Dom Odilo P. Scherer
Dom Odilo P. Scherer: Dialogar é preciso
No Iraque o papa insistiu na necessidade de construir pontes, em vez de levantar muros
O papa Francisco acaba de fazer uma visita histórica ao Iraque, berço de antigas civilizações e tradições religiosas e culturais relacionadas com a origem das três religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Lugares como Mesopotâmia, Babilônia, Ur dos Caldeus e Nínive são mencionados nos relatos bíblicos e foram palco de momentos épicos da história do povo hebreu.
A região do atual Iraque foi banhada frequentemente com o sangue derramado por guerras, perseguições e repressões violentas. Também a nossa geração é testemunha de mais um longo período de conflitos absurdos, com imensos sofrimentos suportados por aquele povo. Não raro os conflitos envolveram motivações religiosas e de discriminação étnica e cultural, mas quase sempre estiveram em jogo a disputa de grupos rivais pelo poder e a supremacia. Também as razões geopolíticas e econômicas, como o interesse pelo petróleo e seus derivados, tiveram peso.
O cristianismo expandiu-se e floresceu bem cedo na Mesopotâmia, possivelmente ainda na era apostólica. Com o surgimento do islamismo, a presença cristã foi drasticamente reduzida ao longo dos séculos. Minorias cristãs, no entanto, mantiveram-se no meio de uma imensa maioria muçulmana. Desde a Guerra do Golfo Pérsico, nos anos 1980, e, sobretudo, com a guerra dos Estados Unidos contra Saddam Hussein, os cristãos pagaram um preço muito alto, por terem sido considerados filo-ocidentais, e ficaram reduzidos mais ainda.
O papa São João Paulo II se opôs energicamente à guerra contra o Iraque, chamando ao diálogo, sem ser ouvido. Recentemente, as minorias cristãs sofreram um novo duríssimo golpe, infligido pelo Isis, o grupo chamado Estado Islâmico, que pretendia islamizar à força os cristãos. Os mártires cristãos foram numerosos, igrejas destruídas, bens expropriados e uma insegurança social sufocante para os cristãos, reduzidos a cerca de 500 mil pessoas, que somente conseguem permanecer lá com a ajuda dos cristãos do mundo inteiro. Há poucas décadas eram dez vezes mais.
Esse foi o contexto da visita histórica de Francisco, que desejou muito ir àquele país para dialogar, confortar e levar esperança. Não houve multidões oceânicas para o acolherem, até porque também lá a pandemia de covid-19 está espalhada. Além dos líderes católicos e de diversos outros grupos cristãos, Francisco encontrou-se com as mais altas autoridades islâmicas locais e do Estado. Havia preocupação quanto à segurança do papa, que também se dirigiu a Mossul, no norte do país, cidade duramente atingida pelos combates contra o Estado Islâmico. Francisco, porém, não hesitou nem por um instante em encontrar aquela população, para lhe levar sua palavra de conforto e esperança.
A visita foi orientada pela busca do diálogo e foi isso o que papa fez o tempo todo nos seus encontros com as autoridades públicas, os religiosos muçulmanos e com líderes das comunidades católicas e de outras Igrejas cristãs do País. Em seus discursos, ele insistiu em diversos momentos sobre a necessidade de ouvir o outro com atenção, estender a mão, colaborar, construir pontes, em vez de levantar muros. Nas lacerações vividas por aquele povo, o diálogo pressupõe desarmar os espíritos, superar medos e mágoas, restabelecer laços de confiança e acreditar na boa vontade do outro. Sem isso é praticamente impossível dialogar.
O diálogo corresponde à natureza do ser humano, que não é completo e fechado em si mesmo, mas aberto ao outro, em quem busca e encontra a sua complementaridade. Escreveu o papa São João Paulo II que o diálogo é etapa obrigatória no caminho da realização humana, tanto do indivíduo como de cada comunidade – encíclica Ut unum sint (Para que sejam um), 1995, n.º 28). Diálogo não é o mesmo que confrontação, na qual o objetivo é que haja um vencedor. O diálogo exige reciprocidade e renúncia à vontade de dominar o outro. É preciso passar do antagonismo e de conflito para um terreno comum, onde uma e outra parte se reconhecem como companheiros de caminho.
