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Revista online | Inteligência artificial: o difícil desafio de enfrentar as ambiguidades

Dora Kaufman*, professora da PUC-SP, especial para a revista Política Democrática online (52ª edição) 

O hype do ChatGPT despertou a sociedade para o poder da inteligência artificial (IA), tecnologia que está no cerne dos modelos de negócio das plataformas e aplicativos tecnológicos que acessamos cotidianamente, na otimização de processos, nas decisões automatizadas como seleção e contratação de RH e concessão de crédito, além de diversas outras implementações. A adoção generalizada desses sistemas gera externalidades positivas com benefícios extraordinários em distintos setores, e externalidades negativas com potenciais danos ao usuário afetado, às instituições e à sociedade. Para enfrentar essas ambiguidades, é crítico regulamentar o desenvolvimento e uso da IA, pelo poder público, e estabelecer diretrizes de governança de IA, pelo setor privado e público.

Primeiramente, por que precisamos regulamentar a inteligência artificial, ou seja, conferir tratamento distinto das demais tecnologias digitais? A resposta está na natureza de propósito geral da IA, que como tal está reconfigurando a lógica de funcionamento da economia e da sociedade do século XXI. Estamos migrando de um mundo de máquinas programadas para um mundo de máquinas probabilísticas, expandindo a automação programada com a automação “inteligente” com impactos sobre o trabalho, sobre a percepção de controle e gestão de riscos; gradativamente, a IA torna-se protagonista em processos decisórios pela capacidade de gerar previsões com taxas relativamente altas de acurácia. O desafio, portanto, é garantir que a sociedade como um todo usufrua de seus benefícios e, simultaneamente, mitigar os malefícios particularmente às aplicações em domínios sensíveis (saúde, educação, segurança, justiça).

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O contra-argumento de que a regulação pode inibir o desenvolvimento da inteligência artificial é falacioso. Setores muito regulamentados, por exemplo, o farmacêutico e o bancário, preservam a inovação incremental e a inovação disruptiva. Ambiente de negócio com regras claras, ao gerar mais confiança, incentiva o próprio uso da tecnologia; ademais, a não observância de uma "IA ética" compromete um ativo estratégico: a reputação da organização. Estar em "compliance" com a lei implicará em custos extras, sem dúvida, mas esses custos representam percentuais relativamente pequenos dos ganhos de eficiência em adotar a IA para otimizar processos, produtos e serviços.

Regulamentar a inteligência artificial não é trivial, começando pela definição do que seja um sistema de IA, o que explica o fato de que não temos um marco regulatório em lugar algum do mundo, apenas propostas em debate como a da Comissão Europeia e o substitutivo da Comissão de Juristas do Senado. Nos EUA, intensifica-se a pressão por parte de parlamentares sobre as autoridade federais para empreenderem ações concretas para garantir sistemas de IA mais seguros e éticos, em paralelo à iniciativas positivas de Washington como a divulgação, em janeiro último, do relatório final da Força-Tarefa Nacional de Recursos de Pesquisa em IA (The National AI Research Resource -NAIRR), comitê consultivo federal estabelecido pela Lei de Iniciativa Nacional de IA de 2020, composto por membros do governo, da academia e de organizações privadas.

No Brasil, a expectativa é que o Relatório da Comissão de Juristas trâmite no Senado ao longo de 2023 e seja submetido à ampla consulta pública, permitindo aperfeiçoar seus 48 artigos e estabelecer um marco regulatório de referência mundial. O que temos no momento como alternativa é o projeto de lei aprovado no plenário da Câmara dos Deputados em 29 de setembro de 2021 (PL 21/2020) basicamente principiológico: generalista, inócuo como instrumento de proteção à sociedade, particularmente da pessoa afetada pelas decisões automatizadas com IA, além de não prever direitos aos afetados nem punições.

Saiba mais sobre a autora

*Dora Kaufman é professora do programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD)  da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), pelo qual também é pós-doutora.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro de 2023 (52ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da revista.

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Dora Kaufman aponta ‘supervalorização e demonização da inteligência artificial’

Pesquisadora vai participar de webinar da FAP, no dia 25 de outubro, a partir das 17h30

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

A pesquisadora e professora do Programa de Tecnologias Inteligentes e Design Digital da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) Dora Kaufman aponta “supervalorização e demonização da inteligência artificial” na sociedade por causa do que ela chama de “desconhecimento sobre essa tecnologia”. A pesquisadora vai participar, na segunda-feira (25/10), do webinar com o tema “O espaço público é Figital: consequências para a política e para os partidos?”

Assista!



Realizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília, o webinar também terá participação do pós-doutor em computação pela University of Kent at Canterbury (Inglaterra) Silvio Meira, que também é professor extraordinário da Cesar School e cientista-chefe da TDS Company. O engenheiro Fersen Lambranho, que é sócio-presidente do conselho da GP Investments, também confirmou presença no webinar.

O evento será transmitido, a partir das 17h30, em tempo real, no portal, na página da FAP no Facebook e no canal da entidade no Youtube. Interessados podem enviar perguntas para o departamento de tecnologia de informação da fundação, por meio do WhatsApp (61 98419-6983).

Colunista da Época Negócios com foco nos impactos éticos e sociais da inteligência artificial, Dora observa que a inteligência artificial ainda não foi usada em eleições no Brasil. “Mecanismo de reproduzir fake News não é inteligência artificial. Não vi nada de estudo nem qualquer outra indicação de que foi usada em campanha eleitoral no país”, pondera

Na campanha de Donald Trump, que venceu Hillary Clinton nas eleições dos Estados Unidos em 2016, toda a estratégia de campanha usou inteligência artificial. No entanto, de acordo com pesquisas, não se pode afirmar que essa tecnologia interferiu no resultado das eleições de forma relevante.

“Pesquisas sobre a eleição de 2016 mostram que há uma supervalorização da inteligência artificial e de todas as tecnologias digitais no resultado da eleição de Trump”, afirma Dora. “Está acontecendo demonização da inteligência artificial por falta de conhecimento. A gente tem que entender como ela funciona, os limites dela. A técnica é muito restrita ainda para a gente poder identificar as questões reais”, ressalta.


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Na avaliação da pesquisadora, ao supervalorizar a inteligência artificial, as pessoas “entram no universo da ficção científica". "Parece que a sociedade não tinha problemas antes. Tem certa tendência a atribuir a essas tecnologias problemas históricos da sociedade, como polarização, fake News. Tem nada mais fake News que propaganda eleitoral oficial. Nela, o candidato diz o que quer para conseguir voto. A campanha eleitoral é absolutamente fake News”, critica.

