Economia

Míriam Leitão: Volatilidade prevista

Estava escrito nas estrelas que este ano seria o da volatilidade cambial, por ser ano eleitoral, e estarem em disputa projetos políticos diferentes entre si, mas todos mal formulados. Além disso, houve um alinhamento de planetas provocado pelo fator Trump. Ele adota medidas econômicas e faz ameaças políticas que podem levar à alta dos juros nos EUA. Isso afeta a cotação do dólar, que ontem caiu, após subir por cinco pregões.

Não é surpresa, portanto, esse período de variações do dólar, e a volta ao patamar mais elevado desde 2016. Se essa vai ser a eleição com a maior taxa de incerteza que o país já teve desde a redemocratização, seria estranho se não houvesse volatilidade. Mas há um detalhe importante: a incerteza é maior, mas as condições concretas do Brasil, na área cambial, são melhores do que em qualquer outro tempo de estresse político.

O Banco Central tem os instrumentos para evitar exageros de cotação. Por definição, no câmbio de livre flutuação, o BC não tem que defender um valor específico para a moeda, mas ele pode atuar para evitar excessos que desorganizem. Nunca antes houve tantas reservas cambiais, US$ 380 bilhões, e isso é meio caminho andado. O outro meio caminho também temos: o Banco Central, desde a chegada de Ilan Goldfajn, reduziu muito a exposição ao dólar futuro, resgatando os contratos de swaps. Pode agora voltar a oferecê-los. O déficit em transações correntes, que estava em 4,5% do PIB em meados de 2015, está agora em 0,38% do PIB, ou seja, praticamente em equilíbrio. Ontem saíram dados mostrando superávit em março e o BC avisou que haverá novo resultado positivo em abril. A balança comercial tem gerado saldos recordes. E a inflação, há nove meses abaixo do piso da meta, tem espaço suficiente para acomodar qualquer choque provocado por alta do dólar.

E que bom que a economia criou todas essas reservas e amortecedores porque a tendência será continuar o sobe e desce da moeda, a partir das muitas dúvidas que cercam essa campanha. Os projetos dos possíveis postulantes não foram sequer formulados. O mercado, que gosta de divisões simples de campo de pensamento, acha que há dois cenários, o da eleição de um candidato populista, em que iria tudo para o vinagre, e outro de vitória de um candidato reformista, que salvaria a pátria.

Tudo é bem mais confuso do que a vã filosofia dos cenários de mercado. Há, na disputa eleitoral, posições extremadas, sem qualquer substância concreta. São radicais sem causa.

Há candidatos que se definem apenas por oposição ao outro, mas não dizem o que defendem e como vão enfrentar os muitos impasses brasileiros. Há os que já estiveram no poder, mas se comportam como noviços puros, sem qualquer relação com os erros passados, e prometendo mudar tudo. Há outros que se transmutam para o ideário de conveniência, mas que têm toda uma vida com atos e palavras no sentido oposto ao que dizem agora defender.

Então, mais do que ter dois cenários opostos — o bom e o ruim — o que se tem é a opacidade de todos os cenários, o que eleva muito a incerteza. A cada volta da pesquisa de opinião, ou da opinião expressa por um dos contendores vistos como competitivos, o dólar pode subir ou descer. Como se tudo isso não bastasse, o Brasil tem uma Justiça cujo poder supremo é idiossincrático, inesperado, conflituoso. A uma decisão de turma tudo pode mudar repentinamente, como ocorreu esta semana.

As decisões do presidente americano incluem um ingrediente de instabilidade para o valor de todas as moedas. É por isso que, desde a quarta-feira da semana passada, o dólar subiu em relação a moedas de todo o mundo, com o real acumulando perdas de 2,74%, uma das maiores no período, informa a corretora Mirae. A cotação tem subido porque o governo Trump está expandindo o déficit orçamentário e reduzindo impostos para aquecer o consumo num momento de baixo desemprego. E está elevando as barreiras ao comércio. Isso aumenta os temores de inflação e de alta dos juros. As ameaças ao acordo com o Irã estimulam a alta do petróleo que, também por outros motivos, está ocorrendo. Esse cenário internacional fortalece a tendência de volatilidade que já estava dada por ser um ano de eleição e com cenários de muita imprevisibilidade.

(COM MARCELO LOUREIRO)


José Serra: Para inglês não ver

Aprovado no Senado, PL 428 objetiva induzir a administração pública ao gasto eficiente

No Brasil de hoje prevalece grande insatisfação com a qualidade dos serviços públicos, notadamente nas áreas de saúde, educação e segurança. Não poderia ser diferente, pois, até agora, os recursos destinados a essas áreas têm sido insuficientes ou mal empregados, ainda que vultosos.

Por isso é fundamental promover – até para estabelecer prioridades – avaliações transparentes e sistemáticas, nas três esferas de governo, dos custos e benefícios das políticas sociais postas em prática. E, paralelamente, reconhecer que será preciso reforçar as ações do Estado, tornando-as mais fortes e eficientes.

Nesse contexto, conviria começar por uma avaliação das experiências internacionais bem-sucedidas, com o intuito de subsidiar a formulação e a implantação das reformas em nosso país. Foi com base numa dessas experiências que se introduziu na agenda legislativa do Congresso o Projeto de Lei 428/2017, que objetiva criar no País um instrumento de gestão de gastos semelhante ao adotado em várias democracias modernas: o Plano de Revisão Periódica de Gastos. Esse projeto, apresentado na semana passada, acaba de ser aprovado quase por unanimidade no Senado. A rapidez deveu-se não só a entendimentos políticos, mas, sobretudo, à compreensão pelas forças políticas da sua importância, o que aumenta o otimismo quanto a uma rápida tramitação na Câmara.

Com o objetivo induzir a administração pública ao gasto público eficiente, o PL 428 institucionaliza no País um sistema permanente de revisão dos gastos, conhecido internacionalmente como Spending Reviews. É um modelo que já tem sido testado em diversos países – Austrália, Canadá, Reino Unido, Holanda e Dinamarca –, especialmente depois da crise de 2008, com bons resultados.

