Economia

Luiz Carlos Azedo: A confiança no Brasil

“Bolsonaro procura reposicionar o governo brasileiro no exterior. Não é uma tarefa fácil”

O presidente Jair Bolsonaro, ontem, em Davos, numa entrevista quebra-queixo para jornalistas brasileiros, disse que sua passagem pelo Fórum Econômico Mundial tem objetivo de restabelecer a confiança dos agentes econômicos no Brasil. “Queremos mostrar, via nossos ministros, que o Brasil está tomando medidas para que o mundo restabeleça a confiança em nós, que os negócios voltem a florescer entre o Brasil e o mundo, sem o viés ideológico, que nós podemos ser um país seguro para investimentos. E, em especial, a questão do agronegócio, que é muito importante para nós, é a nossa commodity mais cara. Queremos ampliar esse tipo de comércio.”

O discurso de Bolsonaro foi discutido por sua equipe de governo, representada em Davos pelos ministros Sérgio Moro (Justiça e Segurança Pública), Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Paulo Guedes (Economia), Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral da Presidência) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional). O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, também integra a comitiva para Davos, enquanto o irmão senador, Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), continua ardendo na fogueira do caso Queiroz aqui no Brasil. O Fórum Econômico Mundial começa hoje e vai até sexta-feira, com previsão de uma redução de crescimento mundial, segundo anunciou a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde.

Os indicadores de crescimento de 2018 apontam para uma retração da economia mundial, que pode resultar numa grande recessão se suas causas não forem revertidas. Disputas comerciais entre as maiores economias do mundo, dívidas e eventos climáticos extremos (olha o aquecimento global aí, gente!) são alguns dos principais riscos previstos. A China teve seu pior índice de crescimento em 28 anos: no ano passado, a expansão do PIB chinês foi de apenas 6,6%; em 2019, será de 6,3%. A expansão induzida pelos incentivos fiscais nos Estados Unidos está se esgotando: a taxa de crescimento do PIB será de 2,5% em 2019 e apenas 2%, em 2020. Na Europa, a projeção é de uma expansão de 2% em 2019. Para 2019 e 2020, o crescimento global previsto pela ONU é de 3%, abaixo da taxa de 3,1% em 2018.

Trauma

É nesse cenário de “preocupações sobre a sustentabilidade do crescimento econômico global diante dos crescentes desafios financeiros, sociais e ambientais”, segundo o secretário-geral da ONU, Antonio Guterrez, que Bolsonaro procura reposicionar o governo brasileiro no exterior. Não é uma tarefa fácil, uma vez que a imagem do Brasil nunca esteve tão desgastada. Desde a crise do governo Dilma, com a narrativa do golpe, o PT faz uma campanha no exterior no sentido de desacreditar a democracia brasileira, com relativo êxito junto à imprensa internacional e a formadores de opinião. Mesmo com uma vitória por ampla margem também no exterior, a eleição de Bolsonaro corroborou a tese, que é falsa. O Brasil vive num regime democrático, ainda que o novo governo seja conservador e com forte presença dos militares.

O trauma do impeachment foi neutralizado pela estabilização da economia, com o governo Michel Temer, mas o fantasma da corrupção política permaneceu. Para os agentes econômicos, o novo governo sinalizou mudanças no sentido do combate à corrupção e da segurança jurídica, simbolizadas pela presença do ex-juiz da Operação Lava-Jato Sérgio Moro no Ministério da Justiça, e de uma guinada ultraliberal na economia, protagonizada pelo ministro Paulo Guedes. O problema é que não se muda uma imagem do dia para a noite, apenas com discursos. O que os investidores querem saber é se o governo vai enxugar a máquina pública, e o Congresso, aprovar a reforma da Previdência.

Nesse sentido, o vice-presidente Hamilton Mourão, o primeiro general a ocupar a Presidência desde a saída do presidente João Batista Figueiredo, em 1985, deu uma ajuda a Bolsonaro em Davos, ao anunciar que os militares terão de cortar na carne com a reforma da Previdência, aumentando o tempo de contribuição de 30 para 35 anos. Até novembro de 2018, o deficit no sistema de aposentadorias e pensões dos militares chegou a R$ 40 bilhões, um aumento de quase 13% em relação ao mesmo período de 2017. O presidente em exercício também falou sobre o caso Queiroz, comentando o envolvimento do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Mourão pôs panos quentes no assunto: “Acho que, para o governo, não chega nele, apesar do sobrenome e do senador. Agora, o senador é que está exposto na mídia realmente, e o Flávio é uma pessoa muito boa, eu gosto muito dele”.

 

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Luiz Carlos Azedo: A montanha mágica

“A luta dentro do governo se parece com a disputa entre o humanista e enciclopedista Lodovico Settembrini e o jesuíta totalitário Leo Naphta, personagens de Thomas Mann”

Interessante a analogia feita por um dileto amigo, Arlindo Fernandes, entre a viagem do presidente Jair Bolsonaro a Davos, acompanhado do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do chanceler Ernesto Araujo, e o famoso romance do escritor alemão Thomas Mann que empresta o título à coluna, cuja história se passa exatamente naquela cidade dos Alpes, na Suíça. Segundo ele, a luta instalada dentro do governo, assunto sobre o qual conversávamos, se parece muito com a disputa entre dois personagens do romance, o humanista e enciclopedista Lodovico Settembrini e o jesuíta totalitário Leo Naphta, que protagonizam um choque entre ideias liberais e conservadoras junto ao jovem engenheiro naval alemão Hans Castorp.

Mann começou a escrever A montanha mágica em 1912, quando sua mulher Katharina Mann (Katia) foi internada num sanatório de Davos, para se curar de uma tuberculose. Três anos depois, indeciso sobre os rumos do romance, interrompeu a obra. Havia apoiado a Primeira Guerra Mundial, porque seria “a guerra para terminar todas as guerras”, e estava em conflito com o próprio irmão Heinrich, também escritor, em relação ao papel da Alemanha e à própria guerra. Thomas defendia uma Alemanha unificada, poderosa e zelosa de sua cultura; o irmão desprezava o provincianismo autoritário e acrítico dos alemães à época. Após a guerra, Thomas Mann termina de escrever seu romance, já com uma visão mais crítica sobre tudo o que havia ocorrido; mais tarde, se posicionaria contra a II Guerra Mundial e a própria Alemanha. O romance também reflete esse embate de ideias com o irmão.

O Sanatório Internacional de Berghof é um estabelecimento fictício, vizinho à antiga e luxuosa casa de Repouso Schatzalp, que inspirou o escritor alemão e, por isso, costuma receber levas de leitores-turistas fascinados com o livro. Virou hotel em 1954, como o Waldhotel, o antigo Waldsanatorium, onde Katia Mann, mulher de Thomas Mann, se internou em 1912. A visita que o romancista fez à esposa por três meses o inspirou a escrever. Personagem principal do romance, Hans Castorp é um jovem alemão com os seus 20 anos, prestes a ter uma carreira naval em Hamburgo, sua cidade natal, que viaja para visitar seu primo tuberculoso Joachim Ziemssen, num sanatório em Davos.

Durante sua longa permanência, conhece personagens que representam um microcosmo do pensamento do pré-guerra na Europa. Além de Setembrini e Naphta, a hedonista Mynher Peerperkorn e Madame Chauchat, por quem se apaixona. Após sete anos, antes de ir para a guerra para morrer como um soldado anônimo, Castorp descobre a arte, a cultura, a política, a fragilidade humana e o amor; o tempo, a música, o nacionalismo, as questões sociais e as mudanças. Todas as ideias do século XX estão presentes no romance, que é considerado uma “obra de formação”.