A colunista diz não acreditar que algumas pessoas supervalorizam os efeitos da inteligência artificial de forma proposital. “Não acho que ninguém faz isso propositalmente. Não tenho nenhuma evidência de que isso seja feito de propósito”, acentua, para continuar: “É difícil mesmo”.

Do ponto de vista da adoção da inteligência artificial por parte das empresas, Dora acredita que o Brasil está atrasado. “Mas a vida dos brasileiros é mediada por algoritmos de inteligência artificial. Todas as plataformas e aplicativos que a gente usa no cotidiano é tudo modelo de negócio baseado na inteligência artificial”, explica.

“Os algoritmos de inteligência artificial estão mediando sociabilidade e a comunicação atual. Eles têm reflexo, de alguma forma, na política, que é um evento social e de comunicação. Toda campanha política é uma ação de comunicação”, analisa.

Webinar | O espaço público é Figital: consequências para a política e para os partidos?
Data: 25/10/2021
Horário: 17h30
Transmissão: Portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da Fundação Astrojildo Pereira
Realização: Fundação Astrojildo Pereira


RPD || Dora Kaufman: A complexidade da decisão da Ford de deixar o Brasil

A pandemia da Covid-19 acentuou a mudança comportamental com impactos no futuro da mobilidade e preocupação com a sustentabilidade. Contexto influiu na crise da Ford e decisão de fechar suas fábricas no Brasil

A 51ª Reunião Anual do Fórum Econômico Mundial, pela primeira vez realizada virtualmente por conta da pandemia da Covid-19 (janeiro, 2021), teve como tema central “The Great Reset”, compromisso de reconstrução das bases do sistema socioeconômico visando um futuro “mais justo, sustentável e resiliente”.

O Relatório de Riscos Globais de 2021 do Fórum, um dos mais importantes desde sua concepção em 2006, identificou como um dos principais riscos à degradação ambiental (condições climáticas adversas e perda de biodiversidade); a meta é descarbonizar a economia até 2030.[1]

Não por coincidência, o retorno dos EUA ao “Acordo de Paris” foi um dos primeiros atos assinados pelo Presidente Joe Biden. A agenda da sustentabilidade impacta todas as indústrias, particularmente a indústria automotiva. Guiadas pela “economia verde”, as montadoras estão investindo pesado na ampliação de suas linhas de veículos elétricos (EVs - Electric Vehicles).

É interessante observar que a liderança desse segmento pertence à Tesla, empresa de tecnologia e não uma das tradicionais montadoras, detendo 50% do valor de mercado, seguida pela Toyota e Volkswagen. A Ford, atualmente está classificada na posição 15, com planos de eletrificação começando por modelos “populares", como o Mustang Mach-E SUV.[2]

Além dos carros elétricos, com a migração da queima de combustível fóssil para corrente elétrica, eliminando os impactos climáticos negativos. Outros três fatores são responsáveis pela transformação da indústria automotiva: o conceito de acesso substituindo a propriedade, o veículo autônomo e a mudança comportamental. Em 2000, o economista americano Jeremy Rifkin publicou o livro A Era do Acesso e defendeu que a noção de propriedade tende a ser substituída pelo acesso, e a relação entre vendedores e compradores para a de fornecedores e usuários.

Nesse ambiente econômico, as empresas, no limite, entregarão gratuitamente seus produtos apostando no relacionamento com seus clientes, baseado na prestação de serviços. A garantia de acesso ao bem, quando e como preferir, torna-se mais importante do que a propriedade desse bem. Experiências como Uber sinalizam nessa direção estimulando, inclusive, serviços de aluguel de veículos por parte de montadoras.

A comercialização de carros autônomos enfrenta desafios ainda não equacionados - conexão com a infraestrutura das cidades e arcabouço regulatório incluindo a responsabilidade por eventuais danos -, mas as expectativas são promissoras. O relatório [3], conduzido pela KPMG com 751 executivos norte-americanos, inclusive da área de transportes, apontou que 82% dos entrevistados acreditam que os veículos autônomos serão uma realidade nos próximos 10 anos, com 35% prevendo que o fato ocorrerá nos próximos cinco anos.

A pandemia da Covid-19 acentuou a mudança comportamental com impactos no futuro da mobilidade, como aponta estudo da consultoria McKinsey[4], ampliando os canais digitais e as preocupações com a sustentabilidade, favorecendo a mobilidade compartilhada, e a micromobilidade com veículos leves tais como as bicicletas (expectativa de aumento de 5% no uso), as scooters e os ciclomotores. Esse é o contexto para compreender a crise da Ford com a subsequente decisão de fechar suas fábricas no Brasil, ela que foi a primeira montadora a se instalar no país no longínquo ano de 1919. A Ford não conseguiu se posicionar bem neste novo cenário, está atrasada com as soluções inovadoras (carro elétrico, carro autônomo) e, pior, não teve sucesso em concretizar coligações ou fusões com outras montadoras seguindo o movimento global, como bem ilustra a recém constituída Stellantis, fusão entre Fiat Chrysler e Peugeot Citroën.

Adicionalmente, as condições desfavoráveis do Brasil configuram externalidades negativas. O coordenador do Observatório de Inovação da USP, Glauco Arbix, alerta para redução mais acelerada da participação da indústria brasileira no PIB, comparativamente ao resto do mundo, caracterizada por “desindustrialização prematura”, gerando uma economia disfuncional, elevando ainda mais o “custo Brasil”. Esse movimento, segundo Arbix, atinge fortemente o setor automotivo, dentre outros fatores pelo declínio da indústria com base no petróleo.

No caso da Ford, o atrativo do tamanho do mercado consumidor brasileiro não compensou as condições de produção mais favoráveis da Argentina. Em dezembro último, a montadora alemã Mercedes-Benz anunciou o fechamento de sua fábrica em Iracemápolis, no interior paulista, onde produzia os modelos Classe C sedã e o utilitário esportivo GLA. Resta-nos torcer para não virar tendência entre as montadoras.

*Dora Kaufman é doutora em Mídias Digitais pela USP, pós-doutora pela COPPE-UFRJ e pesquisadora dos impactos sociais de Inteligência Artificial em seu pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TID D|PUC-SP), sob supervisão de Lucia Santaella, e participa do grupo de IA do Instituto de Estudos Avançados e do Centro de Pesquisa Atopos, ambos da USP.


[1] (http://reports.weforum.org/global-risks-report-2021/). 

