Economia
RPD || Julia Braga: Inflação de commoditites e dólar
País precisa reavaliar estratégias dos setores de energia e alimentos para superar a crise econômica, política e institucional
O aumento do preço das commodities afeta o mundo inteiro, levando a um quadro de inflação global. No Brasil, a inflação é maior que em outros países. Como explicar essa inflação mais alta que a média global?
O preço da energia para a combustão ou energia elétrica disparou esse ano. São causas desse fenômeno: a demanda do mundo digital da era pandêmica por energia elétrica, um conjunto de fatores climáticos, assim como a rápida transição energética na China, com a troca do carvão pelo gás natural para a geração de energia elétrica. A crise hídrica no Brasil, por sua vez, fez requereu o uso mais intensivo de termelétricas, incluindo aquelas movidas a gás natural.
Como uma commodity é custo de outra commodity, o choque energético eleva os custos em toda a cadeia produtiva, incluindo a produção de alimentos. Em 2020, o preço das commodities agrícolas (grãos e carnes) subiu intensamente (28%), devido à política de segurança alimentar na China, que demandou mais grãos e carnes após a gripe suína de 2019. Em 2021, já acumulam alta similar (28% de janeiro a agosto), devido tanto a problemas climáticos (cada vez mais frequentes e intensos), como ao aumento dos custos de produção.
O Brasil é um importador de insumos e bens intermediários até mesmo para a produção de alimentos, com dependência externa de máquinas e fertilizantes. Os preços dos produtos importados e exportados no Brasil, em dólares, têm grande correlação histórica com a dinâmica dos preços das commodities. Ocorre que esses preços, cotados em dólares, foram majorados pela variação cambial.
O câmbio afeta não só os preços dos bens importados, mas também os do que exportamos. Isso porque ao produtor não interessa vender no mercado interno por um preço inferior ao que poderia ganhar exportando. Para bens homogêneos e transacionáveis com o resto do mundo, vale a lei do preço único nos diversos mercados locais. Assim como ocorre com a regra da paridade internacional da Petrobrás, o exportador converte para o real o preço em dólar praticado nos mercados internacionais. Isto é, o Brasil é tomador do preço que vigora internacionalmente.
O Banco Central mede o impacto conjunto da inflação de commodities e da variação cambial com o índice IC-br. De janeiro de 2020 a agosto de 2021 esse índice acumula alta de 71%, mesma magnitude de 2002, quando a inflação saiu da meta. A decomposição indica que praticamente metade dessa variação é devida ao aumento do preço das commodities (34%), e outra metade, à desvalorização cambial (28%). Isso significa que a variação cambial praticamente duplicou o choque de custos advindo dos preços em dólares das commodities. O que surpreende é a autoridade monetária não ter dado a devida atenção a esse índice.
O aumento da taxa de juros tem o efeito de valorizar ou pelo menos frear a desvalorização cambial. Como mostra a história do Regime de Metas de Inflação, o Banco Central acaba conseguindo trazer a inflação para a meta, mesmo ultrapassando o ano calendário. Mas há um elemento adicional que atrapalha o canal de transmissão da política monetária. Keynes chamava de incerteza forte: quando fica difícil atribuir probabilidade a diferentes cenários. O investidor precisa atribuir probabilidades para calcular risco e expectativa de rentabilidade.
O Brasil acumula uma crise de natureza econômica, política e institucional há mais de 5 anos. Mesmo as empresas brasileiras, diante de tanta incerteza, optam por não internalizar a receita das exportações, deixando esse volume de dólares no exterior, sem impacto no mercado de câmbio. Cabe ao Estado dar previsibilidade aos agentes econômicos. Para isso, não basta anunciar uma meta de inflação, que pode ser descumprida sem ônus ao presidente do banco. É preciso ter planejamento econômico.
A crise também mostra a necessidade de reavaliação das estratégias relativas aos setores energético e de alimentos. Uma prioridade deve ser o incentivo à agricultura familiar, que perdeu parcela significativa no orçamento público desde 2015, devido às regras fiscais de contenção de gastos públicos. Também é necessário debater uma regra de repasse da Petrobrás que permita suavizar, ao menos em algum grau, a forte intensidade das oscilações do preço internacional e da variação cambial (uma das mais voláteis do mundo) ao preço na bomba. Uma sugestão é um programa de recompra de ações dos acionistas minoritários, deixando a Petrobrás com mais poder para interferir no preço. Assim, os investidores não seriam prejudicados e, ao mesmo tempo, o Estado ganharia maior controle de sua política energética.
Essas políticas de caráter estrutural acabam facilitando o canal de transmissão da política monetária. Em contrapartida, como tem sido demandado de bancos centrais no mundo todo, o Banco Central do Brasil pode ter papel mais amplo de atuação em diversas áreas, facilitando o financiamento para o cumprimento de metas ambientais e sociais e as estratégias definidas no planejamento econômico.
Julia Braga é professora associada da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e diretora da Associação Keynesiana Brasileira
Pedro S. Malan: Fazendo o diabo II?
O enorme desafio do Banco Central será ainda maior se não houver apoio do lado fiscal
Pedro S. Malan / O Estado de S. Paulo
Esse foi praticamente o título do artigo que publiquei neste espaço em 12 de outubro de 2014, entre o primeiro e o segundo turno das eleições daquele ano. A expressão havia sido usada em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff: “Nós podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. No caso, busca por reeleição, no exercício do cargo. Como é sabido, seu marqueteiro a reelegeu fazendo o diabo a quatro.
O artigo concluía com observação sobre a herança que “(...) a presidente Dilma vem construindo em seus discursos e debates de campanha, em especial nos últimos dois meses, criando para si própria armadilhas adicionais às que construiu com as políticas que implementou ao longo de seus quatro anos. São estas que estão sob o escrutínio agora, quando a presidente pede ao eleitorado mais quatro anos do mesmo, já que não reconhece problemas e, portanto, não vê necessidade de mudanças para enfrentá-los”.
Deu no que deu, uma vitória de Pirro. A conta não tardou a chegar, mas quando isso ocorreu a recessão já havia começado (para só terminar em dezembro de 2016), a renda per capita caíra quase 9% e a taxa de investimento, cerca de 30%, e o número de desempregados já superava 13 milhões. Em parte, legado do “fazendo o diabo, custe o que custar”.
