Economia
Elena Landau: #FicaTemer
O essencial é o presidente e a equipe econômica falarem a mesma língua
Com o leilão da empresa de Alagoas (Ceal) no dia 28 enfim se completa o ciclo de privatização das distribuidoras da Eletrobrás. Independentemente do seu resultado, a política de desinvestimento da empresa já é um sucesso: cinco empresas mal administradas e cronicamente deficitárias passam a ser geridas sem influência política.
O governo Temer começou com 156 empresas estatais, tendo 43 delas sido criadas durante os governos PT e com elas mais de 100 mil novos empregos foram contratados. Ao final do governo Dilma, o total de empregados chegou ao recorde de 550 mil. As muitas dezenas de empresas acumulavam prejuízos que ultrapassavam R$ 25 bilhões. Com a mudança da administração e um choque de governança, ajudado pela nova Lei das Estatais, o panorama é outro; elas terminarão este ano com lucro acima dos R$ 50 bilhões e 50 mil funcionários a menos.
E mais: 21 estatais estão fora das mãos do governo. Resultado do bom trabalho dos técnicos da SEST. E esse não é um caso isolado. No Ministério da Fazenda reformas microeconômicas, como cadastro positivo e o fim da TJLP, ajudaram a diminuir o custo e a desigualdade no acesso ao crédito. A TLP provocou um rápido e eficiente processo de crowding in, contradizendo o antigo discurso desenvolvimentista. Até mesmo no financiamento à infraestrutura, o mercado de capitais privado superou o desembolso do BNDES. O PSI (Programa de Sustentação do Investimento) do BNDES que oferecia linhas de créditos fortemente subsidiados, iniciado em 2009 e acelerado por Dilma, também foi suspenso. Em boa hora, já que o apoio a esse programa pelo Tesouro custou cerca de R$ 500 bilhões. Uma política que, além de inútil, posto que não gerou nem aumento na produtividade nem na taxa de investimentos, foi injusta ao por alocar dinheiro dos contribuintes para quem menos precisava. Aliás, os empréstimos do Tesouro aos bancos públicos subiram de 0,5% do PIB em 2007 para 9,5% em 2015.
Para se ter uma ideia do que significam essas centenas de bilhões desperdiçados, vale lembrar que o primeiro projeto de reforma da Previdência do Temer pouparia em 10 anos R$ 800 bilhões e o atual R$ 400 bilhões, além de contribuir para reduzir a desigualdade no acesso aos recursos públicos.
Outra boa notícia foi a antecipação do pagamento do empréstimo do BNDES ao Tesouro, ajudando na reorganização das contas públicas. Aliás, hoje graças ao esforço do Secretaria do Tesouro os dados públicos estão acessíveis. A transparência do orçamento e sua execução aumentou. Impossível terminar essa lista de avanços sem mencionar a condução da política monetária pelo Banco Central que levou à redução dos juros.
Tudo isso permitiu que a recessão herdada de Dilma desse lugar a um – modesto – crescimento e controle da inflação. Uma virada importante em poucos anos, apesar da instabilidade política gerada pelas denúncias contra Temer e das crises marcadas por greve dos caminhoneiros, desvalorização cambial, incerteza eleitoral e paralisação das reformas após a divulgação dos áudios JBS.
O trabalho conjunto dos Ministérios da Fazenda e Planejamento e do Banco Central resgatou o Brasil do pouco caso com que os recursos dos contribuintes foram tratados nos governos passados. Recentemente, o ex-ministro Guido Mantega e seu secretário do Tesouro, Arno Augustin, viraram réus por sua responsabilidade, ao lado Dilma, nas pedaladas fiscais que destruíram as contas públicas e a economia brasileira.
Qual o segredo desse sucesso quase invisível do governo mais impopular de nossa história? Simples: Um time de burocratas de primeira grandeza, que contou com apoio do presidente Temer para bancar as reformas que recomendava. Não fosse o timing da divulgação dos áudios da JBS, até a reforma da Previdência teria sido aprovada.
No mês em que o AI-5 completa 50 anos, essa equipe mostrou que não é preciso ato institucional autoritário para consertar a economia. Bom diagnóstico, conhecimento dos instrumentos de política econômica, experiência na execução, transparência e trabalho de equipe são suficientes. O Plano Real já havia nos mostrado isso.
Mas ainda há muito o que fazer. A herança dos que saem e a experiência dos que ficam na equipe com certeza vai ajudar o governo que inicia. O essencial é presidente e equipe econômica falarem a mesma língua. Isso vale para a reforma da Previdência, a principal tarefa do futuro governo. Não há substitutos a ela nem há atalhos possíveis.
Feliz Natal.
Maria Clara R. M. do Prado: O Brasil dos privilégios não tem futuro
Servidores fazem parte de uma máquina que, de tão custosa, já nem consegue caber dentro de si mesma
Quando assumir a Presidência da República, em 1º de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro passará a governar um país com renda bruta e PIB per capita, em dólares correntes, inferiores aos de 2010. Também a poupança bruta, que já era baixa, caiu ainda mais, do nível de 18% do PIB em 2010/2011 para 14,5% do PIB em 2017, segundo dados do Banco Mundial.
A renda continua concentrada. Mais da metade, 56,1%, é repartida entre os 20% do espectro mais alto. Sobram 43,9% da renda para serem divididos entre os demais brasileiros. Bolsonaro vai herdar um país que insiste em desprezar as vantagens de ter um grande e atrativo mercado interno, chamariz para investimentos e garantia de desenvolvimento consolidado, para benefício de um grupo de pessoas que, além de absorver a maior parte da renda, tem acesso a outros privilégios.
Ao contrário do PIB, que pode variar para mais ou para menos em função de fatores sazonais, o padrão da distribuição da renda brasileira, forjado ao longo de séculos, é crônico. Está presente em praticamente todos os setores da atividade econômica e social do país. Na saúde, na educação, nas condições sanitárias e de habitação, e na previdência social.
Os cofres públicos são generosos não com a qualidade de serviços que deve ser prestada à população, mas com os servidores que são regiamente pagos sem critérios de meritocracia, sem controle de produtividade e muitas vezes com a ajuda de padrinhos políticos. Fazem parte de uma máquina que, de tão custosa, já nem consegue caber dentro de si mesma.
Neste país, ao contrário de outros, é muitíssimo mais vantajoso ser funcionário público do que empregado em empresa privada. Por funcionários públicos, deve-se entender todos os que trabalham nos governos federal, estadual e municipal, nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nas universidades federais e estaduais, na autarquias, enfim... todos cujos rendimentos do trabalho são pagos com o dinheiro da arrecadação de taxas e impostos.
Não há dúvida de que os desequilíbrios da previdência social precisam ser enfrentados o mais rapidamente possível, na busca de soluções duradouras, a começar pela reforma do sistema de previdência do funcionalismo público. É caro, discrepante e injusto. O peso nas contas públicas tem aumentado exponencialmente, a ponto de muitos governos estaduais não terem mais condições financeiras de arcar com os custos dos seus aposentados. Sem falar que sobra pouco para outras rubricas. O governo gasta com pessoal seis vezes mais do que com investimento público.
