Economia

RPD 35 || Otávio do Rêgo Barros: Relações entre civis e militares, uma reflexão

Cabe à sociedade a responsabilidade de garantir o papel das Forças Armadas, fortalecendo-as como instrumento independente de Estado

“Para abolir a guerra há que remover suas causas que residem na imperfeição da natureza humana” (Liddell Hart)

Vivemos tempos sombrios com a falta de ordenamento de nossa realidade. Uma discussão sobre o papel das Forças Armadas se instalou para além dos muros dos quartéis. 

A atuação imoderada do chefe do Poder Executivo, a incentivar o envolvimento de militares nas ações políticas de governo, potencializou a questão. Somou-se a esse inconveniente, posturas contestáveis dos outros Poderes da República. O Legislativo, com tendência mesquinha de enxergar os interesses paroquiais, e o Judiciário, em suposta cruzada moralizadora, que ultrapassa o senso cotidiano de equidade. Formou-se um torvelinho de opiniões divergentes, desamparadas de conhecimento qualificado, que anuvia grupos da sociedade.  

Tomando por base o trabalho do professor Samuel Huntington, O soldado e o Estado (BIBLIEX, 2016), abordarei aspectos das relações entre civis e militares, contextualizados para o Brasil contemporâneo. Para fins de enquadramento, o livro foi publicado em 1957, período alcunhado de Guerra Fria, no qual a incômoda ascensão da União Soviética se projetava sobre a águia americana. 

A incompreensão da sociedade diante da obrigação do profissional das armas em ser pragmático perenizou-se com o correr dos tempos modernos. O militar é o mais pacifista dos integrantes de uma comunidade. Suas experiências o fazem conhecer a desgraça final dos conflitos humanos e os efeitos deletérios para a sociedade. Justifica-se seu pessimismo.  

Ele tem o dever de se posicionar publicamente sobre fatos que afetem a missão da organização e o desempenho profissional. O verdadeiro comandante, vestido da couraça envelhecida de homem das armas, jamais permitirá que seu julgamento seja deformado por conveniências políticas. 

A responsabilidade do militar perante o Estado é de natureza tríplice. Exerce uma função representativa, uma função consultiva e uma função executiva. O ordenamento dessas relações é capital para a política de defesa do país e procura consolidar um sistema de pesos e contrapesos entre o civil e o militar, sem sacrifício de valores sociais. Nos pratos da balança se equilibram, em posições opostas, o lícito interesse corporativo do militar e o necessário controle pela sociedade em ambiente democrático.  

Mais recentemente, o artigo 142 da CF/88, que elenca as missões “pétreas” nas Forças Armadas, vem sofrendo ataques. “Transitou em julgado, não cabe recursos”, embora encontremos grupos defensores de uma revisão sob um entendimento difuso de um papel de poder moderador das Forças Armadas, defendido em ambientes inelásticos, personalistas ou eivados de interesses políticos. Admito a necessidade de se reflexionar a missão constitucional das Forças, incorporando-se dinamismo modernizador ao conceito, que aclare possíveis imperfeições no texto. Não obstante, não se promovam modificações por contenciosos de momento. 

Voltemos à balança. Na disputa daqueles interesses está o nó de górdio das relações entre civis e militares. O grau em que eles entram em conflito depende das exigências de segurança externa e interna, e da natureza e força dos valores incrustados na sociedade. 

Entre nós, Terra Brasilis, a disputa se amplia pelo afastamento da sociedade ao tema, quase uma irresponsabilidade. Poderíamos justificar o desatino pelo baixo nível educacional que se reflete na incompreensão dos assuntos que envolvem Forças Armadas.  

Quem deveria assumir o papel de ator principal da peça defesa nacional? O povo brasileiro consciente! Mas, inconscientemente, ele transfere a responsabilidade de conduzir a cena aos próprios militares. 

A simbiose civil militar só se concretiza por meio de uma sólida obra de arte, que os torne interdependentes. Os batentes da ponte são a posição institucional dos militares, sua influência na sociedade, bem como a natureza da ideologia dos grupos nominados. A predominância egoísta de qualquer dos fatores fissura a estrutura, ofendendo a estabilidade da Nação. O que, convenhamos, não se espera em um país maduro democraticamente.  

É crucial fortalecer a segurança das instituições sociais, econômicas e políticas contra ameaças externas (das quais a médio prazo estamos libertos) e contenciosos internos (ardentes nos últimos tempos). Esses, a meu ver, sem soluções a curto prazo.  

Deixo-lhes uma reflexão: qual a natureza do corpo de militares que a sociedade deseja e pretende arcar? Enxuto e profissional ou abrangente e social? Envolvido em política ou abrigado dessas tentações?  

Os cenários de guerra não são mais westfaliano, quando se subordinavam à confrontação entre estados-nação. Agora, viceja a “guerra de quarta geração”, sem fronteiras, inimigos sem rosto e objetivos não palpáveis. O centro de gravidade é a vontade de lutar, e a opinião pública, genuína ou forjada. 

Por tudo isso, cabe à sociedade a intransferível responsabilidade de avaliar adequações que possam ser necessárias ao papel das Forças Armadas. Protegê-las contra corsários em busca de credibilidade. Fortalecê-las como instrumento independente de Estado, peça importante da estabilidade interna e da dissuasão externa tão somente em nome do povo brasileiro. 

Paz e bem! 


* Otávio Santana do Rêgo Barros é general de Divisão do Exército Brasileiro (R1). Doutor em Ciências Militares, foi porta-voz da Presidência da República (2019-2020). Comandou, no Rio de Janeiro, a força de pacificação nos complexos do Alemão e da Penha e a segurança da Rio+20. Foi Chefe do Centro de Comunicação Social do Exército.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


RPD 35 || André Amado: A construção de um personagem

André Amado analisa, em seu artigo, como se constrói personagens fortes e inspiradores, capazes de levar os leitores a viverem histórias inesquecíveis

Peguei ao acaso I’ll Walk Alone, de Mary Higgins Clark, para ler. Ato sem pensar. A autora já publicou mais de 30 títulos, muitos dos quais frequentadores de listas de best-sellers, duas razões que, em geral, me levam a descartar a escolha. Acontece que, num primeiro exame, logo nos agradecimentos, me deparei com a seguinte declaração: 

Cheguei ao final, o que quer dizer que a história foi contada, a jornada, concluída, e as pessoas, que no ano passado não passavam de produto de minha imaginação, viveram a vida que escolhi para elas, ou, melhor dizendo, que elas escolheram para elas mesmas. 

Clark acabava de desmontar meus preconceitos contra livros de produção em massa, preconceitos que, de resto, não faziam o menor sentido para quem, como eu, era admirador habitual de Michael Connelly e John Grisham, ambos autores prolíferos de obras de sucesso. Enfim, na beirada de uma estante, não são raras demonstrações de incoerência. 

Fascinou-me que, em uma frase, Clark expusesse um dos dilemas centrais dos romancistas: alimentar a autonomia dos personagens de suas histórias, ou, ao contrário, controlar até mesmo a respiração deles. Em uma palavra, confessaria Ray Bradbury (1920-2012): “Meus personagens escrevem a história para mim. Eles me dizem o que querem, e eu lhes digo para ir em frente. Acompanho seus movimentos, datilografando o texto à medida que eles correm ao encontro do destino”. Já Vladimir Nabokov (1899-1977) decretaria: “Se eu quiser que meus personagens atravessem uma rua, eles atravessam e ponto!”. 

Por sorte, a riqueza dessa discussão rejeita posições extremadas. Gustave Flaubert (1821-1880), a quem se atribui um dos pilares da literatura ocidental, diria: “O escritor tem de atuar como Deus: está em todas as partes, mas nunca é visível”. Ernest Hemingway (1899-1961), outro grande nome da galeria de escritores, centraria o debate: “Ao escrever uma novela, o escritor deve criar um ser vivo, não pessoas com personagens”. Era a pista de que precisava Milan Kundera (1929-...) para afirmar: “O personagem não é a simulação de um ser vivo. É um ser imaginário… Dom Quixote é quase impensável como ser vivo e, no entanto, em nossa memória, que personagem é mais vivo do que ele?”. 

Duas outras referências me enchem as medidas. A primeira, atribuída a Michelangelo: Não faço esculturas, apenas retiro o excesso de pedras. A outra, de um escritor japonês, por cujo Nobel em Literatura sigo torcendo. Trata-se de Haruki Murakami, que assim se expressou em Killing CommendatoreSempre desfrutei o momento, cedo de manhã, em que olho intensamente para a tela toda branca. Chamo-a de ‘Tela Zen’. Ainda não pintei coisa alguma, mas é mais do que um mero espaço em branco. O que se esconde naquela tela branca é o que haverá de emergir. Olhando mais atentamente, descubro várias possibilidades, que se cristalizam perfeitamente em como devo prosseguir. Este é de fato meu momento de prazer. O momento em que a existência e não-existência se reconciliam”. 

Quem sabe não seja esta a melhor maneira de se construir um personagem: reconciliar o que queremos que ele seja e o que ele mesmo pretende ser? 


*André Amado é escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


RPD 35 || Jairo Nicolau: "Urna eletrônica é motivo de orgulho, não de polêmica"

ENTREVISTA ESPECIAL - JAIRO NICOLAU


Militância do presidente da República na suspeição do voto digital pode ter contaminado cerca de um terço do eleitorado brasileiro, acredita o cientista político Jairo Nicolau

Por Caetano Araujo, Arlindo Oliveira e André Amado

Entrevistado especial da edição de setembro da Revista Política Democrática Online, o cientista político Jairo Nicolau critica duramente os ataques contínuos do presidente da República à urna eletrônica - e ao processo eleitoral brasileiro -, considerada por ele como um dos processos de votação mais eficientes do mundo. "A urna eletrônica foi um grande passo para aperfeiçoar o processo de votação no Brasil. É, assim, um sucesso tanto contra a corrupção como na adulteração da vontade do eleitor no momento da votação e, claro, depois na contagem dos votos", avalia.