O comunicado divulgado ao final da reunião de cúpula dos chefes de Estado da Europa de junho de 2012 dizia: “Nós reafirmamos nosso compromisso de fazer o que for necessário para assegurar a estabilidade financeira na Eurozona”. Menos de um mês depois, o presidente do Banco Central Europeu (Mario Draghi), referindo-se aos custos políticos que alguns países pagavam para refinanciar suas dívidas, afirmou: “O BCE está pronto a fazer o que for necessário (wathever it takes) para preservar o euro”. E emendou: “Acreditem em mim, isso será suficiente”. Esse recurso retórico, que permitia antever a superação das conhecidas resistências alemãs, foi o que moveu corações, mentes e nervos nos mercados. Mais recentemente, já sob a covid-19, os países europeus acordaram a criação de um fundo de ¤ 750 bilhões para programas de investimentos nas economias da região. Algo que dificilmente ocorreria, não fosse a pandemia, a exigir o espírito do “whatever it takes” – expressão da qual o fazendo o diabo, custe o que custar vem a ser versão mais rústica.
Nos EUA, o mesmo espírito presidiu o enfrentamento da grande depressão, nos anos 30 do século passado. Bem como da crise financeira global sistêmica ao final de 2008, após a falência de Lehman Brothers, quando foi adotado pacote de
US$ 700 bilhões. É também esse espírito que pode ser encontrado por trás dos ambiciosos programas de gastos públicos do governo Biden, ainda em difícil negociação no Congresso daquele país: mais de US$ 1 trilhão em infraestrutura, mais US$ 3 trilhões na área social.
Permito-me apontar característica central do sistema orçamentário dos EUA que mereceria ser mais conhecida no Brasil. Lá, os dois grandes grupos de despesas do governo são aquelas discricionárias e as mandatórias. Estas últimas são determinadas por lei e seguem, ano após ano, em piloto automático, a menos que o Congresso altere as leis em questão. Em 2019, representavam 61,6% do total de gastos (os juros, 8,4%). As despesas discricionárias (30% do total) exigem, a cada ano, aprovação pelo Congresso, sem a qual devem ser encerradas. No Brasil, as despesas obrigatórias representam atualmente cerca de 93% do total dos gastos primários. Em razão de sua extraordinária rigidez e tamanho, não temos por aqui espaço fiscal sequer comparável àquele existente nos EUA.
Em junho deste ano, três respeitados economistas – Olivier Blanchard, Josh Felman e Arvind Subramanian – publicaram artigo sob o título-pergunta O novo consenso fiscal nas economias avançadas viaja para os mercados emergentes? Propunham-se a responder a três perguntas: a situação macroeconômica é a mesma? Existe mais incerteza sobre os resultados fiscais? Existe mais incerteza sobre o diferencial entre taxa de juros e a taxa de crescimento da economia? não, sim
As respostas foram e sim, após análise de dados relevantes de Índia, Brasil, Indonésia, África do Sul e Turquia. Vale dizer, as situações não são as mesmas, e as duas incertezas são muito maiores em mercados emergentes que em países mais avançados. Estes podem se permitir um “whatever it takes” que mercados emergentes dificilmente poderiam manter, exceto em situações de extraordinária e temporária emergência.
O presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, afirmou no mês passado que o BC faria “o que for necessário” em termos de elevação da taxa básica de juros, para trazer a inflação (que chegara a cerca de 10% no acumulado de 12 meses) para uma trajetória de convergência para a meta. Esse enorme desafio será ainda maior se não houver apoio do lado fiscal; se tiver de lidar com outros “whatever it takes” da parte do resto do governo, do chefe do Executivo e do Congresso – operando na outra direção, “fazendo o diabo”, excessivamente preocupados desde agora com o resultado das urnas em outubro de 2022.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,fazendo-o-diabo-ii,70003864055
Vinicius Torres Freire: A inflação de Bolsonaro é das mais perversas do século
Surto de preços é piorado por desgoverno e queda violenta de renda
Vinicius Torres Freire / Folha de S. Paulo
A inflação alta de Jair Bolsonaro pode até durar menos que a de outros dois surtos de carestia deste século. Mas é das mais perversas e politicamente daninhas, acontece em um momento em que os pobres perderam muita renda e sob um desgoverno histórico. Para ser honesto, qualquer governo teria dificuldade mesmo de atenuar este choque. Claro que o cruel, desumano e degradante Bolsonaro piora a situação.
Não apenas a inflação média está alta. A onda de carestia de comida é a pior desde 2003. O choque da conta de eletricidade é o segundo pior do século, assim como a alta do preço do botijão de gás e a dos combustíveis para veículos. São surtos que causam fome, asfixiam orçamentos já esquálidos, irritam os remediados que têm carro e afetam preços que são muito evidentes no dia-a-dia.
Essa conjunção aconteceu no início do governo Lula da Silva e ajudou a derrubar Dilma Rousseff. Acontece de novo sob Bolsonaro.
O Brasil passou por outras duas ondas compridas de inflação ruim depois de 1999, desde quando o Banco Central tenta conter os preços no sistema de metas. A primeira foi de novembro de 2002 a novembro de 2003, passando pelo pico de 17,2% em maio de 2003. A segunda foi de novembro de 2015 a fevereiro de 2016, com pico de 10,71%. Em setembro deste 2022, a inflação anual foi a 10,25%.
No início dos anos Lula, o povo miúdo tinha grande esperança de que as coisas mudassem. Ainda assim, o aumento de preços e pobreza de 2003 provocou protestos populares, xingados então de “caos social”. O MST ou o MTST fizeram passeatas na então nacionalmente desconhecida avenida Faria Lima, assustando clientes do Iguatemi, passeio e coreto de consumo dos ricos, o pioneiro dos shoppings do país. Depois de baixar da casa dos 34% para a dos 27%, com o Real, o nível de pobreza ficara quase estagnado. Mas nos anos petistas cairia de 2004 até os 8% de 2014, fim de Dilma 1. Os dados são do FGV Social.
