Economia
Clóvis Rossi: Contra o ódio, é preciso conversar
Macron mostrou o caminho; será seguido aqui?
Duas iniciativas do presidente da França, Emmanuel Macron, talvez devessem ser replicadas no Brasil.
A primeira foi a convocação de um grande debate nacional: durante dois meses, desde meados de janeiro, se realizaram mais de 10 mil reuniões em todo o país. Macron participou de uma dúzia delas.
Objetivo: dar voz aos franceses, para entender a insatisfação popular. Que há insatisfação, é só ver a quantidade de gente que participa, todos os sábados, das manifestações dos "coletes amarelos".
A propósito: não vale confundir os protestos, quando pacíficos, com o vandalismo promovido pelos chamados "casseurs", que saem quebrando o que encontram pela frente. Não é civilizado.
Segunda iniciativa de Macron, levada a cabo na segunda-feira (18) e que avançou pela madrugada de terça (19): chamar ao Palácio do Eliseu 64 acadêmicos (filósofos, historiadores, sociólogos, economistas, cientistas), como se fosse o epílogo do grande debate nacional.
Por que acho que são iniciativas que deveriam ser imitadas?
Primeiro, porque o Brasil precisa conversar. O que há hoje é um monólogo dentro de cada tribo, não uma conversação entre uma tribo e outra (ou entre diferentes tribos).
Segundo, porque há no Brasil uma situação razoavelmente parecida com a que o filósofo Pascal Bruckner descreveu para Macron sobre a França. Lamentou, no Eliseu, "esta anarquia crescente, que faz da França um país em um estado de quase guerra civil latente, na qual o ódio de todos contra cada um parece triunfar".
Que há uma guerra civil mais que latente no Brasil é óbvio, embora de características diferentes. Que há ódio no ar (e nas redes sociais) é igualmente evidente.
Nessas condições, o brasileiro é hoje mais infeliz que nunca, a julgar pelo Relatório Mundial de Felicidade, divulgado há uma semana.
A média brasileira para 2018 era de 6,1, a mais baixa desde que se iniciou esse tipo de levantamento, em 2006. O país ficou no 32º lugar entre 156 países.
Para comparação: a França ficou em 24º, por mais que os franceses sejam tidos como resmungões o tempo todo, ao passo que os brasileiros são considerados risonhos.
Se a França, menos infeliz que o Brasil, se dispõe a conversar e se seu presidente chama acadêmicos para completar a conversa, não há razão lógica para que o Brasil se tranque em bolhas que não se comunicam.
Afinal, a eleição de 2018 revelou dois colossais blocos: os 57 milhões que votaram por Jair Bolsonaro e os 89 milhões que preferiram ou Fernando Haddad ou o voto branco/nulo ou nem sequer compareceram para votar.
Como parece altamente improvável que um bloco ou o outro seja subitamente tragado pela terra e, em consequência, o outro possa fazer o que bem entender, ou se decidem a conversar ou o ódio de todos contra cada um vai mesmo triunfar, como teme Bruckner no caso da França.
Lá como cá, a iniciativa tem que partir do chefe de governo. O presidente Jair Bolsonaro precisa ser convencido de que não adianta ficar conversando só com os seus.
Vale o que escreveu na sexta-feira (22) Brian Winter, editor-chefe de Americas Quarterly, após viagem ao Brasil e conversas com inúmeras pessoas que podem não ter votado por Bolsonaro, mas lhe disseram que "o país não pode aguentar outro fracasso".
Cultivar o ódio é namorar com o fracasso.
O Estado de S. Paulo: Informalidade e benefícios respondem por 40% da renda das famílias do País
Em 2014, antes da crise, essas fontes de renda representavam um terço do orçamento; com desemprego em alta e recuperação lenta, peso dos salários no rendimento das famílias caiu
Márcia De Chiara, de O Estado de S. Paulo
Informalidade e benefícios respondem por 40% da renda das famílias do País
A renda com trabalho informal e a obtida com pensões, aposentadorias e outros benefícios pagos pelo governo estão ganhando peso maior no orçamento das famílias brasileiras, enquanto a contribuição do salário vem encolhendo. No ano passado, quase 40% dos ganhos dos domicílios vieram da informalidade e de benefícios do governo. Em 2014, antes de o País entrar em crise, esses rendimentos respondiam por um terço da renda familiar.
Os números são da consultoria britânica Kantar WorldPanel, que visita semanalmente 11 mil domicílios para radiografar o consumo no País. Uma vez por ano, a consultoria investiga de onde vem a renda do brasileiro para bancar despesas básicas, como alimentação, saúde, habitação e transporte.
Apesar de a economia ter voltado a crescer em 2017, o desemprego recuou muito pouco e continua em níveis elevados. Com isso, a participação do salário vem diminuindo no orçamento familiar. Em 2014, respondia por 63% da renda dos domicílios. No ano passado, a fatia recuou para 56%.
Nas regiões mais pobres, o peso dos rendimentos da informalidade e dos benefícios já ultrapassa o do salário. No Norte e Nordeste, por exemplo, os salários contribuíram o ano passado para 47% da receita doméstica, enquanto bicos e benefícios somaram 49%. Os 4% restantes vieram de outros tipos de ganhos, como doações, herança ou aluguéis. No Grande Rio de Janeiro, região afetada pela crise fiscal do Estado, mais da metade da renda das famílias já vem da informalidade e de benefícios pagos pelo governo.
“Do ponto de vista da renda, o aumento da informalidade é uma notícia ruim”, diz o economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Fabio Bentes. Como o ganho obtido com bicos é muito menor do que a renda de salário – entre 30% e 40% –, falta dinheiro no fim do mês.
Dívida. O estudo mostra que, pelo terceiro ano seguido, o gasto médio com despesas básicas tem superado a renda familiar em torno de 2%. No ano passado, a renda média mensal por domicílio foi de R$ 3.173, enquanto a despesa média mensal ficou em R$ 3.241.
Para fechar essa conta, explica Giovanna Fischer, diretora da consultoria e responsável pela pesquisa, as famílias têm se endividado. Recorrentes e herdadas de anos anteriores, as dívidas são um dos fatores que têm impedido que o orçamento volte ao azul. Além disso, a lenta recuperação do emprego formal contribui para manter essa defasagem. “Não há nenhum indicador que mostre recuperação da renda e, até o fim do ano passado, ela estava abaixo do gasto”, diz Giovanna. Bentes diz que a grande oferta de mão de obra disponível deve manter a renda pressionada para baixo.
Apenas em SP famílias fecham o mês no azul
Estado é o único onde a renda média supera o gasto com as despesas básicas
Pai de oito filhos, o ex-metalúrgico Jerivan Martins faz malabarismos para fechar as contas da casa. Sustenta a família com a renda mensal de R$ 2,2 mil que tira vendendo suco de laranja nas redondezas do Fórum da Barra Funda, na zona oeste da capital. “A minha mulher recebe R$ 270 por mês de Bolsa Família também”, lembra.
Para reduzir as despesas, Martins conta que a sua família mora no litoral, onde o custo de vida é menor. “Não tenho dívidas e consigo fechar o mês sem empréstimos, mas é justinho.”
Desempregada há um ano, Rosana Manente também está na informalidade. Ela vende pão caseiro todas as manhãs na estação de trem da Lapa, na zona oeste da cidade, para bancar as despesas da casa. Ex-frentista de posto de gasolina, seu marido também está desempregado há quatro meses. Rosana diz que, apesar do aperto, não deve nada a ninguém. “Vendi o carro e quitei tudo.”
Com os pães, ela tira R$ 100 por dia. Conta ainda com a ajuda da sogra aposentada, que contribui com R$ 400 por mês na renda da casa, apesar de não morar com o casal. “Não passo fome, mas vontade das coisas.”
Positivo. Martins e Rosana confirmam o movimento captado pelo estudo da consultoria Kantar WorldPanel para avaliar como está a renda do brasileiro. De todas as regiões pesquisadas do País, apenas as famílias que vivem no Estado de São Paulo conseguiram no ano passado fechar o mês no azul, isto é, com a renda média superando o gasto com as despesas básicas da casa.
Em 2018, a renda média mensal das famílias da Grande São Paulo foi de R$ 3.499, ante um gasto de R$ 3.311. O superávit foi de 5,7%. No interior do Estado de São Paulo, o resultado foi semelhante. A renda média mensal foi de R$ 3.362 para um gasto de R$ 3.193, uma diferença 5,3% a favor da renda.
“São Paulo foi a região onde as famílias estavam com o bolso mais folgado em 2018”, diz Giovanna Fischer, diretora da consultoria e responsável pelo estudo. Por sua vez, o estudo mostra que, no ano passado, as famílias que moravam no Grande Rio de Janeiro eram as que estavam com o orçamento mais estourado. Entre a renda e o gasto, o déficit foi de 13,9%.
De acordo com Giovanna, não é a primeira vez que isso acontece. Uma das justificativas para a diferença está no fato de que há mais oportunidade de emprego em São Paulo.
Um resultado que chamou a atenção na última pesquisa foi a virada que houve nas contas da famílias do Norte e Nordeste. Em 2017, a relação entre a renda e o gasto estava no zero a zero e, em 2018, o orçamento ficou no vermelho. O motivo do desequilíbrio é o aumento da informalidade, que proporciona uma renda menor frente à ocupação com carteira assinada.