A raiz do problema está, claro, na elevada remuneração dos servidores públicos. Funciona como uma bola de neve crescente, culminando com as altas aposentadorias. Entre o ano 2000 e 2016 o custo com pessoal do governo federal aumentou, em média, 4% ao ano em termos reais. Vale lembrar que ninguém é demitido no setor público brasileiro, a menos em situações muito graves.
O próximo presidente precisa encarar os fortes lobbies dos grupos de pressão se quiser resolver de vez o déficit fiscal. Precisará de coragem e determinação para enviar ao Congresso propostas de emenda constitucional que prevejam, por exemplo, o desaparecimento da prerrogativa que tem hoje o Poder Judiciário de decidir sobre o nível dos próprios salários, além dos auxílios moradia, viagem, etc... Se quem arrecada é o Poder Executivo, só este tem condições de determinar a remuneração dos servidores (e aqui entram também os deputados e senadores) que cabe dentro do orçamento público.
Um estudo do FMI, realizado por Izabela Karpowicz e Mauricio Soto, mostra que a despesa com pessoal no Judiciário brasileiro é uma das mais altas do mundo, comparável à da Suíça. "O salário médio no Poder Judiciário é cinco vezes mais alto do que a média de salários do setor público e nove vezes mais alto do que a média salarial do setor privado", diz o estudo "Rightsizing Brazil's Public-Sector Wage Bill" (Dimensionando a conta do salário no setor público do Brasil), publicado em outubro.
Entre abril de 2004 e dezembro de 2015, os salários públicos em geral, no país, cresceram ao redor de 45% em termos reais, em média, enquanto que os salários do setor privado aumentaram em cerca de 25% em termos reais. Às implicações no perfil dos gastos da previdência social, soma-se a distorção na formação de preços do mercado de trabalho, além dos efeitos sobre a produtividade da economia brasileira.
Considerando idade, educação e gênero, o salário no setor público brasileiro é 30% mais alto, em média, do que no setor privado formal. "Essa marca está substancialmente acima da marca média de 9% para países relacionados no Estudo de Renda de Luxemburgo (Luxembourg Income Study, LIS, é um centro de dados transnacionais comparativos que atende a pesquisadores, estudiosos e governos)", diz o trabalho, indicando que a mão de obra com menos anos de educação no Brasil ganha em média, 50% a mais no setor público do que no privado.
Não bastasse isso, há ainda dentro do governo muitos governos. Cada ministério tem níveis salariais próprios, gerando deformidades para um mesmo tipo de atividade. O estudo cita o fato de um motorista no Ministério da Energia ganhar 30% a mais do que no resto do governo federal e o de uma operadora de telefonia do Ministério dos Transportes receber 53% a mais do que as telefonistas de outras áreas.
Com os votos que recebeu nas urnas, Bolsonaro tem obrigação de mudar a cara do setor público do país. O estudo do FMI sugere um corte de pelo menos 1% do PIB nas despesas com pessoal do governo federal para ajudar a enquadrar os números na lei do teto de gastos (PEC 241) até 2023. Representaria uma relevante quebra do paradigma histórico. No mais, o que se pode fazer é desejar aos leitores um Feliz 2019!
El País: China comemora 40 anos da reforma e da abertura econômica, mais rica, mais forte e autoritária
Uma grande exposição em Pequim exalta o presidente Xi Jinping e marginaliza Deng Xiaoping, o arquiteto do processo
Xi Jinping, o presidente chinês, de uniforme militar e dialogando com as tropas. Xi Jinping na cabine de um caça da força aérea ouvindo o piloto com atenção. Xi recebendo presidentes estrangeiros. Xi fazendo um discurso no Grande Palácio do Povo em Pequim. Xi supervisionando a construção de obras públicas com um sorriso benevolente.
Mas na monumental exposição oficial Grandiosa Reforma, que acontece no Museu Nacional de História – um dos principais eventos com que a China não poupou esforços para marcar o aniversário – Deng, o pai dessas reformas, ocupa apenas um papel secundário. Como no resto das pompas, os grandes protagonistas das comemorações são Xi Jinping, o líder cada vez mais autocrático da China há seis anos, e sua “nova era”.
Uma nova era na qual, segundo denunciam seus críticos, Xi desmantelou sistematicamente a maior parte do legado de Deng. Foram eliminados os limites temporais impostos pelo “pequeno timoneiro” ao mandato presidencial, pensados para evitar que um líder se perpetuasse no comando; o segundo plano em política externa recomendado pelo veterano dirigente é coisa do passado; na economia, o setor público ganha terreno novamente em relação a um setor privado que foi o motor do crescimento nas últimas décadas, enquanto as reformas anunciadas há seis anos não foram postas em operação.
“Unidos ao redor do líder Xi Jinping, núcleo do Partido Comunista”, diz uma enorme faixa que recebe o público que lotou a exposição esta semana: grupos escolares, turistas de outras províncias, militantes do partido em visitas organizadas. No interior, sala após sala dedicada às realizações da China ultramoderna (e do Partido Comunista): a China que chegou à Lua, que implantou a maior rede ferroviária de alta velocidade, a que inova em robótica e inteligência artificial.
E imagens e mais imagens do presidente chinês. Todas elas sempre alguns centímetros maiores ou mais altas do que o resto dos elementos da exposição. Deng aparece como apenas mais um dos líderes que precederam Xi: seu retrato é do mesmo tamanho do que os dos outros líderes, Hu Jintao e Jiang Zemin. Na sala dedicada à história, o espaço ocupado por todos eles é a metade daquele dedicado ao atual chefe de Estado.
“Deng Xiaoping deve estar se revirando no túmulo”, diz o professor Willy Lam, da Universidade Chinesa de Hong Kong. “Quase todas as suas reformas foram abandonadas: a liderança coletiva e a proibição do culto à personalidade; a separação do Partido e do Estado; na economia, ênfase no mercado e bom tratamento aos empresários privados e aos capitalistas estrangeiros...”.
Apesar disso, dentro da China a situação é menos monolítica do que a exposição – e o Governo chinês – querem apresentar. O aniversário, que deveria ser uma apoteose das realizações do sistema, chega em meio a mais dúvidas do que o previsto. A economia chinesa não está crescendo como em anos anteriores. A guerra comercial com os Estados Unidos que a China inicialmente pensava que poderia resolver aumentando suas importações, se transformou em algo mais profundo e se espalhou a outras áreas da relação bilateral, a tal ponto que em Pequim já se considera o início de uma guerra fria. A Europa compartilha muitas das críticas que Washington faz sobre as práticas chinesas. E nos últimos dias, a prisão no Canadá de Meng Wanzhou, diretora financeira do gigante das telecomunicações Huawei, foi recebida como uma bofetada em Pequim.