Parte da inflação de Dilma 2 resultou do fim dos tabelamentos de preços de energia, choque tão grande quanto o da reviravolta na economia, estelionato anunciado logo depois da eleição e que pulverizou a popularidade da presidente. Era ainda o auge da renda média no país. Mas a recessão súbita e forte que se seguiu, mais a campanha para derrubar Dilma, fez o resto do estrago político.
Sem auxílio emergencial, a pobreza foi a 16% do total da população no início deste 2021. No primeiro semestre, a renda per capita do trabalho da metade mais pobre do país foi um terço menor que a de fins de 2014. O número de pessoas com algum trabalho é o menor desde 2012 e o desalento (gente que nem procura emprego) é de longe o maior desde então.
O motivo inicial do choque inflacionário é o sabido: escassez de insumos industriais, crise de energia, preços de commodities em alta geral. No Brasil, a coisa foi piorada pela desvalorização exagerada do real. A destruição institucional, o golpismo e a falta de programa de governo criam e prorrogam a incerteza que também incendeia o dólar e apaga o PIB. Não houve plano para lidar com saúde e pobreza ou estabilizar a economia, ao contrário.
O povo do mercado prevê inflação caindo a 8,6% em dezembro, embora tenham errado muito neste ano. Seria um surto ruim mais curto, pois. A falta de trabalho será grande por muito tempo, mas deve despiorar, afora novos desastres. Mas com tamanho desemprego e inflação e variação miúda do PIB em 2022, os salários dos mais pobres não vão recuperar as perdas da epidemia. Não há esperança política de melhora, como em 2003. Mas elites não querem derrubar Bolsonaro.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/10/a-inflacao-de-bolsonaro-e-das-mais-perversas-do-seculo.shtml
Janio de Freitas: Os ossos da eleição
O principal figurante de 2022 ainda está silencioso: é o aumento da pobreza
Jânio de Freitas / Folha de S. Paulo
A pobreza aumenta, voraz, na horizontal e na vertical. Desta vez, com a pandemia como terceiro impulso, sem por isso evitar que os dois outros sejam talvez mais fortes do que nunca. O governo Collor foi um desastre criminoso, com a bondade solitária de sucumbir a meio do mandato, e nem desta Bolsonaro é capaz. Muito menos o será para deter o crescente empobrecimento. E ainda há o descaso histórico de todas as formas de poder, público e privado, diante do crime irreconhecido que é a injustiça social. Vírus, desgoverno, indiferença também são Os Três Poderes.
Entre as características da economia brasileira há muitos componentes importantes que jamais têm a honra de uma referência, ao menos, na prolixidade dos economistas propagados nas telas e nos papéis. Um bom exemplo é a correção salarial, na verdade, um acelerador da pobreza existente e da indução de empobrecimento. A regra básica dada a essa concessão dos poderosos foi não corrigir jamais.
Exceto nos anos chamados pelo reacionarismo de lulopetistas, e apesar do empenho de Sarney e Itamar, as incontáveis correções foram fixadas abaixo da correção de fato. Sem esquecer que a inflação declarada, como o PIB, é outra falcatrua antissocial, perceptível em ida a qualquer dependência do comércio usual.
O noticiário se empolga: “A volta do emprego”. Mas, logo, “Empregos informais são 75% do total”. Três em cada quatro. E chamar de emprego a atividade informal é um dos muitos eufemismos consagrados no jornalismo, para agrado adivinhe de quem. Assim como salário não é renda, falsificação verbal oficializada, atividade informal não é emprego, é trabalho informal. Nele não há o empregado, nem o patrão.
O crescimento da informalidade é sinal de maiores dificuldades nas famílias alimentadas por recebimentos insuficientes, sejam quais forem. É indicador que valeria como advertência, para problemas do futuro e necessidade premente de ação governamental. Não no Brasil. Mesmo a corrida aos ossos despejados, para a guerra contra a fome, causou mal-estar ou indignação muito maiores mundo afora do que aqui, onde não faltou mais revolta com a exibição de ossos e catadores do que a realidade que os uniu, como antes fizeram os cães.
Entre os que se aventuram a formar o elenco das eleições presidenciais de 2022, o principal figurante ainda está silencioso: é o aumento da pobreza, que já chegou aos ossos, os despejados e os próprios, e não terá quem a socorra até lá. O auxílio de fins eleitorais, esperança de Bolsonaro, não dura um mês dos tantos a esperar. Quem sabe, outra vez em vão.
Negócios de quadrilha
O encontro de um segundo plano de saúde aplicador do falso tratamento de Covid, em dezenas de milhares de clientes, é uma revelação e o seu inverso. Ambos com gravidade criminosa.
De uma parte, o segundo caso obriga a constatar crimes médicos como empreendimento expandido, e não exclusivo da Prevent Senior. Com isso, vão muito além de concordâncias entre tal criminalidade e o governo, constituindo ampla quadrilha de corrupção científica e comercial da medicina. Com extensões na Presidência por via do “gabinete ódio”, no sistema de vigilância e regulação das práticas de seguro saúde e de medicina, no Conselho Federal de Medicina, na Agência Nacional de Saúde Suplementar, em várias secretarias do Ministério da Saúde e em diversos ramais da vigarice comercial. Aí não houve boa-fé, nunca. Só interesses materiais.
De outra parte, chega-se aos 600 mil morte com a certeza, agora, de que esse número é uma estimativa ainda mais precária. Além das subnotificações já pressentidas no cômputo em curso, a segunda seguradora sugere outras. Como suscita a existência de mais seguradoras e serviços médicos onde também foi adotado o falso tratamento, com decorrências letais adulteradas.
Descobrir outro caso revelou quanto e como se desconhece, mesmo com a CPI tão bem sucedida, dos horrores da pandemia e da parte, neles, criada pelo bolsonarismo.
Bem apropriados
A defesa postada por Paulo Guedes, no caso de sua firma em paraíso fiscal para driblar impostos brasileiros, estava escrita em inglês. Muito apropriado, sem dúvida, mas de imensa falta de compostura pessoal e de respeito, até agressiva, por parte de um ministro ao país.
O nome COR, dado pelo presidente do Banco Central à sua firma de fuga de capital para o exterior, homenageia o avô. São as iniciais, invertidas, de Roberto de Oliveira Campos. Considerada a finalidade da firma, é homenagem muito justa. Até por todas as suas manipulações serem em inglês e em dólar.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2021/10/os-ossos-da-eleicao.shtml
Hélio Schwartsman: O tribalismo inviabiliza a democracia?