Os planos de revisão de gastos adotados pelos países da OCDE são instrumentos para garantir sustentabilidade fiscal a partir de um objetivo bem específico: propor alternativas para redução de gastos ou para dar prioridade a gastos mais importantes. Segundo Marc Robson, renomado especialista no tema, os países que adotam Spending Reviews geram economias ou ganhos de eficiência persistentes, de 2% a 3%, mesmo nos gastos obrigatórios. No Brasil isso poderá significar economia de até R$ 40 bilhões.

A proposta aprovada no Senado foi inspirada pelo encontro dos Poderes Legislativo e Executivo que se realiza anualmente nos Estados Unidos – o famoso State of Union. Previsto na Constituição, esse evento político é dos mais relevantes na democracia americana. Na abertura dos trabalhos do Congresso, o presidente dos Estados Unidos apresenta aos membros do Parlamento as condições do país e o que precisa ser feito – tudo transmitido e até debatido pela maioria dos meios de comunicação.

A Constituição brasileira também prevê o encontro entre os Poderes. De acordo com seu artigo 84, cabe ao chefe do Poder Executivo “remeter mensagem e plano de governo ao Congresso Nacional por ocasião da abertura da sessão legislativa, expondo a situação do País”. Essa solenidade, entretanto, não suscita ainda maior interesse na sociedade. O próprio Congresso tende a encará-la como um ato de natureza cerimonial. Por seu turno, o governo prepara um documento formal, em geral desinteressante.

O que se impõe como medida prioritária é a apresentação pelo presidente da República, na abertura das sessões legislativas a cada ano, de um verdadeiro plano de revisão de gastos, que apresente avaliações de custo e benefício de cada programa governamental. Paralelamente, devem ser apresentadas as medidas necessárias para o aprimoramento das políticas públicas, incluindo uma agenda legislativa consistente com esse programa.

O documento elaborado pela Presidência deve consolidar as alternativas de economia de gastos com base em avaliação sistemática e no cenário fiscal – que demonstre as consequências de manter a inércia dos gastos. As propostas devem ser apresentadas de maneira transparente, com prioridades e medidas específicas de poupança ou eventual deslocamento de recursos para ações prioritárias. É esta a missão de um governo eficiente: privilegiar programas com maiores benefícios para a sociedade, reduzindo desperdícios e encerrando políticas públicas que não deem resultado.

A instituição do Spending Review, em lei, garantira ao País uma sistemática de revisão de gastos não associada a grupos políticos. Todos os presidentes da República, independentemente de ideologias e crenças, teriam a obrigação de mostrar à sociedade a situação das contas públicas e o que precisar ser revisado para preservar a sustentabilidade fiscal e o desenvolvimento do País.

A criação desse sistema permanente de revisão de gastos é essencial para a sobrevivência do novo teto de gastos, aprovado pelo Congresso em 2016, que impede o crescimento real da despesa pública nos próximos dez anos. Nesse novo regime fiscal, repriorizações, escolhas alocativas, economias orçamentárias e ganhos de eficiência têm de ser a essência do processo orçamentário.

A prática de Spending Reviews nos permitirá avançar na maneira de fazer políticas públicas. A sociedade poderá acompanhar melhor as ações do governo, a evolução dos principais gastos e a qualidade dos programas de ajuste fiscal. Trata-se de uma medida que reforça o espírito da responsabilidade fiscal: “Uma ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e se corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas”.

No Reino Unido, as revisões periódicas de gastos são a marca registrada das finanças públicas desde 1998. A grande vantagem do modelo é a ampla aceitação pública e política. No período de 2010 a 2014, o Tesouro daquele país economizou cerca de 81 bilhões de libras.

O Brasil pode fazer o mesmo: uma gestão fiscal que economize, de fato, e não um ritual “para inglês ver”.

* José Serra é senador (PSDB-SP)


O Estado de S. Paulo: Ajuste fiscal e crescimento econômico

Os números não deixam muito espaço para criatividade. A política tem seu tempo, mas a economia também

Felipe Salto e Josué Pellegrini

Os dados sinalizam melhora da economia. Considere a média dos três meses encerrados em fevereiro, em relação à média do trimestre concluído em novembro. A produção industrial sobe 2,0%; o IBC-Br (prévia do PIB), 1,0%; o comércio, 0,7%; e os empregos, estacionados, mas com demissões caindo a 0,4%. Para sustentar a recuperação será preciso redobrar o cuidado com as contas públicas. Essa é a prioridade, conforme diagnóstico da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal. Qual o tamanho do ajuste requerido? O cumprimento da Emenda Constitucional n.º 95, de 2016, que define a inflação do ano anterior como teto para o aumento dos gastos federais a cada ano, impõe queda nessas despesas dos atuais 19,5% para 15,2% do PIB até 2030.

Neste cenário, a dívida pública bruta subirá dos atuais 75,1% para 86,6% do PIB, em 2023, mas cairá paulatinamente nos anos seguintes. Sem o referido ajuste, a dívida manterá a tendência atual de crescimento (estava em 51,5%, ao fim de 2013), o que, em certo momento, trará dúvidas a respeito da solvência do setor público. Os financiadores da dívida perceberão risco crescente associado ao cumprimento das obrigações do governo e, assim, exigirão juros cada vez mais elevados para financiar os déficits e refinanciar a dívida vincenda.

Além de evitar a degradação do ambiente econômico, o ajuste pode apoiar ainda um círculo virtuoso de relações macroeconômicas: o corte de gastos reduz a pressão sobre a demanda da economia vis-à-vis a oferta de bens e serviços, ajudando a controlar os preços médios do País. Neste cenário, os juros diminuem, o que incentiva o direcionamento do crédito para investimento e consumo. As taxas de juros mais baixas facilitam também o controle da expansão da dívida pública, como proporção do PIB, ao diminuir o resultado primário (receitas menos despesas, exceto juros devidos) requerido para estabilizá-la. Para exemplificar, a redução da Selic, de 14,25% ao ano, em setembro de 2016, para os atuais 6,5%, representa economia com juros brutos de quase 3% do PIB, em 12 meses.

Ajustes fiscais se processam por meio de aumento de receitas ou corte de gastos públicos. No Brasil, a experiência mostra que a primeira alternativa tem sido a preferida. Por isso, o País caracteriza-se por elevadas receitas e despesas públicas em relação ao PIB, comparativamente ao que se observa em países em estágio similar de desenvolvimento econômico.

