Economia

Pedro Fernando Nery: Salário dos militares do governo pode chegar a R$ 80 mil com teto duplex

Militares não se aposentam. Foi assim que sempre argumentaram as Forças Armadas para se livrar da equiparação das regras previdenciárias com civis.

Militares se aposentam: e os ministros militares do governo são aposentados. É o que buscou a Defesa para se livrar do limite remuneratório (conhecido como teto). Argumenta-se que esses generais devem poder receber acima do limite/teto acumulando “aposentadoria” e o salário de ministro.

Estariam, assim, incluídos nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União (TCU) que permitem – excepcionalmente nesses casos – que o teto remuneratório seja dobrado, aplicado separadamente a cada um dos pagamentos, e não à soma deles (aposentadoria+salário).

Deixa de valer, assim, o limite de R$ 39,2 mil, o salário de ministros do Supremo que é a remuneração máxima no serviço público. Com a dobra do limite feita, o chamado “teto duplex” iria para quase R$ 80 mil. É 70 vezes o soldo dos recrutas. A mudança decorre de uma portaria do Ministério da Economia (que, aliás, não diz como vai pagar, violando a Lei de Responsabilidade Fiscal).

Militares da reserva com cargos no governo serão beneficiados, porque até então o acúmulo de salário e aposentadoria esbarrava no teto. Agora, o limite será o teto dobrado. Haverá aumentos para o presidente, mas principalmente para os generais. Segundo jornais, o vice Mourão receberia mais de R$ 63 mil mensais a partir de agora, os ministros Braga Netto, da Defesa, R$ 62 mil; Heleno, da Segurança Institucional, R$ 63 mil; e Ramos, da Casa Civil, R$ 66 mil.

A alegação para a portaria seria o cumprimento de uma decisão do STF, que permitiu que o limite remuneratório de R$ 39,2 mil seja observado separadamente para aposentadoria e para salário. Seria, assim, um limite para cada vínculo. Mas militar na reserva perde o vínculo?

A Constituição prevê que a aposentadoria afasta o vínculo com o empregador, seja na iniciativa privada ou no governo. Só que militares sempre justificaram que não se aposentam, que há apenas uma “transferência para a reserva remunerada”, que seguem à disposição do Estado e que podem ser convocados.

O TCU também havia decidido em anos recentes que, “na hipótese de acumulação de aposentadoria com a remuneração decorrente de cargo em comissão, considera-se, para fins de incidência do teto constitucional, cada rendimento isoladamente”. A expressão usada é aposentadoria, o que não se aplicaria aos generais.

Mesmo no STF, a discussão no julgamento da questão não parece ter levado em conta os militares. Por exemplo, o ministro Lewandowski, para quem o teto de R$ 39,2 mil sobre aposentadoria+salário violaria a dignidade da pessoa humana, observou que a aposentadoria é contraprestação por décadas de contribuição.

Mas militares não contribuem para a transferência para a reserva (ou “aposentadoria”), porque esta não seria um benefício (já que ainda estão à disposição etc.). Não é exagero do colunista: nenhum dos generais na reserva contribuiu sequer com um centavo em qualquer mês da carreira militar para o que agora querem considerar uma aposentadoria.

O argumento de que militar não se aposenta foi usado historicamente para evitar a imposição de idades mínimas para aposentadoria (90% sai da ativa com menos de 55 anos, 50% antes de 49), de contribuições de aposentados (como no serviço público civil) e de cálculo de aposentadoria com base na média salarial (como no INSS). Militares ainda têm a integralidade: vão para a reserva com 100% do maior salário. “Os militares nunca tiveram e não têm um regime previdenciário” escreveu Mourão em 2017 no texto “Por que os militares não devem estar na reforma da Previdência?”. O vice prometeu doar o dinheiro.

Agora, para pegar carona nas decisões do TCU e do STF autorizando o limite duplo para aposentados que recebem salário, o governo editou portaria estendendo o limite duplo para “militares na reserva”. As decisões não trataram desses casos, que exigiriam uma emenda à Constituição – já que é controverso o status dos militares da reserva. Qual o limite dos generais?

*Doutor em economia

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,salario-dos-militares-do-governo-pode-chegar-a-r-80-mil-com-teto-duplex,70003718273

 


‘Quem mais vai perder é o povo pobre’, diz ex-presidente do IBGE sobre atraso do Censo

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Ex-diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o economista Sergio Besserman critica a suspensão do Censo nacional e relaciona essa medida com o que chama de “negacionismo do atual governo”. Ele publicou sua análise na revista mensal Política Democrática Online de maio (edição 31).

Produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Cidadania, a publicação disponibiliza todos os seus conteúdos, gratuitamente, para os internautas, no portal da entidade.

Veja a versão flip da 31ª edição da Política Democrática Online: maio de 2021

Na última sexta-feira (14/5), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por maioria de votos, que o governo federal está obrigado a tomar as medidas necessárias para realizar o Censo Demográfico no ano que vem. “O Brasil já vive sob apagão estatístico há bastante tempo”, observa Besserman. “Quem mais vai perder é o povo pobre”, alerta, sobre a demora do censo.

Em seu artigo publicado na revista mensal da FAP, o economista lembra que a Comissão de Estatística da Organização das Nações Unidas recomenda o Censo decenal, de preferência, nos anos de final zero. “O objetivo é comparar todos os censos entre si. Países que têm registros administrativos ruins, segundo a ONU, devem realizar, como melhor prática estatística, um minicenso entre os dois censos decenais”, diz.

No Brasil, conforme ele explica, o censo era chamado de “contagem populacional”, mas o levantamento também fazia outras perguntas. “Por razões de economia fiscal, não fazemos esse censo intermediário desde os anos 90. Os registros administrativos brasileiros são ruins”, analisa. Ele também é coordenador estratégico do Climate Reality Project no Brasil.

http://fundacaoastrojildo.com.br/revista-pd31/

No governo federal, de acordo com o autor do artigo, há alguns poucos melhores, como o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, e dados relacionados ao Sistema Único de Saúde (SUS). “Mas a maior parte é inexistente ou ruim. Nos estados e municípios, a mesma coisa”, lamenta, na revista Política Democrática Online.

Segundo Besserman, a decisão de suspender o censo sem sequer anunciar, imediatamente, quando ele será realizado, “foi pautada pelo negacionismo do atual governo, seu desprezo pela informação e pelo conhecimento”. “Vamos perder muito mais dinheiro com esse adiamento do que aquilo o que será economizado”, salienta.

Veja todos os autores da 31ª edição da revista Política Democrática Online

Muitos países, como Canadá e Estados Unidos, aplicam o Censo a distância – seja pela internet seja pelos correios. O economista diz que a combinação do censo presencial com melhorias nas informações de registros administrativos e a conexão desses tipos de metodologias remotas deve ser prioridade, e o IBGE está trilhando esse caminho com excelência, como sempre.

“Afinal, a tecnologia existe e pode muito bem ser integrada com o trabalho dos recenseadores, que serão sempre importantíssimos em um país tão desigual e de proporções continentais como o Brasil”, assevera.

A íntegra da análise de Besserman está disponível, no portal da FAP, para leitura na versão flip da revista Política Democrática Online, que também tem artigos sobre política, economia, tecnologia e cultura.

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.Leia também:

Abolição não significa libertação do homem negro, diz historiador e documentarista

Santos Cruz: ‘Instituições não aceitarão ações aventureiras do governante’

Clique aqui e veja todas as edições anteriores da revista Política Democrática Online

Fonte:


Monica de Bolle: Biden brasileiro?