Ele não impede um país de se democratizar, mas exige adaptações
Hélio Schwartsman / Folha de S. Paulo
Li em vários artigos que os EUA fracassaram em implantar uma democracia viável no Afeganistão porque desconsideraram o caráter tribal do país. Não afirmo que essa análise esteja errada, mas é preciso qualificá-la.
Socorro-me aqui de "The WEIRDest People in the World", de Joseph Heinrich, livro que já comentei. São poucas as nações que lograram desenvolver uma psicologia não tribal, isto é, mais pautada pela crença no individualismo, no livre-arbítrio e na universalidade das leis do que ditada por sistemas de lealdades familiares. O fenômeno, também designado como psicologia "weird" (acrônimo inglês para "ocidental, educado, industrializado, rico e democrático"), é característico da Europa ocidental e de algumas de suas ex-colônias e pouco representativo da média da humanidade.
Não é difícil identificar indivíduos e populações "weird" através de testes como um em que se pergunta se a pessoa testemunharia contra um amigo que tivesse cometido um crime. Povos "weird" aceitam essa ideia. A lei, afinal, é para todos. Já os de mentalidade mais tribal tendem a vê-la como uma traição aos deveres da amizade. A psicologia "weird" está na base de instituições como a democracia, além do avanço das ciências e o rápido crescimento econômico.
As coisas se complicam quando verificamos que alguns países, como Japão e Coreia do Sul, embora conservem a psicologia não "weird", se tornaram democracias ricas. A China não pegou a parte da democracia, mas é potência econômica e científica. Como explicar isso? Segundo Heinrich, esses países já tinham uma longa experiência com Estados fortes, que estimulavam a educação formal. Também não tiveram pruridos em adotar hábitos e instituições copiados do Ocidente, que serviram, se não para eliminar, ao menos para reduzir a influência da lógica de clãs em suas sociedades.
O tribalismo não impede um país de se democratizar, mas requer adaptações.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/10/o-tribalismo-inviabiliza-a-democracia.shtml
Bruno Boghossian: Investigação sobre emendas deve abalar relação Bolsonaro-Congresso
Ministro fala em corrupção e avisa que haverá operação mirando verba de parlamentares
Bruno Boghossian / Folha de S. Paulo
O chefe da Controladoria-Geral da União deu um aviso curioso na última semana. Wagner Rosário disse não ter dúvidas de que existem casos de corrupção no pagamento de emendas indicadas por parlamentares e anunciou que a Polícia Federal deve bater na porta de alguns dos envolvidos em breve. “Todos nós vamos ficar sabendo no dia da deflagração das operações”, declarou.
O alerta é inusitado porque um investigador não deveria dar aviso prévio de suas ações. Além disso, Rosário é ministro de Jair Bolsonaro, um presidente que sobrevive no poder graças a essas emendas. Para completar, o chefe da CGU falou sobre as suspeitas numa audiência dentro Câmara, onde essa fatia do Orçamento é partilhada.
A revelação de desvios nesses pagamentos é um cenário considerado quase inevitável pelo governo. O ministro tentou mostrar serviço e se antecipou para controlar os respingos de eventuais escândalos. A história tem potencial para criar problemas políticos para Bolsonaro.
O governo ganhou fôlego no Congresso ao entregar a deputados e senadores o controle sobre R$ 16,9 bilhões das emendas de relator. O bônus dessa barganha é uma distribuição relativamente livre e pouco transparente de verba nas bases dos parlamentares. Se a PF acabar com a festa de alguns deles, o acordo para sustentar o presidente pode ficar estremecido ou até implodir.
Uma operação que desmanche supostas cobranças de propina em obras pagas por essas emendas também teria impacto na imagem de Bolsonaro. O presidente pode lançar a culpa sobre os parlamentares e empresários que forem pegos nas investigações, mas será difícil esconder o fato de que a origem do dinheiro é o acerto do Planalto com o centrão.
O alcance do caso dependerá de personagens leais a Bolsonaro: o chefe da PF e o procurador-geral da República. A esperança do governo é que a devassa nas emendas fique limitada a políticos de baixo clero, o que restringiria os danos à governabilidade e ao discurso do presidente.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/10/investigacao-sobre-emendas-deve-abalar-relacao-bolsonaro-congresso.shtml
Cristovam Buarque: Falta confiança
Fracasso em leilão de poços de petróleos alerta para o fator mais escasso hoje no Brasil: a confiança
Cristovam Buarque / Blog do Noblat / Metrópoles
O fracasso desta semana para leiloar poços de petróleo deve servir como uma lição para os economistas entenderem a importância do fator confiança na geração de riqueza. Até recentemente, a equação produtiva exigia três fatores: mão de obra, capital e recursos naturais. Com o tempo, passou-se a tratar a tecnologia – o chamado “como fazer”, como mais um fator de produção. O Brasil tem tecnologia e mão de obra, mas o petróleo continua no fundo do mar e sem gerar riqueza, por falta de capital para explorá-lo. O leilão visava superar esta falta e obter o capital necessário, mas fracassou porque a economia moderna requer mais um fator: confiança.
No mundo global, dispondo do fator confiança, o capital, tecnologia e até mão de obra são obtidos no mercado internacional. Este leilão deve abrir os olhos para a importância do fator mais escasso hoje no Brasil: confiança nas regras, na moeda, na sustentabilidade, seja política, fiscal, social ou ecológica. Aparentemente, as empresas não se interessaram sobretudo pelo medo de que exigências mundiais por proteção ecológica venham impedir a exploração de petróleo em áreas consideradas santuários, como Fernando de Noronha, Amazônia, Polo Norte. Além disso, o próprio petróleo não passa confiança diante do seu papel na catástrofe ambiental. Apesar de seu uso na indústria não energética, investir em petróleo nos dias de hoje começa a ser como foi investir na produção de óleo de baleia para iluminar ruas quando se descobriu a iluminação elétrica.