Giovanna observa, no entanto, que, exceto no Norte e no Nordeste, a relação entre renda média e gasto melhorou nas demais regiões em 2018 na comparação com o ano anterior. No Estado de São Paulo, essa relação ficou mais positiva e, nas demais regiões, menos negativa.
Informalidade. Tanto Martins como Rosana, que hoje vivem de bicos e contam com a ajuda de benefícios pagos pelo governo, foram parar na informalidade depois de trabalharem por um longo período com carteira assinada.
Martins, que tem hoje 46 anos, trabalhou durante 22 anos numa metalúrgica na montagem de freios. Perdeu o emprego formal porque a empresa fechou. Rosana, que tem 50 anos, trabalhou por 13 anos na área financeira de uma cooperativa de ônibus e foi demitida porque a empresa se fundiu com outra. Depois, arranjou emprego com carteira assinada na área de vendas, mas foi novamente demitida há um ano.
Hoje ambos desistiram de procurar emprego formal. Alegam que é muito difícil encontrar uma vaga com carteira assinada por causa da idade.
Martins e Rosana fazem parte do grupo de trabalhadores que são subutilizados e que atingiu níveis recordes em janeiro, segundo o IBGE. São 27,5 milhões de pessoas, entre desempregados, desalentados ou simplesmente que estão trabalhando menos do que gostariam.
Bicos para apps aquecem venda de carros e motos
Locadoras aumentam compras de veículos para atender público que, diante da falta de emprego, aluga carro para trabalhar
RIO - A precariedade do mercado de trabalho e a popularização dos transportes de passageiros e cargas por aplicativos ajudaram a sustentar a demanda doméstica por automóveis e motocicletas no País no último ano, apontam especialistas.
Apesar da queda nas exportações para a Argentina e do orçamento ainda restrito das famílias brasileiras, a produção nacional de carros e motos mantém crescimento expressivo. A fabricação de automóveis nos 12 meses encerrados em janeiro subiu 9,3%, enquanto a de outros equipamentos de transporte – que é majoritariamente formado por motocicletas – cresceu 14%. Os dados são da Pesquisa Industrial Mensal, apurada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Tem uma demanda doméstica que pode ter sim uma relação direta com toda essa movimentação (de aumento de motoristas por aplicativo). Os dados corroboram essa leitura, especialmente levando em consideração a queda no comércio exterior. O setor permanece no positivo, embora tenha perdido dinamismo”, ressaltou André Macedo, gerente da Coordenação de Indústria do IBGE.
A dificuldade de encontrar um emprego impulsionou o aumento no número de trabalhadores no setor de atuando como motorista de aplicativos. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), também do IBGE, mostram que havia 201 mil pessoas a mais atuando no segmento de transporte e correio no trimestre terminado em janeiro, em relação a um ano antes. O Instituto de Pesquisa econômica Aplicada (Ipea) calcula que, no ano passado, o total de trabalhadores atuando por conta própria no setor de entregas saltou 104,20%.
O IBGE não consegue detectar as compras de automóveis por pessoas físicas que usam o veículo como ferramenta de trabalho. “A aquisição de veículos feita por locadoras foi muito maior do que em anos anteriores. Então a gente subentende que o aumento da frota não é porque tenha muito mais gente alugando carro para passear. É gente que foi alugar para trabalhar”, explicou Claudia Dionísio, gerente da Coordenação de Contas Nacionais do IBGE.
O motorista Victor Hugo Oliveira, de 30 anos, trabalhava em uma produtora de eventos antes de começar a transportar passageiros via aplicativo. O automóvel que usa para trabalhar é seminovo, adquirido em 2017. No ano passado, ele comprou mais um carro, ao enxergar a nova profissão como uma oportunidade de investimento. O segundo veículo está atualmente alugado para um amigo. “O outro motorista trabalha com ele direto. É isso que sustenta a minha família”, relatou Oliveira.
Motocicletas. A Abraciclo, entidade que reúne os fabricantes de motocicletas, acredita que a melhora no crédito tenha possibilitado o avanço tanto na produção quanto nas vendas internas em 2018, puxado pelo segmento mais barato. “A demanda por motocicleta de baixa cilindrada representou cerca de 80% das vendas. São motocicletas de baixo valor”, disse José Eduardo Gonçalves, diretor executivo da Abraciclo.
Há duas semanas, o motociclista Wesley Freitas Gomes, de 35 anos, começou a entregar refeições solicitadas por aplicativo. Ele trabalha com sua motocicleta no centro do Rio, todos os dias, de 11h às 17h40. À noite, dá expediente na pizzaria da família, no bairro onde mora, na zona norte. “Vale a pena. Tem dia que é muito bom, dá para tirar até R$ 200. Quando está chovendo ninguém quer sair na rua, todo mundo pede comida”, contou Gomes, que disse ter dois primos exercendo a mesma atividade.
O diretor executivo da Abraciclo aponta que a maioria dos compradores das motocicletas de baixa cilindrada é das classes de renda C, D e E. “Por falta de emprego, acabam entrando nesses aplicativos que oferecem serviços de entrega”, diz Gonçalves, da Abraciclo.
A produção de motocicletas de baixo custo atingiu 824 mil unidades em 2018, alta de 17,8% sobre o ano anterior. O primeiro bimestre de 2019 começou aquecido, com alta de 14% na fabricação desses produtos e salto de 24,9% nas vendas, de acordo com a entidade.
A Cabify afirmou que houve um crescimento de 40% no total de motoristas de sua base no ano passado. A Uber – dona também do serviço de delivery Uber Eats – afirma que atualmente tem 600 mil motoristas cadastrados no País, atendendo a 22 milhões de usuários.
Folha de S. Paulo: Empresas fecham 1,9 milhão de vagas com carteira para jovens
Além do efeito da crise, grupo está mais inclinado a aceitar regimes flexíveis
Flávia Lima, da Folha de S. Paulo
Uma análise mais aprofundada dos dados sobre o mercado de trabalho desde 2012 mostra que a oferta de vagas com carteira assinada caiu dramaticamente para um segmento bem específico: os mais jovens.
O número de vagas formais no setor privado entre jovens de até 24 anos recuou mais de 25% de 2012 a 2018. A redução de postos com carteira assinada no período foi de 1,9 milhão apenas nesse segmento.
O trabalhador mais jovem foi, de longe, o mais afetado pela crise, mostra o levantamento feito por Cosmo Donato, economista da LCA Consultores, com base nos microdados da Pnad, a pesquisa por amostra de domicílios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
O saldo de empregos com carteira assinada no grupo de pessoas com idade entre 25 e 44 anos também foi negativo, mas numa intensidade bem inferior —queda de 481,3 mil.
Acima dos 45 anos, o saldo de vagas formais foi positivo em quase 1 milhão.
Sem os jovens, o saldo de vagas no setor privado com carteira assinada —considerado o empregado por excelência— teria sido positivo no período em mais de 500 mil postos.
No geral, com pouca experiência e qualificação, os jovens formam o grupo que, historicamente, mais sofre em situações de instabilidade no mercado de trabalho.
Após uma das maiores recessões da história, a taxa de desocupação entre pessoas de até 24 anos fechou 2018 em 27,2% —bem mais do que o dobro da média registrada pelo mercado em geral, de 11,6%.
Especialistas identificam, porém, fenômeno ainda inicial que também pode explicar a queda na contratação formal no segmento: entre os jovens, em especial os mais escolarizados, haveria uma maior disposição a aceitar regimes de contratação mais flexíveis.
Seria uma forma de ganhar um pouco mais e, ao mesmo tempo, encontrar vagas com um perfil mais próximo às pretensões desse grupo.
Pesquisa do Datafolha de setembro do ano passado apontou que metade dos eleitores brasileiros até 24 anos prefere ser autônomo, com salários mais altos e pagando menos impostos, ainda que sem benefícios trabalhistas, a ter carteira assinada.
Na faixa seguinte, entre 25 e 34 anos, a opção pela autonomia foi ainda maior (55%). A preferência, no entanto, caía para 47% entre 45 e 59 anos e 46% acima de 60 anos.
Ramon Barreto, 24, é um desses jovens. Ele atua na área de marketing de eventos esportivos e passa pela primeira experiência como PJ (pessoa jurídica que presta serviços a uma empresa via contrato).
Barreto conta que participou de outros processos seletivos até tomar a decisão de aceitar a vaga sem carteira assinada e sentiu insegurança, pois não conhecia os trâmites para abertura de empresa e emissão de notas fiscais.
"Mas, colocando tudo na balança e pensando no que era bom para mim profissionalmente, meio que compensava não ter os benefícios da CLT."
José Roberto Afonso, pesquisador do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), diz que a preferência efetiva do jovem pelo trabalho autônomo é uma hipótese que só pode ser testada em períodos de normalidade --algo descolado do que viveram os trabalhadores nos últimos anos.
Como mostram os números, muitos jovens estão, na verdade, desempregados. Outros podem ter sido levados pela situação de crise a aceitar vaga sem carteira.
Ainda assim, Afonso diz que, para além da pejotização —fenômeno mais antigo e desencadeado pela alta tributação no mercado de trabalho—, já é possível identificar um processo novo e mais global, em que o trabalho é exercido sem contrato, sem local definido e sem horário fixo, em um contexto no qual o corte por idade é fundamental.
"Há um trabalhador jovem com menor preferência por ser empregado CLT, pois pode optar por mais flexibilidade, em linha com as mudanças tecnológicas", diz Juliana Damasceno, também economista do Ibre e coautora de textos sobre o tema com Afonso.
Após alguns meses trabalhando como PJ, Barreto diz que atuar como pessoa jurídica traz flexibilidade para todos os envolvidos.
"Eu tenho um horário acertado, mas, se eu consigo entregar as demandas, não existe a rigidez de ter que bater ponto. Isso facilita para mim e para a empresa, que não tem um funcionário cumprindo horário por tabela e pode contar com o comprometimento do profissional para as entregas."
Responsável pela pesquisa dos dados, Donato, da LCA, afirma que ainda é cedo para entender se a retomada do emprego decorrente da recuperação econômica levará os mais jovens a serem contratados novamente no regime CLT ou se as mudanças ocorridas na recessão têm caráter mais permanente.
"Ainda não dá para entender se os arranjos informais estabelecidos pelos mais jovens e seus empregadores no mercado de trabalho vieram para ficar", diz Donato.
Bruno Ottoni, pesquisador da consultoria IDados, concorda. "Questões mais estruturais são mais difíceis de discutir. É cedo para falar de automação em um país como o Brasil", afirma ele.
Após quatro anos de recessão e crise, não há, até agora, sinal de recuperação da formalidade, afirma João Saboya, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e especialista em mercado de trabalho.
"E, enquanto não houver crescimento econômico mais forte, não vejo sinal de recuperação da carteira assinada entre os mais jovens", diz ele.
Do alto de seus 24 anos, Barreto afirma que, quando avalia a dinâmica do mercado de trabalho e as opções que têm sobre a mesa, acredita que existem chances de que volte a ter a carteira assinada. Mas a tendência mais forte, diz ele, é a flexibilização.
Zeina Latif: Sobrou para o BC
É recomendável evitar idas e vindas na Selic, em especial com mudança de membros
Os números falam por si só. A economia brasileira está praticamente estagnada e os sinais são de um crescimento modesto do PIB este ano. Analistas rebaixam as projeções, que estão agora em 2,1%. O risco é de número mais modesto. A fraqueza da economia acendeu o debate sobre a possibilidade de o BC retomar o ciclo de corte da Selic interrompido em maio de 2018, com a taxa em 6,5% ao ano.
Convém discutir o espaço para corte dos juros, mas não defender a redução com vistas a estimular a economia, como pregam alguns. A meta a ser perseguida pelo BC é de inflação, e, não, de crescimento do PIB.
A fragilidade da economia decorre de fatores conjunturais e estruturais. No primeiro caso, um País que sofre com os resquícios da recessão. Muitas empresas ainda enfrentam dificuldades financeiras, o que, aliado à ociosidade elevada, contém a contratação de mão de obra. No segundo caso, uma economia com potencial de crescimento muito baixo, possivelmente abaixo de 2%, devido aos limites de infraestrutura, mão de obra qualificada e capital instalado.
Questões conjunturais são assunto para o Copom. Se a economia evolui lentamente, a ponto de tornar a convergência da inflação às metas muito demorada, convém cortar os juros para evitar inflação abaixo da meta por muito tempo e sacrifício desnecessário da sociedade.
Já o baixo crescimento decorrente de limitações estruturais não deveria ser razão para redução dos juros. Pelo contrário. Um baixo potencial de crescimento poderá significar volta mais rápida da inflação no futuro. Afinal, facilmente um aquecimento da economia geraria descompasso entre demanda e oferta de bens e serviços, esta última limitada por fatores estruturais.
Difícil separar o que é estrutural e o que é conjuntural do fraco desempenho atual do PIB, o que dificulta a tomada de decisão do BC. De qualquer forma, no fim das contas, é o comportamento da inflação e das expectativas inflacionárias que deve guiar o BC.
O quadro inflacionário é benigno, sem tendência clara de aceleração. Mas o melhor já passou. O ciclo de desinflação foi concluído, a julgar pelo comportamento de várias métricas (núcleos de inflação) que ajudam a separar fatores transitórios e duradouros que têm impacto na inflação. Há uma tendência de aumento da inflação de bens finais, mesmo excluindo itens voláteis, como alimentos in natura e combustíveis (2,5% na variação anual em fevereiro ante 0,9% em 2018). Por outro lado, a inflação de serviços segue relativamente estável (em torno de 3,5%).
A estabilidade da inflação, a despeito da atividade tão fraca, sugere que a economia não está operando tão longe assim do potencial. Por exemplo, se o potencial de crescimento do PIB é 2,5% e a economia cresce apenas 1%, a ociosidade tende a aumentar e a inflação cai. Não é o caso. O espaço para redução da Selic, se existir, seria possivelmente modesto.
Além disso, a reforma da Previdência é importante fator de risco para a inflação. Uma reforma tímida terá repercussões na percepção de risco fiscal, pressionando a cotação do dólar e, portanto, a inflação. Convém o Copom aguardar para decidir sobre a política monetária. Como a inflação não está em queda e as expectativas de inflação de 2020 estão na meta, em 4%, o risco de cortar agora e ter de reverter pouco tempo depois não é desprezível. É recomendável evitar idas e vindas na trajetória da Selic, especialmente com a mudança dos membros do Copom. Construção de reputação não combina com precipitação.
Por mais que o baixo crescimento traga descontentamento e preocupação, o BC não tem instrumentos para resolver o problema, exceto no curto prazo quando a inflação permite. A contribuição do BC ao crescimento é justamente pela manutenção da inflação na meta. Promover o crescimento é missão do governo. Não é na porta do BC que devemos bater.
*Economista-chefe da XP Investimentos
Luiz Carlos Azedo: A barganha dos militares
“Como os policiais militares e os bombeiros também serão incluídos na reforma das regras de aposentadoria dos militares, o Distrito Federal e os estados terão uma economia de R$ 52 bilhões em 10 anos”
O presidente Jair Bolsonaro encaminhou ao Congresso a proposta de reforma do sistema previdenciário dos militares, em troca da reestruturação das carreiras das Forças Armadas, uma operação que pode representar aos cofres da União uma economia de R$ 10,45 bilhões. Foi uma espécie de toma lá dá cá: para aceitar um corte de R$ 97,3 bilhões no seu sistema de proteção social — não se aposentam, são reformados e podem ser convocados a qualquer momento —, os militares exigiram como compensação a reestruturação das carreiras, cuja remuneração atualmente é muito defasada em relação aos servidores civis do mesmo nível hierárquico. A reestruturação da carreira dos militares era um compromisso de campanha de Bolsonaro.
Trocando em miúdos, foi um acordo estratégico com a equipe econômica, porque conseguiram transformar em remuneração mensal um corte estrutural na Previdência que seria feito mais cedo ou mais tarde, se a crise do sistema previdenciário não fosse resolvida com a reforma. Sem a mudança casada, ou seja, a reestruturação, que custará R$ 86,65 bilhões, esses recursos provenientes dos cortes na Previdência seriam engolidos pelo deficit público e não incorporados aos soldos. Para embrulhar o peixe, o governo anunciou que, em 30 anos, a economia será de R$ 33,65 bilhões, com um sistema de proteção social das Forças Armadas equilibrado.
Bolsonaro foi à Câmara para entregar pessoalmente a proposta ao presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), acompanhado do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Na ocasião, pediu celeridade na apreciação da reforma da Previdência: “Eu peço celeridade, sem atropelo, para que essas propostas, essa e a outra (reforma da Previdência), no máximo no meio do ano, cheguem a um ponto final e nós possamos sinalizar que o Brasil está mudando”. O gesto de Bolsonaro foi uma tentativa de melhorar o clima na Câmara em relação ao governo, pois há muita insatisfação dos políticos com o tratamento que vêm recebendo no Palácio do Planalto. A animosidade aumentou depois de ataques de partidários de Bolsonaro ao presidente da Câmara nas redes sociais, acusando-o de querer chantagear o governo.
Mudanças
A reestruturação de carreiras prevê as seguintes mudanças: “adicional de habilitação”, que é uma parcela remuneratória mensal devida aos militares por conta de cursos realizados com aproveitamento; “adicional de disponibilidade” (por conta de disponibilidade permanente e dedicação exclusiva); aumento na ajuda de custo de transferência de militares para a reserva (de quatro a oito vezes o valor do soldo, pago uma única vez). A contrapartida é a seguinte: elevação da alíquota previdenciária de 7,5% para 8,5% em 2020, para 9,5% em 2021 — e para 10,5% de 2022 em diante; aumento do tempo para o militar passar para a reserva, de 30 para 35 anos na ativa; e taxação de 10,5% nas pensões recebidas por familiares de militares.
Como os policiais militares e os bombeiros também serão incluídos na reforma das regras de aposentadoria dos militares, o Distrito Federal e os estados terão uma economia de R$ 52 bilhões em 10 anos, segundo estimativas do Ministério da Economia. Para o secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, Rogério Marinho, o orçamento prevê uma economia de mais de R$ 50 bilhões nos próximos 10 anos, apenas na questão da PM e Corpos de Bombeiros. Os gastos dos estados e do GDF com servidores da ativa e aposentados passaram de 47,53% da arrecadação total em 2016 para 49,36% em 2017 e, em 2018, para 50,23%. Para 17 estados, representaram mais de 60% dos gastos totais em 2017.
Ibope
A avaliação positiva do presidente Bolsonaro caiu 15 pontos percentuais desde a posse. Em fevereiro, segundo a pesquisa, 19% consideravam o governo “ruim/péssimo”; 30%, “regular”; e 39% o avaliavam como “bom/ótimo”. Na pesquisa divulgada ontem, a avaliação era: “ótimo/bom”, 34%; “regular”, 34%; “ruim/péssimo”, 24%. Confiam no presidente 49%; não confiam, 44%.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-barganha-dos-militares/
Luiz carlos Azedo: Devagar, quase parando
“Gande fiador da reforma da Previdência, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), cobra mais engajamento de Bolsonaro na sua aprovação”
A nova dor de cabeça do Palácio do Planalto é a desaceleração da economia, que já preocupa a equipe econômica e o mercado financeiro, devido à queda de arrecadação e aos indicadores negativos. Todo mundo está de olho na reunião do Conselho de Política Monetária (Copom), que começa hoje e pode reduzir a taxa de juros para conter a desaceleração. O fraco desempenho da economia brasileira atrapalha até a comitiva do presidente Jair Bolsonaro nos Estados Unidos junto aos investidores, que avaliam nossas taxas de crescimento e aguardam a aprovação da reforma da Previdência para tomar decisões relevantes sobre o Brasil.
Com a inflação sob controle e a Bovespa ultrapassando a marca histórica os 100 mil pontos, a expansão do PIB neste ano é estimada em 2%. O desemprego, porém, foi de 12% nos três meses até janeiro, ou seja, em torno de 12,7 milhões de pessoas. No quarto trimestre do ano passado, 3,1 milhões de pessoas estavam havia dois anos ou mais procurando emprego, o equivalente a mais de um quarto do total. O alarme, porém, foi dado pela equipe econômica porque a atividade econômica em janeiro recuou 0,41%.
É óbvio que o governo Bolsonaro não tem a menor culpa nesse cartório, mas precisa reverter a situação. Para o mercado, tudo dependerá da aprovação da reforma da Previdência. Se a reforma for aprovada, as perspectivas da economia para o segundo semestre poderão melhorar. Se nada for feito, o horizonte é de recessão. Em janeiro, a produção industrial caiu 0,8% em relação a dezembro, o volume de serviços também recuou, 0,3%.
Congresso
Por enquanto, o grande fiador da reforma da Previdência é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que cobra mais engajamento do próprio presidente da República nas articulações e um maior compromisso da base governista com a sua aprovação: “Não temos 320 deputados que foram eleitos com a agenda da reforma da Previdência. Temos de mostrar aos 320 a importância da reforma. Nós, que defendemos a urgência e a decisiva reforma da Previdência, precisamos mostrar a 250, 280 deputados que não foram eleitos com essa agenda, que, para que o Brasil volte a investir, a gente precisa da reforma da Previdência”, disse ontem.
No sábado, Maia foi anfitrião de uma reunião de Bolsonaro com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, na qual se articulou uma espécie de pacto entre os poderes para aprovar a reforma. Mas, isso depende da capacidade de articulação política do governo. O compromisso de Maia é aprovar a reforma no primeiro semestre, porém a profundidade das mudanças dependerá das negociações. Uma peça-chave para construção de um acordo robusto é o ministro da Economia, Paulo Guedes, que pretende obter uma economia de R$ 1 trilhão no decorrer de 10 anos.
Para Maia, algumas discussões protagonizadas pelo governo atrapalham mais do que ajudam, como as mudanças de regras do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a colocação em pauta da desvinculação das receitas orçamentárias. Segundo o presidente da Câmara, se o BPC não tiver nenhum impacto fiscal relevante, o ideal é que não se trate a questão. Maia também receia que a discussão sobre a desvinculação possa criar problemas com as bancadas da saúde e da educação.
O presidente da Câmara também defendeu que os militares colaborem com a reforma: “Os militares sabem fazer conta. Ou eles ajudam, como têm ajudado a fazer a reforma também das Forças Armadas, ou eles vão ficar também sem receber salário”. A exclusão das Forças Armadas do projeto de reforma criou problemas na Câmara, porque os políticos condicionam a discussão à inclusão dos militares, que têm um regime diferenciado. O governo pretende mandar a proposta ainda nesta semana. A ideia básica é aumentar o tempo de serviço.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-devagar-quase-parando/
Míriam Leitão: Muito barulho para pouco fato
Como o governo acaba de chegar, é saudável que apresente suas soluções. O risco é atropelar a si mesmo com o excesso de anúncio de ideias
Na economia, o governo é de muito barulho e pouco fato. Ele mal começou, é verdade, mas já produziu um volume de anúncios impressionante. De concreto, tem uma reforma da Previdência que ainda não deu um passo no Congresso e na sexta-feira houve um bem-sucedido leilão que vendeu 12 aeroportos. O detalhe é que os modelos do leilão e da concessão foram preparados pelo governo Temer. O mérito do atual foi realizar o planejado.
Há muita coisa para mudar na economia de um país que não consegue retomar o crescimento, tem um rombo fiscal persistente e 12 milhões de desempregados. Como o governo acaba de chegar, é saudável que apresente suas soluções. O risco é atropelar a si mesmo nessa mistura de anúncios de medidas futuras.
Apesar de ter dito que a chamada PEC do Pacto Federativo esperaria pela aprovação da reforma da Previdência, o ministro Paulo Guedes continua falando dela como se o projeto fosse iminente. A reforma orçamentária é extremamente importante. Há dificuldades concretas na vida dos administradores públicos com o excesso de rigidez no uso dos recursos.
A questão é que mesmo Hércules fez uma tarefa por vez. Essa é de espantosa complexidade e mesmo se for aprovada um dia não eliminará os gastos incontornáveis. Além disso, pode provocar uma dispersão da base de apoio ao governo, base aliás que nem foi ainda consolidada pela incapacidade da articulação política. A boa notícia da sexta-feira foi o fato de que 12 aeroportos passaram para as mãos de operadores privados e com o pagamento de um grande ágio. Mais importante do que os R$ 2,3 bilhões que o governo vai arrecadar, são os investimentos futuros na melhoria da logística aeroviária do país.
O sucesso do leilão foi muito bem recebido pelos empresários. Para o diretor-superintendente do grupo Astra, Manoel Flores, que fabrica revestimentos e materiais de construção, a notícia confirma a avaliação de que o pior da crise econômica ficou para trás. Ele fala olhando para os próprios números. Acaba de participar de uma feira no setor que teve uma alta no volume de negócios fechados e tem projeção na sua empresa de faturamento 10% maior, com um aumento de 5% no número de funcionários.
No mercado financeiro também o leilão foi lido como um sinal positivo, principalmente pela presença do capital estrangeiro. Ilan Arbetman, analista da Ativa Investimentos, disse que o resultado foi muito melhor do que o esperado, e que a presença de operadores internacionais disputando os aeroportos brasileiros prova que, de fato, os investidores estão acreditando no Brasil.
É possível ouvir palavras de ânimo tanto na economia real quanto na área financeira, mas a conversa termina sempre com o mesmo alerta: é preciso aprovar a reforma da Previdência para que se confirme o cenário de melhora nas contas públicas brasileiras. Portanto, é nesse ponto que tem que estar o foco da área econômica.
O grande desafio para a reforma neste momento será o envio nos próximos dias do projeto que muda as pensões e aposentadorias dos militares. Ele virá com mudanças na carreira que elevarão ganhos, manterão vantagens como paridade e integralidade, e pode ter inclusive a garantia de aumento anual dos soldos. Ficará difícil explicar isso num contexto de escassez.
O Ministério da Economia falou em esfaquear o Sistema S, e a ameaça contundente acabou contornada. Falou em fazer uma abertura da economia para tirar os empresários das suas trincheiras da Primeira Guerra e já elevou tarifas de importação. Prometeu dar aos estados a maior fatia do dinheiro do grande leilão das áreas excedentes do pré-sal, mas ainda não conseguiu concluir as negociações da Petrobras com a União, que, a propósito, estavam bem adiantadas no governo anterior.
Na sexta-feira, o ministro Paulo Guedes prometeu digitalizar o governo, reduzindo à metade o número de funcionários públicos através da não realização de concursos para substituir os que se aposentarem.
Há boas ideias nas propostas feitas pelo ministro, mas nada do que ele anuncia é tão fácil quanto ele diz. O mais difícil, contudo, é fazer tudo ao mesmo tempo. A ordem de prioridades precisa ficar mais bem definida para elevar a confiança na economia, permitindo o aumento da atividade, ainda excessivamente fraca.
Elena Landau: Obsessões
Há esperança de que depois da reforma da Previdência, um novo governo começará
Difícil a tarefa de escrever uma coluna quinzenal neste momento. Todo dia uma novidade, nem sempre, ou quase nunca, positiva. O ativismo deste governo nas redes, não só do presidente, mas de seu entorno, família e gurus, é excessivo e desconcertante. Como se houvesse um obscuro desejo de autossabotagem.
Mesmo não tendo votado em Bolsonaro, entendo que é hora de deixar a campanha de lado e ter alguma boa vontade com o novo governo. Para isso, ajudaria se o presidente também entendesse que as eleições acabaram. Nada indica. Continua jogando para a mesma plateia já convertida. E os antigos cabos eleitorais que, hoje assustados com esse início de mandato, passaram a criticar o governo e agora são vistos como representantes da esquerda, cujo único objetivo é a desestabilização do governo. Narciso acha feio o que não é espelho.
Nem o mais ferrenho opositor de Bolsonaro poderia imaginar a quantidade de despautérios a serem declarados em tão pouco tempo. É para deixar qualquer um horrorizado.
Normal que o presidente procure cumprir suas promessas de campanhas, mas não deve fazer isso em detrimento dos interesses do País. O trio Araújo, Vélez e Damares reforça o clima de pessimismo. A postura dos três revela um retrocesso cultural e institucional assustador.
Há um fio condutor nas entrevistas desse grupo e nas postagens da família Bolsonaro: a repulsa ao sexo. Seja o horror ao carnaval, revelado no vídeo veiculado pelo presidente, a suposta erotização nas escolas ou a obsessão com masturbação infantil, tudo serve para tornar o sexo feio, sujo e proibido. Mais um pouco são capazes de adotar a cura gay como orientação nas escolas.
O presidente chegou a recomendar aos pais que rasguem a cartilha de vacinação de adolescentes porque contém uma – fundamental – orientação sobre sexo seguro. Pelo jeito os conservadores preferem ver seus filhos correndo riscos à saúde.
Há quem já duvide que Bolsonaro termine seu mandato se continuar nesse ritmo. Acho um exagero. Afinal, segundo o próprio presidente, só há democracia se os militares quiserem. E eles parecem querer. Enquanto o general Heleno passa panos quentes nos arroubos da família, o general Mourão, o mesmo que pregava a intervenção militar no governo Dilma, se tornou a voz da lucidez.
Tento jogar minhas esperanças na pauta econômica, ainda assim com muita cautela.
Para tentar virar o clima de descrença, o presidente resolveu dar apoio explícito à reforma da Previdência nas suas redes sociais, mas que não têm, infelizmente, a mesma repercussão que seus comentários mais genuínos e pessoais.
Na mesma linha, o ministro de Economia concedeu entrevista a este jornal. Como Pelé, ele afirmou “o presidente ganhou a eleição dizendo Brasil acima de tudo, Deus acima de todos e o Paulo Guedes dizendo que vai privatizar”. Mas na realidade, o presidente é quem dá as cartas. Nada de venda de controle de empresas, optando-se pelo desinvestimento através de venda de subsidiárias. Bem diferente e bem mais tímido que o programa de privatização dos anos 90.
A agenda liberal não encontra eco no coração de Bolsonaro. A abertura comercial está sem pai, nem mãe. Parece ter esbarrado na proteção aos produtores de leite e na proibição da importação de bananas. Nosso chanceler está mais preocupado em difundir valores morais e desprezar as relações comerciais com Brics e União Europeia. Afinal, obscurantismo combina com isolacionismo.
Guedes continua obcecado com a social democracia, ao ponto de cunhar o termo “desalckmizar”, esquecendo que até Itamar foi mais liberal do que Bolsonaro jamais será. Além disso, ficou claro que muitas promessas feitas na entrevista são pura ilusão, como a queda de 50% nas tarifas de energia. Da liberal democracia ao populismo liberal.
O impacto da entrevista durou pouco. Bolsonaro voltou às redes para atacar jornalista com fake news. Seu guru, sem cargo algum e sem mandato, conseguiu gerar uma crise no Ministério de Educação, pasta onde se discute tudo menos educação. Já caíram sete membros da equipe e mais um pouco cai o próprio Vélez, o que não seria de todo ruim. Mas esperemos o barítono.
Há uma esperança no ar de que depois da reforma da Previdência, tudo será diferente e um novo governo começará. Oxalá, porque o País precisa muito mais que a mudança na seguridade.
*É economista e advogada
Zeina Latif: Menos Brasília?
A posição dos Estados é bastante vulnerável, em parte por decisões equivocadas
As políticas públicas da União, Estados e municípios não são independentes entre si; umas impactam as outras. Sem a devida coordenação, geram desperdícios, ineficiências e perda de bem-estar da sociedade. A ação dos entes da federação necessita de regras que definam a divisão de poder, direitos e obrigações, visando o bem comum. É disso que trata o chamado pacto federativo.
O debate sobre a revisão do pacto federativo é antigo, e gira em torno, sobretudo, de questões fiscais.
A Constituição de 1988 promoveu significativa descentralização da arrecadação federal em favor de Estados e municípios, via transferência de recursos, mas sem redistribuir simultaneamente a responsabilidade sobre os serviços públicos. Com despesas e obrigações crescentes geradas pela Carta, a União reagiu com o aumento da carga tributária. Além disso, ao longo dos anos, promoveu-se o aumento das obrigações estaduais e municipais em gastos sociais, apertando o orçamento destes entes.
Outro sério problema foi que as regras de repasses estimularam a criação de municípios via emancipação de distritos. O resultado foi uma pior alocação de recursos públicos. Atualmente, a principal fonte de recursos de 60% das prefeituras é o Fundo de Participação dos Municípios, segundo a Confederação Nacional dos Municípios.
A posição dos Estados é bastante vulnerável, em parte por decisões equivocadas, em parte por fatores estruturais. O ICMS tornou-se um imposto obsoleto, como ensina José Roberto Afonso. Sua capacidade de arrecadação é decrescente devido às mudanças no setor produtivo, como o maior peso do setor de serviços. Um sério agravante é a chamada guerra fiscal entre os Estados – redução do ICMS para atrair investimentos produtivos. A arrecadação cai há décadas. Uma reforma tributária mudando o regime do ICMS (cobrar no destino sobre o valor agregado) é urgente e essencial na discussão do pacto federativo. Como está hoje, todos perdem.
Esse quadro se agravou na gestão Dilma. O governo federal, equivocadamente, promoveu renúncias tributárias em impostos compartilhados, para estimular a economia. Além disso, estimulou a leniências fiscal dos entes ao autorizar o aumento do endividamento com aval da União e reduzir exigências para receber os repasses. Ainda que deletérios, esses fatores não são a real razão da crise dos Estados, que decorre de decisões equivocadas na contratação de servidores e aumentos de salários acima dos ajustes no setor privado. O maior endividamento não resultou em aumento de investimentos, mas sim em gastos com a folha.
Em grave crise, a maioria dos governos estaduais pressionam por ajuda do Tesouro Nacional.
Não há espaço para transferir mais recursos tributários aos entes, por conta do rombo fiscal da União. Tampouco seria uma decisão sábia até que reformas estruturais mudem a dinâmica dos gastos nos Estados e municípios. Seria água no ralo.
O governo acena com outro tipo de ajuda: garantias da União para novos empréstimos aos Estados, mesmo sem contarem com nota de crédito suficiente para ter direito ao aval. Não parece medida adequada antes de ações concretas para cortes de despesas e aprovação da reforma da Previdência.
Além disso, propõe-se reduzir a rigidez orçamentária eliminando regras constitucionais que regem o orçamento, o que impactaria basicamente gastos com saúde e educação. O debate é necessário, mas o impacto da medida é limitado, não vai salvar ninguém, pois o grande peso no orçamento é a folha de ativos e inativos. O tema é polêmico e será difícil o Congresso aprovar sem um amplo debate.
Acredito que um outro debate deveria ser o de inserir meritocracia nos repasses aos entes. Estados e municípios que fazem boa gestão e têm bons resultados em termos de qualidade do serviço público deveriam ser premiados.
Rever o pacto federativo não é sinônimo de socorrer Estados. Se o lema é “menos Brasília e mais Brasil”, os Estados precisam fazer sua parte, adotando medidas para elevar a arrecadação e conter despesas. Sem isso, vamos continuar a assistir as visitas periódicas dos entes subnacionais à Brasília pedindo ajuda.
*Economista-chefe da XP Investimentos
Míriam Leitão: Os limites da desvinculação
Discutir a desvinculação do Orçamento do governo é crucial, mas a promessa do ministro Paulo Guedes de liberar R$ 1,5 trilhão é inviável
O projeto de desengessar o Orçamento é crucial para a União, estados e municípios. O país está ficando ingovernável pelo volume de destinação obrigatória. Mas prometer que os políticos terão controle sobre R$ 1,5 trilhão, como fez o ministro Paulo Guedes, é vender uma ilusão. Há despesas que permanecerão sendo obrigatórias, mesmo se for aprovado o fim das vinculações. Desse total do Orçamento, R$ 637 bilhões são pagamentos ao INSS e R$ 350 bilhões são despesas de pessoal. Além disso, há R$ 60 bilhões de Benefício de Prestação Continuada, e mais R$ 44 bilhões de custeio da máquina pública, que já sofreu muitos cortes nos últimos três anos de crise. Não será trivial mexer nessas despesas.
É preciso entender a importância da tarefa, mas não se vender terreno na lua. Primeiro: é fundamental enfrentar o problema do excesso de rigidez orçamentária. Vários economistas de candidaturas de pontos opostos do campo político defenderam isso nas últimas eleições. Segundo: não é verdade que os políticos poderão decidir sobre R$ 1,5 trilhão porque mesmo desvinculando eles não poderão, por exemplo, decidir não pagar aposentadorias e salários, entre outras diversas despesas.
O projeto, se for bem-sucedido, evitará que o Brasil bata contra um muro. E o país está indo velozmente na direção desse muro. No Orçamento de 2019, 90,4% são despesas obrigatórias. E vem crescendo ano a ano, reduzindo o espaço do executivo e do legislativo. Já há estados em que a soma dos gastos obrigatórios é maior do que a receita. Há muitas perguntas que precisam de respostas: em quais despesas é possível mexer? Como ampliar o espaço de decisão para os representantes eleitos? A desvinculação reduzirá as receitas destinadas para as áreas essenciais como saúde e educação?
Paulo Guedes não está sozinho. Outros economistas vêm alertando para isso há muito tempo. A diferença é que ele diz que vai propor, e agora, em abril. Em tese, o ministro está correto. Mas não pode parecer que num passe de mágica, com uma PEC de nome bonito, PEC do pacto federativo, tudo se resolverá. “Os deputados vão entender que, em vez de discutir R$ 1,5 milhão ou R$ 5 milhões de emendas, vão discutir R$ 1,5 trilhão do Orçamento da União, mais os orçamentos dos municípios e dos Estados”, disse ele na entrevista ao jornal “Estado de S. Paulo”.
Os parlamentos foram criados exatamente para que representantes do povo pudessem decidir sobre a destinação dos recursos públicos. Na escassez, cada setor quis garantir a sua parcela. Mas quando a soma das parcelas fica maior que o todo, o caminho é aumentar o endividamento ou elevar os impostos. Municípios e estados estão mal, e isso parece música para os ouvidos, mas eles também sabem que terão que continuar cumprindo inúmeras obrigatoriedades de destinação, mesmo se a PEC foi aprovada.
Embutido nesse projeto há um novo programa de ajuda aos estados, o Plano de Equilíbrio Financeiro (PEF), que será enviado via Projeto de Lei. O Regime de Recuperação Fiscal tinha exigências para a entrada que tornavam muito difícil a execução. O novo fará também exigências de contrapartidas, mas pode ajudar mais estados. É o que Guedes chamou de “balão de oxigênio” na sua entrevista de domingo.
Inicialmente, o ministro se referiu a esse projeto para desamarrar, desindexar e desvincular o Orçamento como o Plano B. “O bonito é que se der errado pode dar certo. Se der errado a aprovação da reforma da Previdência, é bastante provável que a classe política dê um passo à frente e assuma o comando do Orçamento”, disse em janeiro.
Foram dois erros numa declaração só. A reforma da Previdência precisa dar certo e esse projeto não pode ser a compensação caso a reforma não seja aprovada. São igualmente importantes para construir um novo marco fiscal do país. A PEC que proporá a mudança no Orçamento precisará de muita negociação, porque será natural que as bancadas de defesa da educação e da saúde, entre outras, briguem contra a mudança. Pela reação que provocará, pelo tempo de convencimento que exigirá, o risco é desviar o foco da reforma da Previdência, que é a tarefa da vez. Nada aconteceu desde que o projeto da Previdência de Bolsonaro chegou ao Congresso. Hoje se instala a CCJ. Será muito difícil para o governo travar duas batalhas econômicas ao mesmo tempo.
Monica De Bolle: Moeda moderna?
Vale refletir mais antes de se aventurar pelo terreno pantanoso da monetização do déficit público
No meio acadêmico aflora um debate interessante sobre a natureza da moeda, o escopo das políticas macroeconômicas, e a capacidade de os governos se endividarem com poucas consequências concretas. O debate sobre a natureza da moeda já está conosco há algum tempo, desde que se percebeu que a política de juros muito baixos que ainda prevalece passados mais de 10 anos da crise financeira global não gerou pressões inflacionárias como se imaginava. Já o debate sobre as consequências da dívida pública voltou à tona após a publicação de artigo de Olivier Blanchard, que, como eu, trabalha no Peterson Institute for International Economics. O autor argumentou recentemente que os governos – alguns governos, não todos – podem ter uma capacidade de endividamento maior do que imaginávamos sem que isso cause problemas indesejáveis, como uma crise fiscal.
Aqui nos EUA, há quem esteja tentando usar o argumento de Blanchard para justificar o que hoje se conhece pelo nome de Modern Monetary Theory, ou MMT. Simplificando a teoria ao seu núcleo básico, ela afirma que governos capazes de emitir a sua própria moeda não podem falir. Portanto, a única restrição que impediria governos de elevar gastos para expandir a demanda doméstica e o crescimento é a inflação. Para um país que conviveu com mais de duas décadas de inflações altas e hiperinflação, o conceito é para lá de estranho. Já para o caso atual dos EUA, em que os juros permanecem baixos e foram nulos durante boa parte do período pós-crise sem que disso resultasse qualquer pressão inflacionária, há razões para talvez repensar como funciona a política monetária. Dito isso, a MMT não parece o melhor caminho por alguns pecados originais contidos na própria teoria.
Mas, antes, devo dizer o que ela tem de bom ou correto. A MMT afirma que a política monetária é indissociável da política fiscal em economias que emitem moedas fiduciárias. Isso porque a moeda fiduciária é uma nota promissória emitida pelo governo: quando o governo imprime uma nota de 1 real, a nota em si nada vale, isto é, não tem valor intrínseco como teria uma moeda de ouro. A nota de 1 real emitida pelo governo sinaliza que o governo se compromete a redimir o detentor da nota a totalidade desse valor nominal. O detentor aceitará a nota desde que tenha a confiança de que o governo lhe pagará integralmente – de forma indireta – o valor prometido. Estabelecida essa relação de confiança entre o governo e os demais participantes da economia, a moeda pode então ser usada como unidade de conta – a unidade em que preços e salários são cotados – assim como meio de troca. Como o lastro da moeda é a crença na capacidade de pagamento do governo, a política monetária e a política fiscal são gêmeas siamesas.
A palavra-chave acima é “crença”. A partir dessa palavra-chave é que a MMT começa a embaralhar as próprias pernas. Reza a MMT que se o governo emite sua própria moeda, ele pode sustentar déficits e dívidas sem qualquer restrição. O corolário disso é que o governo pode, sem prejuízo algum para si, financiar-se por meio da emissão de sua própria moeda. Mas, e se os detentores da moeda, ao observar déficits e dívidas crescentes, deixarem de acreditar na capacidade do governo de redimir o valor nominal daquilo que emite? E se as expectativas de inflação ante elevações do déficit e da dívida passarem a subir? Nesse caso, as expectativas desancoradas são justamente o reflexo de que as pessoas já não acreditam que a nota promissória do governo vale, descontada a inflação, a quantia que elas estariam satisfeitas em receber. Quando a crença se esvai, surge a restrição aos déficits crescentes que a MMT alega não existir. É por essa razão que o manejo prudente do déficit fiscal é visto como condição necessária, mas nem sempre suficiente, para respaldar a moeda e evitar quadros de alta inflação ou de hiperinflação como os que já tivemos no Brasil e em outros países da América Latina.
É compreensível que depois de a crise de 2008 expor as falhas da macroeconomia convencional muitos estejam empenhados em consertar as teorias e reaver conceitos. Nessa empreitada, fatalmente haverão de surgir boas e más ideias. A MMT é uma dessas modernidades que parte das premissas corretas para alcançar conclusões perigosas. Vale refletir mais antes de se aventurar pelo terreno pantanoso da monetização do déficit público.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
André Lara Resende: Os riscos do fiscalismo dogmático
Como explicar que o Brasil seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?
Uma modernização do sistema passaria pela criação de uma moeda digital do BC, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado
A crise da macroeconomia
A teoria macroeconômica está em crise. A realidade, sobretudo a partir da crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos, mostrou-se flagrantemente incompatível com a teoria convencionalmente aceita. O arcabouço conceitual que sustenta as políticas macroeconômicas está prestes a ruir. O questionamento da ortodoxia começou com alguns focos de inconformismo na academia. Só depois de muita resistência e controvérsia, extravasou os limites das escolas. Embora ainda não tenha chegado ao Brasil, sempre a reboque, nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, já está na política e na mídia.
A nova macroeconomia que começa a ser delineada é capaz de explicar fenômenos incompatíveis com o antigo paradigma. É o caso, por exemplo, da renitente inflação abaixo das metas nas economias avançadas, mesmo depois de um inusitado aumento da base monetária. Permite compreender como é possível que a economia japonesa carregue uma dívida pública acima de 200% do PIB, com juros próximos de zero, sem qualquer dificuldade para o seu refinanciamento. Ajuda a explicar o rápido crescimento da economia chinesa, liderado por um extraordinário nível de investimento público e com alto endividamento. Em relação à economia brasileira, dá uma resposta à pergunta que, há mais de duas décadas, causa perplexidade: como explicar que o país seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?
Em artigo recente, "Consenso e Contrassenso: Dívida, Déficit e Previdência", que circula como texto para discussão do Iepe/Casa das Garças, procuro ligar alguns pontos que podem vir a consolidar um novo paradigma macroeconômico. Como foi escrito com o objetivo de embasar a argumentação na literatura econômica, pode exigir do leitor conhecimentos específicos e ser mais técnico do que seria desejável. Por isso volto ao tema, de forma menos técnica, para dar ideia desse novo arcabouço macroeconômico e de suas implicações para a realidade brasileira. As conclusões são surpreendentes, muitas vezes contraintuitivas, irão provocar controvérsia e correm risco de ser politicamente mal interpretadas.
Não tenho a intenção, nem seria possível, responder às inúmeras dúvidas e perguntas que irão, inevitavelmente, assolar o leitor. Ao fazer um resumo esquemático das teses que compõem as bases de um novo paradigma macroeconômico, pretendo apenas estimular o leitor a refletir e a procurar se informar sobre a verdadeira revolução que está em curso na macroeconomia. É da mais alta relevância para compreender as razões da estagnação da economia brasileira. Na literatura econômica fala-se numa armadilha da renda média, constituída por forças que impediriam, uma vez superado o subdesenvolvimento, que se chegue finalmente ao Primeiro Mundo. Há razões para crer que não se trata de uma armadilha objetiva, mas sim conceitual.
Pilares de um novo paradigma
O primeiro pilar do novo paradigma macroeconômico, a sua pedra angular, é a compreensão de que moeda fiduciária contemporânea é essencialmente uma unidade de conta. Assim como o litro é uma unidade de volume, a moeda é uma unidade de valor. O valor total da moeda na economia é o placar da riqueza nacional. Como todo placar, a moeda acompanha a evolução da atividade econômica e da riqueza. No jargão da economia, diz-se que a moeda é endógena, criada e destruída à medida que a atividade econômica e a riqueza financeira se expandem ou se contraem. A moeda é essencialmente uma unidade de referência para a contabilização de ativos e passivos. Sua expansão ou contração é consequência, e não causa, do nível da atividade econômica. Esta é a tese que defendo no meu livro "Juros, Moeda e Ortodoxia", de 2017.
Moeda e impostos são indissociáveis. A moeda é um título de dívida do Estado que serve para cancelar dívidas tributárias. Como todos os agentes na economia têm ativos e passivos com o Estado, a moeda se transforma na unidade de contabilização de todos os demais ativos e passivos na economia. A aceitação da moeda decorre do fato de que ela pode ser usada para quitar impostos.
O segundo pilar é um corolário do primeiro: dado que a moeda é uma unidade de conta, um índice oficial de ativos e passivos, o governo que a emite não tem restrição financeira. O Estado nacional que controla a sua moeda não tem necessidade de levantar fundos para se financiar, pois ao efetuar pagamentos, automática e obrigatoriamente, cria moeda, assim como ao receber pagamentos, também de maneira automática e obrigatória, destrói moeda. Como não precisa respeitar uma restrição financeira, a única razão macroeconômica para o governo cobrar impostos é reduzir a despesa do setor privado e abrir espaço para os seus gastos, sem pressionar a capacidade de oferta da economia. O governo não tem restrição financeira, mas é obrigado a respeitar a restrição da realidade, sob pena de pressionar a capacidade instalada, provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias.
O terceiro pilar é a constatação de que o Banco Central fixa a taxa de juros básica da economia, que determina o custo da dívida pública. Desde os anos 1990, sabe-se que os bancos centrais não controlam a quantidade de moeda, nenhum dos chamados "agregados monetários", mas sim a taxa de juros. O principal instrumento de que dispõe o Banco Central para o controle da demanda agregada é a taxa básica de juros.
O quarto pilar é a constatação de que uma taxa de juros da dívida inferior à taxa de crescimento da economia tem duas implicações importantes. A primeira é que a relação dívida/PIB irá decrescer a partir do momento em que o déficit primário - aquele que exclui os juros da dívida - for eliminado, sem necessidade de qualquer aumento da carga tributária. Portanto, se a taxa de juros, controlada pelo Banco Central, for fixada sempre abaixo da taxa de crescimento, a dívida pública irá decrescer, sem custo fiscal, a partir do momento em que o déficit primário for eliminado. Este é um resultado trivial e mais robusto do que parece, pois independe do nível atingido pela relação dívida/PIB, da magnitude dos déficits e da extensão do período em que há déficits. A segunda implicação, tecnicamente mais sofisticada, é que será possível aumentar o bem-estar de todos em relação ao equilíbrio competitivo através do endividamento público. Em termos técnicos, diz-se que o equilíbrio competitivo não é eficiente no sentido de Pareto.
Sobre esses quatro pilares, acrescenta-se o que foi aprendido sobre a inflação nas últimas três décadas. Ao contrário do que se acreditou por muito tempo, a moeda não provoca inflação. Inflação é essencialmente questão de expectativas, porque expectativas de inflação provocam inflação. As expectativas se formam das maneiras mais diversas, dependem das circunstâncias, e os economistas não têm ideias precisas sobre como são formadas. A pressão excessiva da demanda agregada sobre a capacidade instalada cria expectativas de inflação, mas não é condição necessária para a existência de expectativas inflacionárias. Alguns preços, como salários, câmbio e taxas de juros, funcionam como sinalizadores para a formação das expectativas. Se o banco central tiver credibilidade, as metas anunciadas para a inflação também serão um sinalizador importante. Uma vez ancoradas, as expectativas são muito estáveis. A inflação tende a ficar onde sempre esteve. Por isso é tão difícil, como sempre se soube, reduzir uma inflação que está acima da desejada. Depois da grande crise financeira de 2008, ficou claro que é igualmente difícil elevar uma inflação abaixo da desejada.
Novas ideias, antigas raízes
Embora grande parte das teses do novo paradigma contradigam o consenso econômico-financeiro, elas não são novas. Têm raízes em ideias esquecidas, submersas pela força das ideias estabelecidas e insistentemente repetidas. A tese de que a moeda é essencialmente uma unidade de conta, cuja aceitação deriva da possibilidade de usá-la para pagar impostos, é de 1905. Foi originalmente formulada pelo economista alemão Georg F. Knapp, no livro "The State Theory of Money". Ficou conhecida como "cartalismo" e foi retomada recentemente pelos proponentes da chamada moderna teoria monetária, MMT em inglês.
Já a tese de que o governo que emite a sua própria moeda não tem restrição financeira, portanto não precisa equilibrar receitas e despesas, é de 1943. Seu autor, Abba Lerner, foi um economista que, como Clarice Lispector, nasceu na Bessarábia, estudou na Inglaterra e deu contribuições de grande relevância para os mais diversos campos da teoria econômica. No ensaio "Functional Finance and the Federal Debt", Lerner enuncia os princípios que devem guiar o governo no desenho da política fiscal. Segundo ele, os déficits fiscais podem e devem sempre ser usados para garantir o pleno emprego e estimular o crescimento.
A primeira prescrição de Lerner, a sua "primeira lei da finanças funcionais", é macroeconômica: o governo deve sempre usar a política fiscal para manter a economia no pleno emprego e estimular o crescimento. A única preocupação em relação à aplicação dessa prescrição deve ser com os limites da capacidade de oferta da economia, que não podem ser ultrapassados, sob pena de provocar desequilíbrios internos e externos e criar pressões inflacionárias. A segunda prescrição, ou a segunda "lei das finanças funcionais", é microeconômica: os impostos e os gastos do governo devem ser avaliados segundo uma análise objetiva de custos e benefícios, nunca sob o prisma financeiro.
Todo banqueiro central com alguma experiência prática na condução da política monetária sabe que o banco central controla efetivamente a taxa de juros básica da economia. Os mais atualizados sabem ainda que, desde que não haja pressão sobre a capacidade de oferta, é possível criar qualquer quantidade de moeda remunerada sem provocar inflação. Trata-se de um poder tão extraordinário, que convém a todos, para evitar pressões políticas espúrias, continuar a sustentar a ficção de que o banco central deve controlar, e que efetivamente controla, a quantidade de moeda.
Já o fato de que o governo - que emite a sua própria moeda - não está submetido a qualquer restrição financeira, é bem menos compreendido. Talvez porque seja profundamente contraintuitivo, dado que todo e qualquer outro agente, as empresas, as famílias, os governos estaduais e municipais, estão obrigados a respeitar o equilíbrio entre receitas e despesas, sob pena de se tornar inadimplentes.
Quando se compreende a proposição que a moeda é um índice da riqueza na economia, que sua expansão não provoca inflação e o seu corolário, que governo que a emite não tem restrição financeira, há uma mudança de Gestalt.
A compreensão da lógica da especificidade dos governos que emitem sua moeda provoca uma sensação de epifania, que subverte todo o raciocínio macroeconômico convencional. Toda mudança de percepção que desconstrói princípios estabelecidos é inicialmente perturbadora, mas uma vez incorporada, abre as portas para o avanço do conhecimento. Como observou o Prêmio Nobel de Física, gênio inconteste, Richard Feynman, num artigo de 1955, "O Valor da Ciência", o conhecimento pode tanto ser a chave do paraíso, como a dos portões do inferno. É fundamental que essa mudança de percepção seja corretamente interpretada para a formulação de políticas. Assim como Ivan Karamazov concluiu que se Deus não existe, tudo é permitido, de forma menos angustiada e mais afoita, não faltarão políticos para concluir que se o governo não tem restrição financeira, tudo é permitido.
Do ponto de vista macroeconômico, se o governo gastar mais do que retira da economia via impostos, estará aumentando a demanda agregada. Quando a economia estiver perto do pleno emprego, corre o risco de causar desequilíbrios e provocar pressões inflacionárias. Do ponto de vista microeconômico, a política fiscal tem impactos alocativos e redistributivos importantes. Embora o governo não esteja sempre obrigado a equilibrar receitas e despesas, a composição de suas despesas e de suas receitas, a forma como o governo conduz a política fiscal, é da mais alta importância para o bom funcionamento da economia e o bem-estar da sociedade. A preocupação dos formuladores de políticas públicas não deve ser o de viabilizar o financiamento dos gastos, mas sim a qualidade, tanto das despesas como das receitas do governo. A decisão de como tributar e gastar não deve levar em consideração o equilíbrio entre receitas e despesas, mas sim o objetivo de aumentar a produtividade e equidade. Por isso, é fundamental não confundir a inexistência de restrição financeira com a supressão da noção de custo de oportunidade. O governo continua obrigado a avaliar custos e benefícios microeconômicos de seus gastos. Um governo que equilibra o seu orçamento, mas gasta mal e tributa muito, é incomparavelmente mais prejudicial do que um governo deficitário, mas que gasta bem e tributa de forma eficiente e equânime, sobretudo quando a economia está aquém do pleno emprego.
É possível argumentar que seria melhor não desmontar a ficção de que os gastos públicos são financiados pelos impostos, pelo "o seu, o meu, o nosso dinheiro", para criar uma resistência da sociedade às pressões espúrias por gastos públicos. Afinal, pressões políticas, populistas e demagógicas, por mais gastos nunca hão de faltar. O problema é que quando se adota um raciocínio torto, ainda que com a melhor das intenções, chega-se a conclusões necessariamente equivocadas.
Uma armadilha brasileira
Desde o início dos anos 1990, a taxa real de juros foi sempre muito superior à taxa de crescimento da economia. Só entre 2007 e 2014 a taxa real de juros ficou apenas ligeiramente acima da taxa de crescimento. A partir de 2015, quando a economia entrou na mais grave recessão de sua história, com queda acumulada em três anos de quase 10% da renda per capita, a taxa real de juros voltou a ser muito mais alta do que a taxa de crescimento. A economia cresceu apenas 1,1% ao ano em 2017 e 2018. Hoje, com a renda per capita ainda 5% abaixo do nível de 2014, com o desemprego acima de 12% e grande capacidade ociosa, a taxa real de juros ainda é mais do dobro da taxa de crescimento. Como não poderia deixar de ser, a relação dívida/PIB tem crescido e se aproxima de níveis considerados insustentáveis pelo consenso macro-financeiro.
O diagnóstico não depende do arcabouço macroeconômico adotado, é claro e irrefutável: as contas públicas estão em desequilíbrio crescente e a relação dívida/PIB vai continuar a crescer e superar os 100% em poucos anos. Já o desenho das políticas a serem adotadas para sair da situação em que nos encontramos é completamente diferente caso se adote a visão macroeconômica convencional ou um novo paradigma. O velho consenso exige o corte a despesas, a venda de ativos estatais, a reforma da Previdência e o aumento dos impostos, para reverter o déficit público e estabilizar a relação dívida/PIB. É o roteiro do governo Bolsonaro sob a liderança do ministro Paulo Guedes. A partir de um novo paradigma, compreende-se que o equívoco vem de longe.
A inflação brasileira tem origem na pressão excessiva sobre a capacidade instalada, durante as três décadas de 1950 a 1980 de esforço desenvolvimentista. Foi agravada pelo choque do petróleo na primeira metade da década de 1970, quando adquiriu uma dinâmica própria, alimentada pela indexação e pelas expectativas desancoradas. Altas taxas de inflação crônica têm uma forte inércia, não podem ser revertidas apenas através do controle da demanda agregada, com objetivo de provocar desemprego e capacidade ociosa. Para quebrar a inércia é preciso um mecanismo de coordenação das expectativas. No Plano Real, esse mecanismo foi a URV, uma unidade de conta sem existência física, corrigida diariamente pela inflação corrente. A URV foi uma unidade de conta oficial virtual, com poder aquisitivo estável, uma moeda plena na acepção Cartalista, que viabilizou estabilização da inflação brasileira. Quando a URV foi introduzida, a economia não crescia, havia desemprego e capacidade ociosa. A causa da inflação não era mais o gasto público nem o excesso de demanda. Quando se compreende que o governo emissor não tem restrição financeira, fica claro que não havia necessidade de equilibrar as contas públicas para garantir a estabilidade da moeda. A criação do Fundo de Estabilização Social e posteriormente a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, apenas satisfizeram as exigências do consenso macroeconômico e financeiro da época.
Como se acreditava na necessidade de equilíbrio financeiro do governo, para garantir a consolidação da estabilização, a carga tributária foi sistematicamente elevada. Chegou a 36% da renda, comparável às das mais altas entre as economias desenvolvidas. Durante os governos do PT, opção demagógica pelo aumento dos gastos com pessoal e por grandes obras, turbinadas pela corrupção e sem qualquer avaliação de custo e benefícios, combinada com a ortodoxia do Banco Central, aprofundou o desequilíbrio das contas públicas. O quadro foi agravado pela rápida queda do crescimento demográfico e do aumento da expectativa de vida, que tornou a Previdência crescentemente deficitária.
Uma vez feita a transição da URV para o Real, teria sido necessário manter uma âncora coordenadora das expectativas. Retrospectivamente, o correto teria sido adotar um regime de metas inflacionárias, para balizar as expectativas, que só veio a ser adotado no segundo governo FHC. A opção à época foi por dispensar um mecanismo coordenador das expectativas e confiar nas políticas monetária e fiscal contracionistas. Optou-se por combinar uma política de altíssimas taxas de juros com a austeridade fiscal. O resultado foram mais de duas décadas de crescimento desprezível, colapso dos investimentos públicos, uma infraestrutura subdimensionada e anacrônica, Estados e municípios estrangulados, incapazes de prover os serviços básicos de segurança, saneamento, saúde e educação. Mas como não vale a pena chorar sobre o leite derramado, passemos a políticas a serem adotadas para sair da armadilha em que nos encontramos, com base no novo arcabouço conceitual macroeconômico.
Reformas voltadas para o futuro
Comecemos pela questão que ocupa as manchetes, a reforma da Previdência. Sim, é preciso uma reforma da Previdência, não porque ela seja deficitária, mas porque ela é corporativista e injusta e porque o aumento da expectativa de vida exige a revisão da idade mínima. O déficit do sistema previdenciário, como todo déficit público, não precisa ser eliminado se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento. Como estamos com alto desemprego, significativamente abaixo da plena utilização da capacidade instalada e com expectativas de inflação ancoradas, o objetivo primordial das "reformas" deve ser estimular o investimento e a produtividade.
Em paralelo à reforma da Previdência, deve-se fazer uma profunda reforma fiscal segundo os preceitos das finanças funcionais de Abba Lerner. O objetivo da reforma tributária não deve ser maximizar a arrecadação, mas sim o de simplificar, desburocratizar, reduzir o custo de cumprir as obrigações tributárias, para estimular os investimentos e facilitar a inciativa privada. Enquanto não houver pressão excessiva sobre a oferta e sinais de desequilíbrio externo, a carga tributária deve ser significativamente menor.
A taxa básica de juros deveria ser reduzida, acompanhada do anúncio de que, a partir de agora, seria sempre fixada abaixo da taxa nominal de crescimento da renda. Simultaneamente, deveria-se promover a modernização do sistema monetário, substituindo as LFTs e as chamadas Operações Compromissadas, que hoje representam metade da dívida pública, por depósitos remunerados no Banco Central. Adicionalmente, seria dado acesso direto ao público, não apenas aos bancos comerciais, às reservas remuneradas no Banco Central. A modernização do sistema, com redução de custos e grandes ganhos de eficiência no sistema de pagamentos, passaria ainda pela criação de uma moeda digital do Banco Central, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado.
Para garantir a eficiência dos investimentos e o ganho de produtividade, deveria-se promover uma abertura comercial programada para integrar definitivamente a economia brasileira na economia mundial. O prazo de transição para a completa abertura comercial deveria ser pré-anunciado e de no máximo cinco anos.
Por fim, mas não menos importante, seria fundamental criar mecanismos eficientes, idealmente através da contratação de agências privadas independentes, para avaliação de custos e benefícios dos gastos públicos em todas as esferas do setor público. A política fiscal é da mais alta relevância para o bom funcionamento da economia e para o bem-estar da sociedade. Compreender que o governo não tem restrição financeira não implica compactuar com um Estado inchado, ineficiente e patrimonialista, que perde de vista os interesses do país. Ao contrário, redobra a responsabilidade e a exigência de mecanismos de controle e avaliação sobre a qualidade, os custos e os benefícios, dos serviços e dos investimentos públicos.
Estas linhas gerais de políticas, sugeridas pelo novo paradigma macroeconômico, correm o risco de desagradar a gregos e troianos. Não se encaixam, nem no populismo estatista da esquerda, nem no dogmatismo fiscalista da direita. Como observou, de maneira premonitória, Abba Lerner, em seu ensaio de 1943, os princípios das Finanças Funcionais são igualmente aplicáveis numa sociedade comunista, como numa sociedade fascista, como numa sociedade capitalista democrática. A diferença é que se os defensores do capitalismo democrático não os compreenderem e adotarem, não terão chance contra aqueles que vieram a adotá-los. No primeiro ensaio de "Juros, Moeda e Ortodoxia", sustento que, durante o século XX, o liberalismo econômico perdeu a batalha pelos corações e pelas mentes dos brasileiros. Embora a história tenha mostrado que seus defensores, desde Eugênio Gudin, estavam certos sobre os riscos do capitalismo de Estado, do corporativismo, do patrimonialismo e do fechamento da economia à competição, foram derrotados porque adotaram um dogmatismo monetário quantitativista equivocado. Tentaram combater a inflação promovendo um aperto da liquidez. O resultado foi sempre o mesmo: recessão, desemprego e crise bancária. Expulsos do comando da economia pela reação da sociedade, seus defensores recolhiam-se para lamentar a demagogia dos políticos e a irracionalidade da população. Quase sete décadas depois de Gudin, os liberais voltam a comandar a economia. O apego a um fiscalismo dogmático e a um quantitativismo anacrônico pode levá-los, mais uma vez, a voltar para casa mais cedo do que se imagina.
*André Lara Resende é economista