De acordo com o professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), estima-se que a militância do presidente da República na suspeição do voto digital possa ter contaminado cerca de um terço do eleitorado. "O estrago é tão lastimável como irreversível. Poderá ser um período grande de desconfiança, de crises políticas graves", lamenta.

Mestre e doutor em Ciências Políticas no Iuperj, com pós-doutorado na Universidade de Oxford e no King’s Brazil Institute, Jairo é autor de vários livros sobre a política brasileira, como História do Voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 e Sistemas Eleitorais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. O último deles, publicado já durante a epidemia, é “O Brasil dobrou à direita: Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018”.

Na entrevista à Revista Política Democrática Online, Jairo Nicolau também comenta termas como o sistema político brasileiro, reforma política, fragmentação partidária e processo eleitoral, entre outros. Confira, a seguir, os principais trechos:

Revista Política Democrática Online (RPD): Seu livro sobre a história do processo eleitoral no Brasil louva nosso sistema eleitoral por ser isento de fraudes. Como avaliar os questionamentos que se têm levantado recentemente quanto à inteireza do sistema de votação e, em particular, de apuração?
Jairo Nicolau (JN):
Dei ênfase à redução das fraudes, não a seu banimento. Até pouco tempo, as fraudes aconteciam em dois momentos. No momento da votação propriamente dita - e todos aqui somos da época da urna de lona, da cédula de papel, e nos lembramos de como era difícil controlar as fraudes, mesas sendo arranjadas para facilitar que certas forças políticas comparecessem para encobrir o comparecimento de uma pessoa, votar no lugar de outra. E, na hora da apuração, quando todas as cédulas eram depositadas sobre mesas situadas em ginásios esportivos. Pegava-se um uma cédula, lia-se o nome de um e cantava-se o nome de outro. Se não tivesse um fiscal ali, na hora de transformar os votos contados para os boletins de urna, ninguém detinha as fraudes. Fui presidente de sessão eleitoral durante muitos anos e acompanhei as apurações e lembro bem de alguns casos. 

Esse tipo de fraude terminou com a urna eletrônica. Além da urna eletrônica, temos hoje também um cadastro nacional de eleitores, de que pouca gente fala, que é checado periodicamente para evitar duplicação de entrada de eleitores. Dispomos ainda da leitura biométrica da identificação dos eleitores que exclui qualquer possibilidade de termos um eleitor inscrito em mais de uma sessão eleitoral ou uma pessoa votando em nome da outra. A urna eletrônica é, assim, um sucesso tanto contra a corrupção como na adulteração da vontade do eleitor no momento da votação e, claro, depois na contagem dos votos. 

"Nossa fragmentação é tão alta que vamos levar muito tempo para voltar, por exemplo, ao que éramos na década de 90, com oito ou dez partidos. Isso só não aconteceu em 2018 por uma razão puramente contingente, o arrastão bolsonarista"

Subsistem algumas denúncias no atual processo eleitoral, como as de compra de votos, vale dizer, a influência política de alguns segmentos das elites sobre eleitores mais vulneráveis em certas áreas do Brasil. Isso não está mapeado, mas, de fato, ocorre. Ainda não contamos com um sistema de eleição semelhante a países com elevado nível de educação, como na Escandinávia, por exemplo. Mas o que a urna eletrônica fez já foi uma grande conquista. Não se dispõem de estatísticas confiáveis a respeito da confiabilidade das urnas eletrônicas. Estima-se que a militância do presidente da República de suspeição do voto digital possa ter contaminado cerca de um terço do eleitorado. O estrago é tão lastimável como irreversível.

Do nosso lado, dos democratas, das pessoas que acreditam que a urna foi um grande passo de aperfeiçoar o processo de votação no Brasil, resta sempre um movimento de reação. Reação significa campanha, denunciar fake news. Mas o estrago já está feito, justo quando deveríamos estar celebrando o reconhecimento de um dos processos de votação mais eficientes que conseguem traduzir a vontade do eleitor em preferência política do mundo. Diria até que, do ponto de vista da logística, é o melhor do mundo. 

E esse sistema foi colocado em xeque pelo senhor Jair Bolsonaro. Poderá ser um período grande de desconfiança, de crises políticas graves. Continuo otimista com relação a nossa urna eletrônica e, agora, com o voto biométrico. É, sem dúvida, motivo de orgulho, não de polêmica, para todos nós, brasileiros. 

RPD: Mais uma vez, estamos presenciando tentativas de alteração do sistema eleitoral a pouco mais de ano do pleito 22. Toda essa movimentação obedece ao receio dos deputados de não se reelegerem reflete, de fato, a necessidade de aprimorar o sistema eleitoral? A seu juízo, que alterações se justificariam para além dos interesses da sobrevivência eleitoral de A, B ou C?
JN:
Em razão da regra de que qualquer mudança eleitoral só vale depois de um ano de aprovada, os anos ímpares costumam acumular propostas várias de reforma das regras do processo de votação. Aprovou-se, por exemplo, um calendário de entrada em vigor da cláusula de desempenho, ou seja, que os partidos devem ter uma votação mínima em âmbito nacional para eleições para a Câmara, para o partido ter, depois da eleição, acesso a recursos importantes, como fundo partidário, tempo de televisão. Essa regra já está em vigor, e a legislação prevê que ela vai aumentar até 2030. Ou seja, é possível fazer reformas nas regras eleitorais necessariamente para entrar em vigor na eleição seguinte.

Mas o quadro que a gente tem hoje, pelo menos desde 2014 sobretudo, é que, com algumas reformas, ficou claro que o intuito dos deputados era muito mais de se preservar politicamente do que pensar algum tipo de reforma mais generosa para o país, de aperfeiçoamento do sistema representativo. Acompanho, há muito tempo, os debates na Câmara e compreendo que a motivação dos deputados para reformas não exclui sobrevivência política. Seria estranho imaginar-se partidos cometendo suicídios políticos. Vejamos a questão do voto distrital. Sabemos que, por essa via, partidos de opinião praticamente desapareceriam. Ninguém espera um cálculo político absurdo desse tipo. Defende-se, também, a representação proporcional. Será apenas para proteger os interesses de minoriais? Difícil dizer. Em toda eleição tem um pouco de malícia, de auto-interesse, o que não é necessariamente ruim. 

É o que tem acontecido, e aconteceu primeiro com o fundo eleitoral. Quando os deputados e senadores criaram, em 2015, o fundo eleitoral, perceberam que seria estratégico para a sobrevivência política. O dinheiro da campanha viria, sobretudo, do fundo; só faltava criar regras para proteger quem já tinha mandato. Na confecção do fundo, foram muito generosos consigo mesmos. Os partidos maiores ficaram com muito mais dinheiro do que os menores. Como era uma primeira eleição com o fundo, não custava ter deixado uma parte maior para distribuir para os pequenos partidos. Mas, não, eles concentraram o dinheiro do fundo. 

"Quando os deputados e senadores criaram, em 2015, o fundo eleitoral, perceberam que seria estratégico para a sobrevivência política. Só faltava criar regras para proteger quem já tinha mandato"

Para proteger a elite política da incerteza da recondução eleitoral, cresceram as perspectivas do chamado Distritão, proposta agora derrotada na Câmara. Na visão dos políticos - tenho muitas dúvidas se eles estavam corretos nessa análise – o Distritão protegeria os deputados que tem mandato. Lembrem-se que, na última eleição, por exemplo, partidos, como o PP, o Progressista, deram muito mais dinheiro para quem tinha mandato, tentando atraí-los para suas legendas. Chegou-se a prometer dois milhões e meio por candidato. Ou seja, o partido não lança candidato à presidência, economiza e, com as sobras, celebra as barganhas. Apoiavam-se em propostas substantivas, republicanas, de melhor servir à cidadania? Não, prevalecia a ideia clássica que move os deputados: o interesse de pessoas, de políticos, nada a ver com os interesses dos partidos. 

Reformas desse tipo, que chamo de egoísmo extremado, haverão de conduzir ao desaparecimento de partidos, que se atomizariam e se fragmentariam ante a ânsia incontida dos políticos de sobreviverem abraçandos mandatos, avessos a tudo que possa soar republicano, orgânico, de interesse público.

Não devemos esquecer que, em 2017, houve reforma profunda das regras eleitorais: acabou-se com a coligação e criou-se um sistema de cláusula de desempenho que vai subindo até 2030. O mais curioso é que, até agora, não se testou numa eleição nacional o fim das coligações, muito embora já conste da Constituição, o que um absurdo, é demais. Tanto mais quando já se tenta retirar da Carta Magna o que não foi testado. O que é isso se não é auto interesse? Se há quatro anos era importante para o Brasil acabar com as coligações, o que mudou agora? 

A meu ver, esse debate foi muito mal encaminhado, conjugado ainda com essa discussão descabida sobre voto impresso. Com base em minha experiência de estudar esse assunto há muito tempo, digo que nunca vi um debate tão ruim, tão mal feito, tão mal escrito, tão desalinhado como esse das três comissões que o analisaram. É o sinal dos dias, uma legislatura medíocre que se meteu num tema que exige certa especialização e que não poderia ter produzido outra coisa que não um resultado medíocre.