Este não é o único elemento que faz escasso o fator confiança. Também degrada a confiança a volta da inflação; o relaxamento na luta por estabilidade monetária, pobreza e violência nas ruas; a insegurança nas regras jurídicas; a frase do presidente ameaçando a realização das eleições e desafiando Deus a tirá-lo do trono; o baixo nível de educação; o abandono do ensino superior e do sistema de ciência e tecnologia; a imagem de destruidores de florestas e depredadores do Tesouro; a força de corporações empresariais e trabalhistas para manipular as leis. Este cenário deixa o Brasil como país pobre em confiança: a consequência é sermos párias e nossos leilões não terem resultados esperados. E e atraem especuladores que apostam na insegurança e acrescentam insegurança.
No próximo ano, o Brasil dá os primeiros passos no seu terceiro centenário, carregando o peso da falta do fator confiança em sua estrutura produtora e com fortes tentações para aumentar gastos públicos com o presente, aumentando a inflação.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador
Fonte: Blog do Noblat
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/falta-confianca-por-cristovam-buarque
Míriam Leitão: As culpas de Bolsonaro na inflação de dois dígitos
Última vez que a inflação subiu mirando os 10% foi no governo Dilma
Míriam Leitão / O Globo
O governo é sempre atingido quando a inflação no Brasil atravessa a fronteira dos 10%. Dois dígitos é o símbolo e um alerta. É um ponto que leva ao aumento da pobreza e derruba a popularidade dos presidentes que erram na condução da economia.
Inflação tem maior alta para setembro desde o Plano Real e atinge 10,25% em 12 meses
A última vez que a inflação subiu mirando os 10% foi no governo Dilma. Ela começou a subir em 2015 e superou a marca em 2016. Foi corrosivo para a popularidade da presidente naquela época.
Desta vez a subida da taxa produziu também a queda da popularidade de Jair Bolsonaro. Ela veio caindo conforme a inflação foi subindo. Hoje chega numa marca emblemática: 1,16% em setembro, 10,25% em 12 meses. Os erros que Bolsonaro cometeu e comete diariamente vão além da economia, mas ele é culpado por parcela importante dessa alta dos preços.
Economia parada? Com preços nas alturas e PIB perdendo fôlego, afinal, o Brasil entrou em estagflação?
Bolsonaro é o principal responsável pela instabilidade política e institucional que elevou o dólar. É o principal responsável pelo prolongamento da pandemia por ter combatido medidas de proteção, apostado em remédios ineficazes e atrasado a vacinação. É o principal responsável pela demora em agir na crise hídrica, e escolhido o caminho apenas de aumentar os preços.
A energia é que explica a principal alta do índice nesse setembro em que o grupo “habitação" teve alta de 2,56% e a energia 6,47%. Mas subiram alimentação, transportes. A inflação está persistente e espalhada, exatamente a que é mais difícil combater.
A inflação dos mais pobres foi ainda maior. O IPCA ficou em 10,25% e o INPC atingiu 10,78. Esse segundo índice mede exatamente o que acontece na cesta de consumo dos que têm renda mais baixa.Setembro pode ter sido o pior momento, mas nada garante a queda lenta da inflação até os 8,5% previstos para o fim do ano. Tudo depende de como o dólar vai se comportar, das decisões do governo, e dos sinais que o presidente emitir com a sua sempre tortuosa forma de governar o Brasil.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/culpas-de-bolsonaro-na-inflacao-de-dois-digitos.html
Inflação acelera para 1,16% em setembro, maior para o mês desde 1994
IPCA voltou a acelerar com impacto da energia elétrica, diz IBGE
Alerrandre Barros / Agência IBGE
A inflação teve alta de 1,16% em setembro, a maior para o mês desde 1994, quando o índice foi de 1,53%. Com isso, o indicador acumula altas de 6,90% no ano e de 10,25% nos últimos 12 meses, acima do registrado nos 12 meses imediatamente anteriores (9,68%). Em setembro do ano passado, a variação mensal foi de 0,64%. Os dados são do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), divulgado hoje (8) pelo IBGE.
Oito dos nove grupos de produtos e serviços pesquisados subiram em setembro, com destaque para habitação (2,56%), que foi puxado pelo aumento de 6,47% na conta de energia elétrica. Em setembro, passou a valer a bandeira tarifária “escassez hídrica”, que acrescenta R$ 14,20 na conta de luz a cada 100 kWh consumidos. No mês anterior, vigorou a bandeira vermelha patamar 2, em que o acréscimo é menor, R$ 9,49. Além disso, houve reajustes tarifários em Belém, Vitória e São Luís.
“Essa bandeira foi acionada por conta da crise hídrica. A falta de chuvas tem prejudicado os reservatórios das usinas hidrelétricas, que são a principal fonte de energia elétrica no país. Com isso, foi necessário acionar as termelétricas, que têm um custo maior de geração de energia. Assim, a energia elétrica teve de longe o maior impacto individual no índice no mês, com 0,31 ponto percentual, acumulando alta de 28,82% em 12 meses”, explica o gerente do IPCA, Pedro Kislanov.
Os preços do gás de botijão (3,91%) também continuaram subindo em setembro. “A gente tem observado uma sequência de aumentos do GLP (gás liquefeito de petróleo) nas refinarias pela Petrobras. Há ainda os reajustes aplicados pelas distribuidoras. Com isso, o preço para o consumidor final tem aumentado a cada mês. Já foram 16 altas consecutivas. Em 12 meses, o gás acumula aumentos de 34,67%”, detalha Kislanov.
O grupo dos transportes (1,82%) acelerou, mais uma vez, por conta dos combustíveis, que subiram 2,43%, influenciados, pela gasolina (2,32%) e o etanol (3,79%). Em 12 meses, a gasolina já aumentou 39,60% e o etanol, 64,77%. Também subiram no mês o gás veicular (0,68%) e o óleo diesel (0,67%).
As passagens aéreas (28,19%) tiveram a maior alta entre os itens não alimentícios no mês, após queda de 10,69% em agosto, registrando o terceiro maior impacto individual no índice geral. Os preços dos transportes por aplicativo avançaram 9,18% em setembro, e já tinham subido 3,06% no mês anterior.