Onde está a analogia? O italiano Lodovico Settembrini representa o humanismo e o iluminismo, atribui o progresso humano à ciência, defende a democracia liberal e acredita no livre-arbítrio. Leo Naphta, cristão novo, interrompeu os estudos teológicos na Companhia de Jesus por causa da tuberculose, mas vê a fé como o sentido da vida e das ações. Defende os atos sangrentos cometidos pela Igreja ao longo da história, vê na ciência e nas explicações racionais os horrores das rebeliões liberais, como a Revolução Francesa.

Disputa política

De certa forma, essas duas tendências estão representadas no governo Bolsonaro, por alguns de seus integrantes: a primeira, pelos ministros Paulo Guedes (Economia), Sérgio Moro (Justiça), Osmar Terra (Cidadania), Teresa Cristina (Agricultura), principalmente; a segunda, por Ernesto Araujo (Relações Exteriores), Ricardo Velez-Rodriguez (Educação) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), sobretudo. O predomínio de uma ou outra no governo dependerá muito do papel dos militares e da cabeça de Bolsonaro, no exercício da Presidência da República.

A viagem a Davos pode fazer bem a Bolsonaro, pois lá serão debatidas ideias novas para uma situação de crise da ordem de liberal, num mundo que passa por grandes transformações tecnológicas e um enorme desajuste econômico e social entre as nações mais avançadas, as emergentes e as que foram deixadas para trás. O grande sanatório geral descrito por Thomas Mann em seu romance parece estar de volta à política mundial, com sinais trocados.

A partir de quarta-feira, 2.340 pessoas de 89 países, que compõem a elite econômica e política mundial, estarão confinadas num centro de conferências, cercadas de neve e seguranças por todos os lados, durante cinco dias, até o dia 29. A guinada ultraliberal do Brasil na economia desperta interesse, o antiglobalismo da nova política externa, um grande espanto. As estrelas do encontro serão a Índia, cujo avanço econômico retira da miséria milhões de cidadãos por ano; e a China, que assumiu a linha de frente da globalização. O presidente norte-americano Donald Trump, com a crista baixa por causa da crise com o Congresso norte-americano, não vai a Davos nem mandará representantes; a primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, balançando no cargo por causa do Brexit, também cancelou a participação.

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Adriana Fernandes: Gordura para queimar

Estratégia é entregar proposta mais dura e profunda do que aquela que se quer aprovar

O governo vai deixar na proposta de reforma da Previdência gordura para queimar durante as negociações no Congresso Nacional. A mesma estratégia foi usada pelo ex-presidente Michel Temer em 2016, quando encaminhou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287, que agora servirá de base para o texto de Jair Bolsonaro.

Deixar gordura significa entregar uma proposta mais dura e profunda do que aquela que verdadeiramente se espera aprovar. Essa estratégia contém, porém, o risco de contaminação das expectativas ao longo das negociações no Congresso à medida que os peões do xadrez da reforma vão sendo retirados do tabuleiro.

Durante a negociação da reforma de Temer, o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles enfrentou o problema. A cada item que foi sendo banido da proposta original, Meirelles tinha de dar explicações de que a reforma não ficaria fraca demais e que o impacto da mudança para o equilíbrio das contas públicas continuava importante ao País.

A proposta de Temer começou com uma economia de R$ 800 bilhões em 10 anos. Esse ganho foi desidratado para menos de R$ 400 bilhões e virou motivo de incerteza entre os investidores diante da perda de força do seu impacto para as contas públicas e para a sustentabilidade da Previdência Social no Brasil.

Com Temer, antes mesmo do envio da PEC, caíram as alterações no abono salarial e a inclusão dos militares. Depois, saíram do texto as mudanças na aposentadoria rural e nas regras para policiais militares e bombeiros, a igualdade na idade mínima de aposentadoria para homens e mulheres, a restrição mais dura para o acúmulo de benefícios, a desvinculação do Benefício de Prestação Continuada (BPC) do salário mínimo, regras mais duras para professores, e assim por diante...

Foram muitas as baixas. Deve acontecer o mesmo agora. A gordura para queimar pode aparecer de imediato nas propostas de mudança na aposentadoria rural, desvinculação de benefícios do salário mínimo e criação de um modelo “fásico” para a assistência social. Esse sistema permite aos segurados solicitarem mais cedo a ajuda do governo, desde que aceitem receber um valor abaixo do salário mínimo.

A polêmica proposta de criação no Brasil do sistema de capitalização, com contas individuais para acumular os recursos que bancarão a futura aposentadoria, também deve passar pela tesourada dos parlamentares. Há muitas dúvidas se o País está preparado para uma mudança tão ampla e com custo de transição para as contas públicas.

A gordura a ser deixada para o Congresso motiva a profusão de ideias que estão sendo disseminadas nos bastidores em torno do texto que o presidente e sua equipe vão fechar na próxima semana.

A comunicação das propostas ainda em estudo acaba funcionando como uma espécie de “teste” para a receptividade das propostas mais polêmicas. Por outro lado, alimenta a especulação e pode ter um efeito nocivo na negociação que se seguirá. Há o risco de antemão de se “carimbar” na PEC de Bolsonaro propostas de retiradas de direitos que nem mesmo entrarão no texto final. O mesmo script se deu com Temer. E aí, a comunicação escapa do controle.

Há preocupação entre integrantes da equipe econômica envolvidos diretamente na elaboração da proposta com a estratégia de comunicação até agora. Há muita imprecisão e deturpação partindo de quem não está de fato coordenando a proposta. Tem gente que acha que é para atrapalhar.

Difícil mesmo é conciliar a necessidade de manter a confiança na reforma sem queimar a proposta logo na largada.


Claudia Safatle: A economia sob falsa calmaria

Investidores externos retomam o interesse pelo Brasil

Os mercados reagem bem e com tranquilidade às primeiras semanas de governo Bolsonaro. Atribuem pouca atenção ao bate-cabeças e às derrapadas do próprio presidente e de alguns dos seus subordinados, que consideram normal em início de gestão, e guardam grandes expectativas para fevereiro, quando o Congresso receberá do Executivo a proposta de reforma da Previdência.

Todos os "soft datas" melhoraram e muito das eleições para cá, dos índices de confiança ao risco de crédito. O Credit Default Swap (CDS), que chegou a 311 pontos-básicos em setembro, ontem fechou em 183 pontos.

Não há exuberância nos mercados de juros, câmbio e ações dado os preços dos ativos.

O que há é uma calmaria que o ministro da Economia bem definiu no seu discurso de posse. "Estamos respirando, aparentemente, à sombra de uma falsa tranquilidade, que é uma tranquilidade à sombra da estagnação econômica", disse ele, ao defender um ataque frontal ao déficit público pelo lado do controle do gasto.

O Brasil, sob o comando de um governo liberal, de direita, volta a instigar o apetite dos investidores internacionais e isso deverá ficar claro na reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos (Suiça), na próxima semana.

O economista-chefe do Itaú Unibanco, Mário Mesquita, ex- diretor do Banco Central, pode constatar essa mudança na semana passada em viagem aos Estados Unidos para diversos encontros com grandes investidores. "Quem tem ativo no Brasil não vende e quem não tem está esperando uma queda de preços para comprar", assinalou.

O foco da atenção dos investidores tanto internamente quanto no exterior é a reforma da Previdência que o governo enviará ao Congresso no mês que vem e que, imagina-se, será uma proposta que vai além do projeto de Michel Temer aprovado na Comissão Mista da Câmara. Eles querem saber das articulações políticas do novo governo para a aprovação da nova Previdência e sobre qual será o envolvimento do presidente da República na reforma, dentre inúmeras outras perguntas. "O interesse no Brasil é enorme e fiquei impressionado", comentou Mesquita.

O país é um caso singular no mundo. Está com as principais questões macroeconômicas resolvidas, mas carrega um déficit próximo de 7% do PIB e uma dívida de quase 80% do PIB. Ou seja, tem uma situação fiscal totalmente fora do prumo.