RPD: Seu livro sobre o processo eleitoral para a câmara foi publicado em 2017, meses antes da promulgação da emenda constitucional que proíbe coligação, e a possibilidade de adoção de uma cláusula de barreira de 1,5%, progressiva no tempo, que terminou sendo adotada pela emenda de iniciativa do senador Ferraço. Acredita que a cláusula de desempenho nessa década funcionará com o propósito tal como foi imaginada, isto é, de 2%, 2,5%, em 2026, e 3%, em 2030?
JN:
Acho que sim. A gente chegou a tamanho grau de pulverização e fragmentação partidárias que, independentemente do fim da coligação, iniciou-se um processo que se assemelha a uma onda. A onda foi ao máximo com a pulverização de partidos pequenos. Não há congresso algum no mundo que tenha o maior partido representado com menos de 60 membros. Tal hiperfragmentação é disfuncional. A cada votação na Câmara, tem-se de contar com 26 indicações de lideranças. Viu-se isso no processo de impeachment da Dilma. O eleitor não consegue mais seguir um partido diante de tantas siglas. Os políticos não logram criar uma identidade com uma legenda, porque a confusão é total.

É ruim para o presidente. A própria presidente Dilma mencionou que, na época do Fernando Henrique, do Lula, eles tinham cinco, seis partidos na coalizão. No caso dela, eram 14 ou mais.

"Além da urna eletrônica, temos hoje também um cadastro nacional de eleitores, de que pouca gente fala, que é checado periodicamente para evitar duplicação de entrada de eleitores"

Mas há uma razão que me parece fundamental para esse processo que eu estou apontando de encolhimento do quadro, de fragmentação, que é o dinheiro. Quer dizer, não dá para pulverizar o dinheiro, a elite política percebe que tem de concentrá-lo na mão de um número menor do que 26 forças políticas. Já algum movimento nessa direção. Alguns políticos do PSD falam de fusão com o PP e o PSL, que daria um mega partido de direita, ultrapassando 100 deputados, pela primeira vez em mais de 20 anos.

O problema maior pode ser para as pequenas legendas. O que têm acrescentado no debate nacional, com algumas exceções? Muito pouco. A cláusula de desempenho não foi mexida, vai manter-se a mesma, então o que mexe com o dinheiro não é a coligação, lembrando que a coligação é uma decisão do político, o fato de ter a norma não significa que, na prática, ela se concretize. Na campanha de 1986, muito poucos partidos se coligaram. O PT e o PSD, do Kassab, sempre se opuseram a coligações, e não será, agora, quando passam por um bom momento político, que haverão de rever sua posição de base. 

Tudo indica, portanto, que quem quer coligar-se não tem cacife e quem não quer vai partir para atuações isoladas em alguns Estados, decididos a não se prestar a dar carona a partidos menores. Daí porque eu achar que o congresso de 2022 vai ser mais compacto do que o atual. Claro, não vamos chegar ao modelo inglês, com dois grandes partidos e alguns partidos pequenininhos. Nossa fragmentação é tão alta que vamos levar muito tempo para voltar, por exemplo, ao que éramos na década de 90, com oito ou dez partidos. Isso só não aconteceu em 2018 por uma razão puramente contingente, o arrastão bolsonarista. Caso contrário, o DEM, PSDB e MDB teriam bancadas mais expressivas com 50, 60 deputados cada um.

Quer dizer, o que o Bolsonaro fez em 2018, com aquele desempenho impressionante no primeiro turno, que se traduziu numa bancada gigantesca de deputados, ajudou, digamos assim, a quebrar um padrão, mas isso, para mim, não continua. Nem sempre há eleições extraordinárias. Vimos muitas eleições depois da redemocratização, e só em uma, um partido, fez o estrago. Se a gente olhar e comparar o que aconteceu com o maior partido do Brasil, o Partido dos Trabalhadores, para chegar a 50 deputados, o PT passou por umas cinco eleições. Teve oito em 82, dobrou para 16 em 86, foi para 30 e poucos em 90, chegou em torno de 50 em 94. Quer dizer, o partido levou uma década e meia ou duas décadas para chegar a 50 deputados, e o PSL numa eleição chegou a isso. Isso nunca tinha acontecido. 

O surgimento do PSL trouxe um elemento ainda de fragmentação. Agora, o PSL, não é à toa que ele está buscando uma aliança com outro partido, porque eles estão percebendo que ali de baixo não tem nada, é oco. O partido não tem nome, aquilo ali foi um arrastão ocasional. Eu apostaria, intuitivamente, é uma aposta só de conversa fiada, vamos dizer assim, que uma boa parte, sei lá, 60%, 70% dos deputados do PSL não se reelegem mais, eles entraram ali e vão sumir como surgiram. Para mim, 22 será o momento de compactação política. Mas, de novo, não vai ser a compactação como conhecemos na década de 90, mas tampouco vamos repetir esse modelo de hiperpulverização de 2018. 

RPD: Sabemos que nosso sistema eleitoral nas eleições proporcionais não é um sistema frequente no mundo. Normalmente, quem adota o sistema proporcional adota o sistema com alguma forma de fechamento ou pré-ordenamento das listas. Dado que nós temos uma certa singularidade nesse ponto, quais seriam, do ponto de vista dos eleitores, os principais problemas que esse sistema acarreta para nós?
JN:
Para mim, o maior efeito desse sistema é que tem muitas formas de organizar-se a representação proporcional. O que há em comum entre os vários países que usam a representação proporcional é o princípio de que cada partido lança uma lista de nomes. Se a gente for na Polônia, na Bulgária, em Portugal, na Espanha, qualquer país do mundo que usa a representação proporcional, o fundamento é: lance uma lista de nomes, o voto dessa lista vai ser contado e nós vamos distribuir as cadeiras proporcionalmente segundo o volume de votos de cada lista. Isso é o que há de comum. Em Portugal, por exemplo, o eleitor não vota em nomes, porque a lista já vem prontinha de casa. Digamos que se no Brasil o sistema português fosse adotado, nós chegaríamos na seção eleitoral, olharíamos a ordem dos nomes. Primeiro lugar, candidato fulano, beltrano, ciclano. Assim funciona em Portugal, de modo de que na hora que se olha para a cédula, só marca um xis onde está seu partido. Como a gente votava para presidente no Brasil na época da cédula de papel, é uma cédula portuguesa para deputados: aparecem o símbolo do partido e o nome. A marcação do lado indica que se comprou o pacote, não se está escolhendo um nome. 

"É o sinal dos dias, uma legislatura medíocre que se meteu num tema que exige certa especialização e que não poderia ter produzido outra coisa que não um resultado medíocre"

O que temos no Brasil é um sistema cuja ênfase no nome no candidato é muito forte. Costumo dizer que isso é agravado para os eleitores comuns pelo próprio processo de votação. A urna eletrônica, em que pesem todas as virtudes que identifiquei, não ajuda  passar para o eleitor a sensação que ele está votando numa lista e não num nome. Se eu tivesse, por exemplo, um eleitor peruano que usa o sistema brasileiro de lista aberta, ele tem uma cédula grandona com o nome de todos os candidatos e as listas. Ele vai lá e marca um nomezinho na cédula, com todos os candidatos. Claro, no Brasil não daria porque são 400, 500 candidatos. Mas, se fossem 80, na época da cédula de papel, você faz uma cédula peruana, grandona, com retratinho, você vai lá e escolhe o retratinho, você está votando no nome. No Brasil, a gente não tem isso. Então, respondendo a sua pergunta, eu acho que o maior problema que eu vejo na lista aberta é que o papel do político individual é muito grande. E como os Estados cresceram muito em tamanho, a população ficou muito grande e a sociedade brasileira, mais complexa, a política ficou mais democrática, os interesses atomizados da sociedade começaram a adotar o lugar da política, dos partidos, de uma maneira, fazendo uma ligação direta, que não existia no passado. Claro que sempre houve padre, um radialista, um artista da televisão fazendo política, lideranças da sociedade sempre entraram na política da vida. Nem todo mundo precisa começar a carreira política se filiando no diretório local, sendo vereador, depois deputado estadual. Essa carreira, digamos linear, acontece, mas o que eu percebo, recentemente, é que com essa mudança da sociedade brasileira, o atalho entre celebridades, lideranças da sociedade civil e a política, tanto para bem quanto para mal, ficou muito curtinho, ficou muito rápido.

A bancada do PSL é isto, não é? São 50 personalidades, raríssimos políticos de carreira ali, são pouquíssimos. Isso aparece com interesses econômicos, empresários que no passado faziam lobby, tinham amigos na política, começaram a se meter com política. Não estou falando de grandes empresários, do presidente da CNI, não, eu estou falando de empresários locais, dono de uma transportadora, um pecuarista que resolve ele mesmo entrar na política. Interesses, claro, do outro lado, sindicais. Não mais interesses religiosos, a gente não está falando de um líder religioso nacional, a gente está falando de um pastor de uma igreja pequena, de uma região do Rio de Janeiro, o sujeito vai direto. É um pastor de uma igreja rural, não tem atalho, ele entra num partido um ano antes da eleição, se elege federal. Ele é representante de quem? Ele é simplesmente o intermediador em Brasília entre os interesses da igreja e dos moradores lá da região dele. 

RPD: A fragmentação está relacionada ao sistema? A falta de transparência e de inteligibilidade para os próprios eleitores está relacionada com isso? O que fazer para poder avançar na solução dessas questões?
JN:
Acho que de certa maneira não tem como tirar a responsabilidade do sistema proporcional de lista aberta combinando com a mudança que o país passou. Quando a elite política era mais fechada, ela resolvia bem isso. Digamos, colocava os quadros, pensando até recentemente, no PSDB, nos partidos que fizeram a constituinte. Você tinha uma elite parlamentar que controlava a política e às vezes aparecia uma figura dessa, mas ele ficava na franja do sistema político, ele era em menor número. Agora, o Brasil mudou, o sistema eleitoral é o mesmo. Esse atalho é feito em ligação direta. Como a gente fazia no passado, ligava o carro em ligação direta, você não tem chave, não tem intermediação, isso me preocupa.