A ênfase agora precisa recair sobre os gastos. Mas o ajuste não poderá vir simplesmente do corte de despesas discricionárias, pois a margem nessa área vem diminuindo ano a ano. A principal vítima dessa estratégia são os investimentos federais, que despencaram 30%, em 2017. Por isso, é hora de rever programas ineficientes; reduzir desonerações tributárias que não geram impacto social e econômico; reformular a administração pública; e batalhar pela reforma nos gastos obrigatórios. Só em renúncias fiscais, o governo federal deixou de arrecadar 4,2% do PIB, em 2017. Com pessoal, incluindo inativos, outros 4,3% do PIB em gastos, enquanto a Previdência acresce mais 8,5% do PIB na conta.

Do lado da arrecadação, a receita extraordinária poderá ajudar, mas não na dimensão observada em 2017. A receita impulsionada pela recuperação da economia deverá ser o fator preponderante, o que já vem ocorrendo, em certa medida. O que precisa ser evitado é concentrar o reequilíbrio fiscal em medidas tributárias, um balde de água fria sobre o crescimento econômico, em um país com carga tributária muito elevada.

Os números não deixam muito espaço para criatividade. A política tem seu tempo, mas a economia também. O ajuste fiscal definirá a rota do País entre dois caminhos: o círculo virtuoso, com ajuste fiscal e crescimento econômico; ou o vicioso, do desequilíbrio fiscal e estagnação, para dizer o mínimo.

Felipe Salto é diretor executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal
Josué Pellegrini é Consultor Legislativo do Senado Federal e Analista da IFI


Míriam Leitão: Multitarefas

Ontem era feriado no Rio, e o presidente da Petrobras, Pedro Parente, trabalhou em São Paulo em uma reunião da B3, na qual ele é presidente do conselho de administração. A grande dúvida em relação a ele nesse momento é se será capaz de tocar a presidência da estatal e a do conselho de administração da BRF, cujo CEO renunciou na segunda-feira.

Para encarar o desafio, Parente pretende usar até o tempo das folgas, se for necessário. — Caso venha a se concretizar a minha ida, eu posso, por exemplo, usar dias de férias na Petrobras para as reuniões da BRF. Na Petrobras, as férias podem ser tiradas em dias alternados. Estou disposto a sacrificar esse tempo porque sei que o trabalho é importante.

Não lhe falta serviço na Petrobras, evidentemente, mas Parente lembra que hoje a empresa é outra, em relação a que encontrou.

— Se fosse no início, certamente eu não poderia acumular, mas hoje a empresa tem plano estratégico aprovado e já sendo implantado em seu segundo ano, tem novo sistema de gestão com metas controladas em reuniões mensais, tem uma diretoria executiva completamente integrada, regras de conformidade aprovadas e sendo cumpridas. Em governança, é outra empresa — diz ele.

Uma frente de trabalho foi a limpeza de passivos deixados por administrações anteriores, enfrentada com a negociação do acordo em ações judiciais internacionais, o “class action", a mudança do perfil da dívida, a solução de conflitos com diversos órgãos governamentais e reguladores.

— Nada disso é trabalho de uma pessoa só, seria impossível. Estamos limpando problemas de bilhões de dólares no balanço da empresa — disse Parente.

O resultado aparece nos indicadores, e a possibilidade de a companhia enfrentar um ano eleitoral com tranquilidade.

— A taxa de juros cobrada no mercado secundário internacional pelos títulos da Petrobras estava em 15% ao ano. Agora está abaixo de 4%. O preço da empresa que estava em 90 bilhões de reais, agora é 90 bilhões de dólares. O rating da Petrobras hoje equivale ao da República. A dívida de curto prazo vencendo em 2018 a 2020 era de US$ 40 bilhões, hoje é US$ 20 bi.

Se a Petrobras está melhor, não se pode dizer o mesmo da BRF, que enfrenta problema de relacionamento entre sócios, resultados ruins, investigação da PF, teve várias unidades de produção descredenciadas pela Europa e ontem ficou sem CEO.

— Se for confirmada a minha ida, será numa situação em que os sócios estejam de acordo e isso já ajuda no problema da governança. As outras questões serão enfrentadas e vão exigir, principalmente no começo, mais do que uma reunião por mês. Mas são problemas que no cotidiano serão tratados pela diretoria executiva e não pelo conselho de administração.

Se for para a BRF, Parente terá ainda que fazer uma transição na B3. Disse que o tempo em que acumulou o conselho da bolsa e a Petrobras mostrou que ele consegue fazer as duas tarefas.

— Foi um tempo importante, em que houve a aquisição da Cetip pela BM&F e a mudança do CEO.

A estatal, sob administração técnica e sem interferência política, está recuperando seu ranking entre as empresas de capital aberto da América Latina. Estudo exclusivo de Einar Rivero, da consultoria Economatica, revela que ela ontem se tornou a segunda mais valiosa companhia da região, passando o Itaú Unibanco. Era a primeira, anos atrás, mas no fim de 2014 a posição foi ocupada pela Ambev. O mercado reagiu à reeleição da ex-presidente Dilma por receio da continuação da interferência política nos preços e na gestão. Durante aquela campanha, quando a oposição subia nas pesquisas, a Petrobras se valorizava no pregão. A cotação chegou a R$ 310 bilhões no início de setembro, quando a candidata Marina Silva liderava as intenções de voto. A Ambev valia, então, R$ 250 bi. Ao final daquele mês, já com Dilma na liderança das pesquisas, a Petrobras foi cotada em R$ 229 bi.

No dia seguinte ao segundo turno, a cotação caiu mais, para R$ 180 bi, e a Ambev definitivamente a passou. Em seguida foi a vez do Itaú Unibanco. O fundo do poço aconteceu em fevereiro de 2016, quando a estatal chegou a valer R$ 67 bilhões. Hoje, voltou a ser cotada a R$ 307 bi. Ainda está longe do maior valor, R$ 510 bilhões, que atingiu em 2008, na euforia do pré-sal.


Samuel Pessôa: Qual é mesmo a divergência?

Moto-perpétuo é a crença de que o gasto público se autofinancia

Eu e Marcos Lisboa temos travado interessante debate com Nelson Barbosa sobre a economia do moto-perpétuo.

