economia global
Por que a globalização está ameaçada
Michael Roberts, no The next recession*
Além da inflação e da guerra, o que atrai o pensamento econômico atual é o aparente fracasso do que a teoria econômica mainstream aprecia chamar de “globalização”. O que ela quer dizer com esse termo? Refere-se à expansão livre do comércio e do fluxo de capital através das fronteiras. Em 2000, o FMI identificou quatro aspectos básicos da globalização: comércio e transações, movimentos de capitais e investimentos, migração e circulação de pessoas e disseminação do conhecimento.
Todos esses componentes aparentemente se expandiram a partir do início da década de 1980 como parte da reversão neoliberal das políticas nacionais de macrogestão anteriormente seguidas. Ditas keynesianos, elas eram adotadas por governos no ambiente da ordem econômica mundial de Bretton Woods (isto é, sob a hegemonia dos EUA). A nova regra agora era quebrar as barreiras tarifárias, cotas e outras restrições comerciais, permitindo assim que as multinacionais negociassem “livremente” e transferissem os seus investimentos no exterior, ou seja, para áreas de mão de obra barata, com a finalidade de aumentar a lucratividade. Isso levaria à expansão global e ao desenvolvimento harmonioso das forças produtivas e ao crescimento dos recursos do mundo – pelo menos era o que se afirmava então.
Não havia nada de novo nesse fenômeno. Desde que o capitalismo se tornou o modo de produção dominante nas principais economias, já em meados do século XIX, houve períodos de aumento do comércio internacional e de exportação crescente de capital. Em 1848, os autores do Manifesto Comunista notaram o aumento no nível de interdependência nacional trazido pelo capitalismo e previram o caráter universal da sociedade mundial moderna: “A burguesia, por meio da exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para grande desgosto dos reacionários, ela tirou de debaixo dos pés da indústria o terreno nacional em que estava assentada. Todas as antigas indústrias nacionais estabelecidas foram destruídas ou estão sendo destruídas diariamente…. No lugar da antiga reclusão e autossuficiência local e nacional, temos relações em todas as direções, interdependência universal das nações”.
De fato, de acordo com a Organização Mundial do Comércio, um indicador-chave da “globalização”, a proporção das exportações mundiais em relação ao PIB mundial, ficou praticamente inalterado entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial; caiu depois quase 40% no período entre guerras; aumentou 50% de 1950-70; depois estagnou até a década de 1990, decolando até a Grande Recessão de 2009; depois disso, na Longa Depressão da década de 2010, esse indicador caiu cerca de 12%, um declínio não visto desde a década de 1970.
A última onda de globalização começou a diminuir pouco antes do início dos anos 2000, quando a lucratividade global passou a recuar, tal como mostra a figura abaixo.
Na década de 1990, o comércio mundial cresceu 6,2% ao ano, o investimento transfronteiriço (IDE) aumentou 15,3% ao ano e o PIB global se elevou em 3,8% ao ano. Mas, na longa depressão da década de 2010, o comércio cresceu apenas 2,7% ao ano, mais lento do que o PIB em 3,1%, enquanto o IDE aumentou apenas 0,8% ao ano. Ora, é isso o que mostra a figura em sequência.
Os fluxos de investimento transfronteiriços em ativos produtivos físicos também pararam de crescer na década de 2010, enquanto o comércio global por meio das “cadeia de valor” (ou seja, por meio de transferências internas de empresas multinacionais) também se estabilizou.
É claro que a crítica da economia política poderia ter previsto esse resultado da globalização. A teoria da vantagem comparativa de David Ricardo sempre foi comprovadamente falsa. Sob o capitalismo, com mercados sem restrições, as economias mais eficientes tomarão parte do comércio das menos eficientes. Assim, os desequilíbrios comerciais e de capital não tendem ao equilíbrio ao longo do tempo. Pelo contrário, os países costumam ter enormes déficits e superávits comerciais por longos períodos; experimentam crises cambiais recorrentes; os trabalhadores de um país perdem os seus empregos dada a concorrência do exterior; novos setores mais competitivos não costumam substituir os decadentes (ver Carchedi, Gugliermo – Frontiers of Political Economy).