Para mim, mesmo uma reforma política, no que a gente está falando aqui de compactação, vai melhorar um pouco a inteligibilidade do sistema, ele vai ficar um pouco mais arrumado, mas essa questão mais funda, do hiperparticularismo dominando a política, que tem a ver com a lista aberta – claro, você pode botar uma lista fechada e não resolver esse problema –, que a lista aberta agrava esse problema eu não tenho dúvida. Isso veio para ficar, ou seja, o legislativo brasileiro está muito pulverizado não só em termos partidários, mas do particularismo dos interesses locais, interesses pontuais. A gente vê uma campanha para deputado, eu lembro que, no ano passado, tinha um sujeito que era representante dos porteiros do Rio de Janeiro, ele queria voto como representantes dos porteiros e trabalhadores nos prédios. “Eu quero representá-los em Brasília”. Veja, não é mais o interesse territorial, é o hiperinteresse. Isso realmente me preocupa, e eu não sei como a gente tem como mudar isso. Porque depois que a gente coloca essas pessoas no Legislativo, aí que elas não vão querer um sistema de lista fechada, porque elas provavelmente vão ficar na rabeira da lista, não é mesmo? É um modo de reprodução que é difícil quebrar nesse caso. 

RPD: Devidamente autorizado por sua experiência na academia e nos corredores da política, que proposta gostaria de ver vitoriosa nas mudanças que se insinuam na área eleitoral?
JN:
Para ser totalmente honesto, e diante dessas propostas, eu diria nenhuma. Nesse momento, era melhor deixar do jeito que está. A gente fez a reforma em 2017, ela não foi experimentada, eu acho que foi uma reforma que tem mais acertos do que erros. Talvez num momento dois, digamos, a partir da próxima legislatura eleita não com essa excepcionalidade que foi a eleição de 2018, nós possamos começar a discutir, não sei se nessa seguinte ou na outra, talvez uma forma de dar um pouco mais de contenção partidária a essa lista aberta brasileira. Talvez dando aos partidos mecanismos de ordenar a lista, como se faz em Portugal, ou até um formato que é usado em alguns países europeus, que eu gosto, particularmente, que é o seguinte: você fecha a lista, mas dá ao eleitor a opção, caso ele queira, de votar num nome específico. Com isso, caso um nome tenha algum destaque, ele pode se eleger. Quer dizer, você quebra um pouco, dá uma flexibilidade, por isso este modelo se chama lista flexível, à lista. Mas tudo isso pode ser discutido num ambiente em que, primeiro, a gente acabou com as coligações, tem uma certa compactação partidária e fique um ambiente melhor para conversar. Nesse ambiente, agora, desse atomismo que a gente conversou, eu acho melhor não mexer em nada. 2022, com as mesmas regras de 2018, com aperfeiçoamento de um fim da coligação e um aumento dos 2% da cláusula de desempenho. 


Saiba mais sobre o entrevistado

Jairo Nicolau
É cientista político, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). Mestre e doutor em Ciências Políticas no Iuperj, com pós-doutorado na Universidade de Oxford e no King’s Brazil Institute, é autor de vários livros sobre a política brasileira, como História do Voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 e Sistemas Eleitorais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. O último deles, publicado já durante a epidemia, é “O Brasil dobrou à direita: Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018”.

Saiba mais sobre os entrevistadores

Caetano Araújo
É graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e Consultor Legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.

Arlindo Fernandes de Oliveira
É advogado, especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público, IDP, especialista em Ciência Política pela Universidade de Brasília, UnB, bacharel em direito pelo Uniceub. Foi assessor da Câmara dos Deputados e da Assembléia Nacional Constituinte (1984-1092), analista judiciário do Supremo Tribunal Federal (1992-1996) e assessor da Casa Civil da Presidência da República (1995). Professor de Direito Eleitoral no Instituto Legislativo Brasileiro, ILB, desde 2004. Desde 1996, consultor legislativo do Senado Federal, Núcleo de Direito, Área de Direito Constitucional, Eleitoral e Processo Legislativo.

André Amado
É escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.


RPD 35 || Valdir Oliveira: Retomada da economia na tempestade perfeita

Equilíbrio no ambiente político, com democracia fortalecida, é fundamental para o país recuperar a estabilidade econômica e voltar a crescer

A economia é cíclica. Ela responde aos movimentos da vida. E os movimentos dessa pandemia, consequência da crise sanitária que estamos vivenciando, contribuíram para reforçar a já forte concentração de renda no Brasil, com a exclusão produtiva de muitos brasileiros. 

 Os pequenos negócios foram vítimas de seus limites de sobrevivência, e as ajudas na política compensatória, de complementação de renda, os excluíram, deixando-os sem condições de trabalho e de renda. As políticas de socorro por meio de crédito de fomento foram direcionadas para os que conseguiram se manter com um cadastro limpo, já que os caminhos foram trilhados para os bancos, e esses não podem fugir das regras do sistema financeiro, que não permite acesso aos que têm restrições cadastrais impostas pelo mercado. De forma simples, é essa a fotografia do momento, após ano e meio de pandemia, cujo resultado foi o empobrecimento dos mais pobres e o enriquecimento dos mais ricos. A estabilidade econômica, o crescimento e a distribuição de renda das últimas décadas foram perdidos em dois anos pandêmicos e de extremos políticos, na qual faltou a empatia de lideranças que os fizessem sentir a dor de seus liderados. 

 O período que antecedeu o Plano Real era de um Brasil de hiperinflação e de planos econômicos recheados de populismo, mas sem efetividade de suas propostas econômicas. As contas públicas vinham de um descontrole desde a construção de Brasília até fortes endividamentos públicos oriundos de estratégia estatizante dos governos militares. Esse cenário trazia a perda de renda dos mais pobres, com o esgotamento da capacidade de investimento estatal, levando a uma profunda crise, debelada apenas pelo Plano Real, que atacou a doença crônica da inflação e do desequilíbrio das contas públicas. A solução econômica só se tornou possível por conta de um ambiente político equilibrado, que fortaleceu a democracia, preparando o Brasil para a construção de um modelo de desenvolvimento inclusivo e com distribuição de renda. 

A transição proposta pelo Plano Real foi permeada de ações paralelas no intuito de ajustar a economia e socorrer os excluídos, empobrecidos, fossem pessoas físicas ou jurídicas. Soluções de crédito fora do sistema financeiro foram-se multiplicando com alternativas de microcrédito ou mesmo de atuação do varejo em sua ampliação do acesso ao crédito daqueles que não cumpriam as exigências do sistema. A busca pela formalização de informais, por meio da solução do Microempreendedor Individual (MEI), que deu condições para que o sistema pudesse enxergar aqueles que estavam produzindo à margem do sistema, foi outro passo importante para que os ajustes econômicos convivessem paralelamente com intervenções estatais no socorro dos excluídos. 

Na última década, tivemos a ascensão e queda de um governo de esquerda que iniciou um descontrole nas contas públicas. Esse caminho levou o ambiente político a ser duramente atingido pela credibilidade de seus protagonistas, levando o país a um sentimento de anarquia, em que a desqualificação das instituições e seus representantes substituiu as sugestões de solução à crise. Esse ambiente favoreceu o nascimento de uma proposta liberal, de redução do Estado. A pauta era inverter a lógica do Estado para fortalecer as realidades municipais e enfraquecer o comando central, o chamado de Menos Brasília e Mais Brasil. 

 Foi nesse momento que entramos na pandemia. A crise sanitária levou, inicialmente, à paralisia econômica dos pequenos negócios e à perda de renda da base da pirâmide. A atividade econômica estagnou-se. O ambiente político acirrou disputas, nas quais líderes trocaram a empatia com seus liderados por influências ideológicas ou de retórica construída para o caos. As soluções saíram do campo econômico ou da saúde, e passaram para o campo ideológico, político. Entramos na tempestade perfeita. 

 Os indicadores de desemprego e inflação, somados ao descontrole das contas públicas, nos remetem ao início da chamada Nova República. O crescimento econômico e a distribuição de renda foram perdidos pelos impactos da crise que vivemos, potencializados pelo destempero do momento político em que as disputas ideológicas se sobrepõem à pauta de sobrevivência do povo brasileiro. O aprendizado das últimas décadas nos ensinou que a retomada da economia precisará do equilíbrio no ambiente político, com o fortalecimento da democracia. Serão necessárias medidas de intervenção do Estado para inclusão dos brasileiros excluídos com alternativa de crédito e complemento de políticas compensatórias. Mas o custo dessa intervenção deverá ser acompanhado de um projeto de organização das contas públicas. Só assim retomaremos o caminho do desenvolvimento com a distribuição de renda que colocará o Brasil novamente na rota do desenvolvimento. 


*Valdir Oliveira é superintendente do Sebrae no DF 

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


RPD 35 || Alberto Aggio: “Que país é esse?”

O Brasil sob o governo de Bolsonaro é sintoma evidente de uma história que precisa ser decifrada, avalia o historiador Alberto Aggio

O Brasil não é para principiantes”. Quantas vezes já se leu ou ouviu esta frase, atribuída a Antonio Carlos Jobin? Frequentemente, ela é mencionada para atestar a dificuldade de se compreender o país. Está presente em quase todos os exercícios de revisão das principais interpretações sobre a formação histórica brasileira. Comunidades de cientistas sociais se dedicam recorrentemente a pensar e repensar os interprétes do país em encontros científicos, seminários e antologias de ensaios, sem chegarem a conclusões mais definitivas. 

