Ditadura
Bruno Boghossian: Congresso pode afrouxar caixa dois, improbidade e investigações
Câmara faria um serviço ao país se modernizasse regras, mas ideia cria brecha para retrocessos
Poucas coisas movimentam tanto o Congresso quanto a força-tarefa que tenta mudar as leis que mexem com a vida política dos parlamentares. A ideia é reformar regras ultrapassadas e conter abusos, mas o esforço abre caminho para perdoar o caixa dois, blindar deputados e livrar prefeitos que fazem barbaridades com dinheiro público.
Logo nas primeiras semanas de atividade, os parlamentares lançaram um grupo de trabalho para reformar a legislação eleitoral. O Congresso faria um bem ao país se criasse regras modernas para a propaganda e o financiamento de campanhas. Os deputados, no entanto, também querem discutir retrocessos que interessam principalmente à sua sobrevivência política.
Voltaram ao debate monstrengos como o distritão, que enfraquece os partidos políticos e facilita a eleição de aventureiros para o Legislativo, e a flexibilização da cláusula de barreira, que impediria o enxugamento do número de siglas nanicas.
Segundo os deputados, também podem entrar na pauta mudanças para aliviar punições por caixa dois, um sonho antigo de muitos parlamentares. Além disso, eles estudam mexer na Lei da Ficha Limpa –que tem regras defeituosas, mas pode acabar desfigurada.
Os deputados elaboraram ainda a PEC da imunidade. De um lado, ela acaba com aberrações como a possibilidade de um tribunal de instância inferior afastar um parlamentar do mandato. De outro, dificulta prisões e impõe um excesso de restrições nas investigações contra políticos. Na prática, cria uma blindagem e abre caminho para imitadores do golpista Daniel Silveira.
Na Câmara, já se fala também em liberar o nepotismo e em afrouxar as punições contra políticos por improbidade administrativa. Esta mudança pode fazer a festa de prefeitos interessados em gastar dinheiro público sem prestar contas. A ideia tem o apoio de Jair Bolsonaro, que tenta fortalecer sua base eleitoral nos municípios. “Alguma coisa vai ser mudada, pode deixar”, avisou.
Maria Hermínia Tavares: Não é o que eles dizem: o piso de gastos em educação e saúde e seus críticos
Vinculação de receita é a forma possível de garantir prioridades
Na versão de seu relator, senador Marcio Bittar (MDB-AC), a proposta da emenda emergencial à Constituição, entre várias iniciativas para lidar com o presente aperto fiscal, extingue os pisos obrigatórios do gasto público com saúde e educação, assegurados na Carta de 1988.
A discussão sobre o tema não diz respeito ao reconhecimento das severíssimas limitações daquilo que o governo pode desembolsar sem comprometer sua capacidade política e administrativa ou travar de vez o já trôpego andar da economia. Só os nefelibatas —com ou sem diploma em ciências econômicas— podem imaginar que limites fiscais são perversas invenções do neoliberalismo.
Tampouco se trata de debate sobre liberdade de escolha, em que um imaginário prefeito governaria melhor se pudesse decidir, por conta própria, despender mais com a crescente população idosa do que com escolas de primeiro grau cuja clientela minguou. Só pode achar que esse é o dilema quem se imagina no país de Birgitte Nyborg, a simpática primeira-ministra dinamarquesa da série Borgen, da Netflix.
Não é demais lembrar a maneira pela qual instrumentos tão pesados —toscos, em português claro—, como as vinculações mandatórias, adentraram a Constituição. No texto original, saúde, Previdência e assistência social foram reunidas sob o mesmo princípio do direito universal à seguridade, garantido por um Orçamento único. No percurso da teoria à prática, descobriu-se porém que o cobertor era curto demais: para atender à Previdência, era comum deixar a saúde desassistida --em plena montagem do SUS. Por isso, não por uma perversa maquinação antiliberal, a EC (emenda constitucional) número 29 criou o piso de gasto.
Já a vinculação obrigatória de recursos à educação é anterior aos trabalhos da Constituinte: foi introduzida pelas chamadas emendas Passos Porto (EC 23/83) e João Calmon (EC 24/83), ambas visando assegurar recursos permanentes ao sistema público de ensino, nos três níveis da Federação. Incorporada à Carta, a vinculação foi aprimorada com a criação do Fundef em 1996 e sua transformação em Fundeb, dez anos depois. A meta sempre foi assegurar financiamento adequado e prover estímulos para reduzir o vergonhoso atraso educacional brasileiro.
Os pisos de gasto em saúde e educação destinaram-se a proteger as duas áreas da inevitável disputa por recursos quando as demandas são muitas; os interesses, divergentes; e o dinheiro, curto. Ou seja, uma forma de dizer que aquelas devem ser políticas de Estado, com estabilidade e permanência asseguradas, acima —e apesar— das intenções dos governantes de turno.
*Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Ribamar Oliveira: O novo marco fiscal da PEC 186
Governo vai perseguir uma trajetória para a dívida pública
Se o substitutivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, apresentado pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC), for aprovado, o teto de gastos da União, instituído pela emenda 95/2016, terá função complementar e poderá, no futuro, ser suavizado. Na verdade, a proposta institui um novo marco fiscal para a União, no qual o governo federal irá perseguir uma trajetória de convergência do montante da dívida pública para um limite definido em lei.
Um modelo semelhante é utilizado pela Suécia. Lá, o governo adota uma política fiscal que tem um limite para a dívida pública bruta, uma meta de resultado nominal e um teto para gastos de base móvel, que pode ser ajustado depois de um determinado período. Tanto o teto como a meta fiscal são fixados para manter a dívida bruta na trajetória pré-definida. Há uma série de outros detalhes que não cabe aqui especificar.
O fato é que os elementos básicos desse modelo estão presentes na PEC 186. O inciso VIII do artigo 163, que está sendo acrescentado na Constituição pela PEC, estabelece que uma lei complementar definirá a trajetória de convergência do montante da dívida com limites especificados em legislação. Não esclarece, no entanto, se o conceito a ser utilizado é o da dívida bruta ou líquida.
É importante observar que o modelo não propõe a fixação de um limite para a dívida da União. Um limite está previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (lei complementar 101/2000), mas nunca foi definido pelo Senado, pois o governo federal sempre foi contrário à ideia. Só há limites para Estados e municípios.
A PEC 186 estabelece que o governo vai propor uma trajetória para a dívida pública a ser alcançada durante um certo período de tempo. A trajetória terá que ser aprovada pelo Congresso Nacional. Acreditava-se, na área técnica, antes da pandemia da covid-19, que a dívida bruta do setor público brasileiro deveria convergir para 50% do Produto Interno Bruto (PIB). Naquela época, ela estava próxima de 74% do PIB. No pós-pandemia, a meta pode ser, por exemplo, 60% do PIB, que seria alcançada em um determinado período de tempo.
O Brasil poderá adotar um sistema de bandas de flutuação para a dívida, com um limite superior e outro inferior, semelhante ao adotado no regime de metas de inflação utilizado pelo Banco Central. Na Suécia, se a dívida se desviar, para cima ou para baixo da trajetória definida, mais de cinco pontos percentuais do PIB, o governo é obrigado a apresentar uma comunicação ao Parlamento, explicando a causa do desvio e apresentando um plano de como pretende retornar a dívida para o patamar determinado.
A meta de resultado primário das contas públicas terá que ser compatível com a trajetória para a dívida, prevê a PEC 186. Talvez o resultado possa ser fixado para vários anos, como ocorre na Suécia. Assim, o Brasil poderia fazer um planejamento de médio prazo de suas contas.
A lei complementar que vai regulamentar esta questão poderá definir medidas de ajuste fiscal, suspensões e vedações para que a trajetória da dívida seja alcançada. A PEC diz que a União, os Estados e os municípios devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis que assegurem sua sustentabilidade. E que a elaboração e execução de planos e orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais com a sustentabilidade da dívida.
Para a União, a PEC cria dois gatilhos que disparam as medidas de ajuste fiscal, com o objetivo de preservar o teto de gastos. Em situação normal, o governo pode adotar medidas de contenção toda vez que a despesa obrigatória primária, submetida ao teto de gastos, superar 95% da despesa primária total. Em situação de calamidade pública, reconhecida pelo Congresso, o ajuste deve ser realizado para compensar os gastos extras do período.