[2] (https://www.visualcapitalist.com/worlds-top-car-manufacturer-by-market-cap/)

[3] "Vivendo em um mundo de IA" (Living in an AI world,https://advisory.kpmg.us/content/dam/advisory/en/pdfs/2020/transportation-living-in-an-ai-world.pdf.)   

[4] (https://www.mckinsey.com/industries/automotive-and-assembly/our-insights/from-no-mobility-to-future-mobility-where-covid-19-has-accelerated-change)


Quem é o profissional do futuro com novas formas de trabalho? Dora Kaufman explica

Em artigo publicado na revista da FAP de dezembro, pesquisadora da USP cita habilidades imprescindíveis

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A pesquisadora de impactos sociais da Inteligência Artificial Dora Kaufman diz que a crise socioeconômica provocada pela Covid-19 tornou visível a premência da sociedade em enfrentar desafios cruciais. “As mudanças na prática de negócios, provavelmente, consolidarão formas totalmente novas de trabalhar”, afirma ela, que é doutora em mídias digitais pela USP (Universidade de São Paulo), em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Segundo Dora, as primeiras evidências sugerem que os empregadores devem acelerar a automatização, ampliando a possibilidade de uma ‘recuperação sem empregos’. “Além do deslocamento do mercado de trabalho, em paralelo, emerge inédita forma de relacionamento homem-máquina que demanda novas habilidades dos profissionais”, diz.

Em seu artigo na revista Política Democrática Online, a pesquisadora também afirma que documentos de políticas públicas de distintos países contemplam o desenvolvimento de habilidades como estratégico. “O profissional do futuro irá lidar com questões complexas e multidisciplinares, que requerem, além de conhecimentos técnicos, habilidades de lógica, análise crítica, empatia, comunicação e design”, explica.

De acordo com Dora, é um equívoco, amplamente difundido, considerar a automação ameaça apenas aos trabalhadores com baixa qualificação, que tendem a desempenhar tarefas rotineiras e repetitivas. “O avanço acelerado das tecnologias – particularmente os algoritmos preditivos de inteligência artificial – substituirá igualmente as funções cognitivas. A qualificação e requalificação dos profissionais é crítica para evitar o cenário de desemprego em massa e aumento da desigualdade”, alerta.

Ela cita, em seu artigo, relatório do Fórum Econômico Mundial, publicado em 21 de outubro de 2020, que analisa o cenário atual do trabalho impactado por “dupla interrupção”: a pandemia causada pela Covid-19 e o avanço da automação. Seu pressuposto, explica, é que o desenvolvimento e o aprimoramento das habilidades e capacidades humanas por meio da educação e aprendizagem são os principais motores do sucesso econômico, do bem-estar individual e da coesão social. “A escassez de habilidades e de competências compromete a capacidade das empresas de aproveitar o potencial de crescimento proporcionado pelas novas tecnologias”, pondera.

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Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Revista da FAP analisa o resultado das eleições em direção diferente a da polarização de 2018; acesso gratuito no site da entidade

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O recado das urnas em direção oposta à da polarização de dois anos atrás, o desastre da gestão governamental de Bolsonaro que gerou retrocesso recorde na área ambiental e a incapacidade de o presidente exercer sua responsabilidade primária, a de governar, são destaques da revista Política Democrática Online de dezembro. A publicação mensal foi lançada, nesta quinta-feira (17), pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza a íntegra dos conteúdos em seu site, gratuitamente.

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No editorial, a publicação projeta o que chama de “horizonte sombrio”. “Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional”, diz um trecho.

Em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, o professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo), José Álvaro Moisés, avalia que existe, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer Bolsonaro nas eleições de 2022.

Moisés, que é coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade. Isso, segundo ele, para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País.

Outro destaque é para a análise do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, que avalia que “o Ano 2 – como dizem os jovens – ‘deu mal’ para Bolsonaro”. Ao final de 2020, diz o autor do artigo, o destino o presidente é cada vez mais incerto, com popularidade declinante e problemas políticos de grande magnitude. “Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, perdeu seu principal referente ideológico”, afirma Aggio.

“O isolamento internacional do País é sem precedentes, depois de desavenças com a China e a União Europeia. Sob pressão, Bolsonaro estará forçado a uma readequação na política externa. Não haverá futuro caso não se supere a redução do Brasil a ‘País pária’ na ordem mundial, admitido de bom grado pelo chanceler Ernesto Araujo”, acrescenta o professor da Unesp.

Ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública e ex-deputado federal, Raul Jungmann analisa, em seu artigo, a necessidade de dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil. Isso, segundo ele, “é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana”.  “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente”, assevera.

O conselho editorial da revista Política Democrática Online é formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

Veja lista de todos os conteúdos da revista Política Democrática Online de dezembro:

  • José Álvaro Moisés: ‘O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum’
  • Cleomar Almeida: Vítimas enfrentam longa via-crúcis no combate ao estupro
  • Charge de JCaesar
  • Editorial: Horizonte sombrio
  • Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo
  • Paulo Ferraciolli: RCEP, o maior tratado de livre-comércio do mundo
  • Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro – Uma eleição e dois scripts
  • Bazileu Margarido: Política ambiental liderando o atraso
  • Jorio Dauster: Do Catcher ao Apanhador, um percurso de acasos
  • Alberto Aggio: Bolsonaro, Ano 2
  • Zulu Araújo: Entre daltônicos, pessoas de cor e o racismo
  • Ciro Gondim Leichsenring: Adivinhando o futuro
  • Dora Kaufman: Transformação digital acelerada é desafio crucial
  • Henrique Brandão: Nelson Rodrigues – O mundo pelo buraco da fechadura
  • Hussein Kalout: A diplomacia do caos
  • João Trindade Cavalcante Filho: O STF e a democracia
  • Raul Jungmann: Militares e elites civis – Liderança e responsabilidade

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RPD || Dora Kaufman: Transformação digital acelerada é desafio crucial

Qualificação e requalificação dos profissionais em razão do avanço acelerado das tecnologias são necessárias para evitar o cenário de desemprego em massa e aumento da desigualdade    

A crise socioeconômica provocada pela Covid-19 tornou visível a premência da sociedade em enfrentar desafios cruciais. As mudanças na prática de negócios, provavelmente, consolidarão formas totalmente novas de trabalhar. As primeiras evidências sugerem que os empregadores devem acelerar a automação, ampliando a possibilidade de uma “recuperação sem empregos”. Além do deslocamento do mercado de trabalho, em paralelo emerge uma inédita forma de relacionamento ‘homem-máquina’ que demanda novas habilidades dos profissionais.  