Ninguém, dentro ou fora da China, duvida de que Xi mantenha um controle total do poder. Mas nos últimos meses foram ouvidas vozes dissidentes que pedem mais reformas econômicas para recuperar o caminho das reformas pró-mercado que Deng definiu.
Em outubro, foi o filho do “pequeno timoneiro”, Deng Pufang – homem com enorme ascendência moral dentro do sistema chinês – que fez críticas. As mudanças impostas por seu pai “na estrutura social, na divisão de interesses e no modo de pensar são fundamentais, históricas e irreversíveis”. “Temos de continuar neste caminho, sem regressões e sem hesitar durante cem anos”, insistiu em um discurso que os meios de comunicação oficiais não divulgaram. Outros representantes do clã reformista – os filhos do ex-secretário geral do partido, Hu Yaobang; o general Liu Yuan, filho do ex-presidente Liu Shaoqi – também fizeram comentários críticos.
E talvez como resultado das pressões externas e das vozes dissonantes internas, parece que algumas mudanças podem estar chegando. “De certo ponto de vista, podemos dizer que Trump está forçando Xi a voltar aos ensinamentos de Deng”, especialmente na ênfase no mercado, no tratamento não discriminatório às empresas estrangeiras e no tom mais baixo na política externa, aponta Lam.
O chefe de Estado chinês fará um discurso na terça-feira sobre o aniversário, no qual poderia anunciar algumas medidas de aprofundamento do Gaige Kaifang; ou de conciliação na guerra comercial, como são interpretadas em alguns setores.
“Há alguns sinais de tentativas de que um novo impulso para as reformas está sendo planejado”, indica a consultoria Capital Economics. A China, como adiantou o The Wall Street Journal, poderia modificar seu plano Feito na China 2025, pelo qual quer se tornar líder em tecnologia nesse época, e permitir uma maior participação estrangeira.
Mas também, acrescenta a consultoria, as novas medidas anunciadas podem significar pouco mais que uma tentativa de salvar as aparências para evitar mais tarifas e ganhar tempo. “Embora alguns funcionários em Pequim vejam as reformas baseadas no mercado como uma solução para as tensões comerciais e os problemas estruturais mais amplos que afetam o crescimento econômico, outros veem as pressões dos EUA como uma reivindicação das posições atuais”, lembra.
E depois do caso Huawei no Canadá, a China respondeu prendendo dois cidadãos canadenses por supostas “atividades prejudiciais à segurança nacional”. Um passo que em geral provocou tanto apoio entre a população chinesa quanto preocupação no exterior.
Na exposição no Museu Nacional de História, o público, por sua vez, continua tirando fotos ao lado de uma maquete inteligente da Barragem das Três Gargantas, de uma locomotiva do trem de alta velocidade ou do robô policial. “Como me sinto vendo isso? Me sinto rico”, ri um jovem.
O Globo: Guedes traça plano para superar ‘armadilhas’ do baixo crescimento
Futuro ministro quer usar reformas e privatizações contra herança de governos que classifica de social-democratas
Marcello Corrêa e Martha Beck, de O Globo
BRASÍLIA - O Brasil é prisioneiro de uma armadilha social-democrata de baixo crescimento. Esse diagnóstico tem sido repetido como um mantra pelo futuro ministro da Economia, Paulo Guedes. Para ele, o país cobra muito imposto e gasta demais enquanto a atividade econômica patina. Coma mesma rapidez, Guedes dá o seu receituário para tirar o país dessa condição. Promete reformas que vão dos ajustes na Previdência a um amplo programa de privatizações. No entanto, a agenda tende a enfrentar resistências, sobretudo no Congresso.
Guedes estabelece como centro desse modelo que provoca baixo crescimento o excesso de gastos obrigatórios. Hoje, mais de 90% do Orçamento federal são fixos, destinados principalmente ao pagamento de benefícios previdenciários e folha de pagamentos. Assim, sobra pouco espaço para investimentos públicos.
‘CHOQUE LIBERAL’
Por isso, Guedes costuma associar o discurso sobre a armadilha a debaixo crescimento a outro bordão, este emprestado do ex-presidente Tancredo Neves: “é proibido gastar”.
O futuro ministro também costuma destacar o gasto com a dívida pública. São R$ 400 bilhões por ano. Para isso, recorre a outra figura de linguagem: diz que o Brasil reconstrói uma Europa por ano pagando juros. Segundo ele, aproximadamente o mesmo valor empenhado no Plano Marshall para recuperar o continente após a Segunda Guerra Mundial. O dinheiro das privatizações de estatais é apontado como solução para essa parte do problema.
Outro braço dessa armadilha é a consequência da bola de neve dos gastos: a carga tributária. Segundo a Receita Federal, os impostos representam quase 33% do Produto Interno Bruto (PIB). Na visão de Guedes, o peso dos tributos é resultado de um Estado grande e ineficiente.
Ao classificar esse cenário como “armadilha social-democrata”, Paulo Guedes faz uma crítica aos governos que o precederam. Social-democracia costuma ser associada a governos que preveem uma rede maior de proteção social, como seguro-desemprego, entre outros. É o PSDB que tem social-democracia no nome, mas o recado de Guedes se estende aos governos do MDB e do PT pós-redemocratização. Na visão dele, apesar das trocas de governo nas últimas décadas, ninguém propôs reformas sustentáveis. Daí a expressão armadilha.
Segundo aliados, o que se espera de Guedes e sua equipe é um “choque liberal”. Em entrevista ao GLOBO em agosto, ainda durante a campanha, o futuro ministro explicou como propõe uma abordagem diferente em relação às estatais: — Um social-democrata diz: ‘Eu gosto de estatais. Uma ou outra eu posso vender’. O liberal-democrata diz: ‘Não gosto de estatais, mas deixo algumas’.
SEM DISTRIBUIÇÃO DE RENDA
Há economistas que divergem da leitura de Guedes. Ex-vice-presidente e ex-diretor-executivo do Banco Mundial, Otaviano Canuto, refuta os rótulos de social-democracia e de liberal-democracia usados nos discursos do futuro líder da equipe econômica. Canuto aponta que o Brasil é um exemplo de que esse tipo de classificação é reducionista e não mostra um quadro verdadeiro da realidade do país:
—O Brasil é um país social democrata? Levando em conta a carga tributária e os privilégios dados pelo Estado a algumas categorias, pode até se pensar assim. Mas é um país que não distribui renda de forma efetiva. Quando se olha a área fiscal, o país tem um sistema que é um Robin Hood às avessas. Economista que coordenou o programa de privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso, Elena Landau diz que social-democracia é uma definição que economistas de perfil liberal como Guedes gostam de usar para definir governos de esquerda. Mas, assim como Canuto, ela destaca que os dois lados têm pontos em comum:
— Todo mundo é a favor de reforma da Previdência e de abertura comercial.