Se a PEC 186 for aprovada e o novo marco fiscal for colocado em prática, ficará mais fácil para o próximo governo adotar um teto de gasto mais flexível. A Suécia, por exemplo, define um teto para um período de quatro anos, sendo que o valor fixado para o terceiro ano é considerado impositivo. Para o quarto ano, o valor é apenas indicativo. Os novos cenários econômicos são anualmente analisados e, com base neles, o governo define o teto de gastos para outro período de quatro anos.
Outro ponto da PEC está relacionado com a sustentabilidade da dívida. Pela primeira vez será inscrito no texto constitucional que, na promoção e na efetivação dos direitos sociais, deve ser observado “o equilíbrio fiscal intergeracional”. A preocupação aqui, ao que parece, está relacionada com as decisões do Poder Judiciário, quando julga questões relativas a direitos individuais e coletivos.QuestionamentosA PEC determina que o presidente da República encaminhe, em até seis meses após a promulgação da emenda constitucional, um plano de redução gradual e linear de incentivos e benefícios de natureza tributária. Há, pelo menos, três questionamentos que precisam ser feitos.
O primeiro é saber por que o senador Bittar manteve este comando na PEC 186, uma vez que, neste momento, o Congresso discute a reforma tributária. Existe, inclusive, uma proposta do governo de unificação do PIS e da Cofins, com a criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS). Até aqui a estratégia do governo era deixar a redução dos incentivos para depois da reforma, mesmo porque a mudança dos tributos iria permitir a eliminação de vários deles. A manutenção deste artigo na PEC pode indicar que o governo tenha desistido da reforma.
A segunda questão é que o substitutivo de Bittar fala em “redução linear” dos incentivos e benefícios. É difícil imaginar como isso poderá ser feito. O terceiro questionamento é a PEC excluir da redução os incentivos à Zona Franca de Manaus, a desoneração da cesta básica e os benefícios tributários às micro e pequenas empresas, por meio do Simples Nacional, que é responsável pelo maior volume do gasto tributário. Não dá para reduzir o gasto de 4% para 2% do PIB com o que sobra, como dispõe a PEC.
Celso Ming: Estratégia populista e falso liberalismo
A intervenção de Bolsonaro na Petrobrás é mais uma das inúmeras demonstrações de que seu objetivo é ganhar as eleições de 2022
Algumas decisões do presidente Jair Bolsonaro podem passar a impressão de que a estratégia continua sendo de política econômica liberal. Mas é grave engano.
A intervenção desastrada do presidente na Petrobrás produziu enormes estragos. A principal divergência de Bolsonaro com o presidente da Petrobrás, Roberto Castello Branco, talvez não tenha sido a questão dos preços dos combustíveis nem a política adotada, mas de falta de afinidade visceral, do tipo “não vou com tua cara, e pronto”. Mesmo se fosse por aí, não seria preciso tanta truculência.
A substituição do presidente da Petrobrás poderia ter sido feita com jeito. Afinal, o mandato de Castello Branco terminaria em março. Se o chefe dos acionistas majoritários quisesse trocar o comando da Petrobrás, como se viu que quis, teria bastado acionar os mecanismos ordinários previstos para isso sem a turbulência que se viu depois.
De todo modo, Bolsonaro parece ter sentido a necessidade de olhar para o outro prato da balança. Primeiramente, tratou de afagar a cabeça do ministro da Economia, Paulo Guedes, que vinha sendo ignorado. Na terça-feira, trabalhou para dar andamento no projeto de privatização da Eletrobrás – outro item da agenda liberal.
Nesta quarta-feira, além de sancionar a lei de autonomia do Banco Central, pleito que não pode ser considerado populista, o governo também encaminhou ao Congresso o projeto de privatização dos Correios.
Há alguns meses, o governo mudou sua política em relação à China. A hostilidade ostensiva aos produtos chineses, manifestada inicialmente na definição das regras da conexão 5G, foi trocada por atitude mais pragmática.
A vacina Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac, teve há alguns meses o veto do presidente por ser “vacina da China e do governador João Doria”. Mas, diante da necessidade de iniciar a vacinação contra a covid-19 no País, o Ministério da Saúde acabou autorizado a comprá-la. Pesaram nessa mudança de postura os interesses do agronegócio, o setor mais dinâmico da economia brasileira.
Mas essa aparente correção de rotas não significa reconversão a uma política econômica de equilíbrio fiscal e de apoio às reformas, onde prevalecessem a racionalidade das decisões e os princípios da livre concorrência.
Bolsonaro deu inúmeras demonstrações de que seu objetivo é ganhar as eleições de 2022, custe o que custar. Para isso, ele precisa que a economia supere o atual marasmo e os 14 milhões de desempregados. Depois de ter feito os acordos já conhecidos com o Centrão, pretende conseguir a virada da economia com distribuição de auxílios sociais sem contrapartida de corte de despesas, com desoneração dos combustíveis também sem contrapartida fiscal, com preços artificiais da energia elétrica e com uma espécie de bolsa subsidiada aos caminhoneiros.
Ele também afirma que o dólar acima de R$ 4,50 não atende a seus objetivos. Mas não disse como conseguiria derrubá-lo dos níveis atuais. Será esse seu próximo alvo?
Adriana Fernandes: O 'assopra' do presidente a Guedes tem tudo para virar um 'morde' logo mais
Ministro recebeu elogios e afagos do presidente por dois dias, mas não apoio efetivo com resultados práticos
O presidente Jair Bolsonaro elevou de patamar o jogo de morde e assopra com o ministro da Economia, Paulo Guedes, após o estopim provocado pela demissão do presidente da Petrobrás, as ameaças de mais intervenção na economia e o impacto de tudo isso no mercado financeiro.
Guedes recebeu elogios e afagos do presidente por dois dias, mas não apoio efetivo com resultados práticos. Segue, portanto, pressionado pelo Palácio do Planalto, ministros próximos do presidente e pelos aliados no Congresso.
O Ministério da Economia pode até dizer que o Guedes fez do limão uma limonada ao conseguir que o presidente fosse com ele numa caravana até o Congresso para entregar o texto da MP de privatização da Eletrobrás numa estratégia bem encenada que recebeu “aplausos” do mercado financeiro após o “combo” que levou ao tombo das ações da Petrobrás, Eletrobrás, Banco do Brasil, alta de juros, perda de confiança e disparada do dólar.
Esse é um jogo em que ninguém é enganado, muito menos o mercado que passa a mão na cabeça no governo e ajuda a desorganizar as coisas. O Congresso não é lugar de "protocolo" de projetos, em que se tem uma resposta passados X dias úteis. Lá, o governo precisa trabalhar pela aprovação de suas propostas.
O teste final do apoio a Guedes não será com a Eletrobrás. Tampouco com a privatização ou abertura de capital dos Correios, que entrou novamente em cena como resposta aos desdobramentos da troca na Petrobrás.
A prova de fogo para o ministro no cargo também pode até não ser a votação da PEC fiscal para a concessão do auxílio emergencial, que foi apresentada com medidas fiscais.
A equipe do Ministério da Economia não abre mão desse reforço no controle dos gastos públicos e sobe o tom nos bastidores para impedir o fatiamento do texto no Senado, que quer aprovar apenas a parte do auxílio na proposta. “Não vamos ceder a isso”, afirmam em coro. A Câmara também quer o mesmo, como revelou reportagem do Estadão.
A tendência, porém, é de aprovação de uma PEC desidratada porque os parlamentares alegam urgência para o auxílio. Um movimento esperado diante do fato de que a equipe econômica quer colocar um conjunto de medidas muito grande, além do bode na sala do fim do piso constitucional para aplicação de recursos orçamentários em saúde e educação. Não passa, mas serve para desviar a atenção.
A valentia da equipe econômica em não querer ceder na PEC mostra resiliência, mas o seu sucesso dependerá de até onde o presidente Jair Bolsonaro estará disposto, na prática, a dar apoio à PEC “cheia”: auxílio mais contrapartidas fiscais.
Bolsonaro defendeu o auxílio, mas até esse momento não deu uma palavra contundente em defesa da aprovação das contrapartidas fiscais que lotaram o parecer do senador Márcio Bittar. Nesta quarta-feira, repetiu que é preciso ter responsabilidade fiscal. Sem ação, de nada valem essas palavras.