Nas últimas semanas tenho escrito sobre o que ocorre nos Estados Unidos sob a liderança de Joe Biden. Para quem vive aqui, vê e sente as mudanças, inclusive no cotidiano, a transformação é extraordinária. Em poucos meses, os Estados Unidos deixaram de ser o país com a pandemia mais descontrolada no mundo para estar entre aqueles que, em breve, deixarão para trás os piores temores em relação à saúde pública e à economia. Alguns estados já atingiram a marca de mais de 70% de vacinados com ao menos uma dose dos imunizantes em uso; outros logo alcançarão esse patamar. Em Washington D.C., há uma sensação palpável de alívio: escolas estão reabrindo, as restrições mais duras estão sendo gradualmente removidas, as pessoas sentem que podem voltar a viver. É claro que há hesitação vacinal, um dos motivos que explica a falácia de se pensar em imunidade de rebanho. Mas, apesar desse grupo, em poucos meses o país estará em condições de deixar para trás o pior da pandemia.

Além de ter conseguido entregar esse resultado no tempo prometido, o governo Biden também montou uma agenda notável de reconstrução da economia e do investimento no país. Como expliquei em artigos anteriores, a agenda Biden não rompe com o passado dos EUA, com a tradição do envolvimento do Estado no desenvolvimento de longo prazo do país. Ao contrário, os planos anunciados e parcialmente aprovados resgatam essa tradição, com a novidade de orientá-la para as pessoas, sobretudo as mais pobres e vulneráveis. Como também já escrevi por aqui, não tem sentido afirmar que, por isso, Biden se tornou um radical de esquerda. Na coluna publicada na edição passada apresentei uma reflexão sobre como Biden está reposicionando as disputas políticas em uma democracia madura e fazendo algo que poucos no Brasil conseguem compreender: removendo o protagonismo da economia como definidora do que é ou não democrático e entregando esse papel novamente à política. Enquanto Biden articula sua agenda reconhecendo os conflitos como centrais para o bom funcionamento de qualquer democracia, o partido Republicano se aproxima rapidamente de uma fratura possivelmente irreversível. A expulsão da deputada Liz Cheney — ferrenha opositora de Trump e filha do ex-presidente Dick Cheney — da posição de liderança e prestígio que teve no partido revela aquilo que já se sabia: Trump foi um golpe de misericórdia para os Republicanos.

Em 2022, haverá eleições legislativas. Com o Partido Republicano rachado e a agenda de Biden a pleno vapor, para não falar do sucesso no controle da pandemia e de todas as suas repercussões — notavelmente, a recuperação econômica —, o campo parece aberto aos democratas. Ainda que existam desavenças intrapartidárias sobre várias questões, elas em nada se comparam à crise existencial dos republicanos. E aí está a razão de ser de Biden ter se tornado o 46º presidente americano: as fraturas, o desarranjo, os desmandos de quatro anos de Trump. Mas Trump não é comparável a Bolsonaro, a não ser de forma extremamente superficial. O dano que causou ao Partido Republicano não tem equivalente no sistema político brasileiro. As origens das disputas entre republicanos de diferentes linhagens e democratas não tem paralelos no Brasil.

Não há um “Biden brasileiro”. Insistir nesse raciocínio, com a apresentação de nomes supostamente mais centristas à direita, à esquerda e mesmo ao que, no Brasil, entende-se por centro é uma perda de tempo tremenda.

Esse tempo deveria estar sendo empregado para buscar soluções imediatas, de médio e de longo prazo para um país destroçado.

De acordo com as pesquisas de opinião, Bolsonaro se mantém com cerca de 40% de aprovação. Nas disputas simuladas com outros candidatos presumidos, Bolsonaro mantém a liderança. A exceção? A exceção é aquilo que parte do Brasil se recusa a reconhecer: Lula. Lula, goste-se ou não, não é Bolsonaro. Podem ser polos opostos, porque Lula não é Bolsonaro, e por isso mesmo não se equivalem: insistir em sua equivalência é uma fantasia besta, outra perda de tempo. Por outro lado, se foi o antilulismo que pariu o bolsonarismo, não deixa de ser interessante que a única via que se apresenta como viável hoje seja o caminho contrário.

Antes que cause terror e espanto entre os leitores, explico: o que escrevi é mera constatação daquilo que vejo com o benefício da distância. Não é apoio ou rejeição. É tão somente uma tentativa de eliminar as fantasias que impedem que se veja com clareza em que o Brasil se transformou. Biden brasileiro? Balela.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins

Fonte:

Época

https://epoca.globo.com/monica-de-bolle/biden-brasileiro-1-25016297


RPD || Orlando Thomé Cordeiro: Não temos tempo a perder!

No mês passado, ultrapassamos o número de 400 mil mortes na pandemia. Desse total, mais da metade foi no primeiro quadrimestre de 2021. Uma tragédia que, certamente, poderia ser minimizada não fora a combinação de negacionismo e incompetência do governo Bolsonaro. 

Também em abril, dia 27, tivemos a instalação da CPI no Senado com a participação de 18 parlamentares, sendo 11 titulares e 7 suplentes. Apesar de todas as tentativas o governo federal, a presidência e a relatoria ficaram com o grupo formado pela oposição que promete trabalhar com a faca nos dentes. 

Já no dia 30 foram divulgados os dados do desemprego para o trimestre encerrado em fevereiro: 14,4%. Isso significa que 14,4 milhões de pessoas estão na fila por um trabalho no país, o maior contingente desde 2012, início da série histórica.  

No mesmo mês, após muitas idas e vindas, o orçamento anual foi sancionado com muitas restrições e incertezas quanto à sua aplicação. Não está claro, por exemplo, como o governo fará para liberar as emendas parlamentares sem desrespeitar o teto de gastos. 

Para ampliar as preocupações do presidente, desde dezembro de 2020 as pesquisas passaram a apontar aumento significativo nos índices de desaprovação do presidente e de seu governo. Adicionalmente, a volta do ex-presidente Lula à disputa eleitoral reaqueceu a polarização entre os dois que vêm liderando as intenções de voto para 2022. 

Diante desses fatos, tenho lido e ouvido diversas análises feitas por especialistas de ótima reputação dando como certo que, nessa batida, Bolsonaro estará fora do segundo turno. Bem, considero enorme equívoco e permito-me afirmar que, até o momento, a tendência é ele estar presente naquela fase da disputa em 2022. Apresento a seguir algumas razões para minha assertiva. 

Iniciada em 2008, na campanha de Obama à presidência dos EUA, as redes sociais passaram a fazer parte do debate político e das contendas eleitorais. Desde então, sua influência na formação de grupos e definição de voto vem crescendo vertiginosamente a ponto de muita gente, inclusive eu mesmo, ter-se surpreendido com seu papel em 2018. 

Nesse território, Bolsonaro continua a reinar quase absoluto, mantendo parcela de 16% a 18% de apoiadores fiéis. Some-se a esse nicho algo em torno de 14% que, mesmo tendo críticas ou algum grau de arrependimento, não têm demonstrado disposição para mudar seu voto em 2022, principalmente diante da candidatura petista.  

Outro fator tem a ver com a economia. Se 2021 tende a ser marcado por muitas dificuldades, a expectativa para o próximo ano é que haja razoável retomada propiciada, em grande parte, pelo provável crescimento no número de pessoas vacinadas até dezembro, podendo abranger toda população a partir de 30 anos de idade. 

Em relação ao orçamento, segundo o economista Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro, Bolsonaro terá espaço de R$ 111 bilhões para ampliar as despesas em 2022, tendendo a ser o ano mais tranquilo para o presidente cumprir o teto de gastos, regra que atrela o crescimento das despesas à inflação. Desse total, o governo deverá contar com cerca de R$ 40 bilhões para gastar livremente, justamente em ano eleitoral. 