Ainda não está claro quais serão exatamente as medidas adotadas por Guedes no governo para sair do que ele chama de armadilha. A reforma da Previdência é prioridade, mas ainda não são conhecidos os detalhes de sua proposta e a estratégia para passá-la no Congresso. A venda de estatais é apresentada com um potencial de R$ 800 bilhões, mas há resistência às privatizações da Petrobras e de bancos públicos.
Em outra frente, a equipe de transição analisa uma série de propostas da equipe do atual ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, para reduzir gastos com pessoal. Técnicos da Fazenda prepararam estudos para uma revisão das carreiras do funcionalismo, que deve ser abraçada pelo futuro governo, e restrição de acesso a benefícios como o abono salarial, hoje pago a todos que recebem até dois salários mínimos.
O Estado de S. Paulo: 'A Escola de Chicago ficou menos isolada', diz diretor
Para Robert Shimer, diretor da escola pela qual passou Paulo Guedes, os mercados são mais sempre perfeitos
Beatriz Bulla, Correspondente de O Estado de S.Paulo
WASHINGTON - O Departamento de Economia da Universidade de Chicago, por onde passou o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, e parte das lideranças de seu time para formar o próximo governo, se transformou ao longo do tempo. Em entrevista ao Estado, o economista Robert Shimer avalia que a escola está menos isolada em suas visões do que na época em que Milton Friedman impulsionou a defesa do livre mercado. “Não acho que há muitas pessoas que acreditem que mercados são sempre e em qualquer lugar perfeitos e não há necessidade de nenhuma interferência do governo em nenhum lugar. Essa é uma visão da Escola de Chicago que não se vê aqui, ao menos em muitas pessoas desse departamento atualmente”, afirmou Shimer. Na Universidade desde 2003, Shimer assumiu o posto de “chair” do departamento – o equivalente a diretor – neste ano, mas não conhece a equipe de Guedes.
Estadão: O sr. vê alguma diferença entre o que é a Escola de Chicago hoje e o que foi na época de Milton Friedman, que deu voz às teorias de livre mercado?
Robert Shimer: Não estava aqui na época do Milton Friedman, então é um pouco difícil de responder. Há coisas semelhantes entre a Chicago de hoje e a Chicago de 30, 40 anos atrás, mas também há coisas que mudaram aqui. Naquela época, os mercados estavam sob ataque e os principais economistas estavam escrevendo livros sobre uma potencial superioridade de ‘planned economies’ (economias controladas por governos) sobre economias de mercado, o sistema da União Soviética sobre o sistema dos Estados Unidos naquele período. Era uma visão controversa a de que o mercado poderia ir muito bem e de que há limitações nos governos. A Escola de Chicago, não diria que era sozinha, mas foi uma líder no pensamento, em primeiro lugar, de que os mercados podem alcançar resultados muito bons e, em segundo lugar, de que há limitações no que os governos podem fazer em questões econômicas.
E atualmente?
Não acho as pessoas acreditem que mercados são sempre, e em qualquer lugar, perfeitos e que não há necessidade de nenhuma interferência do governo em nenhum lugar. Essa é uma visão da Escola de Chicago que não se vê aqui, ao menos em muitas pessoas desse departamento atualmente. Mas por outro lado há a visão de que economias de mercado geralmente “performam” muito bem em várias dimensões e há limitações no que os governos podem fazer. Isso seria a corrente principal. Chicago está menos ‘isolada’ em suas visões do que era quando Milton Friedman estava aqui.
O sr. mencionou que o contexto era diferente na época de Friedman. É o contexto o responsável por mudanças?
O Brasil, por exemplo, teve uma grande mudança política. Provavelmente, há questões abertas sobre os papéis a serem exercidos pelo mercado e pelo governo. Algumas dessas questões apareceram nos Estados Unidos também.
O que se torna importante em política econômica durante esses momentos de mudança?
Há muitas coisas que o mercado consegue fazer extremamente bem e que os governos conseguem fazer. Há uma série de experimentos – e essa talvez seja uma palavra leve – de governos tentando comandar a economia, forçar as pessoas a fazerem coisas que elas não desejam. Isso não parece funcionar no longo prazo. A União Soviética e o Leste Europeu são exemplos extremos disso. Não significa, de outro lado, que os mercados estão sempre corretos, há limitações, como externalidades. É preciso ter cuidado sobre o papel do governo de intervenção nos mercados, porque também não é verdade que os governos sempre se saem bem. Governos são compostos por indivíduos, que têm seus próprios interesses. Governos nem sempre alcançam resultados perfeitos.
Para dar um contexto muito rápido sobre o Brasil. Temos um elevado déficit fiscal no momento. Entre as medidas defendidas pela nova equipe econômica para solucionar o problema está uma imediata reforma da Previdência e um processo de privatização de empresas estatais. Pensando nesse cenário, qual seria sua avaliação para recuperação de confiança dos mercados e geração de crescimento econômico?
Não é exatamente minha área de expertise, já que um país como o Brasil não pode lidar com o mesmo nível de déficit que os Estados Unidos pode. Faz sentido que seja necessário colocar o déficit sobre controle. Para fazer isso, é preciso haver uma combinação de aumento de tributos e corte de benefícios dados pelo governo. Ou aumentando a receita de outra maneira, com a venda de companhias estatais, por exemplo. A questão é qual o papel do governo nessas companhias e quais devem ser vendidas. Em casos de monopólios nacionais, onde naturalmente só havia uma firma operando, é preciso pensar em regulação quando a companhia é vendida. Não sei exatamente quais seriam consideradas no Brasil, mas imagino que há espaço para aumentar a eficiência da economia assim como aumentar a receita com essas vendas. Sobre reformas da Previdência, de novo, não sei sobre o contexto brasileiro. Há sempre problemas quando se fala em reformas como essa – há ganhadores e perdedores. Ao mesmo tempo, todo mundo sofre se há um crise fiscal, um colapso da moeda. Há uma questão entre fazer uma reforma fiscal agora ou ser forçado a fazer em alguns anos pelos mercados financeiros globais. Mas, de novo, eu não sei o suficiente sobre Brasil especificamente.
Conhece algum desses profissionais brasileiros que passaram por Chicago, como o economista Paulo Guedes?
Infelizmente, não. Eu me tornei ‘chairman’ (o equivalente a diretor) do departamento de economia apenas neste ano e não tenho uma rede de contatos no Brasil particularmente.
Paul Romer, um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Economia deste ano, teve uma passagem pela Universidade de Chicago. O que a entrega do Nobel deste ano indica?
Sobre Romer, eu vejo que sua observação principal foi o papel da inovação e o quanto a inovação é importante para avanços nas fronteiras tecnológicas. Também há um aspecto central da inovação como algo que, uma vez descoberto, pode ser adotado por todos no mundo. Pensando sobre questões relevantes ao Brasil, as ideias descobertas em uma parte do mundo podem se espalhar muito rapidamente a outras partes. É algo que vimos de forma dramática nas últimas décadas na Ásia, na China, e é algo que acontece numa taxa mais baixa no Brasil. E o crescimento da América Latina, em comparação com a Ásia, tem sido decepcionante. Parte da resposta a isso, e estou indo além do que Romer escreveu, é a forma como as ideias se espalham de um país rico para países menos ricos – é através da abertura de mercados, através de comércio, de investimento estrangeiro direto.