Se o presidente não entrar em campo, mesmo que só nos bastidores, o ministro vai perder mais essa parada e terá que apostar num compromisso dos parlamentares de aprovar uma segunda PEC até o final do segundo semestre com o resto das medidas.
Essa segunda PEC foi defendida por lideranças antes da divulgação do parecer de Bittar, mas Guedes e sua equipe apostaram no tudo ou nada com o temor de repetir o que ocorreu com a PEC paralela, resultado da divisão da reforma da Previdência no Senado e que foi abandonada mais tarde. A inclusão na PEC de medidas polêmicas, jabutis e afins só dificultou ainda mais a tramitação. Não dá para querer abarcar o mundo numa situação de emergência.
Mesmo como todos os reveses, o pior cenário para o ministro poderá se dar mesmo com uma eventual decisão do presidente de demitir secretários especiais da pasta e dividir o ministério na reforma ministerial. Tem muita gente querendo recriar os ministérios do Planejamento, Indústria e Comércio, além de Previdência e Trabalho.
Guedes já disse da boca da fora que “podem ficar com a Previdência porque já teve a reforma”, mas não é bem assim. A gota d'água para ele poderá ser mesmo o fatiamento do Ministério da Economia e a demissão pelo presidente de seus auxiliares.
O que se sabe após o episódio da Petrobrás é que as mudanças não vão parar por aí. É só o começo no que está sendo chamado no Palácio do Planalto como “ajuste de estrutura”. O "assopra" agora do presidente, que disse que Guedes é uma âncora para o governo, tem tudo para virar um "morde" logo mais, a depender do que se viu até aqui.
Maria Cristina Fernandes: Populismo fiscal de Bolsonaro embaralha jogo
Bolsonaro não cairá de podre, é o país que pode apodrecer
Ao mergulhar no populismo dos combustíveis e tarifas, o presidente da República faz uma aposta que não apenas o posiciona no jogo de 2022 como desmonta o daqueles que se apresentam para enfrentá-lo.
Na tentativa de forçar a polarização com o PT, Jair Bolsonaro mexeu-se para abraçar a pauta do adversário. E foi por ele abraçado. A ordem é “não importa a cor do gato, o que importa é que mate o rato”.
Nessa linha, os sindicatos de petroleiros comemoraram a derrubada do ex-presidente da Petrobras, Castello Branco, e alimentam expectativas, correntes também nos meios militares, de que a BR Distribuidora venha a ser reestatizada e a venda de refinarias, suspensa
O tom com o qual Jair Bolsonaro queixou-se publicamente do trabalho remoto de Castello Branco, não se diferencia muito daquele que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem usado, internamente, para se queixar dos dirigentes sindicais que evitam se expor às aglomerações da pandemia.
Se Bolsonaro se move para roubar a bandeira do populismo fiscal, como se diferenciaria do PT? Com seu programa “Armas para Todos” e com uma pauta radicalizada nos costumes, acelerando a volta do Brasil ao estágio pré-civilizatório.
O jogo é um campo minado para todo o resto. Um aumento médio de 30% nos combustíveis em menos de dois meses do ano afeta não apenas a base bolsonarista de caminhoneiros e produtores rurais, mas precarizados de toda ordem que hoje ganham a vida em aplicativos de transporte. É discurso para o campo e a cidade.
Não é à toa que o enfrentamento deste discurso desnorteie a oposição. Abraçar uma política de preços 100% ditada pelo mercado é um suicídio eleitoral. Atacá-la à la Bolsonaro também o é. Uma coisa é endividar o país quando se tem o poder nas mãos de implementar políticas que gerem crescimento capaz de pagar essa dívida.
Outra coisa é defender uma política de preços que passe por endividamento acelerado quando não se tem o poder nas mãos. Cenário que se agrava quando o presidente de plantão não tem compromisso com resultados, só com a tentativa. E piora em proporções estratosféricas quando o sócio majoritário é o Centrão.
O bloco quer acomodar esse avanço populista de Bolsonaro desamarrando os limites fiscais e destruindo não apenas as vinculações orçamentárias que garantem alguma chance de resgate da dívida social do país, como é o caso dos recursos da saúde e da educação.
O Congresso avança também para desmantelar o próprio Estado, como é o caso da desvinculação dos recursos que garantem a autonomia da Receita, contida no substitutivo da PEC emergencial. Sem verba vinculada, os auditores teriam que negociar todos os anos com o Congresso. Quais serão as próximas vítimas, o Judiciário, a Polícia Federal? Vão fazer fila para pedir dinheiro àqueles a quem devem vigiar?
O Centrão, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), deixou claro na “Live do Valor “, avança até para a intermediação dos recursos para as prefeituras. Quer eliminar a Caixa Econômica Federal, onde os critérios de liberação são mais rígidos, como agente dessa intermediação.
O ideal para o Centrão é que as transferências sejam feitas diretamente dos ministérios para as prefeituras, como aconteceu no repasse de emendas que marcou a eleição das Mesas. É um mecanismo por onde fica mais fácil operar as rachadinhas entre prefeitos e parlamentares.
É um golpe por dentro das instituições que ameaça desmontar a Constituição. E conta, no Judiciário, com atores bem postos para prestar serviços à sociedade Bolsonaro-Centrão, como se viu na invalidação das provas contra o senador Flávio Bolsonaro, mas não apenas.
As tentativas do presidente do Supremo, Luiz Fux, de estabelecer pontes com o Senado que lhe permitissem furar o cerco que lhe é imposto pela trinca Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, esbarraram na eleição do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Casa.
O ensaio de aproximação entre Fux e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) fracassou pela determinação deste em delegar integralmente as questões relativas ao sistema de justiça ao presidente da CCJ.
Sem pontes com o Congresso, os ministros que ainda buscam preservar os alicerces do controle da corrupção podem se tornar cada vez mais reféns das investidas do desmonte da Lava-Jato. Há expectativas de que, a requisição de informações do TCU sobre o registro de ligações de integrantes da operação, encontre ministros do Supremo do outro lado da linha.
A sociedade entre Bolsonaro, Centrão e Judiciário é o que faz com que o populismo fiscal do atual presidente seja muito mais grave do que aquele observado no governo Dilma Rousseff. A ex-presidente foi derrubada pela aliança de um mercado incomodado com a gastança e um Centrão/Supremo reativo à inação do governo frente ao avanço do programa “Lama para Todos”, patrocinado por juízes, procuradores e policiais federais.
O que torna a situação de hoje mais grave não é a rouquidão do 'Fora Bolsonaro'. Pior é a interdição de alianças que projetem alternativas competitivas para 2022, a começar pela aproximação entre esquerda e centro
Trata-se de uma corrida de obstáculos. A começar pela modulação programática. A esquerda se sente desobrigada de fazer concessões liberais ante um mercado que jogou na retranca quando seus presidentes estiveram no poder.
E ainda investe, ao lado do Centrão, na desidratação das instituições de controle. Justifica-se com o argumento de que, ao longo de seus governos, atuou para fortalecê-las e recebeu, como retribuição, atuações desmedidas contra suas lideranças.
Entre as lideranças de centro, a visão não é menos embaçada. Consumidos na fulanização de suas vaidades, estão mais interessados em comer pelas beiradas a aliança de Bolsonaro com o Centrão do que em lançar pontes com a esquerda.
Entre aqueles que têm chances de projetar um futuro para o país, no centro e à esquerda, a crença majoritária ainda é que o bolsonarismo cairá de podre. Não dá sinais de que cairá. Antes disso, é o país que corre o risco de apodrecer.
William Waack: Homem convicto
No peculiar mundo político de Bolsonaro pululam as conspirações
Jair Bolsonaro é um homem de convicção. Não se trata de convicção sobre princípios de política ou de economia, mas, sim, da convicção trazida pela percepção de que ele, presidente da República, está perdendo instrumentos de poder. Como o de demitir chefes de estatais, ou de exigir deles obediência ao que Bolsonaro considere melhores políticas – incluindo fechamento de agências do Banco do Brasil ou formação de preços de combustíveis.
A convicção de Bolsonaro baseia-se na forte crença de que há sempre conspirações em curso para tirá-lo do poder. Esses processos mentais, não importa a opinião médica que se tenha deles, são fatores importantes para se entender a motivação e as decisões do presidente brasileiro, segundo relatos em “off” de pessoas que acompanharam diretamente como chegou a recentes posturas políticas. No caso da Petrobrás, por exemplo, o presidente acha que a conspiração foi armada via aumentos de preços do diesel para irritar os caminhoneiros que, por sua vez, têm a capacidade de paralisar o País e criar o clima de caos social para prejudicá-lo.