No diálogo, cada uma das partes deve pressupor a sinceridade da outra parte, para se estabelecer uma base de confiança recíproca. Dessa maneira, o diálogo respeitoso e franco torna-se partilha de dons e bens, que beneficia e enriquece ambas as partes que dialogam. Ao contrário, o fechamento ao diálogo é empobrecedor e reduz os horizontes da convivência humana, abrindo espaço para o cultivo de ressentimentos e indiferenças.
O diálogo verdadeiro tornou-se um bem escasso, mas precioso, em tempos de polarização ideológica, e não apenas no Iraque ou em países com conflitos armados. Nossa cultura brasileira, geralmente aberta ao diálogo e à convivência acolhedora e pacífica, parece ter sido contagiada por um vírus perigoso, que torna difícil o diálogo sereno e produtivo. O fechamento ao diálogo e o acirramento de preconceitos e discriminações podem predispor a conflitos e atos violentos. Aonde isso pode nos levar? Dialogar é preciso!
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo P. Scherer: Caminho para a paz - A cultura do cuidado
A prática das obras de misericórdia espiritual e corporal passou ao núcleo da vida cristã
Em sua mensagem para a festa do ano-novo, comemorado pela Igreja Católica como Dia Mundial da Paz, o papa Francisco refletiu sobre um tema recorrente em seus pronunciamentos: a cultura do cuidado das pessoas, do ambiente e da vida. A reflexão foi motivada pelas dificuldades vividas ao longo do ano que passou, com a pandemia de covid-19. E persistem conflitos armados e tensões em várias partes do mundo por causa das desigualdades sociais e econômicas, da crise migratória e climática.
A crise sanitária vivida em 2020 revelou grandes e comoventes movimentos de solidariedade e dedicação ao próximo de muitos profissionais e voluntários. Mas preocupam as formas de insensibilidade, discriminação e fechamento diante da dor alheia e das ações que, em vez de construir pontes, levantam muros de ódio, xenofobia e morte. O papa fala da importância da edificação de uma sociedade “alicerçada em relações de fraternidade”.
A fraternidade, como base das relações humanas, foi tema da recente encíclica de Francisco, Fratelli tutti (Todos sois irmãos). A cultura do cuidado é decorrência e manifestação da fraternidade, levando a construir relações de interesse efetivo pelo bem do próximo e a superar a cultura da indiferença e do descarte, conceitos esses também frequentes nos pronunciamentos do pontífice.
Na sua mensagem sobre a cultura do cuidado como caminho para a paz, Francisco parte de conceitos teológicos e chega a conclusões para a vida cultural, social e econômica. Deus Criador revela-se ao homem como sábio cuidador do universo e de todos os seres, convidando também o ser humano a participar do zelo e cuidado que tem pela obra criada. Em vez de “lobo devorador do próximo” (“homo hominis lupo”, J. Locke), o homem é chamado a ser cuidador do seu semelhante. Por isso, toda forma de injustiça, desprezo e violência contra o próximo é desaprovada pelo Criador. Jesus Cristo deu o exemplo de atenção misericordiosa pelo próximo, colocando-se junto de quem é vítima de qualquer forma de violência, doando sua vida inteiramente pela humanidade.
Dos seus ensinamentos aprendemos que o amor a Deus nunca pode ser separado do amor ao próximo. A prática das obras de misericórdia espiritual e corporal passou ao núcleo central da vida cristã, traduzindo-se em inúmeras iniciativas de atenção às pessoas e socorro em suas mais diversas necessidades e em seus sofrimentos. O crer corretamente em Deus está vinculado estreitamente ao viver ativamente o amor ao próximo, fazendo próprios as suas carências e seus sofrimentos. A figura do bom samaritano, do Evangelho (cf Lc 10,25-37) é paradigmática para a cultura do cuidado, inerente à própria essência do cristianismo.
