou seja, as propostas seriam terminativas, de modo que não sofressem o processo de análise comum no governo.
Por fim, propunha-se a criação de uma câmara de gestão da crise, a qual viria a ser importante no processo de comunicação com a sociedade. A ideia era, sob a gestão de Parente, reunir representantes dos órgãos federais que tivessem relevância no assunto, como do Ministério da Fazenda e do Planejamento, da ANEEL e da ONS. Convocou-se também o professor e consultor empresarial Vicente Falconi, bem como Mauro Arce, secretário de energia de São Paulo. A decisão inicial foi a de o governo assumir a responsabilidade da falha e, a partir dessa medida, buscar, a todo custo, a transparência e disponibilidade diária para responder às indagações da imprensa sobre a crise de energia.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/historias-exemplares.html
Vinicius Torres Freire: Paulo Guedes não sabe o que diz sobre saúde, pobres e não sabe o que faz
“Pobre? Está doente? Dá um voucher para ele. Quer ir no Einstein? Vai no Einstein. Quer ir no SUS, pode usar seu voucher onde quiser”, disse Paulo Guedes em seu mais recente surto de ignorância e horror a pobre.
Estritamente falando, um voucher é um vale, como um vale-refeição. No desvario de Guedes, “um pobre” receberia um vale-saúde para se tratar onde quisesse, no SUS ou no Einstein, um dos grandes e excelentes hospitais privados de São Paulo. Nem Guedes deve acreditar estritamente nessa idiotice. Mas argumente-se por absurdo e a favor do ministro.
O setor público gasta por ano 3,9% do PIB em saúde (na média trienal até 2017, do IBGE, ou até 2018, da OMS). Equivale a uns R$ 1.380 por pessoa, R$ 115 por mês. Dá para pagar um plano de saúde dos mais baratos, sem contar coparticipação, com serviço inferior ao do SUS. Daria um pouco mais por pessoa caso o dinheiro todo fosse reservado para quem ora não tem plano de saúde (71,5% da população, segundo o IBGE).
O vale-plano-de-saúde não daria para escolher o Einstein, ocioso ressaltar, nem o SUS. Não haveria mais SUS. O dinheiro da saúde pública teria sido confiscado pelo vale-guedes. Não haveria mais serviço público de vacina, de emergência (ambulância, PS), remédio, exame, nada. Se o seu plano baratinho não cobrisse certos tratamentos ou se você se arrebentasse em um local descoberto (quase todos), que você pagasse ou morresse.
Obviamente esse argumento é louco, simplificação da mais grosseira. Serve apenas para sugerir que a coisa não funciona assim, aqui ou alhures.
O gasto em saúde no Brasil já é majoritariamente privado (famílias, empresas, filantropia): 58% do total. Não é assim na Argentina (38%) ou no México (48,7%), menos ainda é o caso de França (27%), Reino Unido (21%) ou Alemanha (22%) e nem mesmo o do Chile (49,7%) e o dos EUA (49,6%). Na mão de um Guedes da vida (ou da morte) iremos na direção dos EUA, que tem um dos gastos em saúde mais ineficientes da OCDE (clube de três dúzias de países ricos).
Mas, afora para ricos, e olhe lá, o SUS é o recurso de primeira ou última instância, que banca tratamentos que muito plano não cobre, por falta de dinheiro ou competência. O SUS é uma rara preciosidade nacional, com problemas de administração, sim, mas não é conversa para o bico de Guedes.A discussão não cabe em poucas colunas de jornal. A comparação entre sistemas nacionais de saúde, muito diversos, é complexa. Existem vários esquemas de financiamento público, com serviços quase todos prestados pelo setor privado, mas inteiramente pagos e vigiados pelo governo (Canadá), ou como o SUS original, estatal, do Reino Unido. Em geral, voucher, no sentido estrito, é alternativa parcial onde o sistema de saúde é tão precário que se dá um vale aos muito pobres de país muito pobre, naÁfrica ou na América Central.
O problema aqui é Guedes e seu mundo de caricaturas reacionárias. Não trata de assuntos de modo técnico: adora dar aulas magnas genéricas baseadas em suas fantasias liberalóides apodrecidas. Não propõe políticas públicas específicas e fundamentadas, com planos e apoio político para implementá-las.
Vive de tiradas, truques com os quais pensa engambelar o Congresso e mentiras lunáticas (trilhão de privatização, 44 milhões de testes de Covid, déficit público zero em um ano etc.). Adora velhos mitos extremistas da direita americana e tem saudade do Chile de Pinochet.