É evidente que Bolsonaro não joga sozinho nesse campo, e a oposição não petista, mesmo não tendo encontrado ainda o melhor caminho para derrotá-lo, tem procurado se mexer. Uma coisa é certa, porém: uma dispersão de candidaturas provocará a repetição do que aconteceu em 2018. É possível evitar isso? 

Cristalino está que a polarização representada pelas candidaturas de Lula e Bolsonaro só interessa a eles. Afinal, trata-se de um processo de retroalimentação. Não tem, no entanto, efeito prático algum criticar tal polarização sem apresentar alternativa capaz de atrair aquela parcela do eleitorado que prefere não votar em nenhum dos dois. 

É imprescindível que o chamado Polo Democrático construa uma agenda mínima, olhando para frente, para o futuro. Deixar claro quais os pontos básicos que uma candidatura desse campo tem a oferecer para a população. Em complemento, há que se produzir a narrativa adequada para que as ideias-força sejam comunicadas de maneira a emocionar, engajar e mobilizar. 

São condições necessárias, mas insuficientes. Agenda e narrativa mobilizadoras necessitam de um nome que as represente. Precisa ter cara! Ser percebida pelo eleitorado como competitiva para conseguir chegar ao segundo turno e derrotar qualquer um dos dois atuais favoritos. É uma decisão pra já! Como disse o poeta, não temos tempo a perder. 

* Orlando Thomé Cordeiro é consultor em estratégia.  

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Fonte:


RPD || Rogério Baptistini: O populismo e a demagogia amplificam a tragédia brasileira

No mês de abril, o Brasil atingiu a marca de 400 mil mortos pela pandemia de Covid-19. O número de vítimas do coronavírus certamente é ainda maior, dado que desde o início da crise sanitária há relatos de subnotificação e, inclusive, pouco interesse do governo federal no acompanhamento e controle dos casos. Mas o que incomoda é o alheamento do presidente e de seus auxiliares em relação ao sofrimento dos concidadãos. É como se não tivessem responsabilidades para com o povo, o elemento pessoal do Estado. E aqui, o paradoxo de nossa situação. 

Bolsonaro chegou ao governo como expressão do populismo, um fenômeno tão antigo quanto a própria democracia. Neste, confluem um líder e um povo mobilizado por um discurso que divide a sociedade política entre um nós e um eles, geralmente uma elite corrupta. A própria condição de mito, atribuída ao ex-deputado do baixíssimo clero reforça a percepção do que seria uma condição atávica de nossa evolução política. Acompanhando Ernst Cassirer, o mito, no populismo, personifica a vontade coletiva e se impõe à Constituição e às próprias instituições. “O que fica é apenas o poder e a autoridade mística do líder e a sua vontade suprema é a lei”. (2003, p. 325) 

O passado, como ensinava o historiador Mac Bloch (1886-1944), não é objeto de ciência, mas ilumina o presente.  E quando olhamos para trás, verificamos que a absolutização dos conflitos na história brasileira degenerou sempre em regressão na cultura democrática, em que pese o salto para a frente da aceleração econômica e a incorporação dos “de baixo” pela via dos direitos sociais. Estas, as camadas sociais inferiores, são o elemento central da lógica populista, manipuladas conforme a conjuntura, num dualismo de aceitação ou rejeição: mortadelas contra coxinhas, patriotas contra comunistas, cristãos contra destruidores da família. 

Pilar do Estado moderno, a noção de povo deriva diretamente do populus romano. Ali, ao lado das famílias presentes no Senado, que representavam o núcleo originário da República, este participava das decisões sobre o destino comum, constituindo o elemento democrático e plural – a civilitas – do conjunto de cidadãos que fundava o corpo social – a civitas. A lei seria a expressão de sua responsabilidade política, traço de urbanidade e o próprio contrato que os uniria. Contraditoriamente, foi o apoio popular ao Principado e, depois, ao Dominado, que encolheu o papel político do povo romano (COLLIVA, 1991), culminando no ocaso de uma civilização e nas trevas do medievo. 

Verdadeira presença ausente na democracia, o povo não é uma nulidade. Apesar de não constituir uma massa compacta, ele existe e padece as consequências do populismo. O descaso para com as leis, a corrupção da República e a demagogia como uma perversão que acomete os governos democráticos representam a catástrofe para os populares; o apocalipse medido em mortes e desesperança. E novo alimento para o irracionalismo, para as soluções que apresentam a vida como uma luta inconteste entre o Bem e o Mal. A economia contra a saúde; o mercado contra o Estado; o deus dos fundamentalistas contra o demônio.  

No momento mesmo da invenção da política como esfera autônoma, na antiguidade clássica, Platão alertava para os perigos que a manipulação do demos poderia gerar pela ação de demagogos. O risco da implantação da tirania, quando da exploração dos ressentimentos populares por um perverso e o desejo irracional de castigar o levavam a descrer do governo democrático. A agonia do momento presente representa o ápice da demagogia entre nós. 

É a atuação do povo como bloco que alimenta o populismo e faz da demagogia uma perversão. Tanto um como outra estiveram em germe, desde a redemocratização, na atividade de líderes e partidos, culminando no autocanibalismo do que se apresentava como o “novíssimo” na política brasileira, “diferente de tudo o que está aí”. A transformação do espaço público como espaço de luta pelo exclusivismo, no qual todo o adversário passou a ser visto como inimigo a ser derrotado trouxe uma vitória de Pirro para os adeptos do conflito, com consequências irreparáveis para uma geração de brasileiros, e a política sendo desviada para a margem dos canais institucionais pacientemente construídos. 

Aos democratas, resta lutar nas trincheiras da razão e não ceder aos apelos do dualismo populista que insiste na exploração do desespero popular. A hora é de reconstrução da cultura pública essencial ao exercício da cidadania informada, ativa e plural, capaz pactuar em favor da democracia como caminho para o futuro. 

*Rogério Baptistini Mendes é sociólogo, pesquisador do LabPol -Laboratório de Ciência Política da Unesp/FCL-CAr. 

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Fonte:


RPD || Sergio Besserman: Censo 2021 – Vamos perder mais dinheiro do que será economizado agora

O governo federal anunciou que o Censo 2021, que estava previsto para 2020, será novamente suspenso; desta vez, por falta de recursos no orçamento deste ano. Não há prazo para um novo levantamento. Os prejuízos para implementação de políticas públicas são incalculáveis, especialmente para a população mais pobre. 

De certo modo, o Brasil já vive sob apagão estatístico há bastante tempo. A Comissão de Estatística da Organização das Nações Unidas recomenda o censo decenal, de preferência, nos anos de final zero. O objetivo é comparar todos os censos entre si. Países que têm registros administrativos ruins, segundo a ONU, devem realizar, como melhor prática estatística, um minicenso entre os dois censos decenais. 

No Brasil, chamávamos de “contagem populacional”, mas o levantamento também fazia outras perguntas. Por razões de economia fiscal, não fazemos esse censo intermediário desde os anos 90. Os registros administrativos brasileiros são ruins. No governo federal, há alguns um pouco melhores, como o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, e dados relacionados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Mas a maior parte é inexistente ou ruim. Nos estados e municípios, a mesma coisa. 

Nós vivemos no século da informação e do conhecimento. Ter dados sólidos sobre a real situação dos brasileiros é importante para a implementação de políticas públicas eficazes. O Brasil é um país dinâmico, muda muito, especialmente desde a última década. Perceba-se que 10 anos já é um tempo bastante longo. Áreas fundamentais, como transporte urbano, saúde, educação, segurança pública, sofrem com o atraso no Censo Demográfico por mais de uma década. Prejudica, inclusive, todas as outras pesquisas, pois diversos institutos do setor público e privado utilizam esses dados. Todas as pesquisas perdem em qualidade em razão da ausência de informação censitária atualizada. 