Documentos de políticas públicas de distintos países contemplam o desenvolvimento de habilidades como estratégico. O profissional do futuro irá lidar com questões complexas e multidisciplinares que requerem, além de conhecimentos técnicos, habilidades de lógica, análise crítica, empatia, comunicação e design. É um equívoco, amplamente difundido, considerar a automação ameaça apenas aos trabalhadores com baixa qualificação, que tendem a desempenhar tarefas rotineiras e repetitivas. Na verdade, o avanço acelerado das tecnologias – particularmente os algoritmos preditivos de inteligência artificial – substituirá igualmente as funções cognitivas. A qualificação e requalificação dos profissionais é crítica para evitar o cenário de desemprego em massa e aumento da desigualdade.  

Relatório do Fórum Econômico Mundial (“Relatório”), publicado em 21 outubro 2020, analisa o cenário atual do trabalho impactado por “dupla interrupção”: a pandemia causada pela Covid-19 e o avanço da automação. Seu pressuposto é que o desenvolvimento e o aprimoramento das habilidades e capacidades humanas por meio da educação e aprendizagem são os principais motores do sucesso econômico, do bem-estar individual e da coesão social. A escassez de habilidades e de competências compromete a capacidade das empresas de aproveitar o potencial de crescimento proporcionado pelas novas tecnologias.  

“No Brasil, carecemos de política pública e de ecossistemas favoráveis. Uma das consequências é a alta taxa de desemprego com número crescente de vagas em aberto por falta de profissionais qualificados”
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Principais conclusões do Relatório: a) o ritmo de adoção das tecnologias deve se acelerar em algumas áreas; b) a adoção de novas tecnologias pelas empresas transformará tarefas, empregos e habilidades até 2025, e 43% das empresas pesquisadas indicam redução da força de trabalho devido à integração de tecnologias; c) as lacunas de competências continuam a ser altas: em 2025, 44% das habilidades que os funcionários precisarão para desempenhar suas funções com eficácia serão alteradas; d) mais de um quarto dos empregadores espera reduzir temporariamente sua força de trabalho, e um em cada cinco espera fazê-lo permanentemente; e) na próxima década, uma parcela não desprezível dos empregos recém-criados será em ocupações totalmente novas, ou ocupações existentes com conteúdos e requisitos de competências transformados; e (f) na ausência de esforços proativos, a desigualdade provavelmente será exacerbada. O setor público precisa fornecer apoio mais forte para a qualificação e a requalificação de trabalhadores em risco ou deslocados.  

A atuação do Fórum é respaldada localmente pelas políticas públicas dos países. Nos EUA, por exemplo, o governo convocou o setor privado a se comprometer com a qualificação/requalificação de sua força de trabalho por meio do Pledge to America’s Workers: mais de 415 empresas do setor privado já se comprometeram com 14,5 milhões de oportunidades de aprimoramento de carreira nos próximos cinco anos. No final de 2019, a França criou uma conta de competências individuais com uma aplicação móvel dedicada à formação profissional e aprendizagem ao longo da vida. Sob a “moncompteformation.gouv.fr”, 28 milhões de trabalhadores elegíveis em tempo integral e parcial receberão € 500 anualmente diretamente em sua conta para gastar em qualificação e aprendizagem contínua, com trabalhadores pouco qualificados e aqueles com necessidades especiais recebendo até € 800 anualmente. Cingapura, recentemente, complementou sua pioneira Iniciativa do Futuro de Competências com a implantação do Pacote de Suporte de Treinamento Aprimorado (ETSP), para apoiar trabalhadores e organizações em investimentos sustentáveis em requalificação e qualificação durante a Covid-19.  

No Brasil, carecemos de política pública e de ecossistemas favoráveis. Uma das consequências disso é a convivência de alta taxa de desemprego com número crescente de vagas em aberto por falta de profissionais qualificados. Algo precisa ser feito, e com urgência.

*Doutora em Mídias Digitais pela USP, pós-doutora pela COPPE-UFRJ e pesquisadora dos impactos sociais de Inteligência Artificial em seu pós-doutorado no Centro de Tecnologias da da Inteligência e Design Digital (TID D|PUC-SP), sob supervisão de Lucia Santaella, e participa do grupo de IA do Instituto de Estudos Avançados e do Centro de Pesquisa Atopos, ambos da USP.


Dora Kaufman: Redes neurais artificiais e a complexidade do cérebro humano

A ideia de usar a lógica de aprendizagem em uma máquina remete, ao menos, à Alan Turing. Em seu artigo de 1950, onde propõe um teste para a pergunta se uma máquina pode pensar (Computing Machinery and Intelligence, Mind Magazine), Turing cogita a ideia de produzir um programa que, em vez de simular a mente do adulto, simule a mente de uma criança. Evoluindo ao longo do tempo, ele a chamou de “máquina-criança”. O campo da inteligência artificial (IA) foi inaugurado num seminário de verão, em 1956, com a premissa de que “todos os aspectos da aprendizagem ou qualquer outra característica da inteligência, podem, em princípio, ser descritos tão precisamente de modo que uma máquina pode ser construída para simulá-la”. Quase 80 anos depois, a IA ainda está restrita à modelos empíricos, o campo não possui uma teoria, e é controversa a associação à máquinas de conceitos como inteligência e aprendizado.

Ética é objeto da ação humana, não existe ética da inteligência artificial
Apostando na superação das limitações científicas atuais, um grupo de líderes do Vale do Silício está empenhado em “superar a morte”, atingir o que eles chamam de “amortalidade”. Ray Kurzweil, no livro The Singularity is Near, prevê que ao final do século XXI a parte não biológica da inteligência humana será trilhões de vezes mais poderosa que a inteligência humana biológica, e não haverá distinção entre humanos e máquinas.

Em 2013, o Google fundou a Calico, empresa dedicada a “resolver a morte”, em seguida nomeou Bill Maris, igualmente empenhado na busca da imortalidade, como presidente do fundo de investimento Google Venture que aloca 36% do total de 2 bilhões de dólares em startups de biociência com projetos associados à prorrogar a vida. No mesmo ano, Peter Diamandis, co-fundador e presidente executivo da Singularity University, lançou a empresa Human Longevity dedicada à combater o envelhecimento, projetando que o aumento da longevidade criaria um mercado global de US$ 3,5 trilhões.

A startup Neuralink, fundada por Elon Musk em 2016, investe no desenvolvimento de uma interface cérebro-computador que possibilitaria, por exemplo, fazer streaming de música direto no cérebro; outro foco é viabilizar a transferência da mente humana para um computador, libertando o cérebro do corpo envelhecido e acoplando-o à uma “vida digital” num processo chamado “mind-upload” (transferência da mente humana). Essa visão utópica pós-humanista supõe que esses melhoramentos conduzirão à vitória sobre o envelhecimento biológico, portanto, ao nascimento de uma nova espécie: os pós-humanos, libertados de seu corpo mortal.