O mesmo ocorreu no caso do Banco do Brasil. O fechamento de agências, entende Bolsonaro, foi urdido com o intuito de prejudicá-lo entre o eleitorado de pequenas cidades e a pressão que elas exercem sobre deputados de várias regiões. Mesmo a aprovação da autonomia do Banco Central (algo que ele defendeu em público durante a campanha) caiu sob a mesma interpretação: Bolsonaro acha que lhe foi retirado um poder efetivo, o de mandar na taxa de juros.
Auxiliares têm se esforçado em explicar ao presidente que a formação de preços no setor de energia, a política de pessoal em instituições financeiras públicas e a fixação da taxa de referência de juros obedecem a mecanismos complexos e a fatores entre os quais alguns (como o cenário internacional de juros e preços de commodities) escapam a qualquer controle brasileiro. Mas o presidente, segundo relatos confiáveis, não quer ouvir falar disso.
O mundo político e pessoal de Bolsonaro, de acordo com interlocutores frequentes, é completamente dominado pelo empenho pela reeleição e a luta para sobreviver às conspirações para tirá-lo do poder e aplainar a volta de Lula. Frases ditas pelo ex-presidente petista em entrevistas recentes, como a importância de se preservar a atuação do Executivo sobre a Petrobrás, são mencionadas por Bolsonaro em conversas privadas como “prova” do que diz ser necessário manter como “instrumentos de poder”.
A crença em conspirações tramadas por adversários estava presente também na maneira como Bolsonaro reagiu à pandemia. Depois de acreditar que o alarme sobre o vírus não passava de tentativa de desestabilização, o presidente passou a enxergar nas medidas restritivas adotadas por prefeitos e governadores apenas uma tática política de indispor a população contra o poder central. Ele acredita, de fato, que seus adversários continuam tentando criar uma situação de baderna à la Chile por meio do desemprego, miséria e fome. E o que é pior: com o dinheiro que ele, Bolsonaro, está disponibilizando via ajudas emergenciais.
Quem conversa muito com o presidente afirma que ele só pensa em reeleição e submete qualquer outro tipo de consideração – como “intervencionismo” ou “liberalismo” na política econômica – ao cálculo político-eleitoral de prazo curtíssimo. É o que o faz defender posturas aparentemente contraditórias. Intervir na formação de preços de combustíveis (e a ação vai se estender também ao setor elétrico) fez desabar os mercados, dos quais dependem os humores de investidores, mas energizou seu núcleo eleitoral duro.
O mesmo vale para a ajuda emergencial imediata, âmbito da ação política na qual Bolsonaro conta com as fortes simpatias do Centrão e sua prática de fazer agrados com o dinheiro do contribuinte. Nas complexas discussões sobre ajuda emergencial e teto de gastos Bolsonaro julga ter chegado ao fundo da questão. As preocupações com a situação fiscal são tidas pelo presidente como pretextos de cínicos gananciosos que não entendem nada de política. “Tudo bem que a tua turma ganha dinheiro, PG”, já disse Bolsonaro mais de uma vez a Paulo Guedes, “mas não me tira poder”.
Ainda que seja apenas uma, Bolsonaro é um homem de convicção.
Adilson Paes de Souza: Militares, retornem para os quartéis. O estado democrático de direito exige
As falas do general Villas Bôas, que inspiraram o deputado Daniel Silveira a fazer um show de arbítrios e horrores, mostram a pressão feita por ele sobre o STF em 2018 e a ordem dada para mandar Lula para à prisão e pavimentar o caminho da eleição de Jair Bolsonaro. Foi golpe de Estado
Causou repulsa, decepção e vergonha a fala do general Villas Bôas, que revelou a movimentação e o concerto, entre os oficiais do Alto Comando do Exército brasileiro, na elaboração do texto publicado no tuíte do comandante, pouco antes do julgamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), do habeas corpus do presidente Lula, em 2018. Não há como relativizar. Houve pressão e, com isso, houve intromissão descabida e indevida do Exército brasileiro no STF. Cabe a ele tutelar as decisões da nossa Suprema Corte? Numa democracia, não!
Após a publicação do seu livro de memórias neste ano (General Villas Bôas: conversa com o comandante”, organização Celso Castro, FGV Editora), é mais do que óbvio haver repercussão. Houve reação do ministro da Corte Edson Facchin, um tanto tardia (demorou três anos!). Outro oficial do Exército, agora na reserva, afirmou que jamais teria a força de intimidar ministros. Mas o STF se acovardou — exceção feita ao ministro Celso de Mello — e houve, sim, a pressão dos militares. A ordem dada foi para mandar Lula para a prisão e pavimentar o caminho da eleição de Jair Bolsonaro. Foi golpe de Estado. Gabriel Naudé ensina que o bom golpe é dado sem barulho, sem tanques e canhões nas ruas, quando reina a aparente normalidade. Foi bem assim que ele aconteceu (ver Consideraciones políticas sobre los golpes de Estado, Instituto de Estudios Políticos. Caracas).
Li o livro do general. Ele fez referência a veículos de comunicação dominados pelo politicamente correto (sabe Deus o que isso significa!?), que tratam dos assuntos com “enfoque desconectado da verdade”; fez alusão às “formas contemporâneas de imperialismo movidas pelo grande capital, corporações, organismos internacionais e as ONGs” ―delírio. Tece largos elogios ao ministro Ricardo Salles: “o nosso destacado e eficiente (sic) ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que corajosamente, desde que assumiu sua pasta, vem lutando para desmontar estruturas aparelhadas, ineficientes e corrompidas, que criaram um ambiente favorável à dissipação de recursos financeiros, sem que se produzissem os efeitos pretendidos.” Absurdo.
Interessante pontuar que não houve, até agora, um único comentário do general sobre a gastança de dinheiro público, pelas Forças Armadas, na compra de grande quantidade de leite condensado, chiclete, picanha, lombo de bacalhau, uísque 12 anos etc etc etc, com suspeitas de superfaturamento. Mas em seu livro, a sua preocupação era outra: “Me preocupa uma eventual volta ao poder pela esquerda” ―Perigo! Atenção para a tutela da democracia de acordo com os que os militares exigem. “Estamos carentes de valores universais, que igualem as pessoas pela condição humana, acima da classificação aleatória que se lhes quer atribuir”, descreve Villas Bôas. Mais um absurdo, como se o ser humano não fosse distinto, plural ―querer igualar (ou nivelar) as pessoas pode significar traçar um perfil padrão, onde todos devem caber. Perigoso ―eugenia?
Sobre o Governo Dilma, o general disse que “ela nos pegou de surpresa, despertando um sentimento de traição em relação ao Governo. Foi uma facada nas costas”, em referência à Comissão da Verdade que trataria dos crimes cometidos contra civis durante o regime militar (1964 -1985). Mais um absurdo. É essa a fala e a postura que se espera de um comandante, que devia obediência e lealdade às autoridades constituídas? Evidente que não! Se o comandante fala e age assim, o que pensar dos subordinados? E para os que não são subordinados também! A fala do general serviu de inspiração para o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) fazer um show de arbítrios e horrores, com direito ao AI-5, à ditadura, ameaças e tudo.
Outro general, famoso pelos seus desacertos, causa espanto e indignação. Me refiro ao general Eduardo Pazuello, empossado ministro da Saúde e tido como um expert. Uma sucessão de erros e de mentiras brota de sua gestão. Uma subserviência, no mínimo constrangedora, ao presidente, que causa vergonha e os tornam cúmplices do caos instalado. Eles são corresponsáveis pelas mortes advindas da pandemia.
Sou policial militar, aposentado desde 2012. Cheguei até o posto de tenente coronel. As estruturas do Exército e das polícias militares são semelhantes, desde 1969, então fico a vontade para criticar. Eu tenho vergonha de ver oficiais com essa forma de pensar e de agir, me deparei com alguns deles durante a minha carreira. Eles não inspiram confiança, passam um ar de intelectualidade, de superioridade e, até mesmo, de arrogância. Veja o que se tornou o Ministério da Saúde, com tantos militares, um quartel e um exemplo de péssima administração e de incompetência.