Não são as vantagens comparativas ou os custos que impulsionam os ganhos comerciais, mas os custos absolutos (em outras palavras, a lucratividade relativa). Se os custos trabalhistas chineses forem muito menores do que os custos trabalhistas das empresas americanas, a China ganhará participação de mercado, mesmo que os Estados Unidos tenham a chamada “vantagem comparativa” em design ou inovação. O que realmente decide o crescimento de uma economia é o nível de produtividade e o custo da força de trabalho.
Ao contrário da visão do mainstream em Economia, o capitalismo não pode se expandir por meio de um desenvolvimento harmonioso e uniforme, estendendo-se para todo o mundo. Pelo contrário, o capitalismo é um sistema atravessado por contradições geradas pela lei do valor e pela motivação do lucro. Uma das contradições do capitalismo é a lei do desenvolvimento desigual – algumas economias nacionais concorrentes se saem melhor que outras. E quando as coisas ficam difíceis, os mais fortes começam a comer os mais fracos. Como Marx disse nas Teorias de mais-valia: “os capitalistas são como irmãos hostis que dividem entre si o saque do trabalho das pessoas que trabalham”. Às vezes, esses irmãos se mostram fraternos e a globalização se expande como no final do século XX; outras vezes, eles se afiguram hostis e a globalização diminui – como no século XXI.
Para a teoria marxista, globalização vem a ser de fato a palavra de uso corrente e dominante para se referir ao imperialismo. O século XX começou com o capitalismo mundial cada vez mais dividido entre um bloco imperialista dominante e o resto. No século XXI, o domínio do imperialismo permanece. E se, agora, as economias imperialistas começam a lutar pela lucratividade e pelos mercados, então elas começam a não cooperar, lançando as bases para a divisão, o conflito e a guerra.
Mesmo a teoria mainstream está agora ciente de que o livre comércio e o livre movimento de capital, que se aceleraram globalmente nos últimos 30 anos, não levaram ganhos para todos – exatamente ao contrário do que afirma a teoria da vantagem comparativa e da livre concorrência. A globalização e o livre comércio não trouxeram aumentos de renda para todos. Sob a livre circulação de capitais pertencentes às transnacionais, assim como sob o livre comércio sem tarifas e restrições, os grandes capitais mais eficientes triunfaram às custas dos mais fracos e ineficientes.
Em consequência, os trabalhadores desses últimos setores foram também atingidos. Em vez de um desenvolvimento harmonioso e igualitário, a globalização aumentou a desigualdade de riqueza e renda, tanto entre as nações quanto dentro delas. As corporações transnacionais transferiram as suas atividades para áreas em que a mão de obra era mais barata, adotaram novas tecnologias que exigem menos mão de obra na luta pela lucratividade.
Esses resultados se devem em parte à globalização levada a efeito pelo capital multinacional: fábricas e empregos foram transferidos para o que costumava ser chamado de Terceiro Mundo. Mas também se devem em parte às políticas neoliberais nas economias avançadas (isto é, redução do poder sindical e dos direitos trabalhistas; precarização do trabalho e redução dos salários; privatização e redução dos serviços públicos, pensões e benefícios sociais). Não se pode esquecer também a parte devida aos colapsos ou quedas regulares e recorrentes na produção capitalista.
Eis que tudo isso levou a uma perda de renda familiar para um volume expressivo de trabalhadores nos países desenvolvidos. Ora, essa perda nunca vai ser contrariada por meio de uma “recuperação’, principalmente a partir de 2009. O mundo capitalista nunca foi plano, mesmo no final do século XX – e certamente está bem montanhoso agora. A grande recessão, a fraca recuperação durante a longa depressão, a pandemia de COVID e agora o conflito Rússia-Ucrânia, tudo isso destruiu as cadeias de suprimentos globais, bloqueou o comércio global e interrompeu os movimentos de capital.
Durante os anos 1990 e 2000, a teoria econômica dominante (com poucas exceções) se alinhou com as teses liberais de David Ricardo; assim, os méritos imaculados da globalização foram louvados. Apesar das tendências atuais, alguns especialistas tradicionais ainda mantêm a visão de que a globalização retornará. Veja-se em sequência o que disseram dois deles:
“Foi a inflação” – disse o primeiro – “que ajudou a criar um novo ambiente político em meados do século XX e na década de 1970. À medida que os custos econômicos e políticos da inflação se tornaram mais óbvios e mais prejudiciais, parecia mais atraente procurar maneiras de acalmar as pressões inflacionárias. Com certeza, a cura da doença inflacionária – a globalização e um governo mais eficaz – foi temporariamente desconfortável. Mas levou o mundo a aproveitar oportunidades técnicas e geográficas antes ignoradas ou negligenciadas. Há, em suma, um futuro pós-conflito para o qual podemos olhar para frente com algum grau de esperança”.