Moto-perpétuo é a crença de alguns economistas heterodoxos brasileiros de que o gasto público se autofinancia: o crescimento promovido pelo impulso fiscal mais do que compensa o efeito do gasto sobre o endividamento. No frigir dos ovos, a dívida como proporção da economia se reduz.

Exemplo de crença no moto-perpétuo encontra-se no texto "O papel do BNDES na alocação de recursos: avaliação do custo fiscal do empréstimo de R$ 100 bilhões concedido pela União em 2009", de Thiago Rabelo Pereira e Adriano Nascimento Simões, publicado na revista do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) em junho de 2010.

Os autores sustentam que o impacto dos empréstimos do BNDES sobre o crescimento e a receita de impostos mais do que compensa o custo fiscal das ações do banco. Temos a versão BNDES do moto-perpétuo.

Em sua última resposta na Folha, de 17 de abril, terça-feira passada, Nelson Barbosa alega que nós o acusamos injustamente de defender a economia do moto-perpétuo. Não fomos nós que o acusamos.

Como apontamos no artigo que iniciou nossa conversa, na seção Tendências/Debates de 26 de março, Nelson, em coautoria com José António Pereira de Souza no texto "A inflexão do governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda", apontou que " (...) o eventual financiamento do investimento público por meio da emissão de dívida não seria necessariamente incompatível com a meta global de redução da relação dívida/PIB do setor público brasileiro, visto que tal investimento resultaria na elevação da própria taxa de crescimento do PIB".

A resposta de Nelson Barbosa nesta Folha em 17 de abril não tratou da economia do moto-perpétuo. Barbosa cita trabalhos que calculam que o impulso fiscal sobre o crescimento econômico é positivo, por vezes superior a 1 e, sob algumas circunstâncias, superior a 2. Qualquer estudante de introdução à economia conhece esse fato.

Nossa discussão não se refere ao impacto do impulso fiscal sobre o crescimento. Refere-se ao fato de o impulso fiscal ter impacto muito forte sobre o crescimento da economia e sobre a receita de impostos.

O impacto inicial da elevação do gasto público sobre a dívida seria mais do que compensado pelo crescimento da receita de impostos e da economia, de sorte que a dívida pública, como proporção da economia, reduzir-se-ia no fim do processo. Por isso a denominação de economia do moto-perpétuo. Nenhum dos trabalhos mencionados por Barbosa trata desse tema.

Em tempo: na primeira coluna dessa troca de ideias com Barbosa, citamos artigo de DeLong e Summers publicado no Brookings Paper on Economic Activity em 2012, que descreve uma condição para que ocorra o moto-perpétuo. Mesmo considerado um multiplicador fiscal na casa de 2,5, a economia brasileira nunca atendeu a essa condição.

Resta a Barbosa apresentar algum trabalho acadêmico que mostre que a condição do artigo de DeLong e Summers foi atendida no Brasil entre 2006 e 2010.

Passou despercebido o artigo "Notícias de Maracaibo", de Paula Ramón, publicado na piauí de março. O nível de decomposição do poder público venezuelano assusta.

A Venezuela não caminha em direção à ditadura cubana ou norte-coreana. Caminha em direção à desintegração e total desorganização do poder público; caminha na direção da Somália.

* Samuel Pessôa é físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador do Ibre-FGV


Míriam Leitão: O freio dos juros

O Banco Central reduziu a Selic e liberou o depósito compulsório, o que em mercados dinâmicos ajudaria a aumentar o acesso ao crédito, baratear os financiamentos e impulsionar a atividade. Os dados do sistema financeiro, no entanto, mostram uma realidade distinta. A concessão de crédito às empresas ficou quase estável nos últimos 12 meses, com alta de 0,4%. Até rolar dívidas está difícil.

Para a pessoa física tem havido mais flexibilidade. As concessões saltaram 10,3% em 12 meses. Nesse mesmo período, o estoque de créditos corporativos caiu 6,7%. O BC se esforça para esquentar a economia, mas os bancos não têm cumprido o papel que lhes cabe nessa retomada.

O descolamento entre os juros cobrados pelos bancos e a Selic é evidente. Na contramão do BC, os bancos vêm aumentando desde dezembro a taxa cobrada no crédito livre, que chegou a 42,2% ao ano em fevereiro. Esse padrão é visto há muito tempo. De outubro de 2016, quando a Selic estava em 14,25%, até aqui o BC cortou a taxa a menos da metade, para os atuais 6,5%. Ou seja, o recuo foi de 54%. A queda da taxa do crédito livre, no entanto, foi, na média, de 21%.

Em modalidades com risco mais baixo, a taxa praticada não faz sentido. No crédito consignado, por exemplo, cujo pagamento é o desconto automático na folha de pagamentos ou no benefício previdenciário, os juros médios ao ano chegaram a 26,3% em fevereiro, o terceiro mês seguido de alta. Em 12 meses, mesmo com a forte queda da Selic, a taxa média do consignado recuou apenas 3,2 pontos.

Em alguns segmentos do mercado e para certos tipos de crédito, há queda do custo do dinheiro. Um empresário do setor de autopeças conta que sentiu isso, na oferta feita pela instituição financeira. Apesar disso, a empresa não tomou todos os recursos oferecidos. Prefere se endividar pouco, o que, no país dos juros altos, parece prudente.

— É sempre assim. Quando a empresa não precisa de financiamento, o banco bate à porta e oferece dinheiro mais barato. Quando é a empresa que está precisando, a taxa é bem mais alta. Nos momentos em que eu preciso de financiamento para comprar uma máquina, negocio com o fornecedor. Eu pago em parcelas e ele entrega em etapas, por exemplo — diz o empresário.

Nessa crise, muitas empresas pequenas e médias têm buscado as cooperativas de crédito. É uma opção com um custo menor. Em 2017, enquanto os bancos reduziram as liberações, as cooperativas emprestaram 15% a mais. Algumas tiveram resultados melhores que a média. Na Sicredi, por exemplo, a carteira de crédito saltou 21% no ano passado. Muito identificadas com o agronegócio, as cooperativas se expandem agora para as cidades. A Sicoob do Espírito Santo destacou em 2017 esse avanço no crédito comercial, após os anos de seca no campo.