Desse núcleo central decorrem também os princípios do ensino social da Igreja, voltados para orientar a práxis humana coerente com a fé em Deus e a cultura do cuidado. Primeiros dentre eles são os da dignidade da pessoa e dos direitos próprios de cada ser humano. A realidade da pessoa “exige sempre a relação, e não o individualismo, afirma a inclusão, e não a exclusão, a dignidade singular inviolável, e não a exploração”, afirma o papa (n.º 6). Francisco recorda um princípio ético do filósofo alemão Emanuel Kant para destacar a dignidade humana: “Toda pessoa humana é sempre um fim em si mesma e jamais um mero instrumento utilitário para alcançar outros fins”. Da dignidade de cada pessoa também decorrem os direitos inalienáveis de cada ser humano e os deveres recíprocos do respeito e cuidado de uns pelos outros, especialmente pelos membros mais fracos e vulneráveis da comunidade humana. A pessoa nunca há de ser um mero dado estatístico, ou um meio a usar enquanto há ganho para em seguida descartar.
Da dignidade humana decorre também a noção de bem comum, segundo a qual nossas ações devem sempre levar em conta suas consequências para o próximo e para toda a família humana. Nosso agir deve ser solidário, jamais individualista, fechado e insensível. Por consequência, negócios lucrativos feitos à custa do sofrimento e exploração do próximo, ou que tenham como consequência a doença ou a morte das pessoas, são absolutamente injustos e desumanos.
A cultura do cuidado também inclui o cuidado da natureza e do conjunto do ambiente, como Francisco expôs na sua encíclica Laudato Sì (2015). O mau uso e o descaso em relação à “casa comum” levam a consequências que vão muito além da mera deterioração ou destruição do ambiente: são também fonte de sofrimentos e conflitos, cujo preço maior é pago pelos membros mais vulneráveis da comunidade humana. “Paz, justiça e salvaguarda da criação são três questões completamente ligadas”, recorda o papa (n.º 6).
A mensagem para o Dia Mundial da Paz termina com um apelo para que a cultura do cuidado sirva de bússola no caminho da edificação da paz. Esta é uma construção comum de muitos artesãos da paz, membros de comunidades onde se cuida uns dos outros. Não haverá verdadeira paz sem a cultura do cuidado.
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo P. Scherer: Papa Francisco, a aposta na fraternidade
Na encíclica ‘Fratelli Tutti’ pontífice convida a repensar o mundo de forma mais aberta
Fratelli Tutti, ou, em português, Todos Sois Irmãos, é o título da nova encíclica do papa Francisco, publicada no último dia 4 de outubro. Trata-se de um documento de ensino social da Igreja Católica, mediante o qual o papa reflete sobre algumas questões sociais atuais, que afligem a humanidade. E o faz partindo do coração do Evangelho, onde o amor a Deus e o amor ao próximo se encontram inseparavelmente vinculados.
É convicção cristã que a humanidade, apesar de suas diferenças, é uma grande família de irmãos, que tem Deus por pai e Jesus Cristo como irmão e mestre de todos. Essa é, por assim dizer, uma cláusula pétrea do ensinamento cristão, que também fundamenta todo discurso social, econômico e político da Igreja.
Francisco parte das situações dramáticas atuais vividas pela humanidade, destacando a fragmentação da consciência solidária e a afirmação sempre maior de uma cultura e de um estilo de vida individualistas. Aponta para a falta de projetos consistentes para alcançar o bem comum local e universal; refere-se à exclusão de amplos grupos de indesejados e descartados; lamenta que os direitos humanos sejam cada vez menos universais e voltados, mais e mais, para a afirmação de interesses particularistas; fala do desvirtuamento dos sonhos da globalização, do progresso e do desenvolvimento, bem como da dignidade negada a tantos seres humanos, da comunicação “sem sabedoria, agressiva e despudorada” e da perda da esperança. E não deixa de se referir à crise ecológica e ambiental, que ameaça a destruição de nossa casa comum e o futuro da vida.