Como se sabe, as interpretações sobre o Brasil compõem tradição de enorme multiplicidade em suas abordagens, nada uniforme e harmônica, produzida em diversos momentos da sua história. Uma tradição que ensejou embates inclinados tanto à conciliação quanto ao rechaço a ela. Um paradoxo nem sempre percebido nas disputas políticas e culturais que se desenrolam no presente. Pensar o Brasil nunca foi apenas um exercício acadêmico ou intelectual. Trata-se de um debate que alimenta, o tempo todo, projetos que visam ao futuro do país. 

O Brasil, seguramente, não é para principiantes. Contudo, não seria absurdo pensar, ultrapassando o senso comum, que tal asseveração poderia ser aplicada a inúmeros países, dos EUA à Rússia, da China ao México, do Afeganistão à Bolívia, apenas para mencionar alguns exemplos. Em todos eles, há incógnitas a serem decifradas, e seus problemas atuais não são nada simples, como temos visto. 

É preciso estabelecer também um questionamento a respeito do exagero de que o Brasil guarda uma excepcionalidade superlativamente distinta de outras experiências históricas, com seus maneirismos típicos dos quais o “jeitinho” ou a “gambiarra” são incensados ad nauseum. Além de um ar de troça e menosprezo, há nesse tipo de leitura soberba que visa desacreditar a tarefa do pensamento na compreensão do país bem como do seu lugar no mundo. Essa forma de conceber o país é inútil e improdutiva diante dos desafios civilizatórios que temos diante de uma mundialização que se impõe a cada dia. Se o Brasil for apenas isso estamos fritos. 

O realismo nos indica que, para pensar a experiência histórica brasileira, isolando os esquemas sociológicos abstratos, o exercício da comparação é vital. A equalização ao tempo dos contemporâneos não poderá ser sequer vislumbrada caso não se reconheça que a vida social e política, a economia e os valores civilizatórios são hoje História global. Seria importante pensar intelectualmente o Brasil por meio de uma análise capaz de alocá-lo num quadro comum de problemas de natureza interdependente, entre os quais se podem mencionar os desafios da consolidação da democracia, da inserção na globalização da defesa e afirmação da sustentabilidade ecológica. 

Embora não caiba dizer que existe uma linhagem do pensamento brasileiro seguindo essas indicações, há quem já a percorra sob uma chave de leitura que afirma analiticamente que a sobreposição, combinação e síntese entre a matriz ibérica e uma tradução particular do americanismo deram ao país a morfologia da sua formação social. A partir dessa chave, o Brasil pode ser pensado concretamente, ainda que essa não seja uma tarefa exclusiva do pensamento social e de seus intelectuais. A complexidade que daí deriva supõe a recusa à adoção da estratégia de um “tempo exaltado” como solução dos nossos dilemas históricos ao se sugerir, como faz Luiz Werneck Vianna, a proposição de “exploração do transformismo ‘de registro positivo’” como a melhor indicação para a compreensão dos “processos societais novos na sociedade brasileira (...) depois da institucionalização da democracia política em meados dos anos 80”[1]

O Brasil moderno se fez em meio às disputas intelectuais e políticas pela hegemonia no andamento da sua “revolução passiva”, uma história de paradoxos, contradições e incompletudes. Até mesmo movimentos que buscaram caminho modernizador e democrático, como foi o Modernismo de 100 anos atrás, vivenciaram isso e, de acordo com Vinicius Müller, acabaram produzindo “nova situação de exclusão ou, no mínimo, de diferenciação, entre os membros iluminados da intelligentsia e aqueles que, mesmo formando uma grande parte do país, são, segundo esse olhar, analfabetos políticos, ignorantes religiosos, facilmente manipuláveis e/ ou pouco conhecedores da própria história”[2]

Que país é esse? se perguntava um atormentado Renato Russo numa de suas canções no final dos anos 1980. Décadas à frente, ainda perplexos, somos nós que indagamos: que país é esse que entronizou Bolsonaro? Não há como não reconhecer que o Brasil sob Bolsonaro é sintoma evidente de uma história que precisa ser decifrada. Não pode ser visto como um parêntesis. Ele já estava aí, mas não foi percebido em sua barbárie e no seu espantoso espelhismo antiglobalista. Não será possível superá-lo, verdadeiramente, apenas apertando os botões da urna eletrônica, embora esse seja um passo necessário e imprescindível. 


[1] VIANNA, L. W. A revolução passiva – iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 10. 

[2] MÜLLER, V. A História como presente. Brasília: FAP, 2020, p. 191-2. 


*Alberto Aggio é historiador, professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e responsável pelo Blog Horizontes Democráticos.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


RPD 35 || Marcus Vinícius Furtado: O que resta ainda por dizer sobre Cuba

Regime cubano é imagem da esquerda utópica que falha ao enfrentar as questões políticas, econômicas e sociais destas primeiras décadas do século XXI

Em julho de 2021, os debates em torno da revolução cubana ganharam novo destaque em virtude das manifestações que ocorreram no país. A resposta inicial do governo foi, além da repressão aos protestos, declarar a crise como fruto da persistência do embargo econômico imposto pelos Estados Unidos a Cuba. Diante da reiteração do mote anti-imperialista, característico da revolução cubana, o presidente Miguel Díaz-Canel convocou os cubanos a ocuparem as ruas em defesa do regime revolucionário. 

Tais declarações marcam a existência de um regime ancilosado, refém de seus próprios pressupostos políticos, mas que ainda é capaz de despertar apoios apaixonados em toda a América Latina. Diante disso, é preciso refletir como, mesmo frente aos problemas econômicos e às frequentes demonstrações de autoritarismo, essa defesa é possível. 

Quando, no início de 1959, os guerrilheiros liderados por Fidel Castro adentraram em Havana, havia a expectativa de que finalmente a América Latina poderia realizar seus desígnios utópicos. Retomando em chave revolucionária a Nuestra América de José Martí, Castro atacava o domínio norte-americano e afirmava a rebeldia dos cubanos como estratégia vitoriosa na conquista da libertação política e econômica da ilha. 

Na América Latina, os impactos da revolução, como demonstra Alberto Aggio[1], impulsionaram a formação de uma cultura revolucionária característica do continente. Nessa imaginação revolucionária há uma cisão entre reforma e revolução que, além de fixar o caminho insurrecional como paradigma, estabelece o Terceiro Mundo e a própria América Latina como novos polos revolucionários diante da estagnação política da URSS.  

Em termos políticos, essa cisão promoveu rearranjos nas esquerdas de diversos países. Contrapondo-se à necessidade de uma etapa democrático-burguesa como antessala do socialismo, a leitura cubana orientou o rompimento de parcela das esquerdas com as burguesias nacionais e os partidos comunistas. No continente dilacerado pelo imperialismo, a violência revolucionária apareceu como a possibilidade de redenção e liberdade. 

Nas décadas seguintes, a retórica heroica da revolução conviveu com as dificuldades internas e as necessidades de posicionamento político no intrincado xadrez da Guerra Fria. Por um lado, o modelo revolucionário cubano, orientado por uma perspectiva de libertação nacional impulsionada pela rebeldia guerrilheira, se distanciava da estrutura partidária soviética. Por outro, frente às ameaças norte-americanas e ao embargo econômico, Havana buscou estabelecer relação de maior aproximação e segurança com Moscou. 

Internamente, as propostas de uma revolução afastada dos dogmatismos e da excessiva centralização do poder logo desapareceram. Conforme demonstra Silvia Cézar Miskulin[2], as posturas autoritárias do regime em relação à intelectualidade cubana foram estabelecidas nos primeiros anos da revolução, alguns anos antes do célebre caso Padilla. Concomitantemente, como demarca Claudia Hilb[3], o voluntarismo e a expectativa do estabelecimento de profundas transformações históricas orientaram a produção de um poder centralizado no Estado e na figura de seu líder. 

Nesse sentido, as realizações que sustentam o imaginário da revolução cubana, a exemplo das políticas públicas nas áreas de educação e saúde, são indissociáveis dessa estrutura autoritária e planificada construída nas décadas subsequentes à revolução. Com o desaparecimento da URSS, para além dos problemas internos, o regime cubano revela com mais profundidade seu caráter insular. Não fortuitamente, protestos de intensidade semelhante aos atuais ocorreram na ilha em 1994, logo após a debacle soviética. 

Portanto, a defesa da revolução cubana parte de uma dissociação que, ao enfocar o desenvolvimento social da ilha, encobre as fragilidades desse sistema social e trata os protestos contra o desabastecimento e a morosidade da vacinação como manifestações de espírito contrarrevolucionário. Mais grave, essa dissociação guarda incômodo silêncio em relação à persistência de um regime ditatorial, terminando por legitimar o autoritarismo e o velho paradigma insurrecional. 

Distante da rebeldia dos barbudos, o regime revolucionário cubano, permanentemente ancorado nos dilemas políticos do século XX, é uma imagem opaca e esmorecida das utopias latino-americanas que teimam em mobilizar determinados setores das esquerdas do continente, entravando o enfrentamento das novas questões políticas, econômicas e sociais dessas primeiras décadas do século XXI. 

[1] AGGIO, Alberto. A teoria pura da revolução. SP: O Estado da Arte, 2021. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/teoria-pura-revolucao-aggio-hd/ 

[2] MISKULIN, Silvia Cezar. Os intelectuais cubanos a política cultural da revolução (1961-1973). SP: Alameda, 2009. 

[3] HILB, Claudia. Silêncio Cubaa esquerda democrática diante do regime da revolução cubana. SP: Paz e Terra, 2010. 