Muitos dizem estar preocupados com seus subordinados, mas não estão. Pensam neles mesmos. Repito, tive o desprazer de conviver com oficiais desta natureza. Não foi nada bom. O pior é que tem gente na instituição que acredita neles. Quando algo dá errado, esses seguidores são abandonados à própria sorte. Vi isso na polícia, quando subordinados eram estimulados a praticarem determinadas ações e abandonados. Na cultura militar o superior hierárquico deve comandar servindo de exemplo. O general Pazuello serve de exemplo para quem? Veja o que Bolsonaro está fazendo com ele. Com o perdão da palavra, que vergonha!
Os militares, gostem ou não, devem obediência irrestrita à Constituição federal. Na democracia o poder emana do povo, que não precisa ser tutelado por pessoas fardadas; aliás, esta tutela era bem típica na ditadura. O conceito de democracia controlada (ou domesticada), tão caro à Doutrina de Segurança Nacional, era o que valia, como mostra a obra A ideologia da segurança nacional - o poder militar na América Latina (Joseph Comblin, Civilização Brasileira, 1978) Pelo visto, ainda vale. Por muito tempo senti na pele a desconfiança que as pessoas nutriam pelos militares. Situações nada agradáveis. As revelações do general Villas Bôas e a atuação do general Pazuello demonstram que elas estavam com a razão.
Militares, cumpram os papéis que lhes são destinados pela Constituição federal; não queiram ser mais do que lhes são reservados. Façam por merecer a confiança do povo, único titular do poder. Os danos a todos e, inclusive, a todos vocês, serão imensos. Retornem para os quartéis. Meia volta, volver! O Estado democrático de direito exige.
Adilson Paes de Souza é tenente coronel aposentado da PMSP, doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, e mestre em Direitos Humanos
Sérgio Augusto: Como Pinochet influencia a extrema-direita contemporânea
Gangues pró-Trump usam símbolos do ex-ditador chileno e se inspiram em grupos paramilitares como o Patria y Liberdad, bancado pela CIA e surgido no Chile logo após a eleição de Salvador Allende
A cobra fumou. Tem muito tempo: 76 anos. Era uma jararaca e simbolizava a FEB (Força Expedicionária Brasileira), que, surpreendendo a descrença geral, fumou—ou seja, finalmente foi para a Itália lutar contra Mussolini e Hitler. Uma cobra do bem.
As lendas amazônicas e a poesia de Raul Bopp nos legaram a Cobra Norato, a serpente emplumada de maias e astecas inspiraram D. H. Lawrence, mas não esperem boa coisa do ofídio batizado pelos gringos de “Hoppean snake” (ou a cobra de Hoppe). Hoppe, não Hopper (Edward), que nunca foi de pintar animais invertebrados.
Cascavel enroscada, com um quepe militar na cabeça, a cobra hoppeana virou uma espécie de suástica dos baderneiros de extrema direita americanos, onipresentes nos ralis trumpistas e ativíssimos naquela invasão do Congresso americano, incitando o desacato e o terror.
Os serviços de segurança, mesmo sob Trump, já estavam em seu rastro; com Biden na presidência, a vigilância deverá redobrar, tantas já foram as ameaças dos neofascistas de sabotar instalações elétricas, o sistema de telecomunicações, os serviços de saúde e outras variedades de terrorismo detectadas nas últimas semanas.
Os criadores dessa víbora inspiraram-se na que adorna a “bandeira de Gadsden”, pavilhão projetado há 246 anos pelo político e soldado Christopher Gadsden, por inspiração de Benjamin Franklin, para simbolizar as colônias americanas que se rebelaram contra os colonizadores ingleses e alimentar-lhes a patriótica beligerância. A inscrição que a acompanha (“Não pise em mim”) era uma advertência: pacífica, ela só atacava se fosse atacada. Outra cobra do bem, no caso, a serviço da Revolução Americana.
Sua filha bastarda, a peçonha de Hoppe, nem o Butantã talvez a aceitasse em seu ofidiário.
O quepe que ela ostenta na cabeça é o do general Augusto Pinochet, sanguinário e corrupto ditador do Chile de 1973 a 1990, que, por não ter tido sucessores, encarnou solito a tirania que implantou sobre o cadáver de Allende. O helicóptero que também ilustra os estandartes e as camisetas da malta paramilitar machista vidrada em Trump (Boogaloo Boys, Proud Boys, Three Percenters e Oath Keepers) é uma réplica dos que transportavam presos políticos para despejá-los, vivos, nas águas do oceano, um dos highlights do programa de extermínio do regime pinochetista.
A aparentemente bizarra fixação de organizações políticas neofascistas americanas por Pinochet e a fetichização de sua parafernália repressivo-militar intrigaram o jornalista Christopher Chatham, que sobre elas produziu uma informativa reportagem para o Intercept, na semana passada. Chatham descobriu parentescos entre as gangues trumpistas e o grupo paramilitar Patria y Liberdad, bancado pela CIA e surgido no Chile logo após a eleição de Allende.
A chave do fetiche está no nome da cobra. Hoppe é uma homenagem ao alemão de origem Hans-Hermann Hoppe, que dá aulas de economia na Universidade de Nevada, em Las Vegas, e amealhou seguidores como doutrinador da “economia libertária” de matriz austríaca, estufa do anarcocapitalismo, cujo objetivo supremo é a eliminação do Estado e a proteção à soberania do indivíduo e do “livre mercado”.
Bagrinho e idólatra de Ludwig von Mises, que formou com Friedrich von Hayek a dupla dinâmica do libertarismo econômico, Hoppe tem livros traduzidos no Brasil pelo think tank Mises Brasil. O mais conhecido, “Democracia, o Deus que Falhou”, copiou o título (“The God That Failed”) de uma histórica coletânea de ensaios sobre a desilusão com o comunismo de seis notáveis intelectuais (André Gide, Arthur Koestler, Louis Fischer, Ignazio Silone, Stephen Spender e Richard Wright) publicada em 1949 e entre nós traduzida nove anos depois.
Para Hoppe, comunismo e democracia são farinhas do mesmo saco, que ele rejeita com o vigor de um fanático apologista do mais puro darwinismo social. O fim justifica os meios, o sufrágio universal é uma opressiva intervenção estatista, é preciso desmantelar os programas de bem-estar social, privatizando em massa as empresas públicas e desregulando as corporações—a tais ideias peçonhentas outras foram agregadas, como, por exemplo, a remoção física de indesejáveis (comunistas, homossexuais etc) para manter a ordem numa sociedade libertária autêntica.
OK, mas por que o Chile, por que Pinochet?
Chatham lembra que Hayek foi, junto com Milton Friedman, um dos embaixadores do neoliberalismo no Chile de Pinochet, ao qual Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, também prestou serviço. Hayek ficou amigo do soba andino, visitou Santiago, mas não teve nada a ver, pessoalmente, com o enriquecimento ilícito do ditador, embora as fraudes cometidas pelo general possam ter sido amplamente facilitadas pelo afrouxamento regulatório aviado por Hayek e conselheiros ideologicamente identificados com os anarcocapitalistas de Viena e Chicago.
A ditadura de Pinochet deixou um saldo de 3000 mortos e mais de mil desaparecidos. Pinochet conseguiu driblar tanto a Justiça, que acabou morrendo antes de ser exemplarmente julgado e punido por crimes bem maiores que sua roubalheira, como foram vários de seus cúmplices no reinado de terror instaurado no Chile em setembro de 1973. Lá, os Ustras que aqui são idolatrados por Bolsonaro, Mourão e, implicitamente, pelo autoritário general Eduardo Villas Boas, tiveram de prestar contas com a Justiça. No Chile, a cobra do bem já fumou.
Ruy Castro: O Brasil nas ruas
Não fosse pela pandemia, já haveria comícios gigantes contra a putrefação de Bolsonaro
No fundo de uma gaveta surge de repente um objeto cheio de história: um button verde-amarelo de um comício da campanha pelas Diretas Já, em 1984. Era o comício da Candelária, aqui no Rio, no dia 10 de abril. Não me lembrava desse button e vejo agora que ele viajou comigo por apartamentos, casas e cidades nesses inacreditáveis 36 anos —em breve, 37.