Cobrando caro dos clientes, os bancos aumentam inclusive o risco do próprio negócio. A recuperação da economia não acelera e o tomador fica espremido entre as margens mais modestas do negócio e as taxas ainda altas dos empréstimos.

No financiamento de veículos, que movimenta um setor que gera bastante emprego, a taxa média em fevereiro estava em 22,5%, pouco abaixo dos 25% do final de 2016. Outro setor que emprega muita gente é o da construção. Os juros do crédito imobiliário, na modalidade “taxas de mercado”, tampouco acompanharam a intensidade com a qual caiu a Selic. Na média, a redução no período foi de apenas um ponto percentual, a taxa saiu de 12,98% em outubro de 2016 para 11,94%. No PIB, a construção civil encolheu 5% no ano passado e acumula resultados negativos desde 2014.

Uma parte da explicação dos juros altos está na concentração bancária. Caixa, BB, Itaú e Bradesco eram responsáveis por 78,5% das operações de crédito ao final de 2017. Esse é o mesmo nível de 2016. Mas 10 anos antes, em 2007, a participação do quarteto era bem inferior, de 59,3%, pelos dados do BC.

Os bancos dizem que nem só de Selic é feita a taxa de juros e, portanto, não faz sentido querer que a queda dos juros bancários seja na mesma proporção. É verdade. Mas mesmo quando se tenta entender a composição do spread, os juros brasileiros parecem ser o que são: anormais. E desta forma o sistema bancário acaba sendo um freio à retomada, até num período de relaxamento monetário.


Zeina Latiff: Nada de errado com o paciente

Os consumidores ainda sofrem como medo do desemprego

Como interpretar a fraqueza dos indicadores econômicos nos últimos meses, enquanto se esperava uma aceleração por conta do efeito crescente do corte dos juros pelo BC? Será que a recuperação será bem mais lenta do que o esperado ou trata-se de um sinal falso de perda de fôlego? Em outros tempos, flutuações de curto prazo não gerariam maiores comentários. Mas depois de uma crise severa e com eleições pela frente, a lenta recuperação gera incômodo.

A crise dos últimos anos não foi uma crise qualquer, pois afetou duramente as finanças de empresas e consumidores. Não se pode esperar, portanto, uma volta rápida da economia, como foi na crise global de 2008/09, quando os fundamentos domésticos não foram afetados pelo choque externo. Esta última crise foi “made in Brazil” e machucou muito.

Os consumidores ainda sofrem com o medo do desemprego e com o elevado montante de dívidas em atraso em relação à sua renda. Ambos indicadores recuam lentamente e limitam a melhora da confiança. A volta do consumo tende a ser lenta e em etapas. Neste primeiro trimestre, por exemplo, houve um expressivo aumento de licenciamento de automóveis. Nas atuais condições, é natural que os outros setores fiquem para trás, pois o consumidor tende a ser mais conservador na decisão de adquirir outros bens e serviços.

Do lado das empresas, a situação financeira tem melhorado, mas também aos poucos.

As dívidas em atraso e a inadimplência na PJ estão em queda, mas os patamares são elevados. As concessões de crédito avançam e a qualidade do crédito melhora. Para se ter uma ideia, em 2015-16 o crédito que crescia era o associado a problemas de caixa, como cheque especial e cartão de crédito rotativo. Agora crescem linhas associadas à antecipação de receitas.

Não há muito apetite para investimentos, sendo difícil apontar o que decorre da dificuldade financeira de muitas empresas ou das incertezas eleitorais. Talvez seja mais o primeiro. Exemplo disso é a construção civil, onde empresas capitalizadas já estão investindo.

A oferta de crédito se recupera aos poucos, deixando para trás o descompasso em relação à demanda. Reflexo disso é o recuo dos spreads (diferencial entre taxa de juros final e custo de captação dos bancos). Enquanto isso, aumenta o acesso das empresas ao mercado de capitais.

Já os pedidos de recuperação judicial, após o recuo em 2017, iniciam 2018 sem motivos para celebração. E a redução do estoque de ativos problemáticos nos bancos tem sido lenta.

Este quadro acaba limitando a geração de empregos.

O mercado de trabalho perdeu o fôlego. Após um crescimento importante do emprego sem carteira e do trabalho por conta própria, ocorreu uma natural acomodação que não foi ainda compensada pela geração de empregos com carteira.

Além da dificuldade financeira das empresas, principalmente as pequenas e médias, vale notar que justamente a indústria, que é o setor que menos emprega, lidera a recuperação, até porque sentiu a crise primeiro.

Enfim, alguns fatores podem estar limitando a recuperação da atividade, mas talvez trate-se apenas de oscilações naturais de uma economia que ainda está arrancando e sente as turbulências.

Há ainda dois atenuantes. Primeiro, os estoques estão relativamente baixos na indústria. Estivessem elevados, a conversa seria outra.

O segundo está associado à informalidade. Assim como o emprego informal correu na frente do formal neste início de recuperação, o mesmo pode estar ocorrendo na oferta de bens e, principalmente, serviços. Os indicadores de atividade que não capturam o mercado informal podem estar subestimando a retomada. O segmento de turismo, por exemplo, celebrou o grande movimento no carnaval, sem que isso se refletisse no indicador de serviços no IBGE.

Por ora, não é possível afirmar que há algo de errado com o paciente. O problema é que a doença foi séria e afetou sua capacidade de reação à medicação. Além disso, os instrumentos para medir seus sinais vitais não são muito precisos.


Míriam Leitão: Tons da economia

Os bens de valor mais alto têm tido crescimento maior de vendas e de produção do que os mais baratos. Santa Catarina está acelerando, enquanto Pernambuco encolhe. A exportação aumenta mais em produtos manufaturados do que nas commodities agrícolas. A retomada da economia, depois da recessão de 2014-2016, tem ocorrido com inesperados e algumas desigualdades.

Oque tirou a economia da recessão foi a agricultura e a exportação, como se sabe. Mas o bom momento da balança comercial, que acumula superávit de US$ 66,5 bilhões em um ano até março, não se deve apenas aos grãos. No primeiro trimestre, enquanto as exportações em geral cresceram 7,7% na comparação com 2017, os produtos manufaturados tiveram alta bem mais forte, de 19%. No caso dos bens de capital, as máquinas e equipamentos usados na confecção de outros produtos, o salto foi impressionante: de 98,9% nesse primeiro trimestre, com as vendas atingindo US$ 3,4 bi. Aqui dentro, a situação também melhorou. No ano até fevereiro, em comparação com 2017, a produção de máquinas e equipamentos subiu 8%. Em 12 meses, o avanço é de 3,3%.