Na visão de Yoshua Bengio, um dos três idealizadores do deep learning, "esses tipos de cenários não são compatíveis com a forma como construímos atualmente a IA. As coisas podem ser diferentes em algumas décadas, não tenho ideia, mas, no que me diz respeito, isso é ficção científica".

O ponto de partida para avaliar o quão distante a ciência está dessas ideias é compreender a arquitetura e o funcionamento do cérebro. O biofísico Roberto Lent, em recente conversa no TIDD Digital, traduziu a extrema complexidade do cérebro humano em números: cada ser humano possui 86 bilhões de neurônios e 85 bilhões de células coadjuvantes no processo da informação. Considerando apenas os neurônios, como em média ocorrem 100 mil sinapses por neurônio, temos um total aproximado de 8,6 quatrilhões de circuitos que, ainda por cima, são plásticos, ou seja, mutáveis continuamente.

Numa sinapse, transmissão da informação de um neurônio para o outro, o segundo neurônio pode bloquear a informação, pode modificar a informação, pode aumentar a informação, ou seja, a informação que passa para o segundo neurônio pode ser bastante diferente da informação que entrou, indicando a enorme capacidade de modificação da informação que tem o cérebro. As regiões responsáveis pela memória e pelas emoções, dentre outros fatores, afetam a informação inicial.

O aprendizado de uma criança, que alguns comparam com o aprendizado de máquina, ocorre por complexos processos cerebrais. Segundo Lent, uma criança para aprender a escrever precisa formar uma conexão entre escrita e significado, para tal usa a região da face no hemisfério esquerdo porque não temos uma área cerebral da escrita e da leitura. Essas habilidades são construtos da civilização, que têm "apenas" 4 mil anos, logo não tem tempo evolutivo suficiente para ter uma área cerebral específica. A região do hemisfério esquerdo, desenvolvida na fase bebê para o reconhecimento de faces, desloca-se para o hemisfério direito, e no hemisfério esquerdo começa a ser implantada uma região de reconhecimento de símbolos da escrita. Isso mostra o grau de plasticidade do cérebro, ao realocar funções que vão aparecendo durante a vida do indivíduo com novas aquisições culturais.

A neuroplasticidade — capacidade do cérebro de mudar, adaptar-se e moldar-se a nível estrutural e funcional quando sujeito à novas experiências do ambiente interno e externo —, gera uma complexidade que é difícil reproduzir em uma máquina. A dinâmica do cérebro é altamente modulável, não é uma cadeia de informação linear que leva diretamente à um resultado previsível, como também nos ensinou Roberto Lent.

Para Yann LeCun, outro dos três idealizadores do deep learning, a observação e a interação da criança com o mundo desempenham um papel central no aprendizado infantil, incluindo saberes tais como que o mundo é tridimensional, que tem gravidade, inércia e rigidez. Esse tipo de acúmulo de enorme quantidade de conhecimento é que não se sabe como reproduzir nas máquinas - observar o mundo e descobrir como ele funciona -, mas em algum momento, pondera LeCun, "vai se descobrir uma maneira de treinar as máquinas para que aprendam como o mundo funciona assistindo vídeos do YouTube”.

Andrew NG, respeitado cientista e empreendedor em IA, crê que o maior problema da IA é de comunicação: "O tremendo progresso por meio da IA ‘estreita' está fazendo com que as pessoas argumentem erroneamente que há um tremendo progresso na AGI (artificial general intelligence). Francamente, não vejo muito progresso em direção à AGI”. A IA que atualmente permeia os aplicativos, plataformas online, sistemas de rastreamento e de reconhecimento facial, diagnósticos médicos, modelos de negócio, redes sociais, plataformas de busca, otimização de processos, chatbots, e mais uma infinidade de tarefas automatizáveis, é apenas um modelo estatístico de probabilidade baseado em dados, “anos luz” distante da complexidade do cérebro humano.

*Dora Kaufman professora do TIDD PUC - SP, pós-doutora COPPE-UFRJ e TIDD PUC-SP, pós-doutoranda na Filosofia da USP, doutora ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV. Autora dos livros “O Despertar de Gulliver: os desafios das empresas nas redes digitais”, e “A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?”. Professora convidada da Fundação Dom Cabral


Transformação digital: quais impactos do atraso no Brasil? Dora Kaufman responde

Em artigo produzido para a revista Política Democrática Online, analista aponta barreiras sobre o emprego

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

No Brasil, o atraso no processo de transformação digital tem impactos perceptíveis sobre o emprego, de acordo com a doutora em redes digitais pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP (Universidade de São Paulo) Dora Kaufman. Em artigo que produziu para a 17ª edição da revista Política Democrática Online, ela diz que “o debate entre se a automação vai substituir os trabalhadores humanos ou vai ampliar sua capacidade aparentemente está superado”.

» Acesse aqui a 17ª edição da revista Política Democrática Online

A revista é produzida a editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza todos os conteúdos da publicação, gratuitamente, em seu site. De acordo com a pesquisadora, na indústria, as tecnologias de automação digital têm ainda baixa penetração, prevalecendo a digitalização de processos internos e automação básica. Além disso, segundo ela, no varejo, particularmente o setor bancário, o foco da adoção da inteligência artificial são os processos internos (redução custo/aumento de eficiência) e a experiência do cliente (assistentes virtuais/chatbots).

Já no agronegócio, segundo aponta o artigo publicado na revista Política Democrática Online, talvez o setor no país mais avançado nesse processo, observa-se a aplicação de tecnologias de inteligência artificial nas várias etapas de produção com consequente redução da oferta de trabalho. No setor público, por sua vez, o governo tecnológico é uma medida em que avança a digitalização, diminui o número de vagas de trabalho: o alistamento militar on-line, por exemplo, representa atualmente 47% do total - 1,7 milhão de candidatos/ano -, já tendo reduzido de 2.307 para 829 os servidores diretamente envolvidos.