Outro ponto a se destacar é que a grande maioria dos municípios depende de Estados e do governo federal para fechar as contas. Esta suspensão afeta diretamente a população mais pobre. Para 80% dos municípios do Brasil, a principal fonte de receita é o Fundo de Participação (FPM). O critério utilizado para a distribuição desses recursos é a população. Anualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) faz uma estimativa da população nacional, por Estados e municípios. Com esse longo espaçamento no tempo, aos poucos, o fundo de participação vai deixando de cumprir um dos objetivos, que é justamente combater a desigualdade. As estimativas não conseguem capturar situações de mudanças dinâmicas em diversos municípios. 

Com os dados do censo, teríamos a oportunidade de mapear informações sobre a miséria e a extrema pobreza. Esse, talvez, seja o impacto mais danoso do ponto de vista social. Não teremos as informações e o conhecimento necessário para fazer esse trabalho tão indispensável de reconstrução econômica, social e política do Brasil, que será preciso a sociedade conseguir após 2022. 

Destaco, ainda, que a principal conquista histórica do Censo Demográfico foi a consolidação do IBGE como órgão de Estado. Ele foi uma grande conquista democrática. Atravessou ditaduras, sempre mantendo sua característica de órgão de Estado, sem jamais ter sofrido qualquer tipo de intervenção, e sendo, principalmente, reconhecido quanto ao princípio do sigilo das informações obtidas. 

Entendo que a decisão de adiar o censo sem sequer anunciar, imediatamente, quando ele seria realizado, foi pautada pelo negacionismo do atual governo, seu desprezo pela informação e pelo conhecimento. Vamos perder muito mais dinheiro com esse adiamento do que aquilo o que será economizado. E quem mais vai perder é o povo pobre. 

Muitos países, como Canadá e Estados Unidos, aplicam o Censo a distância – seja pela internet ou mesmo pelos correios. A combinação do censo presencial com melhorias nas informações de registros administrativos e a conexão desses tipos de metodologias remotas deve ser prioridade, e o IBGE está trilhando esse caminho com excelência, como sempre. Afinal, a tecnologia existe e pode muito bem ser integrada com o trabalho dos recenseadores, que serão sempre importantíssimos em um país tão desigual e de proporções continentais como o Brasil. 

*Sergio Besserman é economista, é professor do Departamento de Economia da PUC e coordenador estratégico do Climate Reality Project no Brasil.  Ex-diretor do BNDES,  ex-presidente do IBGE, do Instituto Pereira Passos, e do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (RJ).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Fonte:


Míriam Leitão: As boas notícias e o estraga cenário

Há notícias boas na economia, mas a incerteza permanece. O real zerou as perdas do ano em relação ao dólar, em parte isso é resultado do forte saldo comercial derivado da alta de produtos exportados pelo Brasil. O mais espantoso aumento é o do minério de ferro, que é de 47% este ano no mercado chinês e só ontem teve alta de 10%. O saldo da balança é de US$ 20 bilhões até a primeira semana de maio, 50% a mais do que no mesmo período do ano passado. Ouvi economistas e uma cientista política sobre esses dados e seus efeitos na economia e na política. A conclusão é que apesar do vento a favor, o ambiente de crise permanece.

Quando há alta de commodities, as moedas dos países fornecedores, como o Brasil, se valorizam. Mas no ano passado aconteceu o oposto. O real despencou. Isso se deve à incerteza. Vacinação atrasada, os conflitos criados pelo presidente e seus ataques às medidas de proteção fortaleceram o descontrole da pandemia. A economista Silvia Matos, do Ibre/FGV, explica o que mais está alterando o fenômeno.

— O efeito das commodities nas moedas sempre existiu nos modelos, mas apesar dos ventos externos favoráveis, questões domésticas como confusões fiscais e políticas estão jogando contra. Medidas populistas, como a intervenção na Petrobras, também. O câmbio estaria muito mais apreciado se não fossem nossos problemas internos — diz Silvia.

Os cientistas políticos Daniela Campello e Cesar Zucco, da FGV, estudaram a relação entre o boom de commodities e o fortalecimento político dos governos. A pergunta que fiz à Daniela, ontem, foi se esse boom poderia favorecer a reeleição de Bolsonaro.

— Em tese, poderia favorecer, mas não acho esse o cenário mais provável. O que conecta o boom externo ao bem-estar das pessoas — que pode aumentar o apoio ao governo — é o câmbio. Até agora, não estava ocorrendo esse fenômeno. A subida dos preços foi forte, mas o dólar continuava alto. Acho que precisa ser um boom realmente duradouro — que segure até 2022 — e, ainda assim, que ele não seja enfraquecido pelo caos da pandemia. Não acho o cenário favorável de forma alguma para o presidente — disse Campelo.

Todos os economistas dizem que o primeiro trimestre está com dados melhores do que o previsto. É o que diz, por exemplo, a economista-chefe para Brasil e Argentina da Bloomberg Economics, Adriana Dupita. Ela ressalta que principalmente o mês de março foi melhor do que o esperado. Mas o alto grau de incerteza vem impedindo os investidores de terem uma visão mais otimista sobre o futuro do país:

— O auxílio emergencial chegou ao fim, e agora haverá uma reposição parcial. Na política monetária, há aumento de juros. No câmbio, mesmo com a queda, permanece a volatilidade. Na política fiscal, começa a pesar o calendário eleitoral do ano que vem.

O economista José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados, que acompanha de perto o agronegócio, diz que o interior está crescendo, por força da alta das commodities, porém o cenário é de estagnação na economia.

— O efeito das commodities é aumentar a renda nos segmentos respectivos. A renda do minério é injetada na Vale. É localizada. A do setor agrícola é bem espalhada, e o interior, onde o setor agrícola comanda, está vivendo um boom. Isso se traduz em construções e investimentos industriais ligados ao agronegócio. Entretanto, o atraso da vacinação leva ao risco de uma terceira onda, o que em alguns lugares acontecerá mesmo.

O melhor cenário para este ano é de crescimento de 3%, menos do que caiu no ano passado. E para 2022 as projeções em média dão 2%. É muito pouco. Outra coisa que afeta o cenário é o risco inflacionário. O custo da alimentação vai subir, uma nova rodada, por causa do custo global de grãos e commodities. E isso é péssimo para a atividade e para o poder de compra da população que está na pior da pior. Esse é um cenário de estagnação — diz o economista.

O economista Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio, acha que o IPCA de abril, a ser divulgado hoje, será de 0,30%, pela queda dos combustíveis, mas o acumulado em 12 meses vai a 6,75%. Em maio, vai para 7,5%. No segundo semestre, ele acha que o dólar não vai atrapalhar, mas não vai cair muito como poderia.

Conclusão minha depois dessa rodada de conversas. O governo Bolsonaro é tão incompetente que estraga até notícia boa.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/boas-noticias-e-o-estraga-cenario.html


Carlos Andreazza: Presidente-caô

E o tal decreto libertador do autocrata Jair Bolsonaro? Onde está? Aquele que já estaria pronto, mas que o presidente — numa ameaça cansada, covarde até para os padrões retóricos bolsonaristas — não sabe se usará. Cadê? (Talvez esteja guardado no mesmo cofre fantástico em que vão depositadas as provas de fraude contra a eleição de 2018.) Cadê? Aquele decreto por meio do qual o populista sustaria — sem contestação, como se imperador na República — decretos dos tiranos governadores-prefeitos, os cerceadores do trabalho, usurpadores do sagrado direito de ir e vir. Onde?