“A minha crença” – disse o outro – “pode ser tomada como fé cega, contudo o fato é que as últimas orações para a globalização foram feitas várias vezes nos últimos anos, mas, em cada ocasião, ela se levantou do seu leito de morte parecendo, então, bastante animada. As empresas têm sido engenhosas, apoiam-se na tecnologia para se renovarem. Até mesmo os governos mais destrutivos têm se mostrado incapazes de anulá-la”.
Claro, o comércio mundial e o investimento transfronteiriço não vão desaparecer; ao contrário, continuarão a crescer (pelo menos um pouco) apesar das pandemias, guerras e cadeias de suprimentos em colapso. Mas isso dificilmente é um argumento para dizer que a onda de globalização anterior não acabou.
O argumento de fundo é que a crise de lucratividade e a inflação dos anos 1970 foi seguida pela onda de globalização dos anos 1980 e 1990 e isso pode acontecer novamente. Mas este não parece ser um cenário muito provável. A década de 2020 se parece mais com o período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial; veja-se que as potências econômicas rivais (irmãos inimigos) estão lutando agora entre si para obter uma parte maior dos lucros gerados globalmente.
Escrevendo no final da década de 1880, Engels previu, não a expansão global harmoniosa como pensava o líder e teórico social-democrata alemão Karl Kautsky, mas o aumento da rivalidade entre as potências econômicas concorrentes, o que resultaria em uma nova guerra europeia: “as destruições da Guerra dos Trinta Anos (ocorrida no século XVII) seriam comprimidas em três a quatro anos e estendidas por todo o continente… com uma realocação irrecuperável de nosso sistema artificial de comércio, indústria e crédito, sem um retorno à expansão global de 1850-70”.
Os keynesianos agora procuram retornar aos dias de Bretton Woods com suas taxas de câmbio fixas, estímulos fiscais dos governos e tarifas gradualmente reduzidas. Afirmam que isso levaria a um renascimento do “multilateralismo” e da cooperação global. Eis que uma ordem mundial de paz e harmonia poderia ser aparentemente restaurada.
Mas esse prognóstico – veja-se bem – é apenas uma negação da história e da realidade dos anos 2020. As organizações multilaterais do pós-guerra, como o FMI, o Banco Mundial e a ONU, estavam todas sob a “orientação” do capitalismo norte-americano. Mas agora a hegemonia dos EUA não se impõe mais de modo seguro; ademais, de modo mais significativo, a alta lucratividade das principais economias pós-1945 não existe mais. Os irmãos agora não são mais fraternos entre si, mas hostis. A atual tentativa dos EUA de manter sua hegemonia é mais parecida com tentar colocar gatos em um mesmo saco.
É perfeitamente possível argumentar que a desglobalização diminui a eficiência das empresas, diminui a concorrência e que isso não é bom para o capital. Sem qualquer reversão prevista no rumo das coisas para acelerar o crescimento, um mundo desglobalizado seria “muito inferior” aos últimos 30 anos em que prevaleceu uma abertura do comércio mundial.
Um estudo recente da Organização Mundial do Comércio, baseado em medição do impacto dinâmico da perda de comércio e da difusão de tecnologia, descobriu que “uma divisão potencial do sistema de comércio global em dois blocos – um bloco centrado nos EUA e outro centrado na China – reduziria o bem-estar global, por volta de 2040, em comparação com uma linha de base, em cerca de 5%. As perdas seriam maiores (mais de 10%) nas regiões de baixa renda que costumam se beneficiar de repercussões positivas dos avanços do comércio e da tecnologia”. De fato, o colapso da globalização pode se transformar não apenas em uma batalha entre dois blocos, mas em uma mistura mais complexa de unidades econômicas concorrentes.
De qualquer modo, a globalização só retornará eventualmente se e quando o capitalismo ganhar um novo sopro de vida baseado em lucratividade crescente e sustentada. Parece improvável que isso aconteça diante da perspectiva de uma nova crise nos próximos anos – e talvez de mais guerra.