Pouco antes, em janeiro daquele ano, acontecera o primeiro comício pelas Diretas, o da praça da Sé, em São Paulo, que reunira 300 mil pessoas. Mas o do Rio teria 1 milhão, com a multidão entupindo a avenida Presidente Vargas, do palanque na Candelária à praça da República, e atapetando a Rio Branco, da praça Mauá à Cinelândia —uma massa humana em forma de cruz, mostrando de vez que o país estava farto dos militares.
No palanque, os artistas, os famosos e os líderes Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, Fernando Henrique, Miguel Arraes, Leonel Brizola, Lula. Nem todos ali se davam: Montoro não gostava de Brizola, Brizola não gostava de Lula e Lula não gostava de ninguém. Mas todos tinham um inimigo comum: o regime, que já caia de podre e respirava por aparelhos, que eram as eleições indiretas para presidente votadas por um Congresso viciado. Daí os comícios, para pressionar os políticos a aprovar uma emenda que propunha restabelecer as diretas. Duas semanas depois, em 25 de abril, o Congresso traiu como sempre a nação, derrotando a emenda.
As diretas viriam, mas só dali a cinco anos, e Deus sabe quantos erros, desde então, cometeram-se em seu nome. As jornadas de 1984, no entanto, eram a prova de que existíamos ---e, não fosse pela pandemia, que nos obriga a lutar pela vida dentro de casa, o país estaria hoje de novo nas ruas, para exigir o despejo de Jair Bolsonaro.
Em 1984, a ditadura tinha 20 anos. Com dois anos de Bolsonaro, o Brasil já chegou a nível equivalente de putrefação.
BBC Brasil: Ditadura brasileira usou Itamaraty para apoiar repressão de Pinochet no Chile, diz autor de livro sobre golpe chileno
Sete anos de pesquisa em milhares de documentos oficiais e dezenas de entrevistas no Brasil, Chile e Estados Unidos desafiam uma série de noções históricas — à direita e à esquerda — sobre como o regime militar brasileiro se envolveu no golpe de Estado que retirou do governo chileno o socialista Salvador Allende e colocou em seu lugar uma junta militar comandada por Augusto Pinochet
Mariana Sanches, BBC News Brasil em Washington
Em O Brasil Contra a Democracia, lançado no país em 8/2 pela Companhia das Letras, o jornalista Roberto Simon revela o papel consistente do Brasil no desfecho de 11 de setembro de 1973, no Palácio de La Moneda, sede do poder federal chileno. Naquele dia, quando Allende apontou o fuzil AK-47, presente de Fidel Castro, contra o próprio queixo, o tiro abateu a democracia mais longeva da região naquele momento.
Mas as ações brasileiras começariam muitos anos antes do tiro, logo após a vitória nas urnas do socialista, em 1970, quando coube ao Itamaraty mapear os militares chilenos que poderiam levar a cabo uma ruptura democrática. O Brasil apoiou os conspiradores, isolou o Chile de Allende internacionalmente, propalou a ideia nunca comprovada de que havia no país campos de guerrilheiros, e, depois do golpe, ajudou na construção do aparato de repressão de Pinochet.
Ao agir dessa forma, de acordo com Simon, o regime anti-comunista do Brasil perseguia seus próprios interesses. Para o Conselho de Segurança Nacional, o Chile de Allende era a "nova cabeça de ponte do comunismo internacional", potencialmente muito mais perigosa ao Brasil do que Cuba, por sua proximidade geográfica e pelo grande número de exilados brasileiros no país.
E nesse intento, um dos órgãos da burocracia brasileira teve especial importância: o Itamaraty. Simon desmonta a noção de que durante o regime ditatorial brasileiro, os diplomatas se encastelaram em assuntos de interesse permanente do país, distantes das atrocidades do governo corrente. Ao contrário, nas páginas de O Brasil Contra a Democracia o Itamaraty se revela peça fundamental da repressão do Estado brasileiro.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista à BBC News Brasil.
BBC News Brasil - De que maneira a ditadura militar brasileira atuou para destruir a democracia e consolidar um regime autoritário no Chile?
Roberto Simon - De várias formas. O Brasil apoiou atores que estavam conspirando contra a democracia no Chile, atuou para isolar diplomaticamente o Chile e identificar militares que poderiam se aventurar num golpe de Estado contra Allende. Apoiou grupos de extrema direita, como o neofascista Patria y Libertad e, no momento do golpe, o Brasil deu enorme apoio. Foi o primeiro país a reconhecer a junta militar liderada por Augusto Pinochet e ajudou na montagem do aparato de repressão do governo Pinochet. O país garantiu apoio político, diplomático e econômico ao governo Pinochet.
E ao mesmo tempo em que tomava ações diretas, o Brasil também desempenhava um papel de modelo para o Chile: o golpe de 1964 contra João Goulart era visto pelos algozes do governo Allende como um exemplo. Na visão dos que derrubaram o governo Allende, o Brasil tinha, com sucesso, derrotado um governo de esquerda populista para criar um regime autoritário que promovia um crescimento ordenado. Nos anos 1970, o Brasil era o país que mais crescia no mundo percentualmente e os chilenos olhavam aquilo como uma grande lição. A ideia de você ter um regime anti-comunista que colocasse ordem no país e que eliminasse o risco de uma revolução socialista era algo que eles buscavam.
BBC News Brasil - E do lado do Brasil, qual era o interesse do governo brasileiro em ter Pinochet no poder?
Simon - Quando Allende é eleito, em 1970, o Brasil toma um grande susto. O Brasil acreditava que o candidato de direita, (o conservador Jorge) Alessandri ganharia. É importante dizer que Allende era um revolucionário de fato, não era como a centro-esquerda europeia da época, não era um reformista. Ele tinha uma proposta de acabar com o capitalismo no Chile e impor uma economia socialista, mas o faria não por meio de uma revolução armada, mas pelas urnas, o caminho eleitoral que os chilenos chamavam de uma "revolução a empanadas e vinho tinto", em vez de fuzis e paredões.
Os documentos brasileiros da época começam a se referir ao Chile como a "nova cabeça de ponte do comunismo internacional." Parte da imprensa brasileira daquela época chama o país de "Nova Cuba na América Latina", só que muito mais preocupante para o Brasil porque o país não estava no Caribe, mas estava aqui do lado na América do Sul. E é bom lembrar que naquele momento do golpe havia milhares de exilados brasileiros vivendo em Santiago.
Então, dentro desse contexto a da Doutrina de Segurança Nacional da ditadura, o Chile desponta como a maior ameaça regional ao Brasil. E é aí que os militares brasileiros se debruçam sobre várias maneiras de lidar com essa ameaça. Não só os militares como também o Itamaraty.
BBC News Brasil - O regime de Pinochet é considerado um dos mais violentos do mundo, enquanto que a ditadura brasileira é citada por alguns como supostamente (e comparativamente) mais branda na repressão. De que maneira as descobertas do livro desafiam essas noções ao entrelaçar a história dos dois regimes?
Simon - O aparato de repressão no Chile foi construído com enorme apoio do Brasil. Vários agentes da Dina, a polícia secreta do Pinochet, receberam treinamento do SNI (Serviço Nacional de Informações, o órgão de espionagem brasileiro) no Brasil. Um dos líderes da inteligência chilena no final dos anos 1970 era adido militar no Brasil, em 1974 — e mais tarde foi condenado pela Justiça chilena (por crimes da ditadura).
Então, é difícil separar onde começa a repressão brasileira e termina a repressão chilena até porque após o golpe os dois países começaram a compartilhar informações sobre exilados. O Brasil queria muito saber sobre o destino de exilados brasileiros que viviam no Chile, e isso ia desde pessoas que haviam sido banidas do Brasil, trocadas por diplomatas sequestrados no Brasil, guerrilheiros etc, até intelectuais de esquerda, professores, que não tinham nenhum vínculo com a luta armada mas a ditadura decidiu cassá-los e tentar rastreá-los.
O Brasil enviou agentes ao Estádio Nacional, o principal estádio do Chile que se converteu num grande campo de prisioneiros no imediato pós-golpe (estimados 40 mil prisioneiros passaram por lá). O Chile não tinha a capacidade de prender tanta gente, então eles usaram o estádio e foi um dos grandes antros da tortura e das mais bárbaras violações de direitos humanos no Chile. E o Brasil enviou uma missão de agentes da repressão para o estádio para ajudar no interrogatório de brasileiros.