— Parece estranho porque não está havendo projeto novo de investimento. O caso é que a empresa ficou alguns anos sem trocar a máquina. Agora a economia começou a andar e não houve outro jeito a não ser comprar um equipamento novo — explica o economista José Roberto Mendonça de Barros.

Outra exportação que chama a atenção é a de veículos leves: foram 771,8 mil unidades em um ano até março, mais do que o dobro do que se vendeu em 2014, quando a crise começou. Com grande capacidade instalada, as fabricantes buscaram outros mercados depois que a demanda interna minguou. Em março, um a cada quatro veículos montado no Brasil foi enviado ao exterior. Em 2015, a proporção era de pouco mais de um a cada 10.

A exportação de máquinas agrícolas atingiu US$ 192,8 milhões de janeiro a março, pelos dados da Secretaria de Comércio Exterior, ou 30,6% a mais que um ano antes. A Caterpillar é uma das protagonistas desse movimento. A empresa tem fábricas em Piracicaba, no interior de São Paulo, e em Campo Largo, próximo a Curitiba, e viu o mercado interno murchar de 35 mil unidades por ano, em 2014, para somente 7 mil vendas em 2016.

— A solução foi exportar. Comparado ao começo de 2016, os embarques cresceram 145% neste ano. Foi o que garantiu a manutenção dos empregos. Ano passado, a Caterpillar voltou a contratar e abriu 1.100 vagas. Hoje, estamos com 3,9 mil empregados no país — conta Odair Renosto, presidente da operação brasileira.

A empresa exporta para mais de 120 países, principalmente para os EUA e os vizinhos sul-americanos, máquinas que custam entre R$ 200 mil e R$ 1,5 milhão. O aumento das exportações gerou créditos de ICMS para a Caterpillar, mas ela não tem conseguido descontar porque as vendas no Brasil estão quase paradas.

O desemprego alto é uma das maiores barreiras à recuperação, mas o economista José Roberto Mendonça de Barros acha que está voltando a confiança.

— O país tem 13,1 milhões de desempregados, mas tem 89 milhões de pessoas trabalhando. Acho que está havendo uma redução do medo de demissão. Isso é que explica, por exemplo, que a venda de produtos mais caros, que dependem do crédito, estarem aumentando mais do que a de produtos mais baratos.

De fato, a produção de bens de consumo duráveis saltou 14,2% nos 12 meses até março. São exatamente aqueles produtos mais caros, como televisão e carros, que as famílias tinham adiado a troca. O número de veículos feitos no Brasil no primeiro trimestre foi 40% maior do que no mesmo período de 2016. Já o mercado de vestuário, por exemplo, está bem mais fraco.

Há também uma disparidade entre regiões. Enquanto a indústria de Santa Catarina arrancou para uma alta de 5,1% em um ano, a produção em Pernambuco amarga queda de 1,8%. Na Bahia houve uma ligeira alta, de 0,5%, e a região Nordeste ficou estável no período. Pelas contas do IBGE, a indústria está 15,1% abaixo do seu pico histórico, de maio de 2011, mas o Ceará está a 21,5% do seu recorde de produção, em janeiro de 2010. Essa retomada em ritmos desiguais pode se traduzir em diferentes humores eleitorais, dependendo da região e do setor da economia.


Míriam Leitão: Rota sem rumo

A indústria automobilística no Brasil recebeu R$ 28 bilhões em subsídios do governo federal de 2006 a 2018, segundo estudo do economista Gabriel de Barros, da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado. Além de um regime tributário específico, o Inovar-Auto, houve forte redução de IPI, para estimular vendas, e ajuda indireta à instalação de plantas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Mesmo depois de iniciada a crise de penúria dos cofres públicos, os gastos com o setor aumentaram. De 2013 a 2017, o Inovar-Auto representou um custo de R$ 5,2 bilhões para o contribuinte, segundo o IFI. O programa foi condenado pela Organização Mundial do Comércio e não pôde continuar. Neste momento o governo se prepara para renovar a mesma ideia, com outro nome. Será o Rota 2030. Ele permitirá que empresas descontem o custo dos investimentos em pesquisa e tecnologia nos mais diversos impostos. A briga no governo é saber que impostos poderão ser abatidos. A Fazenda quer que seja só no Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. E o Ministério do Desenvolvimento quer que seja em todos os impostos federais para a alegria das montadoras. O custo pode ser de R$ 1,5 bi ao ano. E vai até 2030.

A grande pergunta é: esse dinheiro já concedido fomentou alguma tecnologia inovadora para a indústria brasileira? O que se percebe é o efeito colateral dos subsídios. A redução de IPI no primeiro governo Dilma teve impacto direto na arrecadação e contribuiu para levar o governo à crise fiscal.

As montadoras também foram contempladas pela redução dos juros para o setor, numa época de taxas altas para os outros segmentos. Elas foram reduzidas, os prazos se alongaram, e o resultado foi uma disparada da inadimplência na carteira de veículos. Ainda hoje o setor financeiro estuda os erros que cometeu, e isso atrapalha a queda do spread bancário e a recuperação da economia. Houve ainda programas especiais de financiamento via BNDES para a compra de caminhões com juros muito abaixo dos praticados pelo próprio banco.

Segundo o estudo do IFI, o volume total de renúncias fiscais para todos os setores saiu de R$ 77,7 bilhões, ou 3,2% do PIB, em 2006, para cerca de R$ 285 bi em 2017, ou 4,4% do PIB. O aumento aconteceu no governo que se definia como de esquerda e foi o que mais estimulou as transferências para o capital.

Mesmo com o ajuste fiscal, o governo ainda estima, para este ano, um gasto que ficará em 4,1% do PIB, como mostra o gráfico abaixo. Alguns programas são plurianuais. Outros o governo tenta reduzir e a base parlamentar rejeita. Gabriel de Barros não discute o mérito dos subsídios em seu estudo, mas aponta o seu peso dentro do Orçamento. O economista lembra que muitos projetos não têm data definida para acabar ou irão vigorar por décadas, como é o caso da Zona Franca de Manaus, que custa cerca de R$ 25 bilhões por ano e irá se estender até 2073, ou seja, por mais 56 anos.