Alimentação no domicílio desacelera com queda nos preços das carnes
Alimentação e bebidas (1,02%) tiveram uma leve desaceleração em relação a agosto (1,39%) por conta do recuo das carnes (-0,21%), após sete meses consecutivos de alta, o que acabou puxando a alimentação no domicílio para baixo (1,19%), frente ao resultado de 1,63% no mês anterior. “Essa queda das carnes pode estar relacionada à redução das exportações para a China. No início do mês, houve casos do mal da vaca louca na produção brasileira. Com a suspensão das exportações, aumentou a oferta de carne no mercado interno, o que pode ter reduzido o preço”, explica Pedro Kislanov.
Também recuaram os preços da cebola (-6,43%), do pão francês (-2,00%) e do arroz (-0,97%). “No caso do pão francês, tivemos uma redução no preço do trigo no mercado internacional, o que pode ter impactado esse resultado”, disse Kislanov.
Por outro lado, o IPCA continua registrando altas expressivas na alimentação dentro do domicílio. É o caso das frutas (5,39%), que contribuíram com 0,05 p.p. no índice de setembro, do café moído (5,50%), do frango inteiro (4,50%) e do frango em pedaços (4,42%). “O frango tem subido bastante por conta da alta do custo da ração animal. Ele também é impactado pela alta da energia elétrica. Por ser um substituto das carnes, o preço do frango costuma subir com a maior demanda”, explica o gerente do IPCA.
Também aumentaram em setembro os preços da batata-doce (20,02%), da batata-inglesa (6,33%), do tomate (5,69%) e do queijo (2,89%).
A alimentação fora do domicílio desacelerou, passando de 0,76% em agosto para 0,59% em setembro. O principal fator foi o recuo do lanche (-0,35%), que havia subido 1,33% no mês anterior. A refeição teve alta de 0,94%, acima do 0,57% observado em agosto. Além disso, os preços da cerveja (1,32%) e do refrigerante e água mineral (1,41%) também subiram em setembro.
Os grupos habitação, transporte e alimentação e bebidas contribuíram com cerca de 86% do resultado de setembro (1 p.p. do total de 1,16). Os demais ficaram entre a queda de 0,01% em educação e a alta de 0,90% em artigos de residência.
O aumento dos preços ocorreu em todas as áreas pesquisadas em setembro. O maior índice foi registrado em Rio Branco (1,56%), influenciado pelas altas nos preços da energia elétrica (6,09%) e do automóvel novo (3,57%). Já o menor resultado ocorreu em Brasília (0,79%), por conta da queda nos preços da gasolina (-0,81%) e do seguro de veículo (-3,36%).
INPC tem alta de 1,20% em setembro
O Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) teve alta de 1,20% em setembro, também o maior resultado para o mês desde 1994. No ano, o indicador acumula elevação de 7,21% e, em 12 meses, de 10,78%, acima dos 10,42% observados nos 12 meses imediatamente anteriores. Em setembro de 2020, a taxa foi de 0,87%.
Os produtos alimentícios subiram 0,94% em setembro, ficando abaixo da variação observada em agosto (1,29%). Já os não alimentícios tiveram alta de 1,28%, enquanto em agosto haviam registrado 0,75%.
Todas as áreas registraram alta nos preços em setembro. O maior resultado foi registrado na região metropolitana de Curitiba (1,65%), influenciado pelas altas nos preços da energia elétrica (6,80%) e da gasolina (4,91%). Já o menor foi observado no município de Goiânia (0,79%), onde pesaram as quedas nos preços das carnes (-1,65%).
Mais sobre as pesquisas
O IPCA abrange as famílias com rendimentos de 1 a 40 salários mínimos, enquanto o INPC as famílias com rendimentos de 1 a 5 salários mínimos, residentes nas regiões metropolitanas de Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Vitória, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, além do Distrito Federal e dos municípios de Goiânia, Campo Grande, Rio Branco, São Luís e Aracaju. Acesse os dados no Sidra.
Fonte: Agência IBGE
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/31848-inflacao-acelera-para-1-16-em-setembro-maior-para-o-mes-desde-1994
Vera Magalhães: Estado de mal-estar
Diante de uma questão de saúde pública e social tão evidente, Bolsonaro usa desculpas fiscais
Vera Magalhães / O Globo
Jair Bolsonaro achou por bem vetar a essência do projeto de lei que cria o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, uma iniciativa de um conjunto de deputados de diversos partidos de oposição. O presidente vetou justamente a razão de ser da proposta: os artigos que previam a distribuição gratuita de absorvente para meninas carentes de escolas públicas, mulheres em vulnerabilidade social e presidiárias.
Bolsonaro evocou razões fiscais para vetar o projeto. Disse que o Congresso não apontou a fonte de recursos para custeá-lo, mas não é bem assim: os parlamentares determinaram que os recursos sairiam da atenção básica à saúde do SUS e do Fundo Penitenciário.
Afirmou que a lista de medicamentos básicos que têm de ser fornecidos pelo SUS não inclui absorventes menstruais. De fato. Por isso mesmo a proposta cria um novo programa, para atender a uma demanda justa e não contemplada.
Os dados sobre a falta de recursos para adquirir absorventes, traduzida como pobreza menstrual, passaram a ser tratados recentemente, pois esse sempre foi um tema tabu, o que já diz muito quanto à mentalidade atrasada que vigora no Brasil.
Hoje se sabe que uma a cada quatro mulheres não tem dinheiro para adquirir protetores para seus períodos menstruais e que algumas meninas chegam a perder um mês e meio de aula por ano por não ter condições dignas de ir à escola. Reportagens recentes mostraram casos revoltantes de mulheres internadas com infecções graves pelo uso de materiais impróprios para conter o sangramento mensal.
Diante de uma questão de saúde pública e social tão evidente, Bolsonaro usa desculpas fiscais, que não resistem a uma simples comparação com gastos exorbitantes, como as famigeradas emendas do relator ou os cartões de crédito corporativos da Presidência, que, além de tudo, estão protegidos por camadas de sigilo, para dar vazão a suas arraigadas convicções ideológicas avessas a empatia, a qualquer preocupação social e à mínima compreensão das questões de gênero que cada vez mais são pauta da sociedade e dos governos do mundo todo.
Além de ser a mais perfeita tradução de sua mentalidade tacanha, reacionária e contrária aos direitos humanos em todas as suas manifestações, o veto de Bolsonaro ao projeto que promove a dignidade de mulheres e meninas pobres é de uma burrice política e eleitoral atroz, também ela típica do presidente do Brasil.