Aí há duas narrativas: eu entrevistei um capitão da Força Aérea Brasileira que esteve dentro do Estádio Nacional e admite que viu cenas de violência muito fortes, mas disse que os brasileiros não torturaram. Mas ao falar com alguns dos cerca de 50 brasileiros que ficaram presos por várias semanas ou meses no Estádio Nacional, eles dizem que foram torturados por agentes da repressão do Brasil. E chilenos presos também dizem ter sofrido tortura de agentes brasileiros.
É um momento que, por exemplo, a palavra "pau de arara" entra nesse vernáculo da repressão chilena, uma palavra completamente vinda do português brasileiro, do nada ela aparece no Chile. Então você vê todas essas conexões acontecendo muito rapidamente no imediato pós-golpe.
BBC News Brasil - Qual foi o papel do Brasil na organização da Operação Condor?
Simon - De acordo os documentos da inteligência americana, o Brasil primeiro tenta controlar a Operação Condor e depois meio que pula fora preferindo uma colaboração bilateral entre agências de repressão que havia sido a colaboração que a ditadura sempre preferiu e sempre operou. A ditadura (brasileira) colaborou com os uruguaios, nos anos 1960, quando parte da cúpula do governo Jango foi para Montevidéu. Havia colaborado e já vinha colaborando com Argentina muito antes do golpe na Argentina, incluindo um sequestro de brasileiros em Buenos Aires, e era esse tipo de colaboração, um a um, que o governo militar realmente queria em vez de um grande consórcio regional na luta contra a oposição.
O Brasil se via como um país muito mais importante que o Chile, como uma potência regional e não estava disposto a seguir ordens ou a liderança do Pinochet, sem algum controle direto (das ações). Em um dado momento da Operação Condor, os chilenos e os argentinos, no pós-golpe na Argentina, decidem lançar uma missão para assassinar opositores sul-americanos na Europa, e o Brasil se opõe a isso, de acordo com os documentos da inteligência americana.
O Brasil não queria esse tipo de coisa, isso já no governo Geisel. Então, está claro que o Brasil espionava seus opositores na Europa e usava agentes de repressão dentro do Itamaraty para mapeá-los, mas assassinar brasileiros exilados na Europa era um rubicão que a ditadura não cruzaria.
O Brasil era um protagonista (na Operação Condor) porque era do ponto de vista geopolítico o país mais importante da região. Era um protagonista importante, mas não compartilhava os objetivos máximos que os argentinos os chilenos e os uruguaios tinham. E em março de 1974, seis meses depois do golpe no Chile, começa o governo Geisel no Brasil, com a proposta de iniciar uma lenta, gradual e segura transição rumo a um governo civil e de levar os os militares de volta à caserna, partir para essa fase de descompressão política. Então, na verdade, o Brasil estava numa trajetória quase oposta à Argentina e ao Chile nesses meados dos anos 1970.
BBC News Brasil - Um grande número de brasileiros se exilou no Chile em um dado período. Existe alguma evidência de que o Chile sob Salvador Allende tivesse se convertido em campo de treinamento para guerrilheiros socialistas, inclusive brasileiros?
Simon - Santiago se tornou a capital do exílio brasileiro no final dos anos 1960, antes mesmo da vitória do Allende, em 1970. E muitos brasileiros entraram na vida política chilena, se a gente parar para pensar no establishment da nova república brasileira, há Fernando Henrique Cardoso, Marco Aurélio Garcia, José Serra, César Maia Paulo Renato Souza. Todos eles estiveram no Chile e ocuparam postos no PT, PSDB, PMDB, DEM, todos esses partidos tinham figuras que passaram pelo Chile.
Mas em relação à luta armada, o Chile nunca foi um lugar de luta armada. A revolução chilena era uma revolução, usando a linguagem da extrema esquerda da época, pra ser feita por meio do Estado burguês. Eles elegeriam uma grande coalizão de esquerda, de socialistas, comunistas e outros marxistas e, uma vez no poder, eles converteriam o Estado na grande máquina revolucionária.
Mas, de acordo com o que dizia Allende, isso seria feito respeitando as regras do jogo democrático. De fato, Allende nunca rompeu com isso, nunca tentou censurar a imprensa, nunca tentou fazer esse tipo de coisa de subverter a ordem democrática. E o que é principal, e os documentos da CIA dizem isso explicitamente, Allende entendia que era fundamental ter boas relações (com países) e conter essa campanha internacional contra o Chile para conseguir fazer as transformações internas.
Então, por exemplo, ele começou a controlar o número de asilos diplomáticos, asilos territoriais, que o Chile concedia a esquerdistas brasileiros. Se tivesse uma pessoa que tivesse cometido um crime de sangue ou que houvesse suspeita que fosse um infiltrado, não poderia ir para o Chile. Então, as aulas de guerrilha continuaram a ser em Cuba, alguns foram para a China, outros para a Coreia do Norte, mas não há absolutamente nenhuma evidência de que havia campos de guerrilheiros no Chile, que o Chile tivesse cursos de guerrilha.
BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro já disse a ex-presidente chilena Michelle Bachelet que se o regime de Pinochet não tivesse matado gente como o pai dela (um militar morto na repressão), o Chile hoje seria uma Cuba. Faz sentido?
Simon - Essa apropriação histórica do Chile estava fora do horizonte quando o livro começou a ser escrito em 2013. Era impensável que um presidente do Brasil ou grandes figuras da política brasileira idolatrassem Pinochet ou falassem que a tortura não era um problema ou mesmo que o ministro da Economia se declarasse um Chicago boy (em referência ao grupo de economistas da Universidade de Chicago que adotaram medidas liberais na economia chilena durante a ditadura). Esse tipo de coisa era impensável, basta lembrar onde estávamos em 2013 (governo Dilma Rousseff, vítima de tortura da ditadura brasileira, com o desenvolvimentista Guido Mantega no controle da economia).
E também tem grandes contradições aí porque hoje se sabe que Pinochet tinha fortunas escondidas em offshores internacionais, uma investigação do Senado americano revelou. Ele era um grande corrupto. Sabemos que a polícia secreta dele estava envolvida diretamente com o narcotráfico, além das maiores barbáries e violações de direitos humanos. Foi o Pinochet que ordenou um atentado terrorista no centro de Washington. O governo (americano de Ronald) Reagan tinha péssimas relações com Pinochet.
Então, há uma mitologia do Chile importada ao Brasil e é completamente distorcida e descolada da realidade.
E também há hoje no Brasil outros aspectos que se conectam com o passado. O modo como o Ministério das Relações Exteriores naquela época reagia à campanha internacional de denunciar a tortura no país, que tem alguns traços semelhantes, guardadas as proporções, com o que a gente está vendo agora com a campanha internacional pela defesa do meio ambiente no Brasil, como o Brasil rapidamente pode se tornar um pária internacional.
E muito como a ditadura naquele momento, parece que o atual governo brasileiro entende que se trata de uma batalha de propaganda. Que bastava responder naquela época à Anistia Internacional, e agora ao GreenPeace. Ou mandar os embaixadores escreverem cartas para o (jornal francês) Le Monde, para o (diário americano) The New York Times, como também fazem hoje. Ou ainda a noção de que vai combater isso agora mostrando o verdadeiro exemplo de cidadãos brasileiros, algo muito parecido com a retórica da ditadura de que as denúncias de tortura eram coisa de brasileiros que odiavam seu próprio país.
A lição que a gente vê dos anos 1970 é que a ditadura nunca conseguiu baixar essa pressão internacional só com propaganda. Isso só parou quando, de fato, o governo parou de torturar seus opositores, já no final dos anos 1970, começo dos anos 1980. E do mesmo modo, a pressão internacional em relação ao meio ambiente no Brasil só vai parar quando o Brasil tiver uma política séria para o meio ambiente.
Então, eu vejo que há uma linha de continuidade nas mentes conspiratórias de governos brasileiros em achar que a representação do fato pode ser mais importante do que o fato em si.
BBC News Brasil - Seu livro mostra que o Itamaraty tinha atuação consistente no aparato de repressão e que não se tratava de um ato isolado de um ou outro diplomata mais simpático à ditadura. Isso desafia a imagem que se tinha de um Itamaraty técnico, não?