Que fazer diante disso? O papa Francisco convida a repensar o mundo de forma mais aberta, apontando para os valores imprescindíveis do amor e da fraternidade. Não se pode continuar a pensar e planejar o mundo para privilegiados, onde são deixados à margem tantos irmãos, que têm a mesma dignidade de todos. Nem basta continuar a afirmar teoricamente os princípios de liberdade, fraternidade e igualdade: se esses belos princípios estiverem orientados por uma prática individualista, acabarão produzindo o contrário do que, teoricamente, significam. Deveriam estar animados pela força da solidariedade e a própria afirmação dos direitos, para não ser desvirtuada, precisa dar prioridade aos direitos universais, sem fronteiras nem discriminação.
Num capítulo mais propositivo, o papa trata da edificação de um mundo menos fechado e da necessidade de “corações abertos para o mundo inteiro”. A humanidade criou fronteiras de todo tipo, cavou trincheiras e levantou muros com a preocupação compreensível de se proteger contra a invasão indevida do espaço da própria liberdade e contra toda forma de agressão. Mas quando essa preocupação é motivada pela rejeição ao outro, pelo resguardo dos próprios privilégios e pela pouca vontade de partilhar, o mundo torna-se cada vez menos fraterno e mais agressivo. O pontífice fala de abertura ao outro, da gratuidade e do intercâmbio de dons, em que o local e o universal não precisam estar em polos opostos, mas podem ser reciprocamente enriquecedores. Quem se fecha ao outro empobrece e estreita os próprios horizontes.
Inevitável se torna a reflexão sobre o panorama político atual e o papa não poupa críticas aos populismos e liberalismos, que estão na base de muitos dos graves problemas atuais da convivência local e internacional. E acena para a necessidade de um “poder internacional” capaz de moderar adequadamente as questões e os conflitos políticos da comunidade humana inteira. É uma reflexão difícil e a simples abordagem desse tema provoca arrepios em certos ambientes do pensamento contemporâneo, ciosos defensores de poderes locais absolutos. Francisco volta ao tema da caridade política, um tema recorrente no ensino social da Igreja: a verdadeira política requer altruísmo e genuíno amor ao próximo. Não se trata de idealismo utópico, pois faltam testemunhas de verdadeira caridade social e política.
Francisco também foi buscar na filosofia grega antiga dois elementos para uma renovada convivência social e política: a amizade social e o diálogo. A amizade social leva a respeitar e tratar bem cada cidadão, valorizando a sua contribuição para a edificação do convívio social. O diálogo é a arte da superação de rupturas e distanciamentos, para tecer entendimentos e aproximação.
Isso pode soar estranho para quem aposta na dialética do conflito, ou no liberalismo absoluto para a edificação das relações sociais.
No entanto, os princípios da luta e do liberalismo absoluto já deram mostras do que são capazes de produzir: o triunfo do mais forte sobre o fraco, o império da lei da selva, violência, dor e sangue. Por que não apostar no diálogo, na busca do consenso orientado pela verdade e na amizade social, capazes de suscitar nova cultura e nova política, impregnadas de altruísmo, amabilidade e fraternidade? Por que não acreditar numa verdadeira revolução cultural, para tornar a convivência mais fraterna, verdadeiramente humana?
*Cardeal-Arcebispo de São Paulo
Dom Odilo P. Scherer: Perseguição religiosa, risco para a paz
Papa denomina essa fúria persecutória como genocídio causado pela indiferença coletiva
Há poucos dias as mídias sociais noticiaram o assassinato do padre católico nigeriano Paul Offu, da Diocese de Enugu. Foi o segundo sacerdote morto na Nigéria com poucos meses de diferença e o 13.º em todo o mundo somente neste ano de 2019.
O fato levou os padres daquela diocese a fazer um protesto bastante singular, saindo pelas ruas vestidos com paramentos normalmente usados apenas em celebrações litúrgicas.