No momento em que sua popularidade sangra (ops) justamente com o eleitorado feminino e pobre, o capitão dá um tapa na cara sem luva de pelica justamente das mulheres vulneráveis, com uma mesquinharia política e fiscal.
Quando tenta se safar da berlinda nas pesquisas inflando, aí sim com bilhões ainda não contemplados no guarda-chuva fiscal, o Bolsa Família, outro projeto pelo qual sempre deixou patente sua aversão egoísta, Bolsonaro não é nem capaz de perceber que esse veto lhe causará estrago brutal junto a esse público.
Quem é de verdade sabe quem é de mentira, já disse o comediante Esse Menino no vídeo em que escancarou para o país a desídia desse mesmo presidente na compra de vacinas. Não adianta a alguém absolutamente desprovido de consciência do que é governar para todos, e sobretudo para aqueles que mais precisam, fingir que tem preocupação com a pobreza. A máscara, que Bolsonaro já insistia em não usar na pandemia, caiu também na política.
A maré política do capitão está tão braba que a possibilidade de esse veto indigno ser derrubado é grande. Que assim seja.
Mas é exaustivo viver no Estado de mal-estar de Bolsonaro. Mal-estar social, econômico, sanitário, cultural, educacional, civilizatório, político. Um mal-estar que não passa, como uma cólica fruto de uma sangria desatada.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/estado-de-mal-estar.html
Carlos Melo: À espera de fatos novos
O governo é incapaz de criar fatos novos, a política não
Carlos Melo / Valor Econômico
Há meses, o governo e seus fiéis indicavam as condições para a vitória de Jair Bolsonaro, em 2022. O crescimento em “V” e o final da pandemia, após vacinação em massa, seriam fatos novos. Não fossem suficientes, haveria o dispositivo de força que permitiria ao presidente “jogar fora das quatro linhas da Constituição” - seja lá o que isso signifique.
Nada disso se confirmou e a fé fundamentalista foi abalada. Em 2022, a economia crescerá 1% do PIB, com desemprego, inflação e aumento de juros. A crise social está nas ruas. Quanto à pandemia, 600 mil vidas não ressuscitarão, o ressentimento ficará; a CPI da Covid foi além do que se supunha e seu relatório terá efeitos importantes dentro e fora do Brasil.
O dispositivo golpista foi, por ora, desarmado: o STF asfixiou as finanças do “7 de setembro”; a hierarquia nas PMs funcionou; as Forças Armadas resistiram às investidas do presidente; os caminhoneiros isolaram a banda bolsonarista da categoria. Num desfecho constrangedor, a carta que Michel Temer escreveu para Jair Bolsonaro assinar foi irrefutável sinal de fracasso.
Ilusório esperar salvação por reformas que alterem o destino do governo. À parte a embromação dos líderes, o Congresso Nacional já funciona em modo eleitoral: sabe que reformas trazem desgastes imediatos e benefícios, quando ocorrem, no longo prazo. A razão imediatista é implacável. Improvável que a articulação política do governo a dobre.
Restará o caminho do aumento de gastos com sinecuras e liberações de emendas, como contraparte ao compromisso da blindagem presidencial prometida pelo Centrão. Também outros - importantes, sim, mas limitados -, como o imprescindível “Auxílio Brasil”, estimularão despesas feitas, antes, pela lógica do populismo eleitoral do que com o objetivo do atendimento de graves problemas reais.
A alternativa do presidente e seu grupo tem sido não se agarrar ao bote salva-vidas da mobilização do radicalismo da base social. Um contingente que rodeia os 20% da população e que pode levar Jair Bolsonaro ao segundo turno da eleição. Na esperança de reviver 2018, conta com um embate contra Luiz Inácio Lula da Silva, de modo a se favorecer, mais uma vez, do antipetismo.
É uma estratégia manjada, que não muda o rumo do processo. Pesquisas indicam de que o clima da eleição de 2022 será anti-Bolsonaro. As sondagens demonstram que, no segundo turno, o presidente perderia para qualquer postulante; sendo Lula, hoje, o maior favorecido pelos erros e pela rejeição ao governo. Na verdade, é Bolsonaro quem o viabiliza.
Com isso tudo, teremos pela frente quase 15 meses de um governo que sangra a caminho da derrota. Sendo a instabilidade política e administrativa que provoca, exatamente, o fator que aprofunda seus problemas. A realidade é que, em pouco menos de três anos de mandato, Jair Bolsonaro criou à sua roda um ciclo vicioso, estéril de esperança.
Agentes econômicos buscam se antecipar e, do seu ponto de vista, a perspectiva que vislumbram lhes atormenta. Precificam um cenário em que atravessam uma montanha íngreme e, do outro lado, exauridos, defrontam-se com um arco-íris em tons de cinza, cujo pote de ouro traz - como assinalou o empresário Pedro Passos - a “inaceitável” reeleição de Jair Bolsonaro ou a “indesejável” volta de Lula ao comando do país.
O primeiro, uma usina de crises incapaz de superar os impasses que cria; o segundo, temido em razão de erros do passado e da incerteza que ainda hoje desperta. “O que será seu governo?”, é a pergunta de nove, em dez, reuniões realizadas por empresários e economistas. Num cenário de desalento, aflitos, operadores econômicos acendem velas pelo milagre da “terceira via”.
Improdutivo especular sobre vias sem nome, que ainda não estão no Waze. Essa hipotética alternativa só terá futuro como “segunda via”; para isso, carecerá de fatos novos. Espremida entre direita e esquerda, terá pouco espaço para se expandir e ir ao segundo turno. Dependerá da fragilização de uma das margens que a oprimem. Pelas pesquisas, o nome de Lula está consolidado. Já à margem direita, pelos motivos acima, nem tanto.
O impeachment é pouco provável. Ao apaniguado Centrão, fiel da balança na Câmara, nesse momento mais interessa o governo frágil e dependente - e mais à frente, será tarde. Há sombras que não se pode descartar: no TSE, se analisa a impugnação da eleição da chapa Bolsonaro/Mourão. Mas, por enquanto, seria ocioso contar com isso.