Dora afirma que a combinação de avanços nas tecnologias de inteligência artificial e robótica, por um lado, acelera a produtividade com economia de custos e aumento da eficiência e, por outro, tem fortes impactos sociais, particularmente no mercado de trabalho. “Nas próximas décadas, as tecnologias inteligentes estarão presentes em sistemas globais de produção com modelos de negócios integrados e conectados, caracterizados por precisão nos parâmetros de eficiência, personalização de processos e produtos”, afirma

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Dora Kaufman: O coronavírus tira-nos das ruas, oferecendo-nos a vida virtual

“Eu tenho coronavírus, porque, embora pareça que a doença ainda não entrou no meu corpo, os entes queridos a têm; porque o coronavírus está passando por cidades pelas quais passei nas últimas semanas; porque o coronavírus mudou com um trinado de dedos como se fosse um milagre, uma catástrofe, uma tragédia sem remédio, absolutamente tudo”, assim María Galindo (p.119), ativista boliviana, inicia seu artigo publicado na coletânea “Sopa Wuhan” (2020). E prossegue ressaltando a impossibilidade no momento de agir ou pensar sem o coronavírus no meio, ao eliminar o espaço social mais vital e democrático que são as ruas e nos oferecer o domínio da vida virtual. Plenamente de acordo, não tenho como evitar o tema do COVID-19.

O vírus pegou o mundo num momento de crise – política, econômica, moral, ética – em que predomina a insegurança e a incerteza sobre o futuro; talvez isso justifique o clima (ou desejo?) de que “o mundo não será o mesmo pós COVID-19”. Os textos da coletânea “Sopa Wuham” ilustram esse sentimento: “Mas talvez outro vírus ideológico, e muito mais benéfico, se espalhe e esperançosamente nos infecte: o vírus do pensamento de uma sociedade alternativa, uma sociedade além do Estado-nação, uma sociedade que se atualiza em formas de solidariedade e cooperação global”, vaticina Slavoj Žižek (p.22); Giorgio Agamben (p.137), que cometeu um equívoco em seu artigo de fevereiro, em março,  torna-se esperançoso de que “Por esse motivo – uma vez declarada a emergência, a praga, se assim for -, não acho que, pelo menos para os que mantiveram o mínimo de clareza, será possível viver como antes”.

Em outro artigo, refletindo sobre o pânico provocado pelo COVID-19, Zizek (2020b) aventa a possibilidade de ocorrer um duro golpe no capitalismo e o surgimento de um comunismo reinventado, “um golpe do Kill Bill no sistema capitalista”; aposta contestada por Byung-Chul Han (2020): “Žižek alega que o vírus deu um golpe fatal no capitalismo e evoca um comunismo sombrio. Ele até acredita que o vírus poderia derrubar o regime chinês. Žižek está errado”.

O escritor israelense Yuval Harari (2020) adverte que “as decisões tomadas pelas pessoas e pelos governos nas próximas semanas provavelmente moldarão o mundo nos próximos anos. Moldarão não apenas nossos sistemas de saúde, mas também nossa economia, política e cultura. Devemos agir de forma rápida e decisiva. Também devemos levar em consideração as consequências a longo prazo de nossas ações. Ao escolher entre alternativas, devemos nos perguntar não apenas como superar a ameaça imediata, mas também que tipo de mundo habitaremos quando a tempestade passar”.

Numa postura mais pragmática, Bruno Latour (2020), aproveitando a suspensão das atividades ordinárias, propõe que façamos um “inventário das atividades que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas”, e endereça seis perguntas objetivas como contribuição à essa reflexão.

Parece-me precipitado apostar em mudanças radicais, mas constato que sim, há uma tomada de consciência sobre a premência da sociedade em enfrentar desafios cruciais e, a partir daí, emergem alternativas, algumas conflitantes. Sem maiores pretensões, segue um apanhado de parte do que tenho lido e debatido.

A desigualdade se tornou assustadoramente visível, dentro e entre países, impondo um novo Contrato Social entre o Estado, o mercado e a sociedade civil (maior equilíbrio entre as competências). A ideia de Estado de Bem-Estar Social deve ganhar relevância (contrapondo-se às “soluções de mercado”); é da responsabilidade do Estado áreas como saúde e segurança (violência física e ataques externos) e calamidades de grandes proporções numa espécie de “mecanismo de seguro”.

Cabe aos governos a responsabilidade por políticas de proteção social aos vulneráveis, por meio de redes de proteção estruturais, e não conjunturais (barreira: grau de endividamento dos países pós-crise financeira de 2008; políticas fiscais menos restritivas com o consequente aumento da dívida pública gerará déficit que de alguma forma terá que ser financiado). Não está claro se esse novo contrato social irá enfraquecer ou fortalecer os governos iliberais (democracia parcial), autoritários e antidemocráticos (será que o poder de governar por decreto conquistado pelos governos da Hungria e Israel será temporário?).

A dimensão da crise alerta para a tradicional subestimação por parte da elite de que o bem-estar individual, a partir de um determinado ponto, passa a depender do bem-estar geral (não adianta se isolar que o resto do mundo “acaba te pegando”). Fração da elite brasileira, aparentemente, tem se mobilizado de forma inédita no sentido de contribuir socialmente (ainda muito centrado em declarações, menos em ações efetivas).

As gigantes de tecnologia do ocidente (plataformas tecnológicas), com conhecimento e imensa base de dados, até agora desempenharam um papel relativamente tímido; diferente da China onde, por exemplo, a varejista de comércio eletrônico Alibaba é parceira estratégica no esforço do governo em enfrentar a epidemia. O aplicativo “Código de Saúde Alipay”, por exemplo, tem sido fundamental no afrouxamento do isolamento social; obrigatório nos smartphone dos chineses, identifica quem deve ou não ser colocado em quarentena ou liberado para o transporte público (após o usuário preencher um formulário na Alipay com detalhes pessoais, o software gera um código QR em uma das três cores: verde,  liberado;  amarelo, em casa por sete dias; e vermelho, quarentena de duas semanas).

Convivem discursos e iniciativas de cooperação entre países com discursos e iniciativas nacionalistas; convive a percepção de que a desigualdade entre países é um problema global (construir muros isolando os países não é uma opção) com o foco no local como dinâmica defensiva (oposto a cooperação internacional). Questões a serem observadas: teremos um retrocesso da globalização a favor do local, inclusive na produção industrial? a percepção de vulnerabilidade (dependência da cadeia global de suprimentos) terá efeito de internalizar a produção? os países vão “fechar” suas fronteiras ou vão fortalecer a globalização?

A China produz cerca de 90% dos produtos e equipamentos médicos necessários para enfrentar a epidemia, por conta disso já firmou acordos de fornecimento com 30 países, com destaque para os EUA. Existe uma campanha atual na China a favor de ajudar o resto do mundo, visto como uma oportunidade de melhorar sua imagem e ocupar um espaço maior na geopolítica mundial (sem desprezar o interesse puramente econômico: o país depende da demanda externa para manter suas taxas históricas de crescimento). A China irá liderar a recuperação econômica pós-COVID-19, aproveitando-se da relativa “fragilização” dos EUA?

Observa-se uma falta de protagonismo dos organismos multilaterais, exceto o OMS (Organização Mundial da Saúde). Instituições como FMI, Banco Mundial, OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), fóruns regionais, poderiam/deveriam estar liderando o esforço de cooperação entre os países. Aparentemente, esses organismos não estão preparados para enfrentar uma crise global dessa dimensão, mantendo o formato tradicional de atuação como a do FMI, por exemplo, empenhado em mobilizar US$ 1 trilhão para conceder empréstimos aos países necessitados.

Valorização da ciência e a consequente premência de alocar recursos significativos na geração de conhecimento, reconhecendo a interdependência entre desenvolvimento científico e apoio governamental. Fortalecimento da percepção, quase generalizada, da estreita associação entre credibilidade e competência.

Impactos no trabalho. Em geral, em situação de crise observa-se uma aceleração de tendências tecnológicas, a COVID-19 tem o potencial de acelerar o processo de automação nas empresas (redução de custo, aumento de eficiência), agravando a já em curso substituição homem-máquina com aumento significativo do desemprego, o que impacta os menos favorecidos e, indiretamente, a recuperação econômica (redução de consumo, que alimenta o desemprego num ciclo vicioso).

Na educação. Há quase consenso de que a educação é a única atividade humana que não sofreu alternações significativas nas últimas décadas. O lockdown impôs uma experiência forçada com as novas tecnologias digitais de comunicação; os educadores (instituições e professores) e os alunos, foram obrigada a aprender e a incorporar essas tecnologias em tempo recorde. Provavelmente, impactarão positivamente as metodologias de ensino.

A mídia, particularmente os grandes veículos de comunicação, têm desempenhado papel central na crise, com amplo reconhecimento como fonte confiável de informação. O comportamento, em geral, tem sido se atualizar pelos jornais e menos pelas redes sociais (aparentemente, aumentou a re-publicação de matérias dos grandes jornais pelos usuários das plataformas sociais).

A recuperação econômica deverá ser mais lenta, em parte, pelo efeito devastador nas pequenas e mico empresas, particularmente no Brasil onde elas representam cerca de 30% do PIB e 52% dos empregos com carteira assinada (Fonte: Sebrae). Em geral, as grandes empresas têm “colchão de liquidez”, ou seja, caixa para atravessar a crise (além de acesso mais fácil e mais barato ao mercado de capitais e bancário). O mercado aposta numa “limpeza” Darwiniana, em que muitas empresas vão desaparecer e as empresas de setores protegidos vão sair mais fortalecidas. Muda a percepção de risco, com um novo olhar sobre a resiliência de negócios e de empresas.

Dilemas éticos

Tensão entre privacidade e liberdade individual versus uso de dados pessoais no combate à epidemia. Os instrumentos de vigilância são úteis no controle da epidemia; vários países (não apenas a China) estão usando dados para rastrear seus cidadãos. A Assembléia Global de Privacidade – (GPA-Global Privacy Assembly) identificou mudanças relacionadas à privacidade de dados em pelo menos 27 países, o risco é que as medidas de emergência se tornem permanentes.  Como observou Michel Foucault (2001), analisando os efeitos de epidemias no século XVIII, “a peste traz consigo também o sonho político de um poder exaustivo, de um poder sem obstáculos, de um poder inteiramente transparente a seu objeto, de um poder que se exerce plenamente” (p.59). Estamos dispostos a abrir mão desses pilares da nossa cultura aderindo à um novo pacto social? Qual o ponto de equilíbrio (break-event) entre sermos “livres” e sermos cuidados?

Valorização da solidariedade diante da constatação da fragilidade humana versus auto proteção (países, cidades, comunidades, famílias). O sentimento de solidariedade é real ou aparente como parece acreditar Byung-Chul Han (“o vírus nos isola e nos individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte”)? Qual será o vetor resultante entre a tomada de consciência de que somos interdependentes e a exacerbação do sentimento nacionalista (vide discurso do Presidente Emmanuel Macron, 04/04/2020).

As grandes crises moldam a história. A gripe espanhola de 1918, por exemplo, estimulou a criação de serviços nacionais de saúde mundo afora, inclusive no Brasil: entre 1919-20, o Congresso Nacional aprovou a reforma na estrutura federal de saúde, posteriormente sancionada pelo Presidente Epitácio Pessoa, considerada a origem do SUS (1988). O Estado do Bem-Estar Social decorre, em parte, da Grande Depressão de 1929 e da Segunda Guerra Mundial. A crise financeira de 2008 limitou a capacidade dos governos de proverem serviços públicos pressionados pelo endividamento para “salvar” o sistema financeiro, o que deteriorou os sistemas de saúde. A epidemia do COVID-19 ainda está em seus primórdios, o tempo do isolamento social e da suspensão do “estado de normalidade” determinará o grau e a extensão dos impactos na economia, na sociedade e na vida dos indivíduos. Transitaremos pelos espaços públicos com a mesma desenvoltura anterior a epidemia, ou como especula Žižek (2020a) “não sermos tão felizes nos parques, não entraremos com confiança em banheiros públicos”?

“Não projeto o futuro. Não há futuro imaginável. E há um certo mistério nessa vida sem planos, nesses dias que não são mais do que dias. […] Continuo na esperança de que esse horror una o planeta, fortaleça o valor da ciência, da imprensa, da razão, da boa política e da compaixão, enquanto aguardo um milagre que combata tanto a peste, quanto a funesta cultura do ódio” (Fernanda Torres, Folha de SP, 05/04).

Referências

Sopa de Wuhan: Pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemias. Editorial: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio). Disponível em:  http://iips.usac.edu.gt/wp-content/uploads/2020/03/Sopa-de-Wuhan-ASPO.pdf. Acesso em: 05/04/2020.

Foucault, Michel. Aula de 15 de janeiro de 1975. In: FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.39 – 68.

Han, byung-chul. La emergencia viral el mundo de mañana. El País, 22/03/2020. Disponível em: https://elpais.com/ideas/2020-03-21/la-emergencia-viral-y-el-mundo-de-manana-byung-chul-han-el-filosofo-surcoreano-que-piensa-desde-berlin.html. Acesso em: 05/04/2020.

Harari, Yuval Noah. The world after coronavirus. Jornal Financial Times, março, 2020. Desponível em: https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75. Acesso em: 05/04/2020.

Latour, Bruno. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. Disponível em: http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/downloads/P-202-AOC-03-20-PORTUGAIS.pdf. Acesso em: 05/04/2020.