Zeina Latif: Erros do tipo Macri e Macron
Bolsonaro necessita de uma estratégia precisa para a reforma da Previdência
O futuro ministro da Economia está quieto. Depois das falas polêmicas e de manifestações que sugeriram conhecimento pouco profundo dos desafios fiscais, Paulo Guedes sabiamente se recolheu e reagiu bem aos alertas. Está quieto, mas não inerte. Seus movimentos recentes foram precisos, como na nomeação de Marcelo Guaranys, Rogério Marinho e Leonardo Rolim, que são profissionais com perfis complementares e fazem jus a um título de “time dos sonhos”. Combinou-se conhecimento da máquina pública, experiência política e domínio técnico do tema que é prioritário, a reforma da Previdência.
Seria importante Guedes conter as falas ambíguas e equivocadas de Bolsonaro e do núcleo duro que o cerca. A retórica alimenta a percepção de que o presidente eleito não tem suficiente clareza sobre a insustentabilidade da Previdência e suas regras injustas. Adquirir esse conhecimento será parte de sua missão de defender politicamente essa agenda. Caso contrário, será improvável o apoio do Congresso. Na política, as palavras têm peso.
Escolhas precisam ser feitas. Mais complicado ainda é fazê-lo em um ambiente de incertezas. O que é melhor: (1) propor uma reforma ambiciosa que viabilize o cumprimento da regra do teto e o ajuste fiscal dos Estados, mas correndo o risco de ter uma tramitação lenta e desgastante politicamente, ou (2) uma reforma diluída, como sinalizado pelo presidente eleito, com trâmite mais rápido, mas com risco fiscal elevado?
É possível que se opte pelo meio do caminho, fatiando a reforma, separando as matérias constitucionais das infraconstitucionais, o que é positivo, e também avançando por etapas nos diferentes regimes de militares, policiais, servidores e setor privado, como proposto por Paulo Tafner e outros especialistas. Porém, o risco de o Congresso só aprovar uma ou outra fatia, e não o todo, resultando em uma reforma insuficiente, precisa ser considerado pelos estrategistas políticos.
A escolha de Bolsonaro será o primeiro teste de sua convicção sobre a necessidade da reforma. A capacidade de diálogo no Congresso, o teste principal. Não temos essas respostas. O ambiente de incertezas, portanto, ainda vai prevalecer por um tempo.
O que Bolsonaro precisa evitar são os erros de Macri e Macron, ambos presidentes com perfil reformista, eleitos em uma onda de renovação da política e contando com apoio popular. Agora ambos sofrem grande desgaste.
O argentino Mauricio Macri iniciou o mandato corrigindo importantes distorções na política econômica. No entanto, por contar com uma base estreita de apoio no Congresso – menos de 30% dos parlamentares quando iniciou seu mandato em 2016 –, foi forçado a negociar com governadores e a ceder. O gradualismo no ajuste fiscal parecia o único caminho possível naquele momento. Nas eleições parlamentares de 2017, Macri conseguiu aumentar seu apoio no Congresso e aprovar uma reforma da Previdência aguada. O resultado é o desarranjo do ambiente macroeconômico, com inflação acima de 40% e mais um acordo com o FMI.
O francês Emmanuel Macron, impulsionado pelas mídias sociais e com apoio no Congresso, conseguiu avançar com seu ímpeto reformista. Agora sofre o desgaste decorrente da percepção da sociedade de que ele protege os mais ricos. A elevação do preço de combustíveis, decorrente do imposto sobre carbono, penalizou uma classe média que se sente desprestigiada pelos políticos. Faltou diálogo e o devido cuidado com políticas que mexem diretamente no bolso dos eleitores. Protestos eclodiram. Macron recuou, mas a insatisfação persiste, enquanto outras reformas, como da Previdência, ficaram comprometidas.
Bolsonaro necessita de uma estratégia precisa para a reforma da Previdência. Não pode ser nem muito tímida nem muito desigual. E diálogo é essencial. Grupos que se sentem injustiçados podem reagir. O gradualismo e o tratamento desigual podem ser convenientes no curto prazo, mas cobram seu preço adiante.
*Economista-chefe da XP Investimento
Vinicius Torres Freire: Neblina na aposentadoria e nos juros
Indefinição sobre reforma de Bolsonaro é política e começa a inquietar donos do dinheiro
A mudança nas aposentadorias e nas pensões ainda não tem projeto definido porque Jair Bolsonaro ainda não se ocupou do assunto. Mesmo antes de chegar ao Congresso, a reforma da Previdência do próximo governo enfrenta problemas políticos.
A ala parlamentar bolsonarista diz o que quer sobre a Previdência porque simplesmente não recebeu diretrizes ou ordens do presidente eleito, que, por sua vez, diz nebulosidades preocupantes sobre a reforma porque dá ouvidos a seus articuladores políticos e "bases".
É o que se pode ouvir entre economistas do governo de transição de Bolsonaro. Políticos bolsonaristas e "bases", inclusive nas redes insociáveis, são refratários à mudança e não têm entendimento da crise que pode sobrevir caso a reforma vá para o vinagre ou seja muito aguada.
A inquietação entre negociantes de dinheiro e porta-vozes do mercado se espalha.
Por um lado, ouvem o presidente eleito e seus articuladores políticos dizerem em público que a reforma não pode ser dura, "matar idoso", que pode ser feita em até quatro anos, que não se pode bulir com servidores, que o Congresso vai desidratar qualquer plano de mudança etc.
Por outro lado, gente da futura equipe econômica trata do assunto em conversas informais com conhecidos na praça. Dentro do governo de transição, sentem a mesma indisposição reformista do entorno político imediato do presidente eleito.
Acreditam, porém, que tais conversas não indicariam uma inclinação firme de Bolsonaro. Dizem apenas que Paulo Guedes, futuro überministro da Economia, ainda não levou projeto claro para uma conversa decisiva com o futuro governo.
Os economistas dizem que têm uma reforma em mente, talvez com umas três variantes possíveis de estratégia de implementação, mas nenhum pacote de alternativas teria sido ainda apresentado ao presidente eleito.
De menos incerto é que se pretende apresentar um projeto básico bem assemelhado ao que Michel Temer enviou ao Congresso, com algumas emendas para torná-lo algo "diferente" e para que a economia prevista volte ao nível previsto na versão original da reforma.
Talvez alguma parte do projeto seja apresentada à parte, em particular alguma mudança que não dependa de mexida na Constituição.
O plano de capitalização (de Previdência baseada em contas individuais de poupança) viria de qualquer modo depois de aprovado o "bloco 1" da reforma, a mudança do sistema atual de aposentadorias e pensões, uma urgência fiscal.
Ainda não há sinais inequívocos de descrença no mercado, sinais nos preços, em taxas de juros, por exemplo.