Essa barbaridade guedista, variação pedante do bolsonarismo dá mais pano para a manga. Vamos voltar a tratar disso.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Janio de Freitas: Piora nos índices sociais vai se acelerar em número e desumanidade
Jair Bolsonaro quer mais cortes em gastos sociais previstos no Orçamento para este ano. As mutilações já feitas foram brutais, mas Bolsonaro quer mais alguns bilhões para o que se mostra no governo como o segundo gasto na ordem de nobreza: a compra de parlamentares com a liberação de bilhões para suas propostas de obras, que são catapultas eleitorais. O único gasto mais nobre no Planalto é o dos militares, cujo montante inicial perdeu apenas 3%.
As reduções são o oposto do requerido pelo forte agravamento das condições de sobrevida da maioria dos brasileiros. A retenção por mais de três meses do também mutilado auxílio emergencial anulou o alívio trazido pelas parcelas do ano passado, concedidas pelo Congresso.
A fome aumenta, e se espraia mais. Qualquer oferta de alimento atrai filas enormes, e as coletas de doações recebem ainda quantidade ínfima para a necessidade crescente. A maioria não tem disponibilidades para ser solidária.
Aos que a têm, o que falta, historicamente, é o próprio sentido de solidariedade, até de humanidade mesmo. Fosse diferente, já veríamos, há tempos, forte movimento de socorro aos que têm fome.
Na chegada de Bolsonaro ao poder, considerava-se, com provável otimismo, haver em torno de 24 milhões de brasileiros vivendo com menos de R$ 246 por mês: R$ 8 por dia. Passados dois anos, a FGV e dados do IBGE indicam o aumento desse contingente para 35 milhões de pessoas.
Não só os já habitantes da pobreza descem à miséria mais miserável. O título de reportagem de Fernando Canzian para a Folha sintetiza o que se passa nos intermediários: “Fenômeno dos anos Lula, classe C afunda e cai na miséria”. Eloquência justificada por mais de 30 milhões que “estão despencando diretamente da classe C para a miséria”.A pandemia não é causa única da derrocada social. Desde seu primeiro momento, o governo investiu contra os programas sociais, sem exceção, e os manteve na precariedade quando o vírus se anunciou,se propagou e se impôs.
Nem a mínima atenção foi dada à necessidade de se buscarem modos de atenuar os efeitos socioeconômicos da pandemia. E, em paralelo, fosse preparada a defesa da população com a compra de vacinas, campanhas instrutivas, orientação para as alternativas empresariais e gerais.
Nada disso, era só uma “gripezinha”, a cloroquina a eliminaria. A vaguidão de Paulo Guedes, com os pés no ministério e a cabeça na Bolsa, e o desvario de Bolsonaro associaram-se ao vírus.
Passamos de 400 mil mortes. Esse morticínio atordoa, as crianças e famílias que caem no desamparo, se desorganizam, também perdem a vida por outra que começa e só podem temer.
O vírus não é o causador único dessa imensa desgraça coletiva. Tanto que maio e junho são esperados por cientistas como ainda mais calamitosos no Brasil. E explicam: por decorrência da baixa vacinação até aqui, da falta de vacinas porque o governo chegou tarde, desacreditado e arrogantemente suspeito ao balcão mundial dos imunizantes.Logo, os passos degradantes na escala socioeconômica, mais do que continuar, vão se acelerar em número e em desumanidade. Nenhuma resposta lúcida pode ser esperada do governo que pretendeaté cortar mais gastos sociais.
Se a sociedade, por sua vez, é inerte por preguiça moral maciça ou indolência cultural incapacitante, a alienação é a mesma e mesma a consequência. Então, lamento, o que há a dizer é isto: a perspectiva de futuro próximo é péssima —talvez seja o que nossa paralisia mereça.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Dorrit Harazim: Joe, Jair e Modi
Esta semana Joseph Robinette Biden Jr. trocou de roupa e de imagem oficial. Sai de cena “Uncle Joe”, a grife caseira do democrata conciliador, afável e algo distraído por ele cultivada ao longo de 4 décadas de vida pública. Esta semana Joe Biden se apresentou perante o Congresso com nova roupagem — a do arrojado visionário 46º presidente dos Estados Unidos — e detalhou como pretende reformatar já no presente a vida da nação sob seu comando. Também descreveu os planos, metas e projetos com que planeja moldar o futuro das gerações seguintes, sem esquivar-se de alocar cifras concretas a cada item do pacotão. Se aprovada na totalidade pelo Senado, o que é pouco provável, sua agenda de resgate da economia, força de trabalho e seguridade familiar custará astronômicos US$ 4,1 trilhões. Mas, mesmo que venha a ser fatiada, a visão de Biden sobre o papel do Estado ficou clara: o Estado deve funcionar como zelador da infraestrutura humana e do bem-estar social. Soou quase revolucionário e revela quanto o mundo está carente de bom senso.