Kroeber, Arthur. A China e o Coronavírus, Webinar, Instituto Fernando Henrique Cardoso. Disponível em: https://www.facebook.com/fundacaoFHC/videos/501289844086377/. Acesso em: 05/04/2020.

Raghuram Rajan, ex-presidente do BC da Índia, diz que a hora é de salvar vidas, entrevista de Robinson Borges, jornal Valor  Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/04/03/raghuram-rajan-ex-presidente-do-bc-da-india-diz-que-a-hora-e-de-salvar-vidas.ghtml. Acesso em: 05/04/2020.

República do Amanhã, associação sem fins lucrativos voltada para promover discussões sobre os grandes desafios da sociedade. Coordenação: Otávio de Barros (http://republicadoamanha.org). Debate via zoom com 29 participantes de distintas área de conhecimento e experiências profissionais, 04/04/2020.

Torres, Fernanda. Sigo na esperança de que esse horror nos una, mas aguardo um milagre. Jornal Folha de São Paulo, 05/04/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/fernandatorres/2020/04/sigo-na-esperanca-de-que-esse-horror-nos-una-mas-aguardo-um-milagre.shtml. Acesso em: 05/04/2020.

Žižek, Slavoj. Sobre el coronavirus y el capitalismo // Debate Žižek – Byung-Chul Han. 2020a. Disponível em: http://lobosuelto.com/sobre-el-coronavirus-y-el-capitalismo-debate-zizek-byung-chul-han/. Acesso em: 05/04/2020.

_______________. PANDEMIC! COVID-19 SHAKES THE WORLD. OR Books, 2020b. Disponível em: https://www.orbooks.com/faq/. Acesso em: 05/04/2020.


RPD || Dora Kaufman: Transformação digital liderada pela Inteligência Artificial - impactos sobre o mercado de trabalho

As próximas décadas podem ser marcadas pelas tecnologias inteligentes, que estarão presentes em sistemas globais de produção com modelos de negócios integrados e conectados

A combinação de avanços nas tecnologias de Inteligência Artificial (IA) e robótica, por um lado, acelera a produtividade com economia de custos e aumento da eficiência e, por outro, tem fortes impactos sociais, particularmente no mercado de trabalho. Nas próximas décadas, as tecnologias inteligentes estarão presentes em sistemas globais de produção com modelos de negócios integrados e conectados, caracterizados por precisão nos parâmetros de eficiência, personalização de processos e produtos.

Observa-se crescente automação inteligente das tarefas rotineiras, repetitivas e previsíveis, que são as funções predominantes no mercado de trabalho. O trabalhador humano está competindo com a tecnologia inteligente, que é mais barata de empregar com a vantagem adicional de evoluir continuamente; apenas parte dos trabalhadores será realocada para tarefas não suscetíveis à mecanização, tarefas que exigem habilidades humanas que requerem formação adequada (e não simples treinamento).

Vale observar que, historicamente, desde a Revolução Industrial, no século XVIII, o progresso tecnológico priorizou a mecanização das tarefas manuais (trabalho físico); o progresso tecnológico do século XXI, no entanto, engloba igualmente tarefas cognitivas tradicionalmente sob domínio humano, dentre outros atributos, pela maior capacidade e velocidade de processar enormes bases de dados. Ademais, a disrupção tecnológica da IA distingue-se das anteriores pela aceleração e por novos modelos de negócio não intensivos em mão de obra (logo, não gera oferta massiva de empregos).

Os estudos sobre o futuro do trabalho divergem nos números, reflexo das respectivas percepções sobre a ingerênciados arcabouços sociais, legais e regulatórios; e das distintas metodologias. Existe consenso, contudo, de que o resultado entre vagas eliminadas e vagas criadas tende a ser negativo, privilegiando os trabalhadores qualificados. Na competição entre o trabalhador humano e o “trabalhador máquina”, os humanos estão em desvantagem: (a) a manutenção é mais barata, as máquinas trabalham quase que em moto contínuo (sem descanso, sem férias, sem doenças), com um custo médio menor por hora trabalhada (US$ 49 dos humanos na Alemanha e US$ 36 nos EUA, contra US$ 4 do “robô”); (b) as máquinas inteligentes se aperfeiçoam automática e continuamente (processo de machine learning/deep learning); e (c) o custo de reproduzi-las é significativamente menor do que o custo de treinar profissionais humanos para as mesmas funções.

Em paralelo, a substituição do trabalhador humano pelos sistemas inteligentes gera efeito negativo sobre a renda ao aumentar a competição pelos empregos remanescentes. Há fortes indícios de que, em qualquer cenário, a automação inteligente favorece o crescimento econômico, mas gera mais desigualdade (predominantemente, serão extintas as funções de menor qualificação, em geral exercidas pela população de baixa e média renda). Ou seja, a automação inteligente é positiva para o crescimento e negativa para a igualdade.

No Brasil, o processo de transformação digital está relativamente atrasado, mas com impactos perceptíveis sobre o emprego: (a) na indústria, as tecnologias de automação digital, têm ainda baixa penetração, prevalecendo a digitalização de processos internos e a automação básica; (b) no varejo, particularmente o setor bancário, o foco da adoção da IA são os processos internos (redução de custo/aumento de eficiência) e a experiência do cliente (assistentes virtuais/chatbots); (c) no agronegócio, talvez o setor no país mais avançado nesse processo, observa-se a aplicação de tecnologias de IA nas várias etapas de produção, com consequente redução da oferta de trabalho; (d) no setor público, estamos na 51ª posição em GovTech (Governo Tecnológico), mas à medida que avança a digitalização, diminui o número de vagas de trabalho: o alistamento militar on-line, por exemplo, representa atualmente 47% do total – 1,7 milhão de candidatos/ano –, já tendo reduzido de 2.307 para 829 os servidores diretamente envolvidos.

O debate entre se a automação vai substituir os trabalhadores humanos ou vai ampliar sua capacidade aparentemente está superado. A realidade em todos os países e setores de atividade econômica mostra que ambos os processos estão acontecendo simultaneamente. Existe nova forma de relacionamento homem-máquina, que, em algumas situações, empodera os humanos e, em outras, os substitui. Precisamos de políticas públicas com três urgências a serem equacionadas: (a) como lidar com a massa de trabalhadores que tendem ao desemprego pela substituição do trabalhador humano por máquinas/sistemas inteligentes; (b) como requalificar e reciclar a força de trabalho (revisão do ensino em todos os níveis e dos programas de treinamento in company); e (c) como requalificar os trabalhadores nas funções remanescentes para atender à nova interação humano-tecnologia.