Há taxas de prazo mais longo dando uma esticadinha, mas pode bem ser por qualquer motivo, como a escaladinha do dólar e outras tensões na finança internacional, que voltou a ficar estressada.
O clima doméstico é menos otimista, dada a desconversa sobre reformas, e o mundo lá fora não está ajudando nada, ao contrário.
Nas conversas com economistas da finança, nota-se um certo desânimo sobre as liberdades que Guedes terá para tocar um programa de reforma rápido e duro na Previdência.
No entanto, o povo que de fato mexe os bilhões para lá e para cá acha que, afora surpresas ou vazamentos essenciais, o próximo movimento decisivo ocorre em janeiro.
O fato é que se conhece quase nada dos planos de Guedes para a economia, muito pouco além do que se sabia durante a campanha. Dos planos de Bolsonaro, menos ainda.
Cristiano Romero: As consequências nefastas do populismo
É populista quem promete o que não pode e estoura orçamento
Quando alguém afirma que o Estado brasileiro quebrou, não se trata de exagero. Desde 2014, o setor público consolidado, isto é, as contas da União e dos Estados e municípios registram déficits pelo conceito primário (receitas menos despesas, excluídos os gastos com os juros da dívida pública). Isso significa que, no Brasil, há cinco anos as despesas do Estado superam o total arrecadado com a cobrança de impostos.
Para honrar os gastos, uma vez que a carga tributária equivalente a 33% do Produto Interno Bruto (PIB) não é suficiente, o governo federal é obrigado a ir ao mercado tomar dinheiro emprestado. Em 2014, após série de 15 anos de geração ininterrupta de superávits primários, o setor público fechou o ano com déficit primário de 0,35% do PIB.
Nos anos seguintes, o buraco aumentou para um déficit primário de 1,95% do PIB em 2015, 2,55% em 2016 e 1,81% do PIB em 2017. Neste ano, o rombo volta a crescer - para 2,17% do PIB (cerca de R$ 155,5 bilhões), segundo estimativa do Ministério do Planejamento. A previsão oficial é que, apenas no início da próxima década, o setor público volte a gerar saldo primário positivo em suas contas.
Se não consegue arrecadar o necessário para bancar as despesas previstas nos orçamentos públicos e, por isso, é obrigado a pegar dinheiro no mercado via emissão de títulos públicos, o Estado se endivida. O resultado de cinco anos consecutivos de irresponsabilidade fiscal - produzida pela gestão Dilma Rousseff (de 2011 a maio de 2016) - foi o brutal crescimento da dívida bruta, que saltou de 51,5% para 76,5% do PIB entre dezembro de 2013 e outubro de 2018.
A chamada dívida bruta do governo geral abrange o total dos débitos de responsabilidade do governo federal, dos governos estaduais e dos governos municipais, com o setor privado, o setor público financeiro e o restante do mundo. Como se sabe, a elevação crescente da dívida, além de encarecer o custo da própria dívida, uma vez que os investidores exigem ao longo do tempo prêmios (juros) mais altos para continuar financiando o governo, tem o efeito perverso de reduzir e encarecer o crédito disponível a quem precisa dele - empresas e consumidores.
Quanto maior é a fatia da poupança privada destinada ao financiamento da dívida pública, menor é a poupança que sobra para financiar investimento e, portanto, geração de renda e emprego. Está nessa equação parte da explicação dos juros escorchantes a que são submetidos cidadãos comuns, que necessitam de crédito para comprar imóvel e outros bens, e pequenas e médias empresas, que precisam de dinheiro para financiar o capital de giro e tocar seus negócios - no país das desigualdades, funciona assim: quem menos precisa de dinheiro a custo favorecido, notadamente as grandes empresas e as multinacionais, ambas com acesso a crédito barato no mercado de capitais, é quem mais tem acesso a recursos oficiais subsidiados (do BNDES e outras fontes).
O forte crescimento da dívida pública foi, sem dúvida, o maior retrocesso provocado pelo governo Dilma à política econômica que prevalecia no país desde o primeiro ano do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. O Brasil levou, grosso modo, 26 anos - de 1982 a 2008 - para superar a chamada "crise da dívida". Foram três décadas com baixíssimo investimento público, falta de recursos para combater a pobreza e outras mazelas sociais, inflação crônica e hiperinflação em boa parte do período, aumento das desigualdades sociais, moratória da dívida externa, calote na dívida interna etc.
Em 2008, depois de dez anos de razoável disciplina fiscal, o país foi sagrado com o selo de bom pagador de dívida (grau de investimento, na linguagem das agências de classificação de risco). Apenas sete anos depois, perdeu o selo, em meio à escalada de gastos que não couberam mais no orçamento - esta é, aliás, a melhor definição de populismo: um governante é populista quando promete à população algo que não possa cumprir ou quando realiza despesas que não cabem dentro do orçamento, para aumentar a popularidade e, assim, fazer prevalecer um projeto de poder.
O custo visível (porque a deterioração fiscal é teimosamente vista por alguns como uma abstração acadêmica) do populismo abraçado por Dilma Rousseff está aí: nos últimos cinco anos, a economia brasileira perdeu mais de 7% do PIB na recessão mais longa de sua história (2014-2016) e nos dois anos seguintes (2017 e 2018) cresce a passos de cágado. Com crise fiscal, não há dinheiro para melhorar a educação e a saúde públicas, enfrentar o grave problema da segurança pública, investir onde o setor privado não tem interesse em investir.
O próximo governo enfrentará o desafio de melhorar esse quadro. Em pouco mais de dois anos, a gestão Michel Temer trabalhou com uma das melhores equipes econômicas de que o país já dispôs, o que permitiu fazer as coisas andarem um bocado em Brasília. Não fosse a perda de força política do presidente em maio do ano passado, o PIB estaria crescendo neste momento a um ritmo mais acelerado.
Os desafios são imensos. Como descreve o documento "Reformas Microfiscais e Rigidez Orçamentária", elaborado pelo Ministério do Planejamento, além da crise fiscal, a explosão do gasto agravou outro problema - o grau de rigidez orçamentária (ver gráfico), que compromete a execução de políticas públicas discricionárias, especialmente, os investimentos e gastos sociais.
Monica De Bolle: Um conto chinês
Apesar da queda da produção de petróleo, o regime de Maduro tem sido capaz de se sustentar
Quando se trata da China, o que se destaca na América Latina são os lados positivos de relação por vezes tão disparatada quanto a cena de abertura do filme de Sebastián Borensztein: uma vaca cai do céu matando uma jovem – após a cena inicial, lê-se “baseado em fatos reais”. Os fatos reais geralmente destacados são a maior integração comercial entre a China e a região, a realidade de que a China já ultrapassa os EUA – em alguns casos – no peso que tem na América Latina, os volumosos investimentos chineses. Segundo dados compilados pelo Inter-American Dialogue, o banco de desenvolvimento da China (China Development Bank, CDB) e o China Ex-Im Bank, duas das maiores instituições financeiras do país, têm sido responsáveis pelo envio de recursos para conjunto seleto de países desde 2005. São eles: Argentina, Brasil, Equador e Venezuela.