Também em vários outros países da África os cristãos vivem sob a ameaça de grupos islâmicos radicais, mesmo em países onde, por séculos, muçulmanos e cristãos conviveram harmonicamente, como no Quênia, na Tanzânia, em Moçambique, Burkina Faso, Uganda e Ruanda. Os muçulmanos tolerantes também acabam sofrendo a pressão de grupos fundamentalistas radicais, que os acusam de ser traidores. Algo semelhante acontece em outras partes do mundo, em países onde os cristãos são, por vezes, minorias muito reduzidas. No Iraque, onde viviam tradicionalmente mais de 1,5 milhão de cristãos, hoje não resta mais que uma décima parte deles. A mesma pressão sofrem os cristãos na Síria, no Paquistão, no Afeganistão, na Indonésia e até mesmo nas Filipinas.
A discriminação religiosa contra cristãos nem sempre é debelada mediante iniciativas internacionais eficazes para deter essa fúria persecutória, denominada pelo papa Francisco como “genocídio causado pela indiferença geral e coletiva” (12 de abril de 2012). A maioria dos crimes de perseguição religiosa recebe pouca ou nenhuma atenção e fica impune e sem consequências. Mesmo democracias consolidadas por vezes simplesmente fecham os olhos e não tomam posição diante de violações flagrantes da liberdade religiosa em outros sistemas, a pretexto de manterem boas relações políticas ou econômicas com violadores evidentes do direito a essa liberdade fundamental.
No entanto, a discriminação e a perseguição religiosa de um ser humano, como qualquer discriminação, são injustas e moralmente inaceitáveis, pois constituem ataques à liberdade fundamental da pessoa e a negação de um direito natural reconhecido a todo indivíduo pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas. Esse direito deve ser assegurado pelos governos locais e pelos organismos internacionais a todos os cidadãos. A violação do direito à liberdade religiosa vai além do cerceamento de uma liberdade exterior: ela atinge o âmago da consciência e das convicções pessoais a respeito de valores, aspirações e as referências mais sagradas da existência. Essa violação nunca vem isolada: no seu séquito vêm também a negação ou a restrição das liberdades civis, em geral.
Embora a proteção dos cidadãos e a garantia de sua liberdade sejam deveres primordiais do Estado, esse também é um dever de toda a sociedade e das próprias instituições e organizações religiosas. Os líderes religiosos têm o dever de promover a coexistência pacífica, o diálogo e a compreensão entre os seguidores das diversas tradições religiosas. Exemplo disso foi o que fizeram o papa Francisco e o grão-imã de El Azhar, Ahmad Al Tayyeb, em 4 de fevereiro deste ano, no histórico encontro de ambos em Abu Dabi. A declaração conjunta resultante daquele encontro permanecerá para a História como uma pedra miliar do diálogo e da colaboração entre as religiões, a serviço da convivência fraterna e pacífica entre os povos.
A manipulação política da religião, sobretudo por ideologias extremistas de qualquer tendência, é sempre um risco para a paz. O sentimento religioso é algo profundo e sensível, passível de ser instrumentalizado por terroristas religiosos e por partidos e governantes laicos, que se apossam da sensibilidade religiosa das pessoas para promover seus objetivos particulares nada religiosos. Líderes fascistas recorrem facilmente ao discurso antirreligioso para estigmatizar opositores, promovendo a discriminação e a perseguição a seguidores de religiões que não se alinhem com a ideologia dominante; ou fazem uso de discursos pseudorreligiosos para encantar as multidões e tê-las do seu lado. Misturar política e religião e, pior ainda, instrumentalizar a religião em função da dominação política produz situações explosivas e dificilmente contribui para a paz. Aos governos cabe assegurar e defender a liberdade religiosa para todos os cidadãos e combater com firmeza toda forma de discriminação e perseguição, baseadas na crença e na religião.
O direito à liberdade religiosa não é apenas inerente a uma cultura política e jurídica sadia, mas também é fator de diálogo, de unidade e de paz na comunidade humana, formada por cidadãos de dignidade igual. Crentes de todas as religiões, assim como os não crentes, têm todos a mesma dignidade de cidadãos, o mesmo direito de buscar a verdade de acordo com a própria consciência e de compartilhá-la com os demais cidadãos, numa atitude de diálogo. Na Declaração de Abu Dabi, acima mencionada, afirma-se que os governos devem comprometer-se para estabelecer o conceito de cidadania plena, sem discriminações, com direitos e deveres iguais, à sombra dos quais é possível assegurar justiça para todos.