Marcus Vinícius Furtado é pós-doutorando em História pela Unesp-Franca. Publicou os livros Em um rabo de foguete: trauma e cultura política em Ferreira Gullar e A arquitetura fractal de Antonio Gramsci: História e política nos Cadernos do Cárcere

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


RPD 35 || Autores - Edição de Setembro/2021

Jairo Nicolau
Entrevistado especial da edição número 35 da Revista Política Democrática Online (Setembro/2021), Jairo Nicolau é cientista político. É professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). Mestre e doutor em Ciências Políticas no Iuperj, com pós-doutorado na Universidade de Oxford e no King’s Brazil Institute, é autor de vários livros sobre a política brasileira, como História do Voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 e Sistemas Eleitorais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. O último deles, publicado já durante a epidemia, é “O Brasil dobrou à direita: Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018”.

Caetano Araújo
Graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino, é um dos entrevistadores do cientista político Jairo Nicolau. Atualmente, é diretor-geral da FAP e consultor legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.

Arlindo Fernandes de Oliveira
É autor do artigo O que se pode esperar de uma CPI e um dos entrevistadores do cientista político Jairo Nicolau. É advogado, especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público, IDP, especialista em Ciência Política pela Universidade de Brasília, UnB, bacharel em direito pelo Uniceub. Foi assessor da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte (1984-1092), analista judiciário do Supremo Tribunal Federal (1992-1996) e assessor da Casa Civil da Presidência da República (1995). Professor de Direito Eleitoral no Instituto Legislativo Brasileiro, ILB, desde 2004. Desde 1996, consultor legislativo do Senado Federal, Núcleo de Direito, Área de Direito Constitucional, Eleitoral e Processo Legislativo.

André Amado
Um dos entrevistadores do cientista político Jairo Nicolau, também é autor do artigo A construção de um personagem. É escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online. É autor de diversos livros, entre eles, A história de detetives e a ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Cleomar Almeida
Autor da reportagem especial Do prenúncio à nova tragédia – Caso Cinemateca confirma descaso com cultura. Graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.

Otávio Santana do Rêgo Barros
Autor do artigo Relações entre civis e militares, uma reflexão, é general de Divisão do Exército Brasileiro (R1). Doutor em Ciências Militares, foi porta-voz da Presidência da República (2019-2020). Comandou, no Rio de Janeiro, a força de pacificação nos complexos do Alemão e da Penha e a segurança da Rio+20. Foi Chefe do Centro de Comunicação Social do Exército.

Alberto Aggio
Autor do artigo "Que país é esse?". É historiador, professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e responsável pelo Blog Horizontes Democráticos.

Antônio Carlos de Medeiros
Autor do artigo O Congresso Nacional sob escrutínio. É pós-doutor em Ciência Política pela The London School of Economics and Political Science.

Sérgio Denicoli
É autor do artigo Já é 2022 na internet. É pós-doutor em Comunicação pela Universidade do Minho (Portugal) e Westminster University (Inglaterra), e também pela Universidade Federal Fluminense. Autor dos livros “TV digital: sistemas, conceitos e tecnologias”, e “Digital Communication Policies in the Information Society Promotion Stage”. Foi professor na Universidade do Minho, Universidade Lusófona do Porto e Universidade Federal Fluminense. Atualmente é sócio-diretor da AP Exata, empresa que atua na área de big data e inteligência artificial.

Valdir Oliveira
Autor do artigo Retomada da economia na tempestade perfeita, é superintendente do Sebrae no DF. Foi secretário de Desenvolvimento Econômico do governo de Rodrigo Rollemberg (PSB). 

Leonardo Ribeiro
Autor do artigo Um meteoro no país das pedaladas, é analista do Senado Federal e especialista em contas públicas. Foi pesquisador visitante da Victoria University, Melbourne, Austrália.

JCaesar
Autor da charge da Revista Política Democrática Online, é o pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da VEJA. É autor da charge publicada pela Revista Política Democrática Online.

Marcus Vinícius Furtado
É pós-doutorando em História pela Unesp-Franca e autor do artigo O que resta ainda por dizer sobre Cuba. Publicou os livros Em um rabo de foguete: trauma e cultura política em Ferreira Gullar e A arquitetura fractal de Antonio Gramsci: História e política nos Cadernos do Cárcere. 

Lilia Lustosa
Autora do artigo A poética política de Glauber, é formada em Publicidade, especialista em Marketing, mestre e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne, França.

Henrique Brandão
Jornalista e escritor, é autor do artigo Giocondo, um comunista abnegado e gentil.


RPD 35 || Reportagem especial: Do prenúncio à nova tragédia - Caso Cinemateca confirma descaso com cultura

Incêndio mostra, na prática, reflexos da postura do governo do presidente Jair Bolsonaro com o setor no país

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

Dois anos e dez meses separaram o prenúncio do risco de mais descaso com a cultura no Brasil e a tragédia do recente incêndio que destruiu parte da Cinemateca Brasileira, cujos prejuízos, ainda imensuráveis, são alvo de novas investigações do Ministério Público Federal (MPF), em São Paulo. Instituições e representantes do setor cultural cobram a responsabilização do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Em setembro de 2018, ainda candidato à presidência, Bolsonaro sinalizou com seu descaso para a cultura, após o incêndio que atingiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. “E daí?”, retrucou, na época, ao ser questionado sobre o maior desastre que arruinou o patrimônio científico e histórico do país. “Já está feito, já pegou fogo, quer que eu faça o quê?", respondeu à imprensa.

Depois de 15 dias do mais recente incêndio na história da Cinemateca brasileira, registrado em 29 de julho deste ano, o governo Bolsonaro seguiu na ofensiva. No último mês, anunciou demissões de técnicos da instituição, que preserva o mais rico acervo cinematográfico do país, com mais de 250 mil rolos de filmes e mais de 1 milhão de roteiros, fotos, cartazes e livros relacionados ao cinema.  O fogo fez parte do teto do galpão desabar, e o prédio foi interditado.

No entanto, a sede da Cinemateca estava fechada desde agosto de 2020, quando o secretário especial da Cultura, Mário Frias, tomou as chaves do local com escolta policial. Agora, ele tornou-se alvo de uma queixa-crime apresentada pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados por causa do incêndio, que também é investigado pela Polícia Federal.

João Batista: incêndio foi criminoso, não porque tenham botado fogo, mas pelo abandono da Cinemateca. Foto: Arquivo pessoal

“O incêndio foi criminoso, não porque tenham botado fogo, mas pelo abandono da Cinemateca, vítima do desejo político de destruição da memória, da criatividade e da crítica.  Arquivos de filmes são incendiários na essência de suas materialidades, principalmente de filmes antigos, ainda em nitrato. Deixar a Cinemateca sem funcionários é um grande crime”, disse o escritor e cineasta João Batista de Andrade.

O cineasta ressaltou a “queda brutal nos investimentos culturais”. “No cinema, por exemplo, há milhões de reais paralisados na Ancine, a agência reguladora e financiadora do cinema no Brasil.  Enquanto isso muitos filmes em produção estão paralisados e uma infinidade de projetos sem viabilidade previsível. Destruir a cultura é um projeto nefasto de poder. É o que estamos vivendo”, criticou ele.

Cobrança

Em 2020, por exemplo, o MPF cobrou explicações da Secretaria Especial de Cultura sobre a falta de repasses orçamentários à Cinemateca Brasileira. O contrato entre o Ministério da Educação e a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) chegou a ser suspenso porque o governo não repassou nenhuma parcela dos R$ 12 milhões previstos no orçamento para a entidade gerir o local. Funcionários tiveram salários atrasados.

Diante da gravidade da situação, o MPF ajuizou, em julho do ano passado, ação civil pública e apontou que o grande problema foi a má transição na gestão da Cinemateca, de 2019 para 2020: encerrou-se o contrato de gestão da Acerp sem a União se responsabilizar pela continuidade nos trabalhos técnicos internos da Cinemateca, assumindo-os diretamente ou por outro ente gestor.

Apesar de ter saído acordada em agosto do ano passado, após o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) deferir recurso do MPF, essa transição ainda está sendo implementada pela União. A promessa é de que seja firmado um novo contrato de gestão.

O procurador da República Gustavo Torres Soares avaliou a situação como preocupante e disse que “a Cinemateca Brasileira corre sério e iminente risco de dano irreparável por omissão e abandono do governo federal”, responsável pela manutenção e preservação dela.

“Infelizmente, também é público e notório que, nos últimos anos, em razão da omissão na gestão de bens culturais, históricos e turísticos pelo Poder Público, a sociedade brasileira sofreu a perda de inúmeros bens materiais e imateriais dessa natureza”, destacou o procurador da República.

Rodrigues: "Desmonte da cultura não é um fenômeno isolado do governo Bolsonaro”. Foto: Pedro Ventura/Agência Brasília

“Política destruidora”

Professor da Fundação Armando Alvares Penteado e doutor em comunicação pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), Martin Cezar Feijó afirmou que “o caso da cinemateca é o mais flagrante de uma política destruidora”. “A cultura representa a diversidade inaceitável para um projeto que se pretende único: autoritarismo”, acentuou.

“A cultura é sempre subversiva. Fazer alusão à queima de livros do nazismo não é desproposital nem retórica. Ela é concreta. Estamos vivendo um desmonte da cultura, da política do audiovisual, da educação e da ciência”, acrescentou o professor.

O secretário de cultura do Governo do Distrito Federal (GDF), Bartolomeu Rodrigues, afirmou que “o desmonte da cultura não é um fenômeno isolado do governo Bolsonaro”. “No governo Bolsonaro, isso ficou mais visível, mais latente. Ele extinguiu o Ministério da Cultura, e organizações importantes estão hoje tecnicamente impossibilitadas de fazer alguma coisa pela cultura nacional”, observou, ao lembrar outros episódios de incêndio na Cinemateca Brasileira.

Antes deste ano, o fogo já atingiu o local pelo menos outras quatro vezes: em 1957, 1969, 1982 e 2016, sempre perdendo entre 1.000 e 2.000 fitas em cada. No primeiro, quase todo o acervo foi perdido. O MPF e a Polícia Federal ainda não finalizaram o levantamento exato do estrago provocado pelo incêndio neste ano na cinemateca.  

A expectativa é de que os trabalhos sejam concluídos nos próximos meses. Depois disso, o MPF vai analisar se pedirá à Justiça a responsabilização de possíveis culpados tanto no âmbito cível quanto na esfera criminal.


Entidades criticam o novo edital elaborado pelo governo Bolsonaro para o  gerenciamento da Cinemateca Brasileira. Foto: Divulgação/Cinemateca

Governo enfrenta críticas por causa de novo edital

Depois da inércia administrativa que levou ao incêndio na Cinemateca Brasileira, o governo federal lançou edital para contratação de organização social habilitada a gerir o local que tem o maior acervo cinematográfico do país, pelo valor de R$ 10 milhões anuais. A Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) diz que o valor é menos do que a metade do necessário.

Presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, Débora Butruce já se manifesta há anos contra o valor reservado no orçamento do governo para manter as atividades. Segundo ela, o montante adequado para executar bem todas as atividades no local é de R$22,5 milhões.

As propostas poderão ser enviadas até o próximo dia 16, mas a publicação do resultado definitivo está prevista para 18 de novembro. A Comissão Técnica é composta por servidores da Secretaria Especial de Cultura, da Secretaria Nacional do Audiovisual, da Agência Nacional do Cinema e do Instituto Brasileiro de Museus, designados pela Secretaria Executiva do Ministério do Turismo.

Em 2020, o governo já havia sofrido críticas após lançar proposta com valor de R$ 12 milhões anuais para a Cinemateca Brasileira. "Esse edital feito a toque de caixa nos dá medo. Quem vai assumir isso aqui?", disse a pesquisadora Eloá Chouzal, uma das organizadoras de manifestações em favor da cinemateca.

Em maio daquele ano, a direção da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que já chegou a ter repasses atrasados por parte do governo pela gestão da cinemateca, chegou à secretaria para tentar negociar um novo contrato, em meio a um quebra-cabeças que colocou o local como moeda de troca em mesa de negociações.

Naquela época, a direção da Cinemateca foi prometida pelo presidente Jair Bolsonaro a Regina Duarte após sua demissão da Secretaria Especial da Cultura. A então secretária sofreu semanas de fritura antes de ser demitida depois de ficar menos de três meses no cargo.

A saída de Regina foi costurada pela deputada federal Carla Zambelli, que chegou a dizer que a nomeação da atriz para a Cinemateca dependeria só de questões burocráticas.

Com a hipótese de rompimento do contrato de gestão atual e a falta de recursos e de um plano para a Cinemateca por parte da secretaria, o cargo prometido a Regina tem se revelado cada vez mais incerto.

Parte do acervo da Cinemateca destruído pelo incêndio ocorrido em julho passado. Foto: CBMSP

* Cleomar Almeida é graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.


RPD 35 || Antonio Carlos de Medeiros: O Congresso Nacional sob escrutínio

Varejo político desvirtua o papel da Câmara, que não representa adequadamente o povo. Senado falha em atuar na representação dos Estados

A sociedade brasileira mantém avaliação negativa dos políticos e do Congresso Nacional. O acordo político do governo Bolsonaro com o Centrão estimulou o protagonismo do Congresso. Mas contribuiu para a avaliação negativa dos políticos. O acordo resultou no aumento vertiginoso das emendas de parlamentares e dos fundos partidário e eleitoral. 

Tudo somado, o Orçamento da União de 2022 destinará em torno de R$ 40 bilhões aos partidos e aos parlamentares. A sociedade reage. E joga, outra vez, luz sobre o desempenho e a imagem do Congresso. O que esperar do Congresso? A crise ética ainda é resultante da nossa herança patrimonialista? Nosso sistema híbrido de governo - presidencialista-parlamentarista - se exauriu? O pacto social da Constituição de 1988 chegou ao fim? 

A questão central é que nem a Câmara Federal representa adequadamente o povo, nem o Senado da República opera bem para representar o território, isto é, os Estados. Os deputados federais viraram “vereadores federais”. E os senadores, ao deixarem de ter papel apenas revisor, tornaram-se um misto de deputados e vereadores. As funções precípuas da Câmara e do Senado estão apequenadas e desvirtuadas. Embora eles tenham muito poder, o varejo político desorganiza a possibilidade de atuação estratégica e efetiva. Predomina a pequena política do clientelismo, do corporativismo, do varejo, dos arranjos, e tudo mais que a opinião pública condena. Tudo funciona para a manutenção e renovação dos mandatos dos parlamentares. Pouco de grande política. Muito da pequena política. São necessárias reformas políticas que resgatem o papel da Câmara como representante direta dos cidadãos e o papel do Senado como casa revisora representante dos Estados. 

O Senado trabalha como se fosse uma Câmara dos Deputados. Já a Câmara, como fruto das anomalias criadas pelo Pacote de abril de 1977 e pela Constituição de 1988, teve o número de vagas para Estados com população pequena inflados artificialmente. Criou-se um problema estrutural de superrepresentação dos estados menores e subrepresentação dos estados maiores. O Pacote reduziu o poder político de São Paulo e dos estados mais urbanizados. Alvejou a democracia representativa. 

As reformas políticas que estão em pauta não vão contribuir para o resgate do Congresso Nacional. São retrocessos democráticos. As questões que precisam ser atacadas são de outra natureza – começando pelo sistema híbrido de governo. O resgate da dimensão republicana da democracia brasileira requer reformas que promovam legitimidade na delegação e consensualidade no exercício do poder. Com a atual forma de funcionamento do Congresso, não se produz nem legitimidade da representação política (os políticos eleitos), nem consensualidade no exercício do poder (governança). 

Sem incorrer num panpoliticismo que pretenda forjar a realidade à base de “golpes de lei”, é necessário desencadear uma seqüência de mudanças institucionais articuladas entre si, para resgatar o papel do Congresso e fazer avançar a democracia brasileira. Seguem, aqui, de forma esquemática e como contribuição ao debate, algumas propostas factíveis.  

Primeiro, enquanto se discute se o Brasil vai ou não implantar o sistema distrital misto, é possível melhorar a representatividade do sistema eleitoral brasileiro pela simples alteração do sistema de redistribuição de sobras, mudando-se do sistema D´Hondt para o sistema Saint-League, caso as coligações voltem a ser permitidas. O Saint-League aumenta o denominador do cálculo da distribuição de sobras, estimulando os pequenos partidos a concorrerem sozinhos às eleições. 

Segundo, a melhoria da representatividade passa também pela adequada representação dos estados. Isto pode acontecer se a redistribuição do número de vagas destinadas a cada estado na Câmara Federal devolver o valor do índice de Gini ao patamar de 1950, ou seja, à escala próxima ao intervalo entre .24 e .35. Isto tornaria mais proporcional e legítima a formação da Câmara Federal. 

Simulei que limites mínimos e máximos de seis e 70 deputados por estado, respectivamente, permitiriam melhor equilíbrio, assumindo a proposta original da Comissão Afonso Arinos na Constituinte de 1988, que reduzia para 420 o total de deputados na Câmara. Com esses dados, chega-se a um índice de Gini de .3347. 

Terceiro, é necessário promover a limpeza da pauta de problemas da Câmara Federal, retirando matérias regionais típicas de assembléias legislativas estaduais, desde que não se fira o princípio federalista. Isto pode ser feito por iniciativas infraconstitucionais e permitiriam a melhoria da qualidade da ação dos congressistas. 

Por último, é importante repaginar o formato do bicameralismo brasileiro, para a recuperação do equilíbrio bicameral. As regras atuais tornam o Senado uma Câmara de Deputados, deixando de ser apenas uma casa revisora e representante do território, e não do povo. 

O Congresso Nacional não cumpre bem as três grandes funções dos Parlamentos na democracia representativa: a iniciativa de leis; a fiscalização do Executivo; e a formação e renovação de elites e lideranças políticas. Esta baixa relevância, apesar seu poder atual, é disruptiva para a democracia brasileira. 


* Antonio Carlos de Medeiros é pós-doutor em Ciência Política pela The London School of Economics and Political Science. 

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


Câmara conclui votação de projeto que altera regras do Imposto de Renda

Faixa de isenção do IRPF passa de R$ 1.903,98 para R$ 2.500 mensais. Lucros e dividendos serão taxados em 15%

A Câmara dos Deputados concluiu a votação do projeto que altera regras do Imposto de Renda (PL 2337/21). A proposta, que é a segunda fase da reforma tributária, será enviada ao Senado.

De autoria do Poder Executivo, o projeto foi aprovado na forma do substitutivo do relator, deputado Celso Sabino (PSDB-PA). De acordo com o texto, os lucros e dividendos serão taxados em 15% a título de Imposto de Renda na fonte, mas fundos de investimento em ações ficam de fora.

No texto-base aprovado ontem, a alíquota proposta era de 20%, mas com a aprovação de emenda do deputado Neri Geller (PP-MT) nesta quinta-feira, o tributo passou para 15%.

O Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) será reduzido de 15% para 8%.

Já a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) diminuirá 0,5 ponto percentual em duas etapas, condicionadas à redução de incentivos tributários que aumentarão a arrecadação. Assim, o total, após o fim desses incentivos, será de 1 ponto percentual a menos, passando de 9% para 8% no caso geral. Bancos passarão de 20% para 19%; e demais instituições financeiras, de 15% para 14%.

Tabela do IR
Quanto à tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), a faixa de isenção passa de R$ 1.903,98 para R$ 2.500 mensais, correção de 31,3%. Igual índice é usado para reajustar a parcela a deduzir por aposentados com 65 anos ou mais.

As demais faixas terão reajuste entre 13,2% e 13,6%, enquanto as parcelas a deduzir aumentam de 16% a 31%. Deduções com dependentes e educação continuam no mesmo valor.

Todas as mudanças valerão a partir de 2022.

Desconto mantido
Depois das negociações de ontem, foi mantido o desconto simplificado na declaração de ajuste anual para todos os declarantes, no valor máximo de R$ 10.563,60.

Atualmente, o desconto é de 20% dos rendimentos tributáveis, limitado a R$ 16.754,34, e substitui todas as deduções permitidas, como gastos com saúde, educação e dependentes.

Pela proposta inicial, esse desconto somente seria possível para aqueles que ganham até R$ 40 mil por ano, limitado a R$ 8 mil (20%).

Deputados reunidos com o presidente da Casa, Arthur Lira, durante a votação. Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados

Impacto orçamentário
Apesar das mudanças no projeto original do Executivo, o relator afirmou que não haverá impacto na arrecadação inicialmente projetada pelo governo. "Impacto zero. Não vamos ter contribuição alguma para o aumento do déficit fiscal. Pelo contrário, acreditamos que as medidas de desoneração do capital produtivo vão impulsionar a economia, que vai gerar mais arrecadação", disse Celso Sabino.

Ele afirmou que já previa a redução da alíquota para distribuição de dividendos, por isso aumentou a alíquota das empresas, inicialmente prevista em 6,5%, para 8%.

Apesar de ser neutra para o governo, a reforma vai atingir alguns contribuintes, conforme reconheceu o relator. "A ampla maioria vai pagar menos, mas o indivíduo que receba R$ 70 milhões de renda por dividendos vai pagar mais imposto", comentou.

Pontos rejeitados

Na votação em Plenário, foram rejeitadas as seguintes emendas:

  • - emenda do deputado Aelton Freitas (PL-MG) previa um escalonamento na cobrança do imposto sobre lucros e dividendos, de 3% a 15% ao longo de cinco anos;
  • - emenda do deputado Bohn Gass (PT-RS) pretendia impor alíquota de 25% para lucros e dividendos mensais acima de R$ 40 mil;
  • - emenda da deputada Talíria Petrone (Psol-RJ) pretendia submeter os lucros e dividendos à tabela progressiva do IRPF;
  • - emenda do deputado Baleia Rossi (MDB-SP) pretendia isentar da tributação os lucros e dividendos distribuídos a sócios de escritórios de advocacia;
  • - emenda do deputado Marco Bertaiolli (PSD-SP) pretendia estender a isenção atual sobre os lucros ou dividendos para aqueles distribuídos até 31 de dezembro de 2022 com base nos resultados apurados até 31 de dezembro de 2021;
  • - emenda do deputado Eduardo Cury (PSDB-SP) pretendia fixar o IRPJ em 6,5% durante 2022 e em 5,5% a partir de 2023;
  • - emenda do deputado Jerônimo Goergen (PP-RS) pretendia permitir a apuração e o pagamento consolidados do IRPJ e da CSLL pelas empresas controladoras e controladas;
  • - emenda do deputado Bohn Gass pretendia reajustar os valores da tabela do IRPF em 47%;
  • - emenda do deputado Wolney Queiroz (PDT-PE) pretendia reajustar, no mesmo índice do projeto, as deduções de despesas com instrução e por dependentes;
  • - destaque do PSL pretendia manter o desconto simplificado na declaração de ajuste do IRPF em R$ 16.754,34;
  • - emenda do deputado Wolney Queiroz pretendia retomar a permissão de desconto, na declaração de ajuste anual, dos valores pagos pelo empregador à Previdência Social a título de contribuição patronal do empregado doméstico;
  • - emenda do deputado Danilo Cabral (PSB-PE) pretendia impedir o fim do voto de qualidade do presidente do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) em caso de empate em julgamentos administrativos;
  • - emenda do deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) pretendia retomar a isenção, para o período de 2022 a 2026, do imposto de renda retido na fonte a incidir sobre remessas ao exterior de pagamentos por arrendamento mercantil de aeronaves;
  • - emenda do deputado Vinicius Carvalho (Republicanos-SP) pretendia isentar investimentos em debêntures de infraestrutura do pagamento do adicional de IRPJ de 10% previsto na legislação;
  • - emenda do deputado Pedro Cunha Lima (PSDB-PB) pretendia permitir às instituições financeiras deduzirem da base de cálculo do IRPJ e da CSLL as reservas feitas para créditos a receber cujo pagamento esteja atrasado por 90 dias ou mais.

Fonte: Agência Câmara de Notícias
https://www.camara.leg.br/noticias/802838-camara-conclui-votacao-de-projeto-que-altera-regras-do-imposto-de-renda/


Valdir Oliveira analisa os desafios da retomada econômica

Para superintendente do Sebrae no DF, sem equilíbrio político economia está fadada à estagnação.

João Rodrigues, da equipe da FAP

No podcast Rádio FAP desta semana, publicado na manhã desta sexta-feira (3), o superintendente do Sebrae no DF, Valdir Oliveira, explica que sem equilíbrio político economia está fadada à estagnação. Ele é um dos autores de artigo da Revista Política Democrática Online nº 35 – Setembro/2021, que será lançada nos próximo dias. “Em ambiente de guerra, ninguém faz plano de desenvolvimento nenhum”, explica Valdir Oliveira. O podcast Rádio FAP é divulgado em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts.




Merval Pereira: A política na economia por conta dos precatórios

Solução avalizada pelo Judiciário, no sentido de tirar os precatórios do limite do teto de gastos, não é constitucional

Merval Pereira / O Globo

O pagamento de precatórios por parte do governo federal está virando uma questão política que só poderá ser resolvida pelo Congresso. A intenção de encontrar uma solução que fosse avalizada pelo Judiciário, por meio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para evitar que a confusão avançasse no sentido de tirar os precatórios do limite do teto de gastos, parecia boa, mas não é constitucional.

O Tribunal de Contas da União (TCU) entrou na negociação com o Ministério da Economia para encontrar uma fórmula que fosse adequada economicamente e viável juridicamente, pois o TCU considerava que parcelar precatórios, como o governo chegou a propor ao Congresso por uma emenda constitucional, traria um grande dano à imagem do país. O ministro Bruno Dantas, vice-presidente do TCU e especialista em finanças públicas, disse ao ministro da Economia, Paulo Guedes, que o melhor a fazer seria reforçar o teto, aplicando-o inclusive aos precatórios mediante criação de um sublimite.

O raciocínio é que o teto de gastos congelou a despesa primária da União de 2016 e a corrigiu pelo IPCA dos anos seguintes. Como, conceitualmente, os precatórios são despesa primária, explica Dantas, não faz sentido congelar tudo e deixar os precatórios sem uma trava, para crescer fora do ritmo das outras despesas, que só crescem pelo IPCA, contribuindo para comprimir o teto e impactando em gastos discricionários indispensáveis, como manutenção de estradas.

Qual o sentido de permitir que os pagamentos para essa despesa subam além do que a emenda constitucional do teto de gastos permitiu? — pergunta o ministro Bruno Dantas. Para ele, essa regra seria mais transparente, porque o precatório que chegar depois de ultrapassado o teto será remanejado e quitado no ano seguinte. Isso daria previsibilidade e transparência.

Procurado, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Luiz Fux, se colocou à disposição para ajudar, mas não há maneira de o CNJ, que acompanha o pagamento dos precatórios, que são dívidas judiciais, entrar na questão sem uma autorização do Congresso. Fux, consultando os demais ministros do Supremo, decidiu esperar o pronunciamento do Congresso. O caminho agora é negociar com a base governista para aprovar uma PEC que permita esse mecanismo de limitar o pagamento dos precatórios dentro do teto de gastos, transferindo para o ano seguinte o que faltar.

A posição do ministro da Economia, Paulo Guedes, também foi criticada. Ao mesmo tempo que ficou entusiasmado com a solução que seria pacificada pelo Conselho Nacional de Justiça, diz que a solução deveria sair mesmo do Congresso por meio de uma mudança constitucional. A verdade é que o governo não tem como pagar os R$ 90 bilhões que deve em precatórios e não tem controle também do Congresso para garantir que a PEC a ser enviada não será usada para furar o teto de gastos.

Ou então quer que o Congresso assuma essa tarefa, o que provavelmente será feito com satisfação pelos parlamentares, que terão mais dinheiro para suas emendas se os precatórios, ou o novo Bolsa Família, forem retirados do teto de gastos. Nos dois casos, a despesa seria da mesma ordem, de R$ 90 bilhões, o que caracterizaria a quebra do equilíbrio fiscal e repercutiria negativamente no risco Brasil.

Entre os precatórios, cerca de R$ 16 bilhões são dos estados, e seria possível retirá-los da fila de pagamento para negociar em separado numa mesa de conciliação, sugestão do ministro Gilmar Mendes. O importante é encontrar uma solução que não impacte nos precatórios de pessoas físicas.

Além de todos os problemas técnicos envolvidos na questão, o ambiente político hoje está impeditivo para qualquer negociação mais delicada. Até o dia 7 de setembro, quando estão marcadas manifestações contra o Supremo em várias capitais, não há condição de achar uma solução negociada entre o Executivo e o Judiciário. O presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, fará uma declaração hoje, na abertura dos trabalhos, alertando que é preciso respeitar as decisões do Judiciário e que a democracia não pode ser atacada nas manifestações marcadas para o Dia da Independência.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/politica-na-economia.html