O projeto de reoneração da Folha foi sendo aos poucos abandonado. Essa renúncia fiscal tinha até uma boa proposta inicial, que era reduzir o peso da contribuição previdenciária de empresas que empregam muita mão de obra. Mas o número de setores beneficiados cresceu e causou um rombo nas contas públicas.

Renúncias fiscais são políticas públicas e, por isso, são escolhas do que fazer com o dinheiro coletivo. Elas devem ter foco em redução das desigualdades e assimetrias da sociedade. A indústria automobilística, ainda baseada no motor a combustão, tem recebido benefícios fiscais desde que se instalou no Brasil há 70 anos. Sem que se saiba qual é o destino dessa rota.

 


Míriam Leitão: O fosso social

A desigualdade de renda é alta, ficou estagnada em 2017, e a verdade pode ser ainda pior do que as estatísticas mostram. O IBGE tem ampliado o escopo de suas pesquisas, mas é difícil captar toda a disparidade de renda no Brasil, por vários tipos de sub-declaração. Pelos dados, o grupo que está no topo, o 1% mais rico do país, recebe em média R$ 27,2 mil reais ao mês. O número parece subestimado.

A pesquisa capta principalmente a renda do trabalho. Segundo a nota técnica do Instituto, a pesquisa, que é amostral, pergunta ao entrevistado os valores de todas as rendas auferidas: salário, participação nos lucros, tíquete refeição e transporte, remuneração de investimentos financeiros, aposentadorias, pensões, programas sociais e aluguéis. Estudos de concentração de renda baseados em dados tributários são difíceis de serem feitos no Brasil, mas recentemente um grupo de especialistas encontrou números mostrando que a distância é ainda maior. Foi feito pelos professores da UnB Marcelo Medeiros, Pedro Souza e Fábio Ávila Castro e comparava os dados de 2006 a 2012. Quando entrevistei Marcelo Medeiros para o meu livro “História do Futuro" ele definiu essa discussão, de pequena alta ou pequena queda da desigualdade, como sendo um “debate de elevador". Chamou a atenção para a necessidade de ter “uma visão mais ampla sobre o processo de concentração de renda no Brasil".

No quesito desigualdade de renda o Brasil é tradicionalmente um dos primeiros da lista de qualquer classificação internacional que se faça. Isso foi de novo ressaltado ontem por Cimar Azeredo do IBGE, responsável pelas pesquisas de trabalho e renda. Há muitas formas pelas quais o país cria distâncias sociais. E o problema se desdobra em todas as outras desigualdades: regionais, de gênero, de cor e de nível de escolaridade. O retrato que o IBGE nos traz, de vez em quando, deveria acordar o país para este debate sobre as raízes mais profundas da nossa disparidade de renda, porque ela é crônica e persistente. E há também as razões conjunturais criadas pelos abalos que atingiram a economia nos anos recentes.

A crise afeta desigualmente a população de um país desigual como é o Brasil. Quando a inflação sobe, os pobres perdem mais capacidade de compra, quando a recessão se aprofunda, ela atinge mais quem tem menos proteção contra ela e é na base que o desemprego é mais vasto. Isso é que explica os dados divulgados ontem pelo IBGE.

No ano passado, apesar da queda da inflação e da saída da recessão, a desigualdade ficou estagnada e chegou a aumentar no Norte e Nordeste. Isso não significa que o recuo do IPCA e a superação do pior momento recessivo não tenham tido efeito positivo. Claro que tiveram, até porque a queda da inflação foi resultado principalmente da redução do custo da cesta de alimentos, justamente o item que mais pesa no orçamento das famílias pobres. Mas o desemprego continuou aumentando e chegou ao ponto máximo ao fim do primeiro trimestre do ano passado. E ele foi devastador entre os mais pobres. Um dado mostra isso: a renda do trabalho caiu 1,36%, a renda do trabalho entre os 50% mais pobres recuou 2,45%.

Um dado parece bom e não é. No Sudeste caiu o índice Gini de 2016 para 2017. Isso significa que a região foi a única onde houve queda da desigualdade. Mas isso foi, explica Cimar Azeredo, pela crise que atingiu os estados do Sudeste, principalmente o Rio, e que reduziu a renda dos mais ricos.

Dizer que a parcela que representa o 1% mais rico da população tem um rendimento 36 vezes maior do que a renda média de 50% da população, que ganha menos, é apenas um número a mais mostrando o tamanho do nosso fosso social. E ele pode estar subestimado. Na verdade, o mais importante é entender que o Brasil, que sonhou que poderia ir melhorando aos poucos esse velho problema, foi atingido por uma crise, desde 2014, que revogou todos esses microavanços. Esse é um debate que ainda está por ser feito no Brasil. E quando for, será possível ver todas as formas pelas quais sai, até dos cofres públicos, mais renda para os que estão no topo da pirâmide.


Fausto Matto Grosso: A crise do desemprego

O IBGE divulgou, recentemente, o índice de desemprego no Brasil correspondente ao trimestre entre novembro e janeiro. Ficou em 12,2%, o que corresponde a 12,7 milhões de pessoas desempregadas. Foi uma reversão de expectativa, pois o índice que vinha caindo desde março de 2017 voltou a subir. Isso aconteceu ao mesmo tempo em que a economia brasileira saía da recessão, com um crescimento de 1% em 2017 e projetando um aumento de 2,87% para 2018. Ou seja, o emprego caminhou na contramão do crescimento econômico.

Muitos analistas chamam atenção para o fato que o atual desemprego no Brasil não é meramente conjuntural, fruto da crise econômica atual. É resultado, também, da modernização da indústria 4.0 e da reorganização da produção em escala global. Em outras palavras, a retomada do crescimento econômico não significará, necessariamente, oportunidades para os atuais desempregados. Está em curso a caminhada rumo a uma sociedade com menos emprego, que precisará, cada vez menos, de trabalhadores.

Essa nova sociedade da robótica avançada, da inteligência artificial, da internet das coisas (IoT) e da impressão 3D demandará menos trabalhadores, e os primeiros a serem substituídos serão aqueles que realizam trabalhos repetitivos e trabalhos artesanais de precisão, facilmente traduzíveis em algoritmos a serem processados pelas máquinas. Muitas profissões já desapareceram nas últimas décadas.