Embora a maioria dos países estabeleça em suas Constituições a igualdade de todos os cidadãos, sem discriminação de raça, religião e gênero, vemos ressurgir em alguns países nacionalismos fortemente aliados com discursos religiosos extremistas e agressivos. Infelizmente, quando grupos majoritários de apoio a governos aparentemente democráticos hostilizam e perseguem cidadãos que, em nome das convicções religiosas, divergem de políticas oficiais adotadas, estamos diante de mais uma forma perigosa de manipulação política da religião, pondo em risco a paz social.
*Cardeal-Arcebispo de São Paulo
Dom Odilo P. Scherer: Políticas públicas e fraternidade
Campanha da CNBB é um convite à ação dos cristãs em prol da justiça e paz social
Em geral, as grandes festas das religiões são precedidas por um tempo de preparação com jejuns, peregrinações, ritos de purificação, ações solidárias e caritativas. Para a Igreja Católica e as demais igrejas de origem cristã, em geral, esse tempo corresponde à Quaresma, celebrada como preparação para a Páscoa dos cristãos, que é a mais importante das festas cristãs.
No nosso país, junto com o chamado à oração intensa, o jejum e a penitência para a conversão a Deus, e junto com o incentivo às obras de misericórdia e caridade, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) promove todos os anos a Campanha da Fraternidade (CF), na forma de uma chamada à responsabilidade social e pública dos cristãos. Os temas da CF, em geral, são de cunho social e lembram que a religiosidade cristã verdadeira não deve desvincular o amor a Deus do amor ao próximo. A vivência da fraternidade e o reconhecimento concreto de que o próximo, sem discriminação alguma, é alguém semelhante a nós e partilha conosco a mesma dignidade humana. No cristianismo, o próximo é um filho de Deus e um irmão, membro da mesma família humana que também nos abriga.
Jesus Cristo ensinou que a fé religiosa e o amor a Deus são autênticos somente quando têm como consequência o amor ao próximo, o respeito pela sua dignidade e o justo apreço por toda a obra de Deus. A fé cristã leva necessariamente ao envolvimento com os acontecimentos existenciais da história humana e as situações sociais, econômicas e políticas da comunidade em que vivemos. Longe, portanto, de confirmar a tese marxista de que a religião leva à alienação do mundo e de seus problemas cotidianos, a fé cristã católica requer a participação na edificação de um mundo justo e solidário, bom para todos.
Compreendemos, assim, as frequentes orientações da Doutrina Social da Igreja, explicitadas em numerosas encíclicas pontifícias e em outros documentos, bem como os apelos do Magistério da Igreja em favor da paz, da justiça social e econômica, do respeito à dignidade da pessoa, em favor das populações mais excluídas dos bens da civilização e expostas a todo tipo de riscos e violências. A instituição eclesial, embora sem a pretensão de assumir o exercício do poder político de governo, tem como parte de sua missão encorajar os católicos e quantos queiram ouvir suas diretrizes a abraçarem suas responsabilidades na promoção do bem comum e da ordem social justa e pacífica. O papa Francisco tem repetido com frequência que os católicos, como cidadãos de seus países, devem ser participativos nas responsabilidades sociais e públicas, em benefício da vida dos seus povos e de outros povos também.
O tema da Campanha da Fraternidade deste ano, Políticas públicas e fraternidade, à primeira vista pareceria desvinculado da religiosidade das pessoas. Engana-se quem acha que esse tema nada tem que ver com a fé e a moral religiosas, nem com a missão da Igreja. A vida social, política e econômica oferece o contexto em que a fé deve ser inserida na história, para tornar concreto o nosso amor a Deus e ao próximo. É nesses contextos, entre outros, que devem ser promovidos o respeito pela dignidade humana e a fraternidade entre todas as pessoas.