Simon - Geralmente, a história oficialista trata esse episódio no Chile como algo de figuras isoladas: o embaixador anticomunista, algumas pessoas da linha-dura do regime militar que por lá se aventuraram. E o livro mostra que na verdade foi o oposto. Havia uma política de Estado para o Chile, que envolvia instituições, agências especializadas dentro do Itamaraty, como o Centro de Informações do Exterior, o Ciex, e a Divisão Segurança Institucional do Itamaraty, a DSI. Aliás, todos os órgãos do governo brasileiro tinham uma DSI, sempre chefiadas por militares, e a do Itamaraty era a única comandada por um civil.
E essas entidades tinham por objetivo espionar brasileiros no exterior, conter campanhas de denúncias dos direitos humanos e, em última análise, se você olhar o que aconteceu com os brasileiros presos no Estádio Nacional, vários deles sob tortura, as decisões de não solicitar salvo conduto a essas pessoas, de não facilitar qualquer tipo de proteção consular, foram tomadas dentro do gabinete do ministro das Relações Exteriores. E todas as informações dessas agências de espionagem do Itamaraty alimentavam o SNI e as agências de inteligência das Forças Armadas. Então, o Itamaraty era parte essencial da repressão a brasileiros fora das fronteiras nacionais. E era essa a cadeia de comando, que ia do Palácio Planalto, Itamaraty, SNI e descia até os porões do regime, onde o Chile era visto como a grande fronteira na luta contra a subversão brasileira.
Houve diplomatas que se rebelaram contra isso, alguns chegaram a transportar listas de torturadores brasileiros em malas diplomáticas, mas o livro mostra que eles foram a exceção que confirma a regra desse colaboracionismo total da instituição. A noção de que o Itamaraty de alguma forma se descolou da ditadura para se ater aos interesses permanentes do Estado brasileiro é um mito, que serviu para proteger o Itamaraty. E é um mito que deve ser desfeito para o bem da política externa brasileira e da democracia. É preciso entender como dinâmicas internas têm um impacto decisivo na relação do Brasil com o mundo.
BBC News Brasil - E isso também desbanca uma outra noção muito presente nas esquerdas brasileira e latino-americanas de que a ditadura brasileira seria um mero ferramental para os americanos exercerem seus interesses na região?
Simon - Na verdade, o Brasil se via como um dos grandes, ou talvez, o principal ator nesse jogo da Guerra Fria regional. Por isso, acabou intervindo em vários países do seu entorno.
O golpe contra Allende foi uma derrota fragorosa da esquerda chilena e da esquerda latino-americana. Naquele imediato pós-golpe, pessoas de esquerda tentaram encontrar explicações. Tem um texto do (autor colombiano) Gabriel García Márquez que diz que os Estados Unidos não precisavam mandar mais seus marines (à América Latina) porque tinha o Brasil para agir por eles. E a imprensa cubana naquela época falava de um eixo Brasília-Washington contra a esquerda latino-americana. Então começa a se criar aquela caricatura de gorilas do Brasil marionetes do Tio Sam.
E é uma visão empobrecedora porque ela afasta essa discussão sobre as motivações geopolíticas, econômicas e diplomáticas que levaram a ditadura brasileira a atuar no Chile. E revendo toda a documentação, uma das minhas conclusões é que de fato houve uma troca significativa de informações entre o Brasil e os EUA no sentido de se opor a Allende e eventualmente apoiar um golpe no Chile.
Há uma reunião importante, em 1971, entre os presidentes Médici e Nixon na qual Médici explicitamente fala ao colega americano que o Brasil estava em contato com militares chilenos e que Allende cairia. Mas depois de revisar milhares de documentos de três países diretamente envolvidos nessa história, eu não achei absolutamente nenhuma evidência de que houve alguma operação conjunta brasileira e americana para derrubar Allende. Havia uma vontade de trabalhar junto e de alinhar visões, mas não houve uma operação da CIA e do SNI para derrubá-lo. Claro que você tem um alinhamento dos dois regimes anticomunistas, o governo Nixon tinha uma enorme simpatia pelo governo Médici. O próprio Nixon dizia para os brasileiros que "somos os maiores aliados que o Brasil já teve na Casa Branca" e também dizia que "o Brasil é o nosso maior investimento na América Latina". Mas no nível operacional, de agentes dos dois países, no Chile, não há nenhuma evidência de que houve uma colaboração direta.
Merval Pereira: O incontrolável
A biografia do capitão Jair Messias Bolsonaro feita do CEPEDOC da Fundação Getúlio Vargas é uma exemplar sucessão de fatos que o levaram à presidência da República devido à leniência com que foi tratado, tanto no Exército quanto no Congresso, onde atuou como deputado federal por 27 anos. Coerente com suas idéias corporativas, e politicamente radical, não teve quem o parasse. Que sirva de lição para os dias de hoje.
Alguns exemplos: em 1986, capitão no 8º Grupo de Artilharia de Campanha, foi preso por ter escrito na revista Veja artigo intitulado “O salário está baixo”. Em 1987, uma reportagem da mesma Veja revelou um plano para uma “Operação beco sem saída”, com o objetivo de “explodir bombas em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras (...) e em vários quartéis”. A operação só sairia do papel se o reajuste concedido aos militares ficasse abaixo de 60%.
Atribuído a Bolsonaro e ao capitão Fábio Passos da Silva, o plano irritou o ministro do Exército, General Leônidas Pires Gonçalves, que convocou os capitães para explicações. Os dois “negaram peremptoriamente, da maneira mais veemente, por escrito, do próprio punho, qualquer veracidade daquela informação”, segundo declaração do próprio general Leônidas.
Mais tarde, porém, testemunhas e provas documentais, como um croqui desenhado pelo próprio Bolsonaro, levou o ministro a se convencer que errara ao inocentar os dois capitães. O resultado de uma sindicância foi enviado ao Superior Tribunal Militar (STM) com pedido de exclusão das Forças Armadas dos dois capitães, o que não foi aceito. Os juízes, por maioria, acataram a defesa dos militares que “se consideravam vítimas de um processo viciado”. Bolsonaro foi para a reserva em 1988, mesmo tendo sido absolvido.
Não foi apenas o General Geisel que o considerou “um mau soldado”. O Coronel Carlos Alfredo Pellegrino, em relatório, disse que Bolsonaro tentava liderar oficiais subalternos, mas não conseguia pela “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos”. No julgamento do STM, foi acusado de ter “grave desvio de personalidade”. Em 1991, no primeiro de seus mandatos de deputado federal, defendeu o retorno do regime de exceção, e o fechamento temporário do Congresso Nacional. Para ele, muitas leis atrapalhavam o exercício do poder e que, “num regime de exceção, o chefe, que não precisa ser um militar, pega uma caneta e risca a lei que está atrapalhando”.
O pronunciamento levou o corregedor do Congresso Nacional, deputado Vital do Rego, a solicitar ao procurador-geral da República, Aristides Junqueira, o início de uma ação penal contra Bolsonaro por crime contra a segurança nacional, ofensa à Constituição e ao regimento interno da Câmara. Em1994 afirmou preferir “sobreviver no regime militar a morrer nesta democracia”.
Sustentando que Bolsonaro havia sido desrespeitoso com o ministro da Administração, Luis Carlos Bresser Pereira, durante depoimento na Comissão de Trabalho, o deputado gaúcho Osvaldo Biochi, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), solicitou sua cassação, mas o máximo que aconteceu foi uma advertência.
Assumiu seu novo mandato na Câmara em fevereiro de 1999 e, em junho, a Mesa Diretora da Câmara propôs ao plenário sua suspensão por um mês, por ter defendido o fechamento do Congresso e afirmado que “a situação do país seria melhor se a ditadura tivesse matado mais gente”, incluindo o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. A Mesa Diretora havia optado por apenas censurá-lo, após ter recebido uma retratação, mas voltou atrás quando Bolsonaro não reconheceu a retratação, afirmando que sua assinatura havia sido falsificada. No entanto, a proposta nunca chegou a ser votada pelo plenário da Câmara.
Em dezembro, voltou a defender o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso. O líder do governo na Câmara, Artur Virgílio, do PSDB, chegou a pedir sua cassação, mas a proposta nunca chegou ao plenário da Casa. Ao votar em abril de 2016 a favor do impeachment da então presidente Dilma Rousseff, Bolsonaro fez uma homenagem ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, identificado como torturador. Foi denunciado ao Conselho de Ética da Câmara, por apologia à tortura, mas nada aconteceu.