Quem sabe esteja na mesma gaveta imaginária em que avança o lockdown no Brasil? O decreto do amanhã: obra — bravata — de um governante fraco, isolado e acuado, cujo futuro, no mundo real, depende de Arthur Lira e Valdemar da Costa Neto; sem os quais não haveria “meu Exército” que acudisse. (O Exército do presidente forma com Pazuello, Ramos, Braga Netto e Heleno; tudo cobra fumante dentro das quatro linhas da Constituição.)

No mundo real: enquanto brinca de rolezinho de moto (e promete vídeo com ministros confessando o uso de cloroquina; cadê?), Bolsonaro expande a Codevasf — chegou mesmo ao Amapá — para abrigar toda a mamata que tinha acabado. (Quem dera se ele transpusesse águas assim.)

O decreto do valente do futuro: obra — bravata — de um governante que, desde sua condição de líder sectário, precisa, num terreno fantasioso a cada dia mais comprimido pelo mundo real, dar respostas, a cada vez mais histéricas, aos três quarteirões que foram às ruas autorizá-lo, pressioná-lo, ao golpe. E então: blá-blá-blá.

Não que lhe falte o ímpeto golpista. Não que não teste brechas e embocaduras. E não que a pregação rompedora não imponha graves lacerações na musculatura republicana. No mundo real, contudo, sem apoio para ser Hugo Chávez, a ruptura é a possível, a que pode reelegê-lo em 2022: a de fronteiras, para que os vales do São Francisco e do Parnaíba se alargassem de modo a contemplar os tratores do sócio Centrão. No mundo real: sem apoio para ser Chávez, colhe o apoio de Eduardo Gomes e Wellington Roberto para ser Bolsonaro mesmo.

No mundo real: sobrepreço para aquisição de maquinário agrícola a partir de um orçamento secreto. (Afinal, mamata não vista, mamata não é.) No mundo dos patriotas contra o lockdown imaginário: a projeção de decreto — que tribunal nenhum contestará — para enquadrar entes destruidores da economia e supressores de empregos. Assim se equilibra o homem. Golpista, sim. Mas também empreendedor de sucesso, alguém que ergueu pujante empresa familiar nas bordas gordas do Estado.

A turma que foi às ruas bradou o #euautorizopresidente; e o mito não sabia o que fazer. Ou melhor: sabia que só poderia produzir e difundir seus caôs. Um balanço delicado, com margens de operação muito apertadas. A resposta — satisfação e alimento aos seus — foi essa tosquice. A galera curtiu. O decreto destemido da gaveta quimérica. Contra o establishment que não o deixa agir (o mesmo que o banca), o próprio manifesto de frustração do golpista. O decreto prometido ao povo!, demandado pelo povo!; o povo, claro, segundo a compreensão totalitária de Bolsonaro — o povo sendo aquele que o apoia-autoriza.

No mundo real: Ciro Nogueira. No mundo real: o sistema que ora o sustenta sendo o mesmo que lhe reduz a natureza golpista a essas milongas. E dá-lhe aglomeração, e cloroquina, e China, e guerra química, e eleição auditável, e decreto quem sabe um dia. O Centrão autoriza.

No mundo real: o tratorão; e o Bolsonaro sabedor de que não pode decretar seu delírio. Sabedor de que os decretos de governadores e prefeitos, submetidos a constante controle de constitucionalidade, têm o aval do Supremo. E de que, se decretasse para derrubá-los, passaria vergonha. Seria desmoralizado. O STF a lhe cassar a determinação. E então: o decreto pronto — que não sabe se usará.

No mundo real, pois, para enganar seu mundo da fantasia, o Bolsonaro bravateiro. Que, inconformado, sabe que não teria — ao contrário do que disse — apoio do Congresso para suas fanfarronices golpistas. O Brasil não é El Salvador, lá onde o Parlamento — para júbilo invejoso do bolsonarismo — destituiu a Suprema Corte. No mundo real: o Brasil é o MDB conforme Fernando Bezerra; o capaz de embarcar na canoa do Bolsonaro eleito, jamais na do Bolsonaro onipotente. Tratorão: sim. Tratorando: não.

No mundo real: seria o presidente investir contra o STF — e o faria caso decretasse sua bravura de gaveta — para perder a maioria parlamentar defensiva que cultiva terceirizando orçamento de ministério.

As chances de porvir para Bolsonaro derivam da mesma força que o limita. Os sócios do Centrão compõem curiosa modalidade de proteção à estabilidade institucional, habituados que estão — décadas já de máquina calibrada — a prosperar na democracia. Não estão a fim de mudanças. Mas são tolerantes. E autorizam: o presidente pode ser Ustra no cercadinho, desde que seja Rogério Marinho no Planalto.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/carlos-andreazza/post/presidente-cao.html


Captura de Tela 2021-05-24 às 16.46.03

O esquema de desviar verbas através de emendas do Congresso, já usado em governos anteriores, como no escândalo dos “anões do Orçamento”, se repete agora de outra maneira, demonstrando como a criatividade dos corruptos é infindável. Fica claro que precisamos inventar um outro tipo de relacionamento do Congresso com o governo central, porque nosso sistema de presidencialismo de coalizão virou um instrumento de distribuir dinheiro para políticos e corromper o Estado.

Os “anões do Orçamento” eram deputados, de baixa estatura física e moral, que manipulavam a Comissão do Orçamento no Congresso com manobras para inclusão de obras regionais mediante propina recebida de empreiteiras e governantes estaduais e municipais. Agora, ao que tudo indica, o esquema, denunciado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, é centralizado no próprio Palácio do Planalto, que indica verbas de um “orçamento paralelo” a seus correligionários e até a oposicionistas que se disponham a votar com o governo em ocasiões especiais, como a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado.

A esse “orçamento”, só têm acesso os parlamentares indicados pelo Centrão, e as ordens de pagamento saem do Ministério do Desenvolvimento Regional e de outros órgãos, sem que se saiba o que será feito do dinheiro, que não tem controle, pois não consta do Orçamento oficial.

Centenas de requisições informais de deputados indicando para que obras deveria ser encaminhado o dinheiro, num caso até compra de tratores, foram revelados pelo jornal. Bastava que o parlamentar dissesse que fora “contemplado” com tal verba ou que tinha direito a ela, para que o dinheiro fosse liberado, após evidentemente ser checada a planilha do chefe da Secretaria de Governo da Presidência, anteriormente o ministro Luiz Eduardo Ramos, hoje a deputada Flávia Arruda, colocada estrategicamente na pasta para facilitar o trânsito dos acordos feitos pelo Centrão que ela representa.

O superfaturamento de obras continua sendo a raiz desses esquemas fraudulentos. Os tratores financiados pelo orçamento paralelo, segundo especialistas, estão mais de 200% acima do preço de mercado. A maior parte dessas verba vai para a Codevasf, Companhia do Desenvolvimento do Vale do São Francisco, que hoje abrange também o Vale do Parnaíba. Criada para atender cerca de 500 municípios, hoje abrange quase três mil em 15 Estados e o Distrito Federal, ou 37% do território nacional.

É uma das estatais mais cobiçadas pelo políticos, tradicionalmente dominada pelo Centrão. O esquema do “orçamento paralelo” é mais um para limpar dinheiro desviado do Orçamento público. No mensalão, parte do Congresso foi comprado com dinheiro público; no petrolão, o esquema montou-se especialmente em torno da Petrobras e de suas subsidiárias, com outras estatais envolvidas.