Políticas públicas voltam-se para a promoção do bem comum, em favor de todos os membros da sociedade, sem distinção, e devem assegurar, por exemplo, o acesso aos bens da saúde, da educação e da segurança para todos. Ao mesmo tempo, devem assegurar oportunidades de trabalho e uma ordem econômica equilibrada e justa, com condições dignas de vida para todos e respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, previstos na Constituição. Por meio de políticas públicas sábias e bem conduzidas se promoverão a equidade social e econômica e as condições para que os mais pobres superem sua vulnerabilidade social e econômica.
A promoção de políticas públicas é da responsabilidade dos governos, em todos os níveis. Mas seria um erro pensar que isso depende apenas dos governos, como pode acontecer em sociedades pouco democráticas e com poderes muito centralizados. Também a sociedade civil organizada precisa participar da elaboração e implementação de políticas públicas. Estas tampouco devem ser ditadas simplesmente pelo mercado, que por si só não consegue estabelecer a ordem social justa e a paz. A promoção adequada de políticas públicas é feita mediante a interação fecunda do Estado com o mercado e a variedade das organizações e expressões da sociedade civil. Isso é possível apenas em regimes democráticos, em que a sociedade civil organizada participa ativamente da vida política com propostas e controles, segundo as necessidades da população.
E aqui reencontramos o significado do tema da CF deste ano. O envolvimento na definição e promoção de políticas públicas também decorre dos ditames da fé em Deus e da moral cristã. Os cristãos devem empenhar-se na promoção de políticas públicas que não estejam atreladas apenas aos interesses de grupos restritos, muitas vezes já favorecidos e poderosos. A justiça e a paz social requerem a definição e a promoção de políticas públicas que não estejam orientadas pela afirmação das vantagens de quem já possui mais do que o necessário. Não devem ser esquecidos os descartados do sistema, os pobres, os idosos, os enfermos e os grupos sociais mais vulneráveis.
É isso que está implicado no tema Políticas públicas e fraternidade. A Campanha da Fraternidade da CNBB é um convite a refletir e a promover, com medidas eficazes, uma sociedade mais justa e equânime no Brasil. Para concretizar a fraternidade e a paz social requerem-se políticas públicas sábias e eficazes, construídas e promovidas mediante um esforço conjugado entre Estado e sociedade civil, em que os cristãos têm muito a contribuir.
*Dom Odilo P. Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo
Dom Odilo P. Scherer: Política a serviço da paz
Essa é a mensagem do papa Francisco a todos os governantes e altas autoridades mundiais
No dia 1.º de janeiro passado, enquanto no Brasil tomavam posse o novo presidente da República e os governadores dos Estados, o papa Francisco lembrava no Vaticano que “a boa política está a serviço da paz”. Não foi mensagem dirigida especificamente aos governantes brasileiros, embora também eles estivessem incluídos entre os destinatários. Todos os anos, em 1.º de janeiro, o pontífice envia uma mensagem em favor da paz a todos os governantes e altas autoridades dos povos e das organizações internacionais.
O foco da mensagem deste ano é a “boa política”, verdadeiro desafio para todos os governantes. A mensagem leva a refletir sobre os grandes objetivos da política, que nem sempre apareceram claramente nos programas e nas prioridades dos que assumem um mandato. Será que os grandes objetivos da política são a vitória do partido, a afirmação da ideologia e dos interesses dos vencedores e a repressão dos não alinhados com eles?
A boa política, à qual o papa se refere, deve contribuir efetivamente para manter e consolidar a paz em todos os sentidos, ou para restabelecê-la onde ela estiver faltando, ou em situação de risco. Com o poeta Charles Péguy, Francisco lembra que a paz é como uma flor frágil, que procura desabrochar entre as pedras da violência... A paz, de fato, está ameaçada sempre que se busca o poder a todo custo, mesmo com meios injustos, violência e desonestidades.