Os destaques, do lado macro, são para os juros, que estão baixos de forma sustentável, para a inflação, que está sob controle, para os preços administrado, que estão bem alinhados, e para a grande capacidade ociosa da economia.

Paralelamente a isso, o endividamento das empresas estatais (basicamente Petrobras e Eletrobras) diminui e os bancos públicos encolhem, gradualmente, sua participação no mercado de crédito. Os bancos privados, por seu turno, estão dispostos a responder positivamente à desestatização do crédito no país, expandindo sua fatia de mercado.

Bolsonaro é o presidente com as melhores condições cíclicas no começo de mandato, aponta Mário Torós, sócio da Ibiúna Investimentos e também ex-diretor do Banco Central.

Tomando como um dado que a produtividade do trabalho aqui corresponde a um quatro da produtividade de um trabalhador nos Estados Unidos, a economia está razoavelmente bem arrumada e o hiato do PIB é grande o suficiente para permitir o crescimento não inflacionário da economia antes mesmo da expansão dos investimentos.

Mas, ao mesmo tempo, tem uma das piores situações fiscais do mundo, realça Torós. "Ela é ruim tanto no fluxo quanto no estoque", completa ele.

O lado positivo dessa questão é que, depois de tanto circundar os problemas, agora sabe-se exatamente o que tem que ser feito. O teto dos gastos demanda a reforma da Previdência e esta, hoje, já é mais bem compreendida e tem maiores condições de ser aprovada do que no passado recente.

E mesmo que a reforma de Bolsonaro apenas reduza o tempo da transição de 20 para 15 anos, como noticiado, o valor dessa mudança é bem relevante.

O fato é que a piora das contas públicas foi tanta que ficou mais fácil de ser resolvida.

Mas a calmaria é passageira.

O economista e ex-presidente do Banco Central Chico Lopes ofereceu o primeiro emprego a Paulo Guedes quando o agora ministro da Economia voltou de Chicago, no fim dos anos de 1970. Lopes era superintendente do Inpes/Ipea escolhido pelo então ministro do Planejamento, Mário Henrique Simonsen, em 1979. A oferta de emprego, porém, não vingou. Primeiro porque o salário era baixo e insuficiente para os planos de Guedes de comprar um apartamento. Segundo, porque Simonsen pediu demissão em outubro daquele mesmo ano e Chico Lopes perdeu o cargo.

Como se vê, ambos se conhecem há muitos anos e pode-se dizer que são amigos.

Em um evento no Rio, na semana passada, que reuniu 12 ex-presidentes do Banco Central, Chico Lopes contou a história acima, de como conheceu o jovem economista da escola de Chicago, e fez um reparo pertinente ao discurso do agora ministro da Economia - que tem feito críticas aos 30 anos de social-democracia no Brasil (PMDB, PSDB e PT). Durante todo esse tempo, diz Guedes, eles promoveram o inchaço do Estado, cujos gastos saltaram de 18% do PIB para 40% do PIB em 40 anos, a partir do governo militar.

"Acho que o Paulo [Guedes] está cometendo uma injustiça, ao não reconhecer que foi a social-democracia que construiu as bases da estabilização com o Plano Real, a criação do Copom com o regime de metas - que conferiu a independência ao BC - e a lei do teto do gasto", disse o ex-presidente do BC.

Chico Lopes admite que essa foi uma construção custosa e lenta, mas advoga que foi justamente essa herança da social-democracia brasileira que "botou a bola na marca do pênalti para a liberal-democracia marcar o gol".


Luiz Carlos Azedo: Meia-volta, volver!

“A Argentina é o terceiro parceiro comercial do Brasil, atrás da China e dos Estados Unidos, mas é principal parceiro para a nossa indústria”

O encontro do presidente Jair Bolsonaro com o presidente da Argentina, Mauricio Macri, serviu para reposicionar o novo governo em relação ao Mercosul. Foi uma espécie de “meia-volta, volver!”, depois das declarações do ministro da Economia, Paulo Guedes, logo após as eleições, de que as relações comerciais do Brasil com os vizinhos do Cone Sul não eram uma prioridade. Guedes chegou a contextualizar o comentário de maneira a desdizer seu significado, mas foi preciso o encontro de ontem para que as coisas ficassem realmente mais claras, principalmente para os vizinhos. Bolsonaro e Macri acertaram trabalhar conjuntamente para fortalecer o bloco sul-americano. O ministro Paulo Guedes, nas conversas com os argentinos, procurou desfazer a imagem de que estava de costas para o Mercosul. A Argentina é o terceiro parceiro comercial do Brasil, atrás da China e dos Estados Unidos, mas é principal parceiro para a nossa indústria.

Isso significa que tudo ficará como dantes? Não, diplomatas do Brasil e Argentina discutiram mudanças nas regras do Mercosul que proíbem os países-membros de negociarem separadamente acordos de livre comércio com outros países. No caso brasileiro, Bolsonaro quer enxugar os encargos do Mercosul, reduzir tarifas e burocracia. Abre-se a possibilidade de avanços nas conversas com a União Europeia. Além disso, Paraguai e o Uruguai desejam fazer seus acordos bilaterais. O patinho feio do Mercosul é a Venezuela, que foi outro assunto abordado no encontro. Nesse caso, a afinação entre Bolsonaro e Macri é total: ambos pretendem endurecer o jogo ainda mais com o presidente do país vizinho, Nicolás Maduro, que assumiu novo mandato de seis anos e é considerado um ditador pela maioria dos países do continente.

Macri foi o mais enfático nos ataques a Maduro. Ressaltou que Argentina e Brasil reconhecem apenas a Assembleia Nacional da Venezuela, que é comandada pela oposição e considera Maduro um usurpador. “Reafirmamos nossa condenação à ditadura de Nicolás Maduro. Não aceitamos esse escárnio com a democracia, e, menos ainda, a tentativa de vitimização de quem na verdade é o algoz”, disse Macri. Bolsonaro foi mais comedido em relação a Maduro, mas reiterou que Brasil e Argentina jogarão juntos no caso da Venezuela: “Nossa cooperação na questão da Venezuela é o exemplo mais claro do momento. As conversas de hoje (ontem) com o presidente Macri só fazem reforçar minha convicção de que o relacionamento entre Brasil e Argentina seguirá avançando no rumo certo: o rumo da democracia, da liberdade, da segurança e do desenvolvimento”, disse.

Recessão
O fato de o Brasil e a Argentina terem governos ultraliberais tem um peso específico no continente, mas há uma variável imponderável: ao contrário de Bolsonaro, que acabou de assumir o governo, Macri está terminando seu mandato, em meio a um tremendo fracasso econômico. Os preços na Argentina subiram 2,6% em dezembro, com inflação anual de 2018 em 47,6%, a maior desde 1991. A meta de inflação de 23% em 2019, já considerada muito alta, dificilmente será alcançada, num ano de eleições presidenciais, nas quais Macri ainda pretende disputar a reeleição.

Com os preços descontrolados, o Banco Central argentino fez um ajuste duríssimo, com juros de até 70% e retirada de pesos do mercado. O dólar estabilizou em 37 pesos, mas a economia está em recessão: 2,5% em 2018; previsão de 2%, em 2019. Macri terá dificuldades para manter esse ajuste, quando nada porque os salários sofreram uma perda de poder de compra próxima a 10%, a maior desde 2002. Até o FMI prevê dificuldades para manter o ajuste, cujas projeções apontam que somente em 2024 os argentinos conseguirão recuperar o nível de vida de 2017. Será difícil para Macri resistir às pressões dos sindicatos por aumentos de salários e manter o acordo feito com o FMI.