*Texto publicado orginalmente em The next recession
José Roberto Mendonça de Barros: Um primeiro balanço da economia global
Uma primeira observação é notar o sucesso relativo de várias regiões em lidar com a pandemia; dentro do espaço econômico, porém, a assimetria de situações e ampliação das desigualdades foram a marca universal
A covid-19 dominou totalmente 2020: pela surpresa com que apareceu e velocidade com que se espalhou pelo mundo, por sua durabilidade e pelos catastróficos efeitos sobre as pessoas, as sociedades e o desempenho econômico. O único alívio é a certeza de que teremos vacinas disponíveis já no primeiro trimestre do próximo ano.
Vai levar muito tempo para que análises mais consistentes possam ser feitas quanto aos impactos do vírus. Entretanto, é útil fazermos um primeiro balanço. Uma primeira observação é notar o sucesso relativo de várias regiões em lidar com a pandemia, pois o ano foi mostrando resultados bastante diversos. Dentro do espaço econômico, porém, a assimetria de situações e a ampliação das desigualdades entre pessoas, regiões e empresas foram a marca universal.
Não há nenhuma dúvida de que a Ásia sai ganhadora do enorme desafio de voltar à normalidade. Isso porque a maior parte dos países do continente – a grande exceção é a Índia – acabou por lidar bastante bem com a pandemia. A estratégia bem-sucedida foi similar: quarentena e testagem da população em larga escala. Após um eventual teste positivo, as autoridades sanitárias isolavam todos os contatos do paciente, o que terminou por conter rapidamente a contaminação. Como o vírus apareceu no primeiro trimestre de 2020, já a partir de abril a maior parte dos asiáticos foi voltando ao trabalho. Com isso, alguns países, como a China, apresentarão crescimento do PIB já neste ano. E todos vão crescer com robustez em 2021. Além disso, no dia 15 de outubro, 15 dos países da região assinaram um acordo comercial denominado Parceria Econômica Regional Abrangente, que certamente acentuará a já avançada integração das cadeias produtivas asiáticas, reforçando o crescimento.
Eis aí mais um custo da gestão Trump, que em uma de suas primeiras medidas retirou os Estados Unidos de outro acordo longamente negociado no governo Obama, o Acordo Transpacífico. Essa negociação buscava reforçar a posição dos parceiros americanos na Ásia de sorte a conter a expansão chinesa. A decisão de Trump criou a oportunidade para a China, que dela alegremente se aproveitou. O crescimento de boa parte dos países da Ásia entre 2020 e 2021 será significativo, especialmente na China, cujo PIB expandirá 10%, segundo as últimas projeções do FMI.
Os Estados Unidos, por outro lado, ainda estão sofrendo muito com a disseminação do vírus. Na média móvel de sete dias terminada no dia 23, ocorreram quase 170 mil novos casos e mais de 1.500 mortes por dia, um número elevadíssimo. Isso é o resultado do negacionismo do governo americano – aliás, similar ao do brasileiro. A economia deve se contrair 4,3%, o que não será compensado pela projeção de um crescimento de 3,1% no próximo ano. No biênio, a economia americana, embora apresente dinamismo na área tecnológica e no mercado imobiliário, ainda andará de lado porque largas frações dos serviços e o mercado de trabalho continuarão sofrendo com a imposição do distanciamento social. O resultado da eleição mostrou um país muito dividido, que torna muito mais difícil implantar novas políticas públicas.
Com essas projeções, a distância entre a economia da China e a americana encolherá incríveis 10% em dois anos!
O terceiro bloco econômico relevante é o europeu. O impacto da segunda onda da covid no Velho Continente está sendo muito grande. O FMI projeta queda no PIB em torno de 10% na França e na Itália e de 13% na Espanha. O ponto positivo é que, em meio à tormenta, França e Alemanha se puseram de acordo quanto à política fiscal, decidindo pela emissão de € 750 bilhões em bônus para apoiar a retomada. Além disso, o grupo decidiu também estimular investimentos de uma agenda de futuro: descarbonização e novas energias, baterias e eletrificação da frota, inteligência artificial e outras.
Finalmente, e lamentavelmente, as perdas na América Latina serão enormes, especialmente na Colômbia, no México, no Peru e na Argentina, com retração próxima ou superior a 10% no PIB. Mesmo no Chile, país exemplo da região, a economia deve recuar 6%. Em todos os países, exceto o Uruguai, vemos crises políticas significativas. O Brasil, com nossa projeção de queda de 4%, até que não se sai tão mal no meio desse banho de sangue.
* Economista e sócio da MB Associados.