O papa Paulo VI exortava, em plena guerra fria, que é dever de cada pessoa levar a sério a política nos seus diversos níveis - local, regional, nacional e mundial - em defesa da liberdade e do esforço comum para a realização do bem da cidade, da nação e da humanidade (encíclica Octogesima Adveniens, 1971, 46).
Vícios na política podem torná-la odiosa e desacreditada, incapaz de promover a paz. A política pode ser comprometida pela incapacidade e o despreparo do governante, pela falta de prudência, discernimento sereno e equilíbrio sadio. Certos vícios na condução da vida política enfraquecem o convívio democrático, envergonham a vida pública e põem em risco a paz social.
Entre esses vícios, o papa menciona as múltiplas formas de corrupção e enriquecimento ilícito mediante a apropriação de bens públicos, a negação do direito, a falta de respeito às regras estabelecidas e o recurso arbitrário à força - “por razões de Estado” - para a afirmação no poder. Mas também são expressões de má política o fomento da xenofobia e do racismo, a insensibilidade diante dos sofrimentos dos pobres e dos refugiados, a exploração irresponsável dos recursos naturais para o lucro fácil. Entre as formas de política viciada contam-se também as que se destinam a perenizar privilégios questionáveis ou injustos, ou sustentam regimes na base do medo e da violência. O recurso à guerra, para impor as próprias razões a outros povos, é expressão abominável de política e agride diretamente a paz.
Políticas viciadas precisam ser superadas com políticas boas, que tenham no seu centro a pessoa humana e sua inalienável dignidade, promovam consensos para medidas sociais, econômicas e culturais em benefício de toda a população e tenham uma atenção privilegiada para com as camadas sociais mais vulneráveis. O bem comum deve ser o grande objetivo de políticas sábias, voltadas para as necessidades básicas do povo humilde e pobre, mais do que para a consolidação de vantagens de quem já vive em situação privilegiada. Não é sábia nem prudente, e desencadeia conflitos sociais, a política que se volta, sobretudo, para os interesses de quem já é forte e privilegiado.
Os eleitores votam esperando que o escolhido faça a coisa certa, uma vez chegado ao poder. É impensável que alguém vote intencionalmente para eleger um mau governante. Espera-se que os governantes sirvam ao seu povo, protejam a população e trabalhem de forma abnegada para proporcionar condições de convivência digna e um futuro bom para todos. A boa política é, pois, um dever inerente ao mandato, uma responsabilidade e um desfio permanente para quem governa.
Boa política é aquela que consegue conciliar o necessário desenvolvimento econômico com a demanda por justiça e solidariedade social. Os fechamentos nacionalistas podem ser uma tentação fácil para conquistar consensos e apoios, mas eles são prejudiciais à edificação da verdadeira fraternidade, tão necessária no mundo globalizado. Fechar-se aos migrantes e refugiados é privá-los de esperança e das forças necessárias para superarem os sofrimentos que carregam.
A política não deve ser inspirada em motivações mesquinhas e particularistas, mas em ideais e valores elevados, como a dignidade humana, a equidade, a justiça, a solidariedade social. Essas motivações e esses valores elevados oferecem base sólida para governantes e governados, para quem apoia o governo e quem está na oposição. Sustentada e orientada por esses ideais e propósitos, a boa política será, na prática, a arte do possível numa sociedade pluralista e complexa.
O papa Francisco não deixou de incluir entre as boas políticas duas questões cruciais, indispensáveis para a verdadeira paz: o cuidado do meio ambiente, para manter boa e habitável a “casa comum” de toda a comunidade humana, e a atenção especial às novas gerações. Crianças e jovens serão herdeiros do patrimônio social e cultural que hoje construímos. Que não sejam vítimas de nossas más políticas! Eles têm o direito de alimentar seu sonho e sua esperança.
Só nos resta, pois, desejar ao novo presidente e aos demais Poderes da República, como também a todas as forças políticas, sociais, econômicas e culturais, um período de boa política para que o nosso país fortaleça as bases para a verdadeira paz.
Sonhar nunca é demais.
*DOM ODILO P. SCHERER É CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO