dívida

Pedro Fernando Nery: O mito da auditoria

O bloco da auditoria da dívida desfila com o do criacionismo e o dos terraplanistas

A redução dos superávits primários foram centrais no aumento do endividamento público na primeira metade dos anos 2010. Em trajetória insustentável, o aumento da dívida ameaçaria o crescimento econômico e um “forte ajuste fiscal” seria necessário. Essas são algumas das conclusões da mais recente auditoria da dívida pública do Tribunal de Contas da União (TCU). Se o TCU fiscaliza periodicamente a dívida, por que tantos insistem que a dívida pública nunca foi auditada?

O acórdão 1.084, de 2018, traz o relatório da auditoria mencionada acima. O 1.705 sugeriu que o Congresso institua o teto para a dívida previsto na Constituição, e determinou que Bacen e Tesouro estudem limites para as operações compromissadas e o nível de reservas internacionais.

A dívida, objeto de relatórios mensais do Tesouro, também é analisada pela Instituição Fiscal Independente (IFI) – criada para ser um cão de guarda das finanças públicas. O argumento de que a dívida pública nunca é auditada pode ser mais bem traduzido como “as auditorias da dívida nunca deram o resultado que eu queria”.

A ideia de uma caixa-preta na dívida é acompanhada pela narrativa falaciosa, propagada pela elite do funcionalismo, de que cerca de 50% dos gastos do governo são voltados para o pagamento de juros da dívida, em prejuízo da educação, saúde, previdência. Se de fato metade dos tributos é usada para quitar a dívida, em sacrifício das necessidades da população, seria obviamente sensato dar o calote em vez de fazer as reformas. O problema é que não é verdade.

A narrativa é remanescente do período em que o governo federal produzia superávits primários – isto é, poupava parte da arrecadação dos tributos para diminuir a dívida (parte que chegou a 12% em 2008). Desde 2014 isso não acontece: temos déficits primários, que, mesmo com as reformas, devem continuar até o próximo governo. Significa dizer que a arrecadação de tributos não dá conta de pagar as despesas primárias (educação, saúde, previdência, etc). O déficit é fechado com a ajuda do mercado financeiro, que empresta para o governo. Já a dívida antiga que o governo não consegue quitar com os tributos fica para depois, com a dívida velha sendo substituída por dívida nova.

Como toda despesa precisa transitar pelo orçamento, mesmo a dívida não financiada pela arrecadação de tributos, mas financiada pela dívida nova, consta do orçamento. Daí que sai a narrativa de que metade do orçamento é para a dívida pública, ignorando que do lado da receita a proporção da dívida no orçamento é ainda maior.

A ideia do pote de ouro da auditoria da dívida é tão popular (mais de 60 mil resultados no Google) que neste mês apareceu em nota da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, criticando medidas do ajuste fiscal. A nota alega que “a partir de 2015 aumentou o volume de pagamento dos juros da dívida pública e, desde então, os gastos financeiros representam a maior rubrica individual do gasto do governo federal”.

É falso. O desembolso com juros tem caído, em parte consequência do próprio ajuste (teto de gastos, previdência). É a irresponsabilidade fiscal que bomba os juros: nos últimos anos o ajuste tem reduzido os juros de longo prazo junto com o risco país. Veja que a fantasia da auditoria da dívida não é necessariamente pauta de esquerda: foi defendida por Bolsonaro pré-Paulo Guedes em 2017, e é criticada por economistas do PSOL. Como explica José Luis Fevereiro, da direção nacional do partido, a noção do gasto com juros destacada pelo MPF é “absolutamente errada”. O calote significaria mais ajuste fiscal (porque o déficit primário teria de ser zerado sem a ajuda do mercado).

É exatamente esse o objetivo de uma organização de servidores batizada com o argumento da auditoria. Neste caso, “auditoria” significa o cancelamento de juros compostos, considerados ilegítimos e ilegais. O resultado seria um confisco sobre o patrimônio das famílias poupadoras, que direta ou indiretamente emprestam para o governo por meio de aplicações financeiras, sem que se liberasse recurso para políticas sociais (porque não há superávit primário).

Isso não significa dizer que se deve concordar com o ajuste proposto pelo governo. De fato, um efeito adverso do voluntarismo messiânico da turma da auditoria é turvar a discussão de alternativas mais complexas. Por que, por exemplo, se preocupar com tributar mais os mais ricos, se o subfinanciamento de direitos sociais é causado por supostos gastos gigantescos com a dívida? Se há prontamente disponível um pote de ouro no fim do arco-íris, por que fazer a difícil disputa pela tributação maior das elites? A narrativa é obscurantista: o bloco da auditoria da dívida desfila com o bloco do criacionismo e o bloco dos terraplanistas.

 


Claudia Safatle: Não é hora de relaxar

A redução da dívida bruta/PIB se deu por razões conjunturais

Três fatores contribuíram para a primeira queda da dívida bruta do governo geral como proporção do PIB desde 2013. Foram eles: o crescimento da economia (de algo em torno de 1,2% em 2019), que reduziu a dívida em 3,9% do PIB; a venda de reservas cambiais pelo Banco Central, que contribuiu com uma queda de 2% do PIB; e a antecipação de pagamentos dos empréstimos do Tesouro Nacional ao BNDES, no valor de R$ 123 bilhões, que abateu mais 1,4% do PIB da dívida bruta.

O BNDES ainda tem cerca de R$ 165 bilhões de empréstimos do Tesouro e parte desses recursos vai entrar no caixa da União neste ano. A retração da dívida bruta como proporção do PIB no ano passado dá um grande alívio ao governo, mas, segundo o secretário Especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, não pode ser vista como uma redução estrutural.

Se nos próximos oito anos o governo geral apresentasse um superávit primário de 0,5% do PIB, na média do período, a dívida bruta cairia dos atuais 75,8% do PIB para a faixa de 65% do PIB, explicou ele.

Seria uma queda importante, de dez pontos percentuais do PIB, mas ainda assim o endividamento do setor público consolidado estaria muito alto comparado aos outros países emergentes e ao próprio país, que, em 2012, tinha uma dívida bruta correspondente a 52% do PIB.

“Se relaxarmos na área fiscal, achando que a queda da dívida decorreu de fatores estruturais, tudo pode ser desfeito em relativamente pouco tempo”, alertou Waldery.

“Não existe na história do país - apesar de as estatísticas antes de 1994 serem contaminadas pela elevada inflação - um período de sete anos de déficit primário [de 2014 até hoje]. Isso é muito forte”, salientou o secretário.

Na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) consta a projeção de um déficit primário de R$ 31,2 bilhões, equivalente a 0,2% do PIB, para 2022, último ano do governo Bolsonaro. Com um pouco mais de esforço seria possível praticamente zerar a série de anos deficitários, se a política fiscal for restritiva.

A dívida bruta do setor público é o principal indicador de solvência do país. Waldery contou que em dezembro de 2018, quando ainda estava no governo de transição, os vários relatórios do setor público indicavam que a dívida/PIB avançaria para um patamar muito próximo de 80%. Havia algumas projeções que “furavam” os 80%. Mas o fato é que “a dívida não só não subiu, mas caiu”, disse.

O significado dessa nova trajetória da dívida é se distanciar um pouco mais do risco de insolvência, de um “calote” na dívida pública. Para este ano a expectativa é de ter mais uma pequena queda desse indicador, “na primeira casa decimal”, citou o secretário. Assim, ela será menor do que o resultado do ano passado, de 75,8% do PIB, que já foi menor do que os 76,5% do PIB de 2018.

Os governos passados bem que tentaram resolver o buraco nas contas públicas com atalhos. Primeiro, houve a hiperinflação. Depois, a elevação da carga tributária e, por fim, o aumento do endividamento.
“Esgotaram-se as alternativas”, segundo o secretário. Hoje 14 Estados estão em situação de emergência fiscal - com a despesa corrente absorvendo mais de 95% das receitas correntes - e mais da metade dos 5.570 municípios também.

“A comemoração de um resultado fiscal melhor do que achávamos não nos permite relaxar. Precisamos continuar com a política de zelo fiscal e de aprovação das reformas estruturais”.

A queda da taxa básica de juros (Selic), hoje em 4,25% ao ano, o menor nível da história, deu uma importante ajuda para a redução do pagamento de juros da dívida. “Pagamos R$ 69 bilhões a menos de juros em 2019 do que esperávamos em dezembro de 2018.”
Para este ano as projeções indicam que serão gastos R$ 120 bilhões a menos com juros do que a equipe calculava na transição de governo. Em 2021 serão menos R$ 126 bilhões e, em 2022, menos R$ 102 bilhões.

Isso resultará em R$ 417 bilhões a menos de gastos com o pagamento de juros da dívida no governo Bolsonaro.

Com a despesa primária equivalente a 19,4% do PIB e uma receita total de 17,5% do PIB, sobra, para este ano, um rombo de 1,9% do PIB, que equivale ao déficit primário, segundo o orçamento para o exercício. Isso não significa, porém, que o déficit vai se realizar nessa proporção.

Do total das despesas, três lideram de longe: 8,6,% do PIB corresponde aos gastos com a Previdência Social, que, mesmo com a aprovação da reforma, continuará deficitária. A reforma foi suficiente para frear uma trajetória explosiva. Outra grande despesa é com juros da dívida, que a queda da Selic vai reduzir em R$ 104 bilhões por ano, na média dos quatro anos do governo de Bolsonaro. Pessoal e custeio são uma despesa de 4,3% do PIB. Essa não é crescente no tempo, mas estacionou em um patamar elevado, segundo Waldery. Uma comparação internacional indica que a massa salarial do setor público do Brasil corresponde ao que é gasto com o funcionalismo da França.

A ideia do governo é enfrentar o elevado gasto com a folha de salários com a proposta de reforma administrativa.

Foi com receitas não recorrentes que o governo fechou as contas do ano passado com um déficit bem menor do que autorizado pela lei orçamentária. Isso significa que há um longo trabalho para resolver os buracos nas contas públicas. O secretário de Fazenda disse que “não fizemos metade do que precisa ser feito”. Seu foco, agora, está na aprovação das três PECs - a do pacto federativo, a da emergência fiscal e a dos fundos.

*Claudia Safatle é diretora adjunta de Redação


Míriam Leitão: Chamada de risco

Solução para a Oi não pode envolver recurso público. Qualquer solução para a Oi que signifique colocar dinheiro público ou vantagens especiais no pagamento de dívidas com credores estatais é inaceitável. A empresa tem no seu DNA o intervencionismo estatal e isso é parte do problema. Apesar de a companhia estar arruinada, salários e bônus de diretores superam os de concorrentes mais saudáveis. Sua dívida é tal que estoura qualquer limite aceitável.

O assunto se arrasta. A quem interessa tanta demora? Nos formulários que a companhia entrega à CVM há alguns indícios. Os ocupantes das três diretorias estatutárias receberão neste ano R$ 45,8 milhões, incluídos aí R$ 21,6 mi em bônus. Levarão para casa 50% a mais do que no ano passado, quando a Oi registrou prejuízo líquido de R$ 7 bilhões. A Telefonica, dona da líder Vivo, pagará bem menos, R$ 10,9 mi. Uma mudança na gestão da Oi é uma medida tão urgente quanto o acordo com credores.

A dívida é astronômica: R$ 64,5 bilhões contando os cerca de R$ 20 bi devidos a bancos públicos e à Anatel. Para honrar os compromissos, a companhia precisa de 10 anos de geração operacional de caixa, que está em R$ 6,5 bi, nos números da consultoria Economatica. Em empresas saudáveis, a relação entre dívida e Ebitda chega a, no máximo, três vezes.

Ontem, credores contestaram os termos do acordo apresentado. O plano é que um grupo, que detém R$ 32,5 bi em dívidas da Oi, troque seus títulos por ações. Se a proposta prosperar, o grupo terá que aportar R$ 3,5 bi para investimentos, e os atuais acionistas investiriam apenas R$ 2,5 bi. A crítica é que, desse modo, os acionistas atuais seriam beneficiados. A assembleia decidirá sobre a proposta dia 23. Se aprová-la, os que detém ações serão diluídos. Nesse grupo está a BNDESPar, que ainda mantém 4,6% do capital da operadora. O BNDES, o BB e a Caixa tinham créditos de R$ 10 bi com a Oi no início da recuperação judicial; a empresa responde por 17,8% de todo o saldo inadimplente no banco de fomento. Um movimento de acionistas pressiona o Planalto para transformar as multas de R$ 11 bi com a Anatel em investimentos. A Advocacia Geral da União diz que nenhuma hipótese foi descartada, nem a intervenção. Fundos acompanham o caso.

O uso de dinheiro público seria mais uma vez para proveito privado. Tem sido assim na longa história de erros da Oi. Ela começou apelidada de “Telegangue” quando foi arrematada no leilão por um consórcio formado às pressas por empreiteiras e empresas que não eram do ramo. Depois, no governo Lula houve um esforço direto para transformá-la na grande tele brasileira. Foi o pior erro. Em 2008, o governo mudou a lei que impedia a concentração e empurrou bancos públicos para financiar a compra da Brasil Telecom. Em 2010, a Portugal Telecom comprou parte da companhia e levou seus próprios problemas para dentro da Oi. A dívida continuou a crescer e no ano passado foi feito o pedido de recuperação judicial, o maior da história do Brasil.

— A reestruturação não deve se resumir à dívida. A Oi precisa melhorar sua operação. Hoje, ela é uma fábrica de prejuízos. A demora no acordo faz a dívida aumentar e deixa o plano de recuperação ainda mais caro — diz Luiz Alberto de Paiva, da Corporate Consulting.

Uma das possibilidades seria a venda de ativos, de partes da Oi. A lei de recuperação judicial, inclusive, prevê que “unidades produtivas isoladas” possam ser negociadas no processo, sem carregar as dívidas trabalhistas e tributárias da empresa em apuros. Mas nada parecido foi proposto até agora.

— Ao menos dessa vez, a solução tem que passar longe do dinheiro público. Ajuda do governo já não é recomendável em tempos de bonança. Hoje não há sequer espaço fiscal — alerta Sergio Lazzarini, do Insper.

A empresa ainda é grande, mas tem perdido participação no mercado e é campeã de reclamações. Perdeu a liderança na rede fixa para a Vivo. Em São Paulo, tinha 17% das linhas móveis e agora tem 12,5%. Mesmo assim a companhia é relevante em vários mercados. Entre as 10 maiores capitais, a Oi é líder na telefonia móvel em Salvador, Fortaleza e Recife. Pelo interior, há centenas de cidades só atendidas por sua rede. Mas a crise ameaça a qualidade do serviço. Na tecnologia moderna de internet móvel, a 4G, a Oi atende a apenas 284 cidades, pouco mais de 10% da líder TIM. Em um mercado tão competitivo, a necessidade de investimento é intensa. E a empresa está parada no tempo.