Entre as novidades descobertas pela Operação Lava-Jato, o dinheiro de corrupção não raro vinha de “doações” oficiais aos partidos políticos, que assim lavavam o dinheiro recebido. Agora, a lavagem de dinheiro é feita por meio do próprio Orçamento. As emendas parlamentares são impositivas, e todos têm direito a elas na elaboração do Orçamento. No primeiro ano do governo Bolsonaro, porém, foi criada a figura da “emenda do relator”, que ganhou o poder adicional de distribuir verbas.

Além disso, há uma disputa entre o ministro Paulo Guedes, da Economia, e seu mais direto adversário dentro do governo, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Guedes sugeriu a Bolsonaro que vetasse essa emendas no ano passado, e os parlamentares derrubaram o veto, mantendo a distribuição de emendas sem identificação pelo relator.

Não pode ser essa a base da nossa política partidária. Nenhum país aguenta um sistema político que tenha de ser regado a dinheiro e verbas desviadas para funcionar. Não há país sério que se baseie numa relação corrupta entre o governo central e os parlamentares. Quem controla esses esquemas todos é o Centrão, criado na Constituinte de 1988, formalizando a união de partidos como PMDB, PP, PFL, PTB, o mesmo grupo que sempre esteve no poder, e que hoje domina o Congresso.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/ja-foi-visto.html


Felipe Salto: Um Brasil lascado

O bordão do economista Gilberto Nogueira, do BBB21, caiu na boca do povo: “O Brasil tá lascado”. É a síntese deste tempo. Como ter esperança diante do caos econômico e social? O Orçamento de 2021 não reflete a dura realidade da crise e a necessidade de forjar a reconstrução da economia. Pior, um novo mecanismo parece ter tornado viável espécie de barganha assimétrica entre Executivo e Legislativo. Tudo passando ao largo do fundamental: preservar vidas e desenhar um novo futuro.

A gestão mal-ajambrada da crise da covid-19, a demora em tomar decisões essenciais e a ausência de planejamento ajudam a explicar esse quadro. O governo não está conseguindo vacinar a população no ritmo necessário e guarnecer as famílias mais pobres. Falta tudo.

Os que podem trabalhar de casa estão em situação melhor. Mas os mais pobres seguem desempregados ou na luta diária arriscando-se no transporte público. Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostram que a morte atingiu em cheio os trabalhadores diretamente expostos ao vírus. No topo dessa lista macabra (de abril de 2020 a março de 2021), motoristas de ônibus, cobradores, vigias, porteiros e zeladores. É cruel.

Vai ser difícil reconstruir o País depois do desmonte. O capítulo mais recente foi revelado pelo repórter do Estado Breno Pires (9 de maio): R$ 3 bilhões do Orçamento da União de 2021 teriam sido utilizados pelo governo como moeda de barganha junto ao Congresso. O processo orçamentário já estava maculado pelo risco de paralisação da máquina pública. Agora, desvendam-se novos contornos.

As chamadas emendas de relator-geral (classificadas como “RP 9” no Orçamento) foram ampliadas a partir de cortes nas previsões de despesas da Previdência, do abono salarial e do seguro-desemprego. A especificação do direcionamento desses recursos – uma atribuição do Executivo –, no entanto, teria sido parcialmente transferida para parlamentares, sem previsão expressa na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Como revelou o Estado, parte dos recursos se destinaria à compra de tratores a preços acima dos do mercado. Invertem-se prioridades, métodos e processos, para dizer o mínimo.

Ao contrário das emendas tradicionais – impositivas e divididas igualmente entre os parlamentares –, esse “novo jeito” de alocar recursos públicos revela que o Executivo teria escolhido quem atender e quem ignorar. Peça de ficção é pouco para classificar o episódio.

O pano de fundo é a economia estagnada e sem perspectiva de melhora efetiva. O crescimento esperado para 2021 deve-se majoritariamente ao carregamento estatístico, isto é, à base deprimida de 2020, ano de recessão. De 1930 a 1980, o produto interno bruto (PIB) per capita brasileiro crescia a 3,8% ao ano acima da inflação; de 1981 a 2020, apenas 0,6%; e de 2011 a 2020, queda anual de 0,6%. Perdeu-se o bônus demográfico, quando a população em idade de trabalhar aumentava mais, o que facilitava a tarefa de crescer.

A produtividade da economia não reagirá na ausência de melhores investimentos e de um ambiente de negócios favorável à atividade econômica. O relatório Doing Business, do Banco Mundial, mostra que o Brasil ocupa a 184.ª posição (de 190 países) no quesito pagamento de impostos. As empresas brasileiras gastam, em média, 1.500 horas ao ano para atender ao fisco.

Nas políticas sociais, Bráulio Borges mostrou que o chamado índice de Gini – indicador da desigualdade de renda – melhora muito pouco quando se computam as transferências, os incentivos e benefícios fiscais de toda sorte.

As renúncias tributárias, por exemplo, correspondem a cerca de 4% do PIB e, em geral, não beneficiam os mais pobres. É claro que não se deve jogar o bebê junto com a água suja do banho. Isto é, as políticas de incentivo e de subsídio podem ser feitas de outra forma: na base da transparência e da avaliação. Sem isso, é jogar dinheiro pela janela.

Na infraestrutura, Igor Rocha reuniu dados impressionantes: o investimento brasileiro nessa área passou de 5,4% do PIB nos anos 1970 para 1,7% do PIB em 2016. O Chile e a Colômbia investem três vezes esse montante, a Índia gasta mais de duas vezes e a China, mais de seis vezes. O economista estima que em 2020 o investimento em infraestrutura no Brasil deve ter ficado em R$ 123 bilhões, o mesmo patamar de 2016 em porcentual do PIB.

Não há saudosismo em relação às décadas de 1930 a 1970. Nesse período a desigualdade aumentou, apesar do crescimento. Também a hiperinflação foi sendo gestada até atingir o ápice no período pré-Plano Real. A verdade é que, depois da conquista da estabilização da moeda com aquele plano, remanesce o objetivo de crescer sem inflação e reduzindo a pobreza extrema e a desigualdade de renda e riqueza.

O Brasil está mesmo lascado, Gil. Cabe à nossa geração o desafio de pensar e agir “com vigor”. É difícil ter esperança em meio a tanta tristeza. Mas é necessário, apesar do pessimismo no diagnóstico, ter otimismo na ação!

*Diretor Executivo da IFI.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,um-brasil-lascado,70003710529


Rubens Barbosa: China e Brasil

A quinta sessão plenária do 19.º Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh), concluída em 29 de outubro, apresentou as linhas gerais do 14.º Plano Quinquenal econômico e social do país (2021-25), com os objetivos gerais para os próximos cinco anos e o planejamento de médio prazo, até 2035. Mantendo a retórica de “paz e desenvolvimento”, o PCCh traçou as principais linhas estratégicas levando em conta, sobretudo, a crescente competição global.

Os documentos divulgados pelo PCCh, indicam que as lideranças do partido, refletindo as incertezas no cenário global, buscaram mudanças em três áreas: fortalecimento da economia, autossuficiência (mercado interno e indústria) e novas políticas sobre mudança de clima.