Do que é possível saber – transparência não é o forte dos investimentos chineses – a China fez 17 empréstimos para a Venezuela, totalizando cerca de US$ 63 bilhões. Para o Brasil, foram 12 empréstimos no montante de US$ 42 bilhões. Para a Argentina, US$ 18 bilhões por meio de 11 empréstimos. Os dados provavelmente subestimam a presença do investimento chinês na região, sobretudo na Venezuela, onde os arranjos entre os dois governos estão encobertos por véu de mistério.
O que se sabe é que a China, transacional e pragmática, não está mais dando dinheiro ao regime de Nicolás Maduro. Ao contrário, os chineses andam mais preocupados em receber o que lhes é devido, seja na forma de pagamentos diretos, seja por meio de barris de petróleo. Apesar da queda sistemática da produção de petróleo, o regime de Maduro tem sido capaz de se sustentar. O PIB em queda livre e a hiperinflação que engoliu a Venezuela não prenunciam o fim da ditadura.
Mas este não é mais um artigo sobre a Venezuela. Este é um artigo sobre a atuação da China na Venezuela para além do comércio, dos investimentos e das transações opacas entre o país asiático e a PDVSA, a empresa de petróleo venezuelana. Dia desses, assisti a um dos vídeos mais perturbadores que já havia visto sobre a atuação dos chineses na Venezuela. Tratava-se de uma reportagem investigativa do New York Times sobre o que a China anda fazendo na região. Intitulado “O Equipamento Antiprotesto que os Déspotas Amam” (“The Anti-Protest Gear that Despots Love”) e disponível no YouTube, a reportagem mostra como os imensos protestos que tomaram as ruas de Caracas em abril e maio de 2017 foram eliminados. Reparem: não há mais protestos daquela magnitude desde então, ainda que a situação de penúria, miséria, tragédia em que vive a população só tenha piorado. Por quê?
Norinco, a empresa estatal chinesa especializada em equipamentos militares, vendeu para o governo Maduro tanques e veículos desenhados para montar barreiras e arremessar mísseis de gás lacrimogêneo e canhões de água nas multidões. As mortes – muitas não reportadas – e os milhares de feridos nos protestos do ano passado resultaram do uso do aparato antiprotestos fabricado e vendido pelos chineses. O sumiço das multidões desde então deve-se ao medo de ser vítima de um sofisticado equipamento para suprimir demonstrações legítimas e pacíficas. Como soube disso? Não por meio dos jornais, ou por ampla divulgação da reportagem do New York Times pela mídia. Soube diretamente de um jovem político venezuelano hoje exilado aqui em Washington que teve a sorte de escapar – pela fronteira entre o Brasil e a Venezuela – das garras de Maduro. Ele estava lá, nos protestos de 2017. Enfrentou os tanques e foi derrotado por eles.
Esse é apenas um dos relatos chocantes sobre a atuação da China na Venezuela. O outro diz respeito à empresa de tecnologia ZTE, alvo de sanções dos EUA, que vendeu para Maduro os chips da nova carteira de identidade anunciada em novembro. Para ter acesso a medicamentos, comida, aposentadorias, venezuelanos têm de adquirir a nova carteira, cuja tecnologia permite que cidadãos sejam rastreados e monitorados todo o tempo pela ditadura homicida. Qualquer semelhança com Orwell é mais do que mera coincidência. É a implantação da mais perversa distopia debaixo dos narizes de todos. Onde estão as denúncias?
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Míriam Leitão: Tarefas difíceis na economia
Equipe econômica do futuro governo ainda trabalha com a ideia de aprovar a reforma da Previdência que já está em tramitação no Congresso
O presidente Jair Bolsonaro, diplomado ontem, terá de enfrentar batalhas duras na economia. A primeira delas será a reforma da Previdência. O futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu várias vezes, mesmo antes de integrar a campanha de Bolsonaro, que o Congresso aprovasse a proposta do presidente Temer. E continuou repetindo que era melhor aproveitar o texto que já está em tramitação. É com essa ideia que ainda se trabalha na equipe econômica do novo governo. Mas não será só isso.
Ao mesmo tempo, o futuro governo prepara outra reforma mais ampla e com transição para o regime de capitalização. A ideia não é aprovar só a idade mínima num primeiro momento e, depois, ir votando aos poucos os novos parâmetros. Há entendimento de que isso levaria ao risco de uma contrarreforma. O que se defende é que a atual proposta seja apenas o começo de uma mudança mais profunda do sistema de pensões e aposentadorias do país.
Ainda não se sabe qual será o custo desta transição de um regime da repartição, como é atualmente, para o de capitalização, que é o que será sustentável no futuro. No estudo feito pelo economista Armínio Fraga, entraria em vigor apenas para os que nasceram a partir de 2014. No futuro governo, há quem defenda que esteja disponível bem antes.
Paulo Guedes, durante a campanha, usou a expressão de “avião em queda” para explicar o que pensava sobre o atual sistema. A reforma proposta pelo atual governo serviria apenas para retardar a queda. Ou seja, ela precisa se sustentar até que uma nova previdência, de contas individuais, esteja disponível. O desafio será evitar que o avião fique sem combustível mais cedo, porque a capitalização fará com que os que entrarem no mercado de trabalho a partir do início do novo modelo deixem de contribuir para o regime de repartição.
Se quiser uma mudança rápida para a capitalização, o futuro governo terá que conseguir outra fonte de financiamento para a Previdência. E isso encomenda mudanças na área tributária. Nada fica em pé, contudo, se não houver a aprovação da primeira das reformas, a que já está no Congresso e que cumpriu etapas importantes de tramitação. Durante a primeira fase da transição foram feitas declarações conflitantes sobre o assunto tanto pelo presidente eleito quanto pelo futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Mas na equipe que trabalha preparando o novo governo há diversos estudos sendo feitos. Eles convergem para uma estratégia em vários passos. Algumas mudanças infralegais poderão ser feitas num primeiro momento, até que o novo Congresso tome posse. A reforma do atual governo deve ser aproveitada e uma mudança mais ampla está sendo formulada.
Tudo dependerá, contudo, da capacidade de articulação no Congresso, porque todas as tarefas que precisam ser cumpridas na economia são difíceis. O teto cria um limitador para as despesas que a qualquer momento pode ser estourado. E o que se fará neste caso? Se a futura equipe econômica aceitar simplesmente ampliar o teto estará perdendo credibilidade.
Mas, para não ampliar o teto, terá que reduzir despesas. Isso é impossível num país com tanta rigidez orçamentária. Por isso, a proposta que tem sido defendida por integrantes do futuro governo — inclusive o vice-presidente, Hamilton Mourão, na entrevista que me concedeu na semana passada — é a de buscar mais flexibilidade no Orçamento.