À deriva
A propósito, a Inglaterra nunca esteve tão à deriva. Conservadores britânicos e unionistas da Irlanda do Norte salvaram a primeira-ministra Theresa May, derrotando por apenas 19 votos a moção de desconfiança apresentada pelos trabalhistas para evitar que o líder da oposição, Jeremy Corbyn, a substituísse, depois de a maioria esmagadora do parlamento do Reino Unido ter rejeitado o acordo de saída da União Europeia. O Brexit continua um salto no escuro, porque a primeira-ministra ainda não tem um plano B.

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Maria Cristina Fernandes: O clone que abrilhantou o show de Trump

Subalternidade já causa danos à imagem do Brasil

É preciso acreditar que Fabrício Queiroz vai pagar a conta do hospital com a venda de carros usados para ter enxergado unicamente um elogio na declaração feita esta semana por Donald Trump sobre o presidente Jair Bolsonaro. A íntegra do discurso de 58 minutos do presidente americano na convenção anual de uma centenária federação do agronegócio em Nova Orleans deixa poucas dúvidas sobre suas intenções.

Nos primeiros 35 minutos de seu discurso, Trump dedicou-se a falar do muro que pretende construir na fronteira com o México. Num dos momentos mais aplaudidos, disse que o construção não dificultaria a contratação de migrantes para a agricultura - "Vocês precisam dessa gente". Nos sete minutos seguintes dedicou-se aos feitos na redução de impostos e na desregulamentação do setor.

Foi aos 43 minutos que começou a falar da concorrência no agronegócio mundial. Disse que o país assistia ao declínio da participação americana. "O que estou interessado é na América primeiro", disse, fazendo uso de seu bordão de campanha. O presidente americano citou que a Argentina, pela primeira vez em um quarto de século, abriu-se às exportações americanas de suínos - "Quando eles me pedem algo, digo, ok, mas antes me abram mercado" - e que o Japão passou a comprar as batatas de seu país.

A menção ao Brasil veio aos 47 minutos do discurso: "Temos, pela primeira vez desde 2003, a exportação de carne americana exportada para o Brasil". Deu uma parada e acrescentou o comentário: "Eles têm um novo grande líder. Dizem que ele é o Donald Trump da América do Sul". Nesse momento, com absoluto domínio de palco, perguntou, em tom de ironia, à plateia: "Vocês acreditam nisso?". Arrancou uma das mais prolongadas salva de palmas do show e foi em frente: "E ele está feliz com isso. Se não estivesse eu não gostaria do país, mas eu gosto dele [Bolsonaro]".

Depois da menção ao Brasil, Trump citou a abertura do mercado chinês, também à carne americana, "pela primeira vez em anos". E se disse disposto a reagir ao que chamou de 'roubo' de tecnologia de sementes desenvolvida em seu país. O discurso laudatório aos produtores rurais americanos terminou com uma ovação: "A grande colheita ainda está por vir. A agricultura americana será maior do que nunca".

Foi a primeira vez, em décadas, que um presidente americano compareceu à convenção anual da mais tradicional associação de lobby do agronegócio do país (Farm Bureau). Precisava conter as insatisfações do setor com o bloqueio orçamentário nem que para isso precise radicalizar a retórica da guerra comercial.

Se Trump elogiou algo no Brasil foi a subalternidade. Preza o desejo do presidente Jair Bolsonaro de replicá-lo porque assim acredita fazer valer os interesses de seu país. Na visão externada pelo presidente americano, o colega brasileiro está feliz por se achar parecido com ele, o que deve ser motivo de dúvida mas é a única razão pela qual ele gosta do Brasil.

Foi como dissesse, ok, mr. Bolsonaro o senhor deve me imitar não porque um dia vá conseguir ser um clone, mas porque é a única condição de eu levar seu país em consideração. Tudo isso num evento do setor em que o Brasil tem sua mais competitiva presença na economia mundial. É mais fácil acreditar nos fastos rendimentos do negociante de Passats e Belinas do que na percepção de que o discurso do presidente americano vai ao encontro dos interesses nacionais.

Bolsonaro não arrancou tamanha deferência de uma hora para outra. Quarenta e seis dias se passaram entre o discurso e a continência prestada por Bolsonaro a John Bolton, quando o conselheiro de segurança nacional do governo americano o visitou em sua casa no Rio. Integrante da Associação Nacional do Rifle, mais poderoso lobby pró-armas do Brasil, Bolton foi um dos principais responsáveis pela demissão do diplomata brasileiro José Maurício Bustani que, à frente do Órgão para Proibição de Armas Químicas, das Nações Unidas, atestou a inexistência de armas químicas no Iraque.

O deboche do presidente americano aconteceu ainda dois meses depois da escolha do chanceler Ernesto Araújo que aposta em sua liderança como a salvação do Ocidente e vem fazendo eco à sua política externa. A retórica beirando o escárnio do novo messias da civilização ocidental veio depois da propalada intenção de Bolsonaro de abrir o território nacional a uma base militar americana, gostosamente saudada pelo secretário de Estado, Mike Pompeo.

O impetuoso alinhamento foi freado por intervenção dos generais do governo mas vê-se, pelo discurso de Trump, que não se deu sem danos à imagem do Brasil. Com um governo cada vez mais da caserna, é natural que ganhe escopo a defesa da corporação nas reformas do Estado que aí virão. Mas só um esforço, de igual monta, poderá conter a desenvoltura com a qual este governo afronta os símbolos da soberania.

A designação de mais um general da reserva, como Sérgio Etchegoyen, para a embaixada brasileira em Washington, como chegou a ser cogitado, mais serviria para tornar mais tensas as relações entre Itamaraty e Forças Armadas do que para dar conta das inquietações sobre o futuro das relações externas do país.

Se o chanceler Ernesto Araújo tem prazo de validade, o passe de quatro anos do presidente da República, renovável por mais quatro, oferece tempo suficiente para que o dogmatismo, dissociado dos interesses permanentes do Estado nacional, leve a danos sempre mais fáceis de serem disseminados do que revertidos.

A retaguarda burocrática de Brasília e da representação brasileira em organismos internacionais até podem segurar os impactos da nova ideologia do poder no cotidiano do governo, mas na diplomacia a retórica não é inócua. E arrisca se refletir na capacidade política do Brasil de articular os acordos de que precisa para manter a salvo o desenvolvimento nacional. Na diplomacia, o único clone possível da América em primeiro lugar é o Brasil em último.


Míriam Leitão: O bom e o péssimo no mesmo governo

Há expectativas positivas na economia, com o programa de Paulo Guedes, e fartos temores em outras áreas, como educação, índios e o meio ambiente

Há sinais bons de que a economia brasileira pode avançar com o programa do ministro Paulo Guedes. Um desses é que o custo do seguro contra o risco-país já caiu. Há fatos assustadores, como o desastre ambiental contratado com decisões e palavras que estimulam invasão de terra indígena ou levam à paralisia no Ministério do Meio Ambiente (MMA). Esses não são os únicos pontos de alívio e ou de preocupação, essa polaridade tem havido no governo Bolsonaro.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, explicou sobre sua decisão de suspender todos os convênios do Ministério, que vai dar prioridade às análises dos contratos que “necessitem de medidas imediatas”. Segundo o ministro, “se estiverem em ordem serão prontamente liberados, caso contrário serão encaminhados para auditoria por parte da CGU”. É normal que um novo governo ao chegar avalie tudo o que está acontecendo e mude o que considera ser ruim. O problema é, numa penada, suspender tudo sem avaliar as consequências.

Há inúmeras ONGs, fundações, fundos que não usam dinheiro público, pelo contrário, transferem recursos para o poder público. O Fundo Amazônia, por exemplo, foi formado com dinheiro do governo da Noruega, doado ao país, e é gerido pelo BNDES, que decide onde os recursos devem ser aplicados. Há avaliações frequentes da eficiência das ações.