Contudo, é bom lembrar que mesmo num ambiente de poucas perspectivas, no Brasil, tudo é possível. Ulysses Guimarães alertava que política é feita de fatos novos - consta que, reunido com amigos, mantinha cadeira reservada à “sua excelência, o fato novo”. Ele pode tardar, mas frequentemente aparece. E desorganizam tudo.
Objetivamente, a desidratação política de Bolsonaro seria um desses fatos. E, como sem Bolsonaro não haverá antibolsonarismo, uma nova segunda via poderia ser aberta com as máquinas do antipetismo. A inviabilidade, legal ou política, do presidente se sentaria na cadeira reservada pelo Doutor Ulysses. São lances possíveis, num jogo ainda pouco previsível.
Lula é sabedor disso e dos riscos num eventual governo. Hoje, não se sente pressionado e joga com a ansiedade dos outros. Em 2002, empurrou a divulgação da “Carta ao Povo Brasileiro” até junho. O presente, entretanto, é mais inclemente: mais cedo do que mais tarde, terá que emitir sinais claros do que pretende. A quem o criticava por decidir apenas sob pressão, Ulysses respondia: “sim, eu só decido sob pressão”. Sob pressão, Lula também pode criar um fato novo. É bom ficar de olho no jogo.
*Carlos Melo é cientista político e professor senior fellow do Insper.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/a-espera-de-fatos-novos.ghtml
Benito Salomão: Auxílio Brasil e risco democrático
Proposta do novo benefício pode comprometer estabilidade macroeconômica
Benito Salomão / Folha de S. Paulo
Quando a lógica eleitoral pauta a política econômica, as consequências são indesejáveis. O Brasil viveu isso em 2013-14 diante da reeleição da presidente Dilma Rousseff (PT), causando nítidos retrocessos na política fiscal, tais como as contabilidades criativas e pedaladas fiscais. Naquela época, a presidente optou pelo negacionismo fiscal até novembro de 2014, quando venceu as eleições e a realidade se impôs. O desfecho daquele episódio segue fresco na memória.
A história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa, sentença atribuída a Karl Marx ideal para explicar a realidade contemporânea. Após o descalabro de 2014, o Brasil voltou a discutir retrocessos fiscais parecidos com os daquele momento. Em 2020, o país teve que elevar seu endividamento público em face dos danos humanitários causados pela Covid-19.
A dívida pública absorveu o choque, crescendo fortemente. Já em 2021, com várias economias superando a pandemia e retirando os incentivos fiscais, o Brasil segue na direção oposta e acumula inúmeros episódios que têm minado a credibilidade fiscal. Vale ressaltar que o prolongamento da pandemia no tempo é o primeiro fator de insustentabilidade fiscal, criando pressão permanente sobre benefícios sociais que deveriam ser apenas temporários. Isso tudo piorado pelas incertezas acerca da manutenção do teto de gastos, ou por heterodoxias como o orçamento paralelo e o escalonamento dos precatórios.
Nesse contexto de dificuldades fiscais, o governo envia para a Câmara a medida provisória 1.061/21 do novo Bolsa Família, agora nominado Auxílio Brasil. Sobre isso, ressalvas devem ser feitas: 1 - uma política dessa natureza é muito importante para ser normatizada via medida provisória; 2 - não se tem notícia de nenhum estudo que embase o novo desenho da política; e, 3° essa nova política de renda mínima será financiada por elevações de impostos ou cortes de gastos e em quais áreas? Ademais esse programa será acrescido a outras despesas como os precatórios escalonados, além de novos gastos que devem surgir na folga criada pela inflação deste ano no teto de gastos. Esse conjunto de despesas pode tornar inevitável aumentos tributários em um futuro próximo, impondo um elevado custo à sociedade.
O mais grave, no entanto, é o seu objetivo claramente eleitoral, visando reverter a desvantagem do presidente nas próximas eleições. Buchanan e Wagner (1977) sustentam que déficits fiscais causam distorções nas democracias, já que seus benefícios são sentidos no curto prazo, enquanto seus custos, associados a desequilíbrios macroeconômicos como inflação, desemprego, juros altos e elevações tributárias, demoram a se manifestar. Já Tabellini e Alesina (1990) salientam que políticos têm o incentivo de elevar déficits no presente, visando bônus eleitoral e deixando os custos futuros do ajuste para seus sucessores. Nesse contexto, a proposta do Auxílio Brasil tem todas as características de um programa cujo objetivo seja auferir prestígio eleitoral ao seu idealizador. Jair Bolsonaro está, aparentemente, disposto a comprometer a estabilidade macroeconômica do país para se reeleger.
Para 2023, dois cenários são possíveis: 1 - a reeleição do atual presidente irá impor a necessidade que ele próprio conduza o ajuste fiscal. Se isso ocorrer, Bolsonaro herdará de si um país infinitamente mais desorganizado que recebeu em 2019, tendo que lidar com desemprego, dívida pública, câmbio, juros e inflação muito elevados; ou 2 - a eleição de Lula, que também terá de implementar ajustes fiscais, que via de regra são hostilizados por ele e seu partido.
Igualmente importante, é preciso atentar à configuração do Congresso que emergirá em 2023, isso porque boa parte das medidas fiscais dependem de esforços legislativos. No Brasil, a política fiscal é predominantemente formalizada na Constituição, o que torna o poder legislativo fundamental em qualquer estratégia de equilíbrio fiscal.
Independentemente do resultado das urnas, a próxima legislatura dependerá de credibilidade para que o ajuste tenha sucesso. Caso contrário, em um contexto de polarização exacerbada, o ano de 2023 pode reeditar as turbulências de 2015, afetando a governabilidade. Medidas como aumentos de impostos e cortes de gastos são impopulares por si próprias. Em períodos pós-eleitorais, mais ainda, porque o eleitor vota escolhendo cestas de bens públicos prometidos na eleição e, ao receber benefícios a menos, ou impostos a mais, sente-se enganado e tende a radicalizar.
É preciso evitar esse cenário. Melhor seria que o respeito à responsabilidade fiscal fosse cultivado já.
*Benito Salomão é economista do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFU (Universidade Federal de Uberlândia)
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/10/auxilio-brasil-e-risco-democratico.shtml