A surpresa com esse Biden arrojado se justifica, uma vez que, durante a campanha eleitoral, ele se apresentara como mero homem de transição capaz de aquietar o país tarja preta que sobrevivera a Donald Trump. Uma vez sentado no Salão Oval, porém, o mandatário de 78 anos e alguns lapsos já fez saber que não exclui tentar a reeleição dentro de quatro anos. Sai de cena o gestor conciliador, como Biden foi retratado enquanto candidato, para dar lugar a quem pretende ser lembrado como líder mundial transformador. Para tanto, mantém algumas características pétreas — é disciplinado, metódico e prefere ficar abaixo do radar para não escorregar.
Na verdade, por mais que Biden queira envergar simultaneamente o manto do New Deal de Franklin D. Roosevelt, da Grande Sociedade de Lyndon Johnson, importar algumas ideias de Barack Obama e outras mais arretadas de Bernie Sanders, bastará que consiga liderar a urgente arrancada ambiental para fazer um governo de dimensão histórica. Sem isso, o restante de sua visão para uma sociedade menos desigual, de maior justiça racial, econômica e jurídica ficará embaçada. Sem isso, até mesmo a espetacular invertida que imprimiu ao combate e controle da Covid-19 nos EUA, por meio de uma vacinação maciça e ordenada, acabará parecendo natural à medida que a vida por lá retomar alguma normalidade. O vírus pode até ressuscitar em novas ondas, mas nada roubará de Biden a gratidão nacional pela tranquilidade vacinal que injetou no país.
Enquanto isso, Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, terão, para sempre, seus nomes e sobrenomes vinculados ao epíteto Covid-19. Ambos se condenaram à morte política e à desgraça histórica por abandonar suas gentes a morrer sem oxigênio. Abatidos feito moscas, aos montes, milhares, centenas de milhares, mal enterrados ou incinerados em piras humanas, pranteados no medo e em silêncio. Na capital indiana, as autoridades florestais tiveram de emitir uma autorização especial para o abate de árvores, pois a lenha dos crematórios acabara. A ativista política e escritora Arundhati Roy publicou no “Guardian” um testemunho pungente da desolação que tomou conta do país. “No lugar mais baixo da mercadagem pela vida”, escreveu Roy, “você suborna o atendente para poder jogar um derradeiro olhar sobre o embrulho que foi sua pessoa amada, agora estocado na morgue hospitalar”. Há quem venda terras ou propriedades, ou junte as últimas rúpias em busca de atendimento em hospital privado — sem garantia de internação, apenas como depósito.
No último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, quando Europa e Estados Unidos mergulhavam na segunda mortandade da pandemia, o líder indiano não expressou nenhum sentimento, empatia ou compreensão com a aflição de seus pares. Ao contrário, arrostou soberba. “Amigos”, discursou na ocasião, “convém não comparar a Índia a qualquer outra nação… Abrigamos 18% da população mundial e salvamos a Humanidade de um imenso desastre, pois conseguimos conter o vírus”. Como se sabe, o país, hoje, mais se assemelha a um inferno de 1,4 bilhão de almas errantes, largadas à própria sorte.
No cômputo dos crimes cometidos por mandatários contra seus povos, será difícil elencar a quem ficará reservado o opróbio maior da era Covid-19 — se a Jair Bolsonaro ou Narendra Modi. Por serem filhos de culturas tão diversas, também suas respectivas formas de desprezo pelo bem comum, a índole autoritária, a ignorância, as medidas repressivas, o escárnio pelo outro, se manifestam de formas díspares. Porém ambos comungam da mesma incapacidade de compreender o que aprendemos a chamar de civilização, felicidade, progresso, humanidade.
Não defendem a vida, qualquer espécie de vida, de quem não lhes seja de imediata utilidade. A Covid-19 apenas serviu de oportunidade para isso ficar claro.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/joe-jair-e-modi.html