Os analistas divergem quanto ao impacto dessas transformações tecnológicas no emprego. Otimistas, alguns afirmam que os novos empregos afastarão os trabalhadores atuais, mas que novas oportunidades serão abertas para estes em novas áreas. Chama atenção o fato de que todo processo de mudança causa apreensão e insegurança, ocorrendo em todas as mudanças tecnológicas, mas as pessoas têm grande capacidade de adaptação e o sistema tenderá a se aquilibrar.

Por sua vez, o insuspeito Klaus Schwab, fundador e presidente-executivo do Fórum Econômico Mundial (Davos) e autor de “A Quarta Revolução Industrial”, adverte que há uma certeza: as novas tecnologias mudarão drasticamente a natureza do trabalho em todos os setores e ocupações. A incerteza fundamental tem a ver com a quantidade de postos de trabalho que serão substituídos pela automação. Quanto tempo isso vai demorar e onde se chegará? Daimler Benz (Mercedes Benz) afirma que de 70 a 80% dos empregos vão desaparecer nos próximos 20 anos.

O problema do desemprego tenderá, pois, ao agravamento e tornar-se-á, provavelmente, o principal problema dos países nos próximos anos. Poderá fazer surgir grandes turbulências na sociedade. O que fazer com os trabalhadores que serão marginalizados nesse processo? Esse assunto deverá adquirir centralidade na pauta brasileira.

A primeira dificuldade que teremos pela frente é a da falta de sensibilidade das lideranças, públicas e empresariais, para esse assunto. Há falta de visão estratégica na discussão sobre o desenvolvimento.

Também a qualidade da nossa educação, passaporte necessário para a nova economia, ainda é um problema não resolvido entre nós. Estamos colocados na retaguarda, em comparação com os países da OCDE. Considerando os 72 países que foram analisados pelo Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), ficamos em 55º lugar em leitura, 58º em matemática e 59º em ciências. É uma tragédia para o futuro dos jovens brasileiros, afirmou o próprio ministro da Educação, quando foram divulgados os resultados.

Para anteciparmo-nos a essa crise, deveremos colocar em análise novos modelos de distribuição da riqueza produzida. No novo paradigma produtivo, a força de trabalho poderá ser crescentemente desnecessária, mas as pessoas não podem ser descartadas. A ideia da renda mínima cidadã, do sonhador senador Suplicy, talvez mereça ser resgatada. Hoje, o conceito de cidadania é considerado ligado à obtenção de emprego e à renda. É preciso ampliar essa noção. Se o indivíduo existe, deve ser considerado cidadão. Respirou, é cidadão! Esse talvez possa ser o novo lema humanista.

* Fausto Mato Grosso é engenheiro e professor aposentado da UFMS

 


Marcos Lisboa e Samuel Pessôa: A economia do moto perpétuo

Para os heterodoxos, basta mais gasto público para ficarmos mais ricos; fosse assim, seria difícil entender o atraso de muitos países

Os economistas heterodoxos brasileiros frequentemente defendem que a expansão do gasto público pode ser autofinanciável.

O maior gasto público na expansão da produção amplia a oferta de bens e serviços, ao mesmo tempo que aumenta a renda das famílias e o seu consumo. O crescimento da economia aumenta a arrecadação de tributos, financiando o maior gasto público.

Descobriram o círculo virtuoso: o Tesouro emite dívida, e o resultado é o maior crescimento econômico e da receita de impostos. No fim do ciclo teríamos a redução da dívida pública como fração da economia! Economistas heterodoxos declaram sucesso onde a física fracassou: a invenção do moto perpétuo.

Como escreveram Nelson Barbosa e José António Pereira de Souza no texto "A inflexão do governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda": "Em outras palavras, o eventual financiamento do investimento público por meio da emissão de dívida não seria necessariamente incompatível com a meta global de redução da relação dívida/PIB do setor público brasileiro, visto que tal investimento resultaria na elevação da própria taxa de crescimento do PIB".

A criatividade dos heterodoxos resolveu o problema da escassez. Basta gastar mais para ficar mais rico. Se essa dinâmica fosse possível, seria difícil entender o subdesenvolvimento de muitos países. Afinal, o aumento do gasto público aumenta a renda do país.

A realidade requer detalhes que as fantasias podem ignorar. O crescimento econômico e da arrecadação tributária deveria ser grande o suficiente para compensar o aumento do gasto público. A expansão da capacidade de produção da economia deveria ser rápida o suficiente para evitar que o resultado fosse apenas mais inflação. Por fim, o crescimento da receita de impostos deveria ser maior do que o aumento da dívida decorrente da taxa de juros pagas aos que aceitam emprestar ao governo.

Nossos economistas heterodoxos acreditam que a perda de 7% de PIB no biênio 2015-2016 foi responsabilidade da tímida e tardia contração fiscal de Joaquim Levy. Infelizmente eles são incapazes de escrever um artigo com as melhores técnicas da profissão documentando esse fato. Aproveitando, poderiam anunciar a boa nova de que descobriram o moto perpétuo e explicar por que a imensa expansão fiscal de 2014 não resultou em vigoroso crescimento.

No trabalho "Fiscal Policy in a Depressed Economy", Bradfor DeLong e Lawrence Summers mostram que a expansão fiscal pode ser eficaz no caso de economias com alto desemprego, inflação baixa e juros nominais nulos. Esse era o caso da economia americana logo em seguida à crise do subprime.

Certamente não é o caso e nunca foi o do Brasil, como já deixou de ser o dos EUA. A dívida americana deve aumentar como proporção do PIB em função da política fiscal expansionista de Trump —como, aliás, ocorreu no período Reagan.

Entende-se por que a mensagem da heterodoxia é tão bem-vinda aos políticos populistas. Afinal, nada melhor do que propor que quanto mais se gasta, mais rico se fica.

Muitos podem reagir às propostas da direita extremada. Não os heterodoxos. O caldo de cultura foi o fracasso da sua fantasia de moto perpétuo em meio à demonização da divergência.

* Samuel Pessôa é formado em física, doutor em economia e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV

Marcos Lisboa é economista, presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)