Há o Programa Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa), que é o maior programa de apoio à conservação das florestas tropicais. “Sem esse recurso, a conservação da biodiversidade, a fiscalização, proteção e diversas frentes de trabalho serão duramente prejudicadas”, me disse um funcionário do MMA. O Arpa foi formado com doações internacionais e de fundações. Não é dinheiro público.

O engenheiro florestal Tasso Azevedo, do Observatório do Clima, disse que dependendo da dimensão dessa suspensão pode ser dramático para as organizações locais de apoio às Unidades de Conservação e lembrou que atinge também as organizações que fornecem dados para dar suporte ao governo.

— Nós criamos uma ferramenta para pegar cada alerta de desmatamento gerado pelo Deter/Inpe e pelo Sad/Imazon e avaliar em alta resolução quando e onde exatamente aconteceu o desmatamento, é o MapBiomas Alerta. Tudo foi desenhado em colaboração com o governo e o Ministério Público e temos um acordo de cooperação técnica que não envolve recursos. Isso vai entrar em operação em março —diz Tasso.

Como eles não dependem do governo, vão rodar os dados. Mas essas informações são úteis para ter aviso antecipado de todos os biomas sobre o local do desmatamento. São ações assim que podem ser vistas por qualquer pessoa que vá a campo para entender o trabalho de proteção ambiental. Ligado à questão ambiental, está o grave risco indígena. Tenho alertado, como fiz no blog ontem, que já começou a haver invasão de terra indígena. Pode aumentar quando chegar o período de menos chuva, a partir de maio.

Na área econômica, trabalha-se com foco e pressa. Neste momento, todas as atenções estão voltadas para a reforma da Previdência, e o deputado Rogério Marinho, secretário especial para Previdência e Trabalho, montou uma boa equipe com especialistas no assunto, como Solange Vieira, que fez o fator previdenciário, e vários integrantes da equipe de Marcelo Caetano, ex-secretário da Previdência. Tem consultado economistas, falado com políticos e integrantes do governo para preparar o projeto e trabalhar para que ele seja bem recebido. Tem aparado as arestas dentro do governo sobre o assunto. São muitas.

Os juros futuros despencaram desde a eleição do presidente Bolsonaro, o seguro contra a dívida brasileira, o CDS, está no melhor momento desde março de 2018. O CDS reflete a avaliação feita pelos investidores estrangeiros sobre a economia brasileira. Estava em 307 pontos e caiu para 182 pontos. Isso é aposta de que o governo vai aprovar a reforma e reduzir a crise fiscal. O presidente argentino, Maurício Macri, que visitou o Brasil ontem, assumiu com expectativa ótima junto ao mercado, mas sua opção por soluções graduais trouxe a desconfiança e a crise de volta. Esse erro não se pode cometer.

Mesmo num cenário de acerto na economia, se o governo errar em outras áreas como meio ambiente, educação, política indigenista, o custo para o país pode ser muito alto.


Rosângela Bittar: Militares tutelam o governo como partido

Há que separar a euforia do emprego da euforia política

Com tantos generais nos gabinetes próximos do presidente e ao longo da Esplanada, Jair Bolsonaro, mesmo que discordasse, não teria como levar adiante uma reforma da Previdência Social que os atingisse. Mas ele, além disso, concorda plenamente e encoraja o tratamento diferenciado a essa categoria, a sua, vez que é capitão da reserva.

O Exército, a Marinha e a Aeronáutica não ocuparam o governo em vão. Não vão deixar escapar a única disputa em que realmente se envolvem desde sempre, além daquela batalha anual por mais verbas: a de evitar a mudança do seu sistema de aposentadoria. Nos últimos dias, com tantas posses e transmissão de comando nas três forças, além das trocas de ministros nos gabinetes do Palácio do Planalto e de vários ministérios, seus interesses reais ficaram mais expostos.

Expressam, sem censura, a alegria de ter voltado ao poder, - "agora pelo voto", como apregoam. E não se fazem de rogados quando questionados sobre a reforma da Previdência. Dizem que são disciplinados e acatarão ordens, mas logo fica claro que estão marcando distância da vala comum: "Somos diferentes".

Livrando-se os militares das novas regras, outros funcionários públicos devem também se sentir especiais e reivindicar uma saída exclusiva para outras categorias. Com certeza, a Polícia Militar, a Polícia Civil, delegados em geral, agentes penitenciários em particular, entre outros que se submetem a riscos semelhantes em sua carreira, unidos pela atividade de segurança.

Daí para outras categorias do funcionalismo também mostrarem que seu caso é singular, o caminho é curto, rápido e até justo, como se pode achar, a princípio, embora muitos discordem dessa última condição. Uma vez tirados os militares, o justo será deixar saírem todos os demais cujas atividades são análogas. Ao arrastarem consigo outras categorias do funcionalismo, os militares fragilizam institucionalmente e politicamente a reforma da Previdência.

Automaticamente levam consigo, no mínimo, a Polícia Militar, considerada uma força auxiliar do Exército. Como dar tratamento especial ao Exército e não à PM, além de outras atividades a que estão amarrados pela atividade de risco? Não há como separar as Polícias Militares das Forças Armadas.

As sessões da Comissão Especial que aprovou a reforma da Previdência do ex-presidente Michel Temer mostraram como pode funcionar o lobby militar na votação. Seus representantes nas discussões eram os mais reativos, os que se manifestaram de forma muitas vezes agressiva.

Por que seria diferente agora, com líderes do governo e líder do partido do presidente, um é major, o outro delegado?

Aberta a porteira para Forças Armadas e Polícia Militar, cria-se a brecha no muro e todos podem sair. É essa a discussão a ser levada em torno da ideia de não mexer na Previdência dos militares.

Sem razão para argumentar contra sua inclusão na reforma, os militares, infinitamente mais fortes hoje do que ontem, são cem por cento fiadores do governo Bolsonaro e têm razão, desta vez, sim, de estarem eufóricos com isso.

Eufóricos por terem recuperado o poder e, já de posse do trono, sentirem-se à vontade para responder perguntas sobre a reforma prioritária.

Sem dúvida, estão mesmo no comando. Jair Bolsonaro não tem quadros no seu partido, não conhece equipes que atuem em universidades e institutos, não tem correntes de especialistas da academia, não tem militância. Se falta um porta-voz, é anunciado logo um general; se há expectativa sobre quem será o líder do governo no Congresso lá vem um major de primeiro mandato.

Até o momento, no primeiro escalão, assumiram: o general Hamilton Mourão, na vice-presidência; o general Augusto Heleno no Gabinete de Segurança Institucional; o general Santos Cruz na Secretaria de Governo; o general Maynard Santa Rosa, na Secretaria de Assuntos Estratégicos; o general Otávio Santana do Rêgo Barros, porta-voz da Presidência, ainda não oficialmente nomeado. Rêgo Barros é ligado ao general Eduardo Villas Bôas, que deixou o comando do Exército e não vai para casa, assumirá um cargo no Gabinete de Segurança Institucional no Planalto.

Há, ainda, no primeiro escalão, ministros egressos das Forças Armadas: Fernando de Azevedo e Silva (Defesa), Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura), Bento Costa Lima (Minas e Energia), Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), Wagner Rosário (Controladoria Geral da União); general Franklimberg Ribeiro de Freitas (Funai).

O ex-comandante da Marinha, assim como o ex-comandante do Exército, ingressou na equipe: o almirante Eduardo Bacellar Leal Ferreira foi indicado por Bolsonaro para presidir o Conselho de Administração da Petrobras.

No discurso de transmissão do cargo de comandante do Exército, o general Villas Bôas, marcou a nova era com um exagero. Para ele, os dois maiores brasileiros são Bolsonaro e Sergio Moro, os homens capazes de mudar a agenda do país, de restaurar o patriotismo. Estava, porém, exaltando terem finalmente chegado ao topo.

É preciso separar a euforia do emprego da euforia da política, do mando. Bolsonaro deu emprego para todos. O seu partido terminou virando, na prática, um partido de duas alas: a ala dos negócios da Economia, tocada por Paulo Guedes, que tinha sua própria equipe adotada pelo presidente, e o partido do Quartel.

As três Forças assumiram as suas missões como quadros de um partido. E foram tomando gosto: eles querem e a eles é permitido controlar o governo.

Há muito pouco tempo, Jair Bolsonaro era visto no alto comando do Exército como uma caricatura. Aos poucos, as tropas da reserva, que apoiavam sua candidatura, foram conquistando as da ativa até formar um partido militar bolsonarista que tem o governo sob tutela.


Monica De Bolle: Encurralados

Não tardará para que conflitos em torno das reforma da Previdência apareçam com mais clareza

“Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.” A frase, como muitos devem saber tamanha sua notoriedade, é de Dilma Rousseff. Na época em que a ex-presidente a proferiu em 2015, a opinião quase unânime era de que o amontoado de palavras sobre ganhar ou perder não fazia sentido algum, em linha com outros discursos e frases célebres de Dilma. Contudo, as reviravoltas no Brasil e no mundo que ocorreram nos últimos quatro anos tornaram o dito profético, sobretudo a asserção final: “Vai todo mundo perder.”

Quando esse artigo for publicado, já conheceremos o veredicto do Parlamento britânico sobre o plano de saída da União Europeia – o Brexit – negociado pela primeira-ministra Theresa May. Ao que tudo indica, May está encurralada. De um lado porque escolheu alijar das discussões parlamentares contrários ao Brexit tanto dentro de seu próprio partido, quanto na oposição. Tal estratégia para aplacar a base ruidosa de defensores do Brexit dentro do Partido Conservador deixou todos desconfiados: Theresa May, afinal, votou contra o Brexit. Portanto, seus correligionários sentem-se ou traídos ou ressabiados após a negociação de um acordo que, argumentam, não entregará o que tanto queriam.

Os argumentos sóbrios e os números frios, que mostram inequivocamente como sofrerá a economia do Reino Unido com a saída da UE estão sendo sumariamente ignorados pelos parlamentares dos dois partidos ante o estratagema de autoencurralamento que a primeira-ministra se impôs. Em caso de derrota do plano, todos perderão. No caso da menos provável vitória, todos também perderão – afinal, o Brexit é para lá de custoso em termos econômicos para a Grã-Bretanha.

Outro caso de autoencurralamento está em ampla evidência do outro lado do oceano. Há mais de três semanas, partes do governo norte-americano estão fechadas, funcionários públicos sem receber salários, por causa da intransigência de Trump com seu muro. Há notável quantidade de estudos técnicos mostrando que a imigração ilegal nos últimos anos tem sido menos pelo cruzamento da fronteira que separa o México dos EUA e mais por visitantes que entram no país pelos aeroportos com vistos válidos e permanecem após a expiração desses vistos.

Outros estudos revelam que barreiras físicas não são suficientes – ou mesmo viáveis em partes da fronteira, por isso não existem – para evitar, por exemplo, a entrada de drogas. É preciso ter aparato tecnológico mais sofisticado para tanto. Contudo, Trump prometeu entregar o muro durante a campanha, e agora finca o pé para tentar aplacar sua base de eleitores enquanto enfrenta democratas ávidos por investigá-lo em diversas frentes e por impedir qualquer de seus esforços legislativos. Enquanto não surge solução para o impasse, perdem todos. Quando surgir a solução, qualquer que seja, todos deverão também perder. A culpa pela paralisia prolongada e pela incapacidade de levar adiante uma negociação política deverá ser dividida entre Trump, republicanos, e democratas.

Voltando à frase de Dilma, ela remonta a uma reflexão interessante. A barganha privada, em que os dois lados tentam extrair algo do outro quando suas posições divergem, é mais simples do que a barganha política. Na barganha política há sempre um terceiro lado – os eleitores – a vigiar as negociações. Quando esses eleitores estão mais alinhados ao centro, a barganha política naturalmente acaba envolvendo concessões, ajudando a formar consensos e soluções para os embates. Contudo, quando esses eleitores estão polarizados nos extremos do debate, eles acabam agindo como força que enraíza posições duras. Nenhuma concessão no caso do Brexit, e portanto uma potencial derrota para May. Nenhuma concessão na questão do shutdown/muro de Trump, prolongando a angústia daqueles que sofrem diretamente e indiretamente os efeitos do fechamento parcial do governo. Conjecturo que nesses dois casos os impasses só poderão ser quebrados quando os custos de fincar o pé se tornarem excessivamente altos. Ou seja, quando ficar evidente que todos perderam, ainda que queiram posar de vencedores.

Encerro com uma breve nota sobre o Brasil. Não tardará para que conflitos em torno das reformas econômicas, sobretudo da contenciosa reforma da Previdência, apareçam com mais clareza. Temos no País um eleitorado polarizado diante do qual não foi exposta uma agenda econômica clara durante a campanha. Creio que estamos prestes a ver nossa própria versão dos encurralados do norte.

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Almir Pazzianotto Pinto: Novas esperanças, velhos desafios

Reforma da Previdência deve ser o primeiro e decisivo teste para o novo governo

A posse do presidente da República, Jair Bolsonaro, deve ser encarada como o anúncio de nova era de liberdade, segurança e desenvolvimento. O discurso perante o Congresso Nacional, logo após o solene juramento de “manter, defender e cumprir a Constituição”, não se harmoniza, porém, com a promessa de “promover o bem-estar do povo”, mediante a realização de “reformas estruturantes, que serão essenciais para a saúde financeira e sustentabilidade das contas públicas, transformando o cenário econômico e abrindo novas oportunidades”.

O Congresso eleito em 1986, com as prerrogativas de Assembleia Nacional Constituinte, deveria limitar-se ao restabelecimento do regime democrático, protegê-lo contra tendências ao autoritarismo, demarcar as áreas de competência dos três Poderes da União e garantir os direitos fundamentais. Não foi o que aconteceu. Emendada uma centena de vezes, a Lei Fundamental continua à espera de alterações destinadas a torná-la objetiva, fácil de ser lida e entendida, isenta de promessas inalcançáveis, flexível e adaptável às exigências da Nação.

Entre as reformas constitucionais, a da Previdência Social “terá de puxar a fila”, por ser o atual sistema responsável pelo déficit “que cresce no ritmo de R$ 50 bilhões ao ano”, segundo a visão dos economistas Gustavo Franco e Elena Landau. “Reformar a Previdência não é mais uma escolha. Os números falam alto e o País terá de tomar uma decisão o quanto antes”, declarou Marcelo Caetano, então secretário de Previdência Social do Ministério da Fazenda (Estado, 30/12, B4).

Anote-se que as disposições constitucionais relativas à Previdência Social resultam de alterações introduzidas pelas Emendas n.º 20, de 1998; n.º 41, de 2003; e n.º 47, de 2005. O estado pré-falimentar do sistema previdenciário público e privado era conhecido e alvo de discussões desde 1995, quando teve início a série histórica de progressivos déficits anuais.

Melhor proveito haveria se voltássemos aos textos das Constituições de 1946 ou de 1967, deixando-se a regulamentação por conta de legislação ordinária. A primeira incluía, entre as garantias essenciais para os trabalhadores, no artigo 157, inciso XVI, “previdência, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado, em favor da maternidade e contra as consequências da doença, da velhice, da invalidez e da morte”. O inciso seguinte determinava “obrigatoriedade da instituição do seguro pelo empregador, contra os acidentes do trabalho”. A Constituição de 1967 prescrevia, no artigo 165, XVI, “previdência social nos casos de doença, velhice, invalidez e morte, seguro-desemprego, seguro contra acidentes do trabalho e proteção da maternidade, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado”.

O artigo 195 da Constituição atual, de 1988, determina que a seguridade social, que garante os direitos à saúde, à previdência e à assistência social, “será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e de contribuições do empregador, da empresa, de entidade a ela equiparada, incidentes sobre a folha dos salários, receita e faturamento, lucro”, etc.

Tanta complicação não impediu alarmantes déficits. O problema não está nas fontes, mas nas despesas, na sonegação, na fraude, no envelhecimento da população, na redução da atividade econômica, no desemprego, na informalidade prevalecente no mercado de trabalho.

Sobre a necessidade da reforma todos se põem de acordo. O problema reside no conteúdo. Será apenas mais uma, destinada à contemporização, ou o presidente Jair Bolsonaro se valerá da autoridade inquestionável de que dispõe para resolver enigma que levará o Tesouro Nacional à insolvência?

Julgo impossível aumentar as exigências que recaem sobre os trabalhadores, seja no que se refere à idade, seja no que diz respeito a benefícios. Vá lá que se aceite a eliminação da aposentadoria por tempo de serviço. Com 35 anos de contribuição para o homem e 30 para a mulher, conforme reza o artigo 201, I, da Constituição de 88, quem consegue demonstrar que começou a trabalhar aos 14 anos pode se aposentar aos 49 ou 44, mesmo em excelentes condições de saúde.

A reforma da Previdência deve ser o primeiro e decisivo teste para o novo governo. Dela dependerá para abrir caminho às reformas reestruturantes. Como ensinam consagrados cabos de guerra, é vital o emprego do máximo de força para a conquista do estratégico objetivo. Além da mobilização dos aliados na Câmara dos Deputados e no Senado, será indispensável cuidar da comunicação. Nesse quesito o presidente Michel Temer foi malsucedido. Embora fragmentada, a oposição permanece viva. Não é impossível para os partidos de esquerda fazerem da questão previdenciária o centro de gravidade de que necessitam para se aliarem contra governo que alardeia ser de direita.

No embalo das reformas, o presidente Jair Bolsonaro poderá encaminhar emenda destinada a corrigir o artigo 7.º, IV, que define salário mínimo. Trata-se de direito imaginário, de impossível realização. Em país nenhum há piso salarial capaz de atender às necessidades do trabalhador e sua família, “com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuários, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo”. É um dos mitos constitucionais, que devem ser suprimidos.

Para encerrar, creio ser arriscado ampliar afoitamente o leque de reformas. Extinguir a Justiça do Trabalho é inimaginável. “Só se destrói o que se substitui”, escreveu Auguste Comte, o filósofo positivista. Para onde iriam milhões de processos em tramitação?

É a pergunta que deixo para o presidente.

* Almir Pazzianotto Pinto é advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Benedito Rodrigues de Moraes Neto: Brasil nunca teve social-democracia que Paulo Guedes combate

Economista retraça políticas desde governo FHC para mostrar que país passou longe da centro-esquerda

Em mais de uma ocasião, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou que, no período recente, o Brasil foi aprisionado pela social-democracia e que sua proposta objetivava libertar o país dessa prisão. Tentaremos verificar em que medida a avaliação de um excesso de social-democracia corresponderia à realidade histórica de nosso país.

Evidentemente, o ministro se referia ao período que vem desde o governo FHC, pois não haveria qualquer sentido em incluir as presidências de José Sarney e Fernando Collor, por motivos bastante claros: o primeiro esteve inteiramente às voltas com sucessivos fracassos na luta contra a inflação; o segundo levou essa luta ao paroxismo do voluntarismo inconsequente, além de pôr em prática, ainda que de forma incipiente, algumas das propostas mais caras à economia liberal.

Também o período do presidente de um partido que tem em seu nome a social-democracia, o PSDB, não se ajusta bem às críticas de Guedes. Isto porque a luta contra o monstro da inflação continuou dominando a cena, com o bem-sucedido Plano Real, que começou no governo Itamar Franco e se consolidou no governo FHC. Sem dúvida brilhante em sua concepção e implantação, o plano sofreu forte crítica dos partidos mais à esquerda.

Depois desse momento, houve a continuidade da preocupação com a gestão macroeconômica, com a criação do chamado tripé, constituído por meta de inflação, equilíbrio fiscal e flexibilidade cambial. Se juntarmos tudo isso ao grande esforço pelas privatizações, com destaque para a área das comunicações, fica a pergunta: onde está aí a “prisão social-democrata”?

Pode ser que o envolvimento com a questão macroeconômica tenha tolhido esse lado do PSDB, que talvez pudesse desabrochar em outro contexto. De qualquer forma, fica claro que a crítica de Guedes se refere mesmo aos quase 14 anos do PT na Presidência. Nossa questão se coloca, então, de modo mais específico: em que medida a crítica ao excesso de social-democracia se ajustaria às gestões petistas?

Comecemos com um aspecto absolutamente crucial para caracterizar uma gestão social-democrata, em contraposição a uma de matiz liberal: a política tributária. Talvez a mais característica propositura social-democrata seja a implementação de uma tributação bastante progressiva, ou seja, que cobre impostos proporcionalmente maiores dos que auferem renda maior.

Sabe-se que as alíquotas de imposto sobre a renda são extremamente elevadas para níveis elevados de rendimento nos países de presença mais forte da social-democracia, como os da península escandinava. Mesmo no caso dos Estados Unidos, país que apresenta distância bem grande em relação à social-democracia, essa questão da progressividade da tributação diferencia fortemente as gestões dos partidos Democrata e Republicano, algo reforçado nos anos recentes.

Uma gestão democrata se aproxima, nesse caso, respeitando os limites americanos, de uma proposta social-democrata, com elevação da progressividade dos impostos. Uma gestão republicana, inteiramente impregnada da concepção liberal, rapidamente trata de aumentar a regressividade tributária, sob o argumento de que a ideia social-democrata inibe o ímpeto das pessoas para o esforço produtivo.

Pois bem, isso tudo é bem conhecido. O interessante é observar o rebatimento por aqui dessa questão tributária. Ao ler a observação de Guedes, pode-se imaginar que a implantação de uma estrutura tributária extremamente progressiva pelos “social-democratas de centro-esquerda” no poder por 14 anos precisaria ser revertida com força pelos ultraliberais de direita.

Mas esse não é um tema por aqui, pois o PT não mexeu uma vírgula em nossa estrutura tributária regressiva, muito dependente dos socialmente injustos impostos indiretos e, no caso dos impostos diretos, muito branda com os que auferem rendimentos de propriedade e muito dura com os que obtêm rendimentos do trabalho.

Cada vez mais dura, aliás, na medida em que se deixou de corrigir as tabelas do Imposto de Renda de acordo com o ritmo de inflação. Os assalariados de todos os níveis de renda tiveram que pagar cada vez mais nesse período.

Considero que não seria fácil para um estrangeiro entender uma coisa dessas: como é possível que um dos países de maior desigualdade social do planeta, que possui uma tributação de rendimentos extremamente regressiva, não tenha apresentado uma vírgula de alteração em sua política tributária durante 14 anos de um partido “de centro-esquerda” (para muitos, “de esquerda”) no poder?

Mas nós, brasileiros, teríamos que nos associar à questão: como é possível? De qualquer forma, o que nos interessa aqui é marcar que, no item fundamental da política tributária, a social-democracia nem passou perto daqui.

Continuemos a perscrutar nossa “prisão à social-democracia”, agora caminhando em direção à política social. Nesse caso, ganha grande destaque o Bolsa Família, programa tornado bastante extenso pelo PT.

Não é nosso objetivo aqui discutir o programa, mas verificar seu ajuste à crítica de Guedes.

Sabe-se que esse tipo de política social, de focalização, foi gerado no interior do Banco Mundial por economistas de extração liberal. Contrapunha-se, enquanto proposta de ação pública, à proposta social-democrata de universalização da intervenção do Estado através da política educacional, de saúde etc.