A visão de futuro dos líderes chineses abandona a ênfase no crescimento econômico com o aumento do PIB e passa a enfocar “o aumento significativo no poderio econômico e tecnológico” até 2035, com foco em questões estruturais e qualidade de vida. No comunicado final do plenário do Congresso não se fixa uma taxa de crescimento para 2035, somente se menciona o objetivo de alcançar, em termos de PIB per capita, o nível de países moderadamente desenvolvidos. Manter o foco no crescimento faz sentido para a China num momento de competição com os EUA, no que o comunicado chama de “profundos ajustes no equilíbrio de poder internacional”. Uma grande economia vai “assegurar que a China tenha recursos necessários para a defesa nacional e a pesquisa cientifica”. Em vista da gravidade da crise pandêmica, a China teve de adiar o projeto da Rota da Seda (Belt and Road Initiative), com um custo de US$ 1 trilhão em mais de cem países, como uma forma de projetar seu poderio econômico além-fronteiras.

As sanções dos EUA e as restrições à compra de semicondutores pelas empresas chinesas forçaram mudanças na atitude da liderança do PCCh no tocante à dependência de tecnologia do exterior e à necessidade de buscar a autossuficiência em áreas consideradas estratégicas. As vulnerabilidades da China foram exploradas geopoliticamente pelos EUA, apesar dos custos econômicos e da oposição da indústria. O plenário do partido afirmou que “autossuficiência em ciência e tecnologia é um pilar estratégico do desenvolvimento nacional” e demandou que “importantes avanços sejam conseguidos em tecnologias críticas” para que a China se torne “líder global em inovação”. Essa determinação já estava presente no plano “Made in China 2025”, adotado em 2017, para o avanço na política industrial, com resultados concretos em duas áreas nas quais o país mostra agora liderança global: tecnologia 5G e 6G e inteligência artificial.

A liderança chinesa passou a ver na política ambiental e de mudança de clima uma forma de ganhar prestígio global e obter benefícios econômicos. A proteção ambiental tem sido uma prioridade crescente para as autoridades chinesas, como indica o acordo de cooperação assinado com os EUA visando a uma posição comum na COP-26, quando se discutirá o Acordo de Paris. Na Conferência do Clima em abril, Xi Jinping anunciou que a China fixou que o pico das emissões de gás carbônico será em 2030 e, em 2060, será atingida a meta de emissão zero. Embora ambiciosos, os objetivos anunciados indicam envolvimento crescente da China nas discussões sobre políticas ambientais, com potenciais reflexos sobre outros países.

Enquanto a China faz seu planejamento com visão de futuro, o Brasil, perdido na crise da pandemia, não tem e não discute medidas e políticas de médio e longo prazos. A economia registrou queda de 3,1% em 2020 e se projeta em 2021 um crescimento de cerca de 2,5%, ou 3% em estimativas mais otimistas. As questões fiscais, a ausência de reformas, a queda no crescimento do comércio exterior e nos investimentos externos não prenunciam uma saída em V, como repetido pelo ministro da Economia. Por outro lado, o baixo crescimento da economia nos últimos anos, agravado pela pandemia, fez o Brasil deixar de ser uma das dez maiores economias do globo, segundo o Ibre/FGV. Em termos de PIB em dólares, este ano Canadá, Coreia do Sul e Rússia devem ultrapassar o Brasil, que cairá para a 12.ª posição, depois de ter chegado em 2011 ao 7.º lugar no mundo.

A preocupação aumenta quando se verifica não haver um plano claro de saída da crise atual, nem prioridades para avanços econômicos, sociais e tecnológicos. Sem maior discussão, o governo divulgou a Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031, com cinco eixos: econômico, institucional, infraestrutura, ambiental e social. Trata-se um uma medida positiva, mas tímida, que apenas esboça essa preocupação. O Congresso e a sociedade civil deveriam ser chamados a participar da análise e discussão dessa estratégia. Dois aspectos chamam a atenção no documento do governo federal: a ausência de clara prioridade para a inovação e a tecnologia, como está fazendo a China, e a inexistência de metas claras no tocante à preservação da Floresta Amazônica e à mudança de clima, duas das vulnerabilidades do Brasil no atual cenário internacional.

*Presidente do Irice, é membro da Academia Paulista de Letras

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,china-e-brasil,70003710546

 


Hamilton Garcia: A crise e suas raízes

A crise que vem estiolando a democracia brasileira ganhou novos contornos com a chancela do golpe judiciário de Fachin e sua consequência mais vistosa, mas não única, de livrar Lula de suas condenações na Justiça, tornando-o elegível. Com ela, o STF perde as credenciais para manter a disputa política no terreno da Constituição, pois não pode existir leis quando não existem instituições, no caso em tela, quando a corte suprema, intempestivamente, anula anos de trabalho árduo de suas instâncias decisórias, da primeira à última, fazendo tábula rasa de seu próprio sistema, o que só contribui para projetos autoritários que intentem transformar as instituições em meras ferramentas de poder.

Se chegamos até aqui sem maiores sobressaltos políticos, que não aqueles próprios da disputa pelo poder nas democracia liberais – no nosso caso agravada pela má formação/legislação política –, apesar da crise, é porque as instituições de controle foram capazes de impor algum limite ao modo como as elites usufruem do poder, como se viu em vários episódios no Legislativo (cassação de Collor e Dilma) e Judiciário (Mensalão e Petrolão).

A percepção das elites dominantes afetadas, todavia, é radicalmente oposta. O Petrolão, em particular, parece ter rompido todos os limites imaginados pelos donos do poder, depois de alcançar grandes empresários, bater às portas do sistema financeiro e detectar movimentações financeiras suspeitas em escritórios de advocacia de parentes de ministros do STJ e do STF. Do pânico à reação, tivemos a blindagem de Michel Temer na Câmara Federal, com a complacência de Rodrigo Maia, e no TSE (chapa Dilma&Temer), sob a batuta de Gilmar Mendes, que, já no Governo Bolsonaro, articulou com Dias Toffoli o famoso inquérito do fim do mundo dirigido por Alexandre de Moraes, tudo isso colaborando para aprofundar o fosso que separa a sociedade de suas elites dirigentes no Estado.

Os dois primeiros episódios, ofuscados pela poderosa máquina de narrativas do petismo, abriram caminho para a ruptura eleitoral de 2018, quando a extrema-direita chegou ao poder empunhando a bandeira da reação ao pacto corrupto plasmado no Governo Temer. Não é de espantar que tenha sido assim, afinal, o esforço de “estancar a sangria” uniu grande parte dos partidos, da direita à esquerda, deixando o campo livre para os aventureiros (“não políticos”), com o agravante que o lulopetismo, último bastião reformista a ser tragado pelo “mecanismo”, depois do PSDB e, de certa forma, do PMDB, arrastou consigo boa parte dos intelectuais que haviam sido capazes de forjar uma opinião pública democrática e inclusiva nas últimas décadas.

Mas, antes de falar das raízes da crise atual, devemos situá-la no plano das crises anteriores da República. O sistema neopatrimonial de dominação, constituído por blocos históricos erigidos em cada etapa do desenvolvimento capitalista do país, atravessou todo período republicano, sendo marcado por surtos de capitalismo de Estado – Estado Novo (1937-45) e Regime Militar (1964-84) – que se propuseram superá-lo sem lançar mão da mobilização social, como já ocorrera, em certa medida, em 1930.

Apesar das importantes transformações provocadas por estes surtos – sobretudo na promoção dos interesses das novas classes sociais ligadas à produção e aos serviços modernos –, o último deles, o bloco histórico militar-burguês-imperialista, não obteria êxito em superar o caráter neopatrimonial do sistema, já que seu caráter politicamente reacionário o impedia de ampliar o arco de alianças modernas necessário para virar definitivamente a página da República Velha e, em fim, alcançar os trabalhadores. Assim, mantida a natureza elitista do sistema, o ocaso do regime de 1964, naturalmente, ensejou expectativas de um novo bloco histórico democrático, que alteraria a lógica oligárquica do sistema dominante, o que, de novo, não aconteceria – talvez pela semi-estagnação que se seguiu –, não obstante o aprofundamento das concessões em termos do acesso de novos grupos populares ao poder, iniciadas ainda no período militar (vide chaguismo).