Apesar de isso dar mais autoridade ao Congresso, que passaria pela primeira vez a formular a destinação dos recursos, haverá uma forte oposição ao que se convencionou chamar de “Orçamento base zero”. O problema é que, se as despesas permanecerem indexadas, o desequilíbrio aumentará. Além disso, outra urgência espera o novo governo na área econômica: a crise fiscal dos estados e municípios.
Paulo Guedes sempre defendeu a descentralização de recursos, por isso, quando ele falou recentemente em dividir parte da arrecadação do leilão das áreas da cessão onerosa do pré-sal era a essa ideia que se referia. Só que isso foi visto dentro da atual equipe econômica como um risco de estimular gastos em vez de sinalizar para a necessidade de ajuste. Além de não haver tarefas fáceis na economia, uma mudança levará à outra. Por isso a prioridade terá que ser a sucessão de reformas. Ou isso, ou a economia continuará em crise.
Julianna Sofia: É horrível ser trabalhador no Brasil
Com FAT e FGTS nas mãos, Guedes deve inovar no uso de dinheiro do trabalhador
O futuro governo de Jair Bolsonaro fatiará tal qual um salame o quase secular Ministério do Trabalho. As rodelas graúdas e cobiçadas ficarão sob a aba do poderoso Paulo Guedes (Economia), restando a Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) e Osmar Terra (Cidadania) administrar os nacos menos apetitosos — registro sindical e economia solidária, respectivamente.
A emissão das cartas sindicais virou caso de polícia e faz sentido remeter a tarefa à alçada de Moro.
O envolvimento de parlamentares, políticos e burocratas do Ministério do Trabalho em um esquema de propina para liberação de registros para sindicatos foi desvendado pela Operação Espúrio, que já mandou para o banco dos réus peixes grandes como o ex-deputado Roberto Jefferson.
Ainda está indefinido se o ex-juiz herdará também o combate ao trabalho escravo, tema controverso numa gestão em que a ascendência da bancada ruralista será inquestionável. Há chance de a fiscalização desse tipo de atrocidade ficar com Guedes.
Duas joias da coroa do reinado trabalhista, o FGTS e o FAT —donos de um patrimônio calculado em R$ 800 bilhões— foram estrategicamente capturadas pelo czar da economia bolsonarista. Não é de hoje que sucessivas equipes econômicas tentam inovar no uso desses fundos, que asseguram aos trabalhadores benefícios como seguro-desemprego e abono salarial, além de acesso a habitação popular e saneamento básico.
Guedes terá franco acesso a essas poupanças. No receituário, há propostas para extinguir o abono e usar o FGTS num sistema complementar ao seguro-desemprego. Isso reduziria o gasto do Estado com essas despesas —R$ 60 bilhões/ano. Outra ideia é usar até 25% dos depósitos do fundo de garantia na capitalização de contas individuais dentro de um novo modelo previdenciário.
Num país com 12,3 milhões de desempregados e taxa decrescente graças à destruição de vagas formais, a revolução liberal causa arrepios. Não está horrível apenas para patrões o Brasil dos dias atuais.
Zeina Latif: Luz amarela
A fraqueza da indústria, se persistir, vai contaminar cedo ou tarde os demais setores
O potencial de crescimento do Brasil está bastante deprimido. Pode estar abaixo de 2%, devido à produtividade estagnada e a tantos equívocos de política econômica nos últimos anos. O governo Temer promoveu importantes avanços que abriram espaço para um ciclo de recuperação da economia. O fôlego desse movimento dependerá do empenho do próximo governo para dar continuidade e acelerar a agenda de reformas.
Há um misto de confiança e cautela entre empresários com o cenário econômico. O mesmo vale para o mercado financeiro. Basta analisar o desempenho modesto dos preços de ativos desde a eleição, e com alguma volatilidade, contrariando a expectativa de um “rally” nos mercados após a eleição de Jair Bolsonaro.
Por um lado, há a avaliação de que o novo governo contará com a força das urnas, diferentemente do governo de transição de Temer; buscará políticas públicas na direção correta para melhorar a ação estatal; e adotará uma nova forma de fazer política que poderá elevar a qualidade e a eficiência de políticas públicas. Seria um governo que teria potencial de entregar mais reformas estruturais do que o de Temer.
De outro lado, há uma boa dose de cautela por se reconhecer a difícil combinação de fragilidade do quadro econômico, urgência de reformas impopulares e um núcleo de poder com pouca experiência administrativa e política, e com potenciais conflitos entre si.
O risco de uma agenda tímida de reformas é concreto, a julgar pela sinalização do núcleo duro do futuro governo. Nesse caso, não haveria uma efetiva aceleração do crescimento. Com a fragilidade do regime fiscal, não seria possível garantir taxas de juros do Banco Central baixas como as atuais.
Importante colocar na conta as sequelas da crise econômica ainda não superadas e que têm impacto na confiança dos empresários e consumidores. Basta olhar o ainda elevado patamar de pedidos de recuperação judicial e os frágeis números do mercado de trabalho.
Como se não bastasse, houve vários choques que fragilizaram ainda mais o setor produtivo e frustraram o crescimento do PIB em 2018. Tivemos a greve dos caminhoneiros, o indefensável tabelamento do frete, a pressão cambial (decorrente muito mais do ambiente externo do que das incertezas eleitorais) e a crise argentina reduzindo as exportações. Até incêndio em importante refinaria da Petrobrás teve. Não seria exagero afirmar que sem esses choques o crescimento em 2018 teria sido próximo de 2,5%.
O termômetro da capacidade de crescimento será a dinâmica da indústria. A indústria, que é o setor mais sensível ao custo Brasil, foi o primeiro setor a sentir a piora do quadro econômico, já em 2012, e o primeiro a sair da crise.
Os números recentes não são bons, praticamente interrompendo a tendência de recuperação, ainda que lenta. A indústria, como sempre, foi prejudicada pelos choques recentes. A produção industrial registrou crescimento de apenas 1,8% entre janeiro e outubro deste ano em relação ao mesmo período de 2017, ano em que o crescimento foi maior, de 2,6%. A indústria nitidamente perdeu o ritmo em 2018, enquanto era esperada uma aceleração por conta da redução dos juros pelo Banco Central.
O comércio varejista, por sua vez, conseguiu acelerar em 2018, diante da recuperação da massa salarial e da volta do crédito. No acumulado de 2018 até setembro, o crescimento do volume de vendas é de 5,2% ante 4% em 2017. Os serviços seguem no campo negativo, em parte pela própria fraqueza da indústria, mas exibem modesta tendência de melhora. Acumulam queda de 0,4% ante recuo maior de 2,8% em 2017.
Elementos transitórios, duradouros e estruturais se misturam e geram incertezas sobre a dinâmica econômica. Ha razões para posturas cautelosas.
A fraqueza da indústria acende luzes amarelas, pois se persistente, vai contaminar cedo ou tarde a performance dos demais setores, a geração de vagas e o aumento do investimento.
*Zeina Latif é economista-chefe da XP Investimentos