Foi justamente na gestão do partido que tem a social-democracia no nome que a política de focalização teve seu início, ainda tímido, com a criação, por FHC, das Bolsas Escola e Alimentação e do auxílio-gás.

Inteiramente imbuído da crítica social-democrata, de centro-esquerda, a essa política de focalização, Lula chamou-as de “Bolsa Esmola”. Posteriormente, já na Presidência, depois do fracasso do seu primeiro programa, o Fome Zero, Lula fez a unificação das bolsas num programa único, batizou-o de Bolsa Família, e o incrementou de forma extremamente significativa.

Para nosso propósito aqui, cabe uma única pergunta: onde temos aqui a “prisão social-democrata”? Guedes terá que propor ao presidente Jair Bolsonaro que elimine imediatamente o Bolsa Família, por ser uma das faces dessa prisão? Pelo contrário, o presidente já propôs implementar o 13º salário para os que recebem esse tipo de rendimento.

Continuemos com a política social. Se não encontramos social-democracia no Bolsa Família, talvez a encontremos na política habitacional, com o Minha Casa Minha Vida. De novo, temos a crítica de Lula em sua fase pré-presidencial, quando afirmou, com acuidade, que o pobre, quando comprava casa própria, não podia beber uns goles a mais, pois havia o forte risco de entrar na casa do vizinho.

Pois bem, o Minha Casa Minha Vida levou essa triste característica arquitetônica de nossos programas de moradia popular ao paroxismo, adicionando uma outra triste característica, urbanística, sobretudo nas grandes cidades, ao situar os conjuntos habitacionais a grande distância dos locais de emprego de seus habitantes.

Se a proposta social-democrata implica generalizar qualidade de vida, não vejo como o Minha Casa Minha Vida possa se ajustar a isso. Aliás, nesse caso, é particularmente desanimador verificar como tantos anos de um governo “de centro-esquerda” (para muitos, “de esquerda”) foram inteiramente incapazes de utilizar a reconhecida competência e criatividade de nossa arquitetura.

Seguindo adiante, um dos traços mais fortes da social-democracia é resguardar para o Estado, protegendo-as da interferência mercantil, as esferas da educação e da saúde. É inclusive a generalização da qualidade da educação pública que tem dado grande destaque a alguns dos países mais fortemente social-democratas, com ênfase recente para a Finlândia.

Basta um olhar muito rápido ao que acontece no Brasil nessas duas áreas para constatar que estamos muito longe dessa matriz. Realmente, em saúde e educação, não há que se criticar excesso de social-democracia após 14 anos de PT —muito pelo contrário.

Finalizemos com uma estatística significativa, que recolhemos no jornal O Estado de São Paulo de 9 de dezembro de 2018. Segundo pesquisa realizada pela consultoria Mercer em 601 empresas de 130 países, a diferença de rendimento entre executivos e operários é, em média, de 34 vezes no Brasil. Na Alemanha, país com relevante presença social-democrata, essa diferença é de cinco vezes.

Depois desse dado, somos forçados a concluir que o problema do Brasil não é, como afirma Paulo Guedes, de excesso de social-democracia, mas sim de excesso de falta de social-democracia. Conforme afirmou a escritora argentina Beatriz Sarlo, o que a América Latina necessita é de uma social-democracia séria.

*Benedito Rodrigues de Moraes Neto é professor aposentado do Departamento de Economia da Unesp.


José Roberto Mendonça de Barros: O mundo não começou agora

A retomada do investimento e o crescimento econômico podem levar o governo para a frente

A última eleição trouxe, realmente, uma novidade: o presidente Bolsonaro ganhou legitimamente o pleito com uma proposta que se coloca claramente à direita do espectro político, em contraste com o passado recente, como, aliás, está ocorrendo em muitos lugares do mundo.

Sua coligação é complexa, pois abarca vários grupos bem distintos, cada um referenciado a uma recorrente frustração, que compõe o mosaico da crise atual: o cansaço com a corrupção e o desgoverno (muito visível no plano dos Estados, como descobriram muitos dos novos governadores, por exemplo), a violência generalizada e o crescimento do crime organizado, a voracidade tributária e o baixo nível dos serviços públicos e a excessiva ingerência governamental na vida do cidadão, entre outras questões.

Tudo foi muito bem percebido e melhor ainda colocado por alguém que se posicionou como “novo”, embora participe da vida política há quase 30 anos. De novo realmente o que tivemos foi a competente utilização da comunicação pelas redes sociais.

Esta novidade política tem um grande desafio organizacional, pois será necessário estabelecer um convívio e, idealmente, alguma organicidade entre temas bem distintos, agrupados em três grandes campos: economia (liberal, num país de arraigado patrimonialismo e tradição de décadas de detalhada regulação pública, que afeta a vida do cidadão), governança pública (controle da violência e da corrupção) e um conjunto de coisas associadas a “valores familiares, tradicionais, conservadores e nacionalistas”.

Só o futuro vai dizer se esta “geringonça” (como foi apelidado o governo do primeiro-ministro Antonio Costa) será do tipo português, que está dando certo na terrinha ou uma coisa mais para confusão, como o despreparo de muitos transformou os primeiros dez dias de governo.

Existe, entretanto, algo que pode levar o governo para a frente: a retomada do investimento privado e do crescimento econômico.

Ora, as circunstâncias e a crise recente criaram uma oportunidade única, que pode facilitar a nova gestão. O debate dos últimos tempos gerou uma quase unanimidade da opinião pública em torno de duas coisas:

– não há como empurrar mais o enfrentamento da crise fiscal, sob pena de ocorrer um desastre sem precedentes.

– este enfrentamento tem como ponto de partida a aprovação de uma reforma da Previdência de certa abrangência. Mais ainda, dois ou três projetos de excelente qualidade estão disponíveis e já passaram por um intenso escrutínio técnico, de sorte que a equipe econômica pode apresentar o projeto que lhe aprouver antes de março.

Tudo passa a depender, então, da aprovação pelo Congresso, que nunca é simples, mas é possível. A experiência mostra que um presidente recém-eleito, desde que focado num projeto principal, consegue sucesso. Se tiver uma pauta dispersa, o sucesso fica muito mais difícil.

Assim, se a reforma da Previdência for aprovada neste ano, a porta estará aberta para a retomada do crescimento. Isto, apenas, não resolve o sucesso da gestão, mas é certo que as outras reformas e ações podem, então, ser tocadas com mais tranquilidade.

Olhado desta forma, fica claro que a agenda de hoje não é uma invenção recente. Ela é o resultado de uma crise profunda, dos avanços do governo Temer, da inflação ancorada, da folga no setor externo, de juros historicamente baixos e da evolução de um grande debate nacional.

O País não começou agora, ao contrário do que boa parte do discurso oficial procura mostrar.

** * * * *
A necessidade das privatizações, é, talvez, o maior exemplo do que foi colocado acima.

Estas começaram no governo Itamar Franco, há um bocado de tempo. Entre os muitos casos relevantes, chamo a atenção para a venda da CSN e de outros ativos do setor siderúrgico.

Em 1997 foi vendida a Vale do Rio Doce. A gigantesca criação de valor nos anos 2000 mostrou tudo o que o País tinha a ganhar com sua privatização.

Em 1998 a menor das subsidiárias da Eletrobrás, a Gerasul, foi leiloada e se transformou no que é hoje, a Engie, que por muito tempo foi mais valiosa que a gigante estatal e, finalmente, o conhecido caso da Telebrás que detonou a conhecida revolução das comunicações.

A feroz resistência às vendas foi provavelmente maior do que veremos neste ano.

De qualquer forma, a venda da Eletrobrás e as concessões na área de logística serão fundamentais para elevar o investimento na infraestrutura, com reflexos no avanço do PIB.

De fato, o mundo não começou agora.

* Economista e sócio da MB Associados