Importante assinalar que tal sistema oligárquico não foi uma era de estagnação, como sustentado pela esquerda até 1958 – o que teria levado o sistema ao colapso –, mas de crescimento acelerado, sobretudo a partir de 1930, embora voltado principalmente para os interesses da burguesia, dos setores corporativizados do trabalho e das classes patrimoniais situadas no seio do Estado, o que propiciou a formação de uma classe média robusta, não obstante aquém das possibilidades/necessidades, nos legando um país semi-dependente, com uma massa popular urbana ainda em boa parte marginalizada dos frutos do progresso.

As possibilidades de progresso no interior de tal sistema, todavia, parecem ter chegado a seu limite depois do regime militar, como percebemos ao olharmos para a sucessão de ciclos curtos de forte recessão, vôos de galinha e crescimento abaixo do potencial, sob a direção das mais variadas coalizões políticas – de Sarney à Bolsonaro, passando por Cardoso e Lula.

A Nova República, ao que tudo indica, passará para a história como a derradeira fase de nossa modernização passiva, onde a democratização, lenta, sinuosa e precária, não pode mais ser emulada à base da simples expansão do Estado, ao custo de serviços públicos precários (seviciados pelo patrimonialismo), sistemas previdenciário e tributário regressivos, e uma educação incapaz de reverter a histórica discriminação social-racial.

As margens para o endividamento do Estado, criadas pela prosperidade dos surtos anteriores de capitalismo de Estado, sobretudo o último, se estreitaram, restando agora, como paliativo, pegar carona na revolução industrial chinesa e seus efeitos sobre o agribusiness – o que não será de muita serventia se não formos capazes de reverter o desmonte de nossas cadeias produtivas, em meio à doença holandesa propiciada pela incerteza cambial (real apreciado).

Isto, em outros termos, implica conter a prática do endividamento público em prol do gasto improdutivo e reverter a política externa engajada – de Lula ou Bolsonaro –, que nos colocou de costas para os grandes mercados consumidores de nossos produtos manufaturados, nos afastando dos acordos globais que poderiam abrir portas para cadeias produtivas mais complexas. A fórmula ultra-liberal de Guedes, não obstante seu apelo eleitoral/empresarial e as importantes reformas que propõe, em função de ignorar, na prática, o papel estratégico do Estado como fomentador do progresso e a importância dos investimentos sociais para o desenvolvimento, em plena era do despertar da consciência popular – inclusive sobre o caráter parasitário do sistema em vigor (vide revolta de junho de 2013) –, pouco poderá contribuir para a retomada do desenvolvimento sustentável.

Desde a redemocratização de 1985, o bloco histórico financeiro-patrimonial-corporativo operou a sustenção do sistema oligárquico por intermédio de uma ampla gama de coalizões políticas governamentais: da direita (Collor e Bolsonaro) à esquerda (Silva-Dilma), passando pela centro-direita (Sarney e Temer) e a centro-esquerda (Franco e Cardoso). O que tais coalizões tinham em comum, era o fato de se apoiarem em forças sociais e econômicas hegemônicas, que operavam a política econômica (liberal) baseada no consumo das famílias, sustentada, principalmente, pelo controle inflacionário, pela desregulamentação comercial, a apreciação cambial (incentivo à importação), pelo imposto de renda negativo (bolsa família), pelas transferências assistenciais (LOAS) e de capital (incentivos fiscais), e pelo crédito direto ao consumidor (público–privado).

O ponto crítico desta circulação de elites em torno do bloco histórico, se deu, como sabemos, na coalizão lulopetista de governo, mais especificamente, no final do primeiro Governo Dilma, quando o PT, acossado pela inquietação popular, tentou reposicionar sua estratégia de poder revitalizando o apelo de partido de massa anti-sistema, em detrimento do “compromisso histórico” com as elites (Carta aos Brasileiros), por meio da “nova matriz econômica”.

A inconsistência da propositura, todavia, forçaria o PT a um retorno hesitante ao “compromisso histórico”, àquela altura consciente de que a restauração do equilíbrio econômico, por meio do tripé (câmbio flutuante, metas fiscais e metas de inflação), obrigaria um desenlace político diverso daquele de 2005, quando Cardoso desarmou, na partida, o movimento que poderia ter levado ao impeachment de Lula.

A incapacidade petista de administrar o tripé na perspectiva do desenvolvimento, tirando o país da crise estrutural em que se encontra desde os anos 1980, se explica pela política de distribuição de renda sem bases materiais sustentáveis (social-desenvolvimentismo), a par do notório sectarismo político, que os impediu de produzir um novo consenso em torno da reforma necessária, ou seja, a criação de um novo bloco histórico voltado para a produção e o trabalho, que substitua o atual bloco rentista/parasitário – que cooptou Lula e defenestrou Dilma quando seus crimes de responsabilidade atentaram contra seus interesses.

Temer, que a sucederia, recomporia a coalizão governamental em torno dos interesses do bloco, o que lhe permitiu sobreviver aos próprios crimes de responsabilidade, inclusive os eleitorais. Os mesmos interesses, até aqui, têm mantido Bolsonaro no poder, não obstante ter ele superado todos os padrões anteriores de estelionato eleitoral e crimes de responsabilidade – entre eles, os investigados pela CPI da pandemia.

A resiliência do Capitão vai muito além de seu poder de mobilização popular. Seu principal trunfo é o desmonte da operação Lava-Jato, que une o bloco dominante em todo seu espectro. O estancamento da sangria, articulado ao nível dos Três Poderes da República, demonstra cabalmente a capacidade de reação de um bloco dominante diante da ameaça de neutralização de seu principal instrumento de poder: no caso, a corrupção sistêmica.

É certo que a tragédia da COVID-19 e a inépcia governativa, por ela exposta, podem abalar as bases sociais e o pacto celebrado em torno do Capitão, mas o custo de sustentá-lo tem parecido menor, para os próceres do sistema, do que o de recolocar o bloco militar no poder com Hamilton Mourão, seu Vice.

De certo, outras coalizões se apresentam como alternativa eleitoral ao impasse, mas sem apresentar qualquer programa para substituir a ordem em derruição. A exceção é Ciro Gomes, que não esconde sua pretensão de constituir um novo bloco, baseado na retomada do desenvolvimento econômico, com ênfase na inclusão social, inspirado no contrato social empreendedor e sustentável, de Mangabeira Unger, e na aliança de classes pelo desenvolvimento (novo-desenvolvimentismo), de Bresser-Pereira. Todavia, carece ele, até aqui, de uma imagem positiva para atrair o voto popular e de alianças capazes de minimizar resistências.

Enquanto a coalizão bolsonarista pende, por motivos eleitorais, ao nacional-desenvolvimentismo militar, mantendo Guedes como fiador do compromisso com o Mercado (neoliberalismo) e seu bloco – em termos crescentemente instáveis –, o centro político tateia uma saída, aparentemente sem se dar conta de que a volta à normalidade não nos leva para muito além dos horizontes do Governo Temer.

Diante das incertezas que rondam o pais, em meio à pandemia e ao pandemônio governamental, é inequívoco o ganho que teríamos com a saída de Bolsonaro. Mas, isto, por si só, teria apenas o efeito de tirar o bode da sala de uma casa cujos cupins já corroeram os alicerces: se nada mais for feito, para reformar seus alicerces, em pouco tempo, tudo pode piorar ainda mais.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[i])

São João da Barra, 08/05/21.


